A pobreza e as ideias de Justiça

July 23, 2017 | Autor: Mirla Regina | Categoria: Pobreza e desigualdades sociais
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A ideia de pobreza e as ideias de justiça – Uma reflexão
Mirla Regina da Silva Cutrim
Assisti, há alguns meses, uma sequência de documentários no programa Mundo.doc, apresentado no canal Futura. A série, intitulada "Porque pobreza?", atualmente disponível no aplicativo YouTube, evidencia os efeitos da ausência de educação, saúde, salários dignos, soberania nacional, dentre outros, na qualidade de vida de famílias, pequenas tribos ou populações inteiras. A exposição realista das mazelas sociais deixa ainda mais claro algo que a história não pode negar: nossa evolução milenar não foi suficiente para solucionar e superar a privação de direitos básicos, que tem feito parte da narrativa do homem.
O Brasil tem vivido um momento fértil nesse debate, na sociedade, nas redes sociais, instituições públicas e no meio acadêmico. A Constituição Federal elevou a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades ao patamar de objetivo fundamental da República, garantindo direitos sociais básicos. Programas oficiais de erradicação da pobreza tem sido sucessivamente implantados, com vistas ao enfrentamento do problema por meio de políticas públicas que concedem ajuda financeira, habitacional, segurança alimentar, nutricional, capacitação e microcrédito, dentre outras medidas. Não é difícil lembrar do Programa Comunidade Solidária, de 1995, do Programa Fome Zero, de 2003 e do recente Plano Brasil sem Miséria, de 2011.
As teorias sobre o assunto permanecem, inarredavelmente, apegadas à dicotomia direita/esquerda do último século, cada vez mais exacerbada. Porém, se contextualizarmos o tema para o momento atual, e olhando, deste ponto, para um tempo que prenuncia o surgimento de um novo tipo de sociedade globalizada, com a qual não sabemos ainda ao certo como lidar, é interessante avaliar se podemos recorrer a valores que transcendem doutrinas, tempos e épocas, já que a pobreza, como foi visto, sempre acompanhou a história humana.
Compartilho do entendimento do cientista social Zigmunt Bauman, para o qual "os pontos de referência e as linhas de orientação que hoje parecem confiáveis, amanhã serão identificados como equivocados". Isto significa que vivemos em tempos de incerteza, numa sociedade cada vez mais líquida. Partindo dessa premissa, qualquer discussão mais ampla sobre a pobreza conduz inevitavelmente ao exame de ideias ou referências que ultrapassam uma determinada época, tais como justiça social e bem comum. Em outras palavras, significa dizer que, para frutificar em algum consenso mínimo, o debate de temas como esse deve vencer também a sua limitação a um determinado ramo de estudo ou ponto de vista autoral, o que só é possível mediante convergência a ideias universais que, querendo ou não, o perpassam inevitavelmente, como, por exemplo, a ética e as ideias de justiça.
Assim, sobre a pergunta "Porque pobreza?" surge uma nova, pela qual deve se indagar qual a contribuição que a ciência jurídica pode trazer ao debate sobre esse assunto. Obviamente que, seguindo a premissa da mínima observância às ideias universais, será necessário um longo passeio pela história humana, desta feita, seguindo as ideias de justiça.
A mais antiga ideia de justiça vem do filósofo grego Aristóteles (384 a.C), e envolve o cultivo da virtude e a preocupação com o bem comum, buscando, porém, discutir e compreender as virtudes que uma determinada prática social deseja recompensar, para justificar uma diferença entre os homens.
Quando, por exemplo, uma universidade federal seleciona os melhores aprovados no ENEM, está resgatando nada menos do que essa ideia aristotélica, ao evidenciar um critério de justiça discriminatório (diferenciador), embasado na seleção dos alunos pelo mérito da capacidade intelectual. A discriminação, assim vista, busca estimular uma virtude, o conhecimento.
Avançando um pouco mais para a época do Iluminismo, chegamos a Jeremy Bentham (1748), defensor do utilitarismo, segundo o qual deve-se buscar a máxima felicidade para o máximo de pessoas. Aqui, a ideia de justiça é uma simples questão de cálculo, e não leva em consideração as diferenças qualitativas das necessidades e bens humanos. Levada ao extremo, ela admite, por exemplo, a tese de que uma única pessoa, ou mesmo uma criança, possa sofrer torturas eternas em um calabouço, desde que isso resulte no bem-estar de um grupo mais amplo ou de toda uma população.
Chegando ao nosso tempo, encontramos uma das mais debatidas ideias de justiça – a justiça como equidade -, que preconiza o respeito à liberdade de escolha, mas exclui a verificação do valor moral, deixando-o fora da concepção de justiça, pelo menos no espaço público. O jurista liberal americano John Rawls (1921-2002) toma como ponto de partida a seguinte definição do problema: "Como pode existir uma sociedade justa e estável de cidadãos iguais que permanecem profundamente divididos por doutrinas razoáveis de caráter religioso, filosófico e moral?" A partir daí, constrói a teoria da escolha racional, baseada na possibilidade de obtenção de benefícios individuais iguais para todos, num sistema liberal. Porém, ela impede o recurso à ética na esfera da razão pública, evitando a invocação de sentimentos morais de aprovação ou indignação diante certas práticas, como por exemplo, o aborto, o impacto da liberação das drogas ilícitas na sociedade ou do trabalho escravo, ou ainda, da morte de uma criança negra, por fome, ao vivo, diante das câmeras.
Rawls demorou cerca de quarenta anos para concluir sua teoria de justiça como equidade, na qual defendia a liberdade, a igualdade, uma "cooperação social" e ainda o princípio da diferença, pelo qual as desigualdades econômicas na distribuição de renda só seriam aceitas numa sociedade se levassem em consideração a concessão de benefícios aos menos favorecidos, tese que podemos ver concretizada no artigo 6º da nossa Lei Maior.
Hoje predomina a ideia liberal de que a questão ética deve permanecer na esfera individual, fora do espaço coletivo. Todavia, alguns fatos estão reacendendo essa discussão e trazendo Aristóteles de volta à vida, no momento em que a sociedade reclama uma virtude pública quando discute, por exemplo, corrupção, miséria e suas consequências, como a violência e a exclusão.
Como visto, as duas últimas teorias excluem o campo da moral na ideia de justiça, principalmente no que se convencionou discutir no espaço público, buscando princípios neutros e permitindo que as pessoas façam livremente suas escolhas. É a teoria mais antiga, contudo, que volta a exigir do homem uma avaliação sobre o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto, deliberação que, para alcançar o bem de todos, só pode ser feita no espaço público/político.
Como são várias as ideias de justiça, é de fácil percepção que a humanidade não vai encontrar rapidamente uma resposta satisfatória à tormentosa questão da pobreza. A cada geração, surge uma determinada teoria e suas vertentes e políticas públicas, a partir das quais, outras vão surgindo ou ressurgindo.
Portanto, fica muito claro que a maioria dos debates sobre pobreza e sobre outros temas socialmente relevantes, não podem mais ser vistos separadamente em uma única ciência, tendo em vista que giram em torno de outros eixos, como bem-estar, liberdade, igualdade, solidariedade, desenvolvimento e respeito aos direitos individuais.

Nessa linha de raciocínio, refletir sobre o tema da pobreza ou da desigualdade envolve medidas muito maiores do que encontrar e definir simplesmente os critérios de distribuição de renda. Com efeito, há muitos outros aspectos envolvidos que conduzem o ser humano a uma direção oposta ao individualismo que hoje permeia a nossa sociedade.
Vale relembrar que um dos objetivos do milênio é justamente promover sociedades mais pacíficas (o que significa mais tolerantes) e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, além de proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes e responsáveis em todos os níveis.
Se de um lado a sociedade atual caminha cada vez para o individualismo, é bom lembrar que uma sociedade justa requer, minimamente, nas palavras de Michael Sandel (1953), um forte sentimento de comunidade, incutindo nos cidadãos "uma preocupação com o todo, uma dedicação ao bem comum", o que significará, ao final, um retorno ao cultivo da virtude cívica. Portanto, exige-se um comprometimento moral com o outro (alteridade). Para esse autor, a distribuição justa de renda e riqueza tem sido uma constante nos debates filosóficos e políticos, mas a tendência "de estruturar a questão em termos de utilidade ou consentimento leva-os a desconsiderar os argumentos contra a desigualdade mais capazes de sensibilizar politicamente a população".
Michael Sandel é um jurista conservador americano, que reacendeu recentemente o debate sobre as virtudes morais no mercado, trazendo inúmeros exemplos que evidenciam que, nas situações cotidianas, não temos como fugir de uma avaliação moral das condutas políticas e econômicas.
Mencionados os juristas, inarredável citar aqui pelo menos um economista, que destaco na pessoa do professor indiano Amartya Sem(1933), Nobel de Economia em 1998, que reacendeu (ou atualizou) uma quarta teoria da justiça – a teoria da escolha social, baseada no comportamento real das pessoas, e não em sociedades utópicas e perfeitas, como aquelas que lastreiam a teoria da escolha racional de Rawls. Nessa linha, a ideia de justiça se aproxima mais do pragmatismo: a definição do problema que Amartya faz é "o que fazer para tornar o mundo menos injusto?".
Apesar da minha simpatia, em parte, pela ideia aristotélica da justiça teleológica, como virtude na busca pelo bem comum, porque nos permite abrir algum debate sobre o justo e o injusto, e pelas ideias de Amartya Sen, não apresento aqui nenhuma pretensão de apontar uma dessas teorias como a mais correta, mas ressalto a necessidade de um chamamento de todos à tolerância, mas uma tolerância comprometida com o respeito e a alteridade, pois se nesse mundo em que vivemos já não é possível uma única verdade, ainda é possível um chamado à ética.
Nosso grande desafio, neste século líquido, não é alcançar uma sociedade utópica, perfeita ou ideal, mas atuar fortemente para que hajam parâmetros o mais justos possíveis (ou menos injustos), de modo a alcançar uma eliminação gradativa da pobreza, em todos os seus aspectos, e onde possam conviver, com tolerância e estabilidade, cidadãos com diversas vertentes de pensamento, crença e filosofia de vida. Para tanto, é urgente discutir se temos mesmo que ignorar ou evitar a questão da virtude moral no debate público, mesmo com as naturais divergências que ele traz, para em seguida refletir sobre como reverter as desigualdades sociais que reduzem sobremaneira nosso sentido de civilização.
Mesmo assim, a partir da pergunta original, outras maiores perguntas nascem e ainda nascerão. Porque pobreza? Ainda que superada a satisfação de necessidades primárias, pergunto-me quando estaremos aptos para elidir a pobreza, em todos os seus outros aspectos.
Em tempos líquidos como os que se aproximam, a narrativa histórica, por si só, em sua sequência, nos trará a resposta.


CF. Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição
http://www.brasilsemmiseria.gov.br/, acesso em 10 de abril de 2015.
BAUMAN, Zygmunt. Cegueira Moral, a perda da sensibilidade na modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. P. 54
SANDEL, Michael. Justiça, o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. P.327.
SEN, Amartya. A ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. P. 122.



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