A POESIA DE BAUDELAIRE E O HINO AO SENHOR DO BONFIM: CRUZAMENTOS DA LITERATURA FRANCESA E A CULTURA BAIANA.

July 6, 2017 | Autor: Silvania Cápua | Categoria: Charles Baudelaire, Literatura Francesa, Cultura Baiana
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Anais Eletrônicos do III Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 3, 6 a 8 de junho de 2011. ISSN: 2175-4128

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AS INFERÊNCIAS SOCIOCULTURAIS/ENTONACIONAIS DO LEITOR PARA A CONSTRUÇÃO DA LEITURA Neila Nazaré Coêlho de Souza Menezes (UFS) 1.

INTRODUÇÃO Para iniciar o processo de leitura é preponderante que a realização desta

atividade se construa gradativamente em busca do êxito na compreensão dos sentidos do texto, e na ênfase no leitor, que é o real responsável por esta construção de sentido ou quiçá por uma provocação, na qual o texto se inquieta na espera de ser saboreado. Como escopo para a construção desse trabalho, dedicaremos atenção a algumas leituras de especialistasi em literatura e leitura, que são pertinentes na sedimentação do entendimento quanto ao estudo de leitura. E agregaremos informações no âmbito dos fenômenos entonativos em língua espanhola. Notoriamente, faremos uso de Manuais de Fonética e Fonologia de Língua Espanhola.ii, para que obtenhamos maior clareza quanto a objetivo sócio-cultural e entonacional do ato de ler. Esse trabalho propõe caminhar em uma direção que suscite a relevância das inferênciasiii sociais do leitor, e a proposta de um recorte dos estudos entonacionais no tocante as influências que estes estudos desencadearão na

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leitura, mais precisamente de textos escritos conversacionais. De fato as inferências do leitor no texto alicerçarão a construção do discurso, que se impregna dos conhecimentos de mundo que o leitor sedimenta ao decorrer das experiências sociais que mantém por meio da interação entre falante – ouvinte. Ao citar o termo inferência, tanto no âmbito sociocultural quanto no entonacional, nos colocamos desde um ponto de vista construtivo, no que diz respeito ao papel atuante do leitor na leitura, ou seja, o leitor constrói a leitura ao apóia-se nestas inferências. Certamente é plausível dita explicação, dado que, o termo possa causar equívocos para os leitores que dão primazia ao leitor que somente vislumbra a estética do texto, e por corolário rechaça os espaços vazios que o texto nos possibilita conquistar. Portanto, concernente às inferências socioculturais, fazemos uso da corrente de desconstrução do texto, que objetiva sensibilizar o leitor para a leitura, a partir de um recorte social, que possibilitará a construção de uma primeira imagem coerente do mundo, e que posteriormente assegurará leituras mais complexas e nuançadas quanto ao entendimento do texto. Quanto às inferências de cunho entonacional, que também compartilha do fazer sociocultural, cabe ressaltar a importância deste fenômeno prosódico para a obtenção da compreensão de textos, dado que, as implicações que trazem os enunciados, são particulares, assim, cada enunciado define uma curva entonativaiv, logo a entonação é significativa (cf. SOSA, 1999, p.29), e o entendimento desta promoverá a melhor compreensão da leitura.

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2.

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O PROPÓSITO DA LEITURA E DO LEITOR. Compete-nos aqui clarificar a priori, para quem serve a leitura? E, por

conseguinte, diagnosticamos que há um destino, um receptor que deve usufruir desta,

e

atribuí-la

sentido,

noções,

pressuposições

coerentes.

Sabe-se

evidentemente que estas atribuições estarão nutridas de valores sociais, culturais, e o entonativo, que apesar de não ser um valor contribui enquanto fenômeno social, que para nós é tão inteiriço ao discurso quanto os demais já mencionados. O propósito que focalizamos aqui neste artigo é a compreensão da leitura em textos conversacionais, já que, sugerimos avaliar a inferência que permeia o campo entonativo, o qual nos ajuda a sinalizar pausas essenciais, que ajudam no entendimento da leitura compreensiva. Ainda é relevante mencionar que a entonação é notada não somente na oralidade, mas também nos conduz a leituras de textos escritos, uma vez que, na escrita se registra traços da fala, e assim reflete traços entonativos marcados sociolingüisticamente. Ao analisar as questões da fala e da escrita no âmago da leitura, se concebe como atos individuais que se agregam à prática social (MARCUSCHI, 2005, p. 39), logo tanto na fala quanto na escrita há influências socioculturais em jogo. Quanto às leituras no domínio da fala é conveniente distinguir as questões de

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familiaridade que obtemos com os receptores. Por exemplo, ao interagirmos com pais, irmãos, amigos usaremos um tipo de texto oral, naturalmente discordante de uma proposta de interação oral com burocratas. Portanto, os textos orais representam códigos fônicos distintos, em si, no que condiz ao foco social (neste caso, considera as distinções de relação de formalidade e informalidade) e que certamente repercutirá nas inferências conversacionais prosódicas (quanto à velocidade da fala, a entonação, o tom, as hesitações) Evidentemente que diante desta postura social, que se agrega à leitura, tomamos por base o foco no Leitor Implícitov (ISER apud COMPAGNON, 2001, p. 149), que solicitará um leitor realvi, e, por conseguinte, aquele imporá uma construção textual, que designará uma rede de estruturas, que clamará respostas quanto ao entendimento do texto, que doravante competirá ao leitor real dotá-lo de interpretações quanto a novos indícios e antigos indícios no cerne do seu repertorio individual. Para Iser (1972) ‖A leitura é vista como uma modificação de expectativa, pelos encontros imprevistos ao longo do caminho, parece-se como uma viagem através do texto‖ (COMPAGNON, 2001, p. 152), logo as questões sociais, históricas, culturais trazidas pelo leitor refletem um arquivamento de um repertorio próprio a cada individuo. Assim, para que a leitura se realize,deve haver um ponto de interstício entre o repertorio do leitor real e o do texto, ou seja, do leitor implícito. No que tange ao sentido do texto, isto é, à fenomenologia do

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ato individual de leitura, Roman Ingarden e Iser (cf. COMPAGNON, 200, p. 150) afirmam que:

O sentido deve ser produto de uma interação entre os sinais textuais e os atos de compreensão do leitor. E o leitor não pode desprender-se dessa interação; ao contrário, a atividade estimulada nele o ligará necessariamente ao texto e o induzirá a criar as condições necessárias à eficácia desse texto. Como o texto e o leitor se fundem assim numa única situação, a divisão entre sujeito e objeto não funciona mais; segue-se que o sentido não é mais um objeto a ser definido, mas um efeito a ser experimentado.

A leitura provoca o leitor, e cabe a este não deixá-la a deriva, e assim Eco (2003) constrói o leitor – semântico, que se estabelece com a intenção de buscar a carga semântica do texto, sem permitir o encalhar da leitura. Salienta-se que este é sem dúvida ainda um leitor primário, sem tanta perspicácia no ato da leitura, porém que tem seu valor quanto à possibilidade do leitor criar sentidos, pressuposições cabíveis, cooperações textuais, de acordo com suas próprias questões sociais e culturais. Assim, tomamos como essencial agregar à nossa construção de leitura, a perspectiva de um leitor – semântico, porque este contemplará uma leitura engajada nas questões de inferências sociais e culturais do leitor e certamente incidirá no foco entonativo no ato da leitura, posto que, a variação entonacional dos falantes ou leitores, que se marca devido às distinções sexo, idade, comunidade geográfica e social são fatores que incidem no como a leitura se

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construirá, e isso por certo afetará o semântico e a intenção precípua do texto. Segundo Luiz Costa Lima (1979) é necessário que se evidencie a promoção de uma leitura quanto à análise da experiência estética ou a estética da recepçãovii,que participe de inferências que se estabeleçam com outros textos, que conduza ao entrelaçamento com vínculos socioculturais do leitor. Este contributo de Costa Lima (1979) é sem dúvida cabível e essencial para renascer a possibilidade de nova interpretação do texto pelo leitor, porém cabe evidenciar que o estético, em sua essência, se afasta do cotidiano, e notoriamente o conhecimento do sujeito sofre alteração devido à ação do efeito estético, e, por conseguinte a experiência do diverso e o questionamento dos valores do sujeito só serão abordáveis a partir da gama prévia deste saber estético. Logo, a teoria da estética da recepção deve indiscutivelmente dar corpo a essa nova leitura social e sem melindres em focalizar o movimento sincrônico e diacrônico que é cabível ao texto. Este movimento é o balanço entre a corrente da estética da recepção e o da autonomia do leitor quanto à leitura. De acordo com (GUMBRECHT, 1979, p.13) ―compreender as condições de formações diferentes de sentido, realizadas sobre um dado texto, por leitores que estão de posse de disposições recepcionais mediadas por condições históricas distintas‖, se entende que as condições sócio-históricas e culturais permeiam à construção do texto por meio de um preenchimento de lacunas e indeterminações (c.f COMPAGNON, 2001, p. 150)

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A LEITURA E O EVENTO COMUNICATIVO INTERACIONAL. Depois de discorrermos quanto à tessitura da leitura no mérito de alguns

especialistas no assunto, tomemos como evidencia a interação lingüística, que se dispõe a operar no domínio da oralidade e da escrita. Primeiramente, nos compete associar que esta interação se inicia quando crianças, e indubitavelmente se realiza na oralidade, ou seja, através do primeiro contato que mantemos com a linguagem, e, por conseguinte esta modalidade comunicativa continuará por uma vida inteira. É notório que os códigos dos textos escritos são distintos dos falados, e isso implica em considerações formais. O texto falado tende a ser plurissistêmico, ou seja, impressões de fatores verbais e não – verbais, envolve interação direta (face a face) no mesmo tempo social em contextos imediatos, espontaneidade, pouca fixidez temática, a organização textual exibe maior freqüência de redundâncias, repetições, autocorreções. O texto escrito é dependente do canal verbal, tende ao monólogo, o tempo de produção não costuma coincidir com o de recepção, caráter menos envolvente, maior fixidez temática, compacidade, integração e elaboração. Diante destas diferenças formais quanto à ―dicotomia‖

viii

(fala e escrita) é

instaurado os termos dependência situacional, para a fala e dependência textual, para a escrita (cf. MARCUSCHI, 2005, p. 43). Estas dependências criam o evento

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comunicativo interacional, que alberga vozes de conhecimentos socioculturais do leitor. O certo é, que a compreensão de um texto tanto na modalidade oral quanto na escrita, nos exige operar através de condições para o deslanche da leitura. Abaixo se classificam estas condições tão pertinentes a este estudo, fundamentadas em (cf. MARCUSCHI, 2005 p.51) A condição de base textual, que delimita a organização do texto e transmissão de sentidos compreensíveis; condição de conhecimentos relevantes compartilhados, que seriam os de base social, que envolve o saber coletivo, a necessidade da interação entre leitor e ouvinte; condição de coerência compete à compreensão, a coerência temática que se constrói tanto na produção quanto na recepção do texto; condição de cooperação enfatiza que a compreensão se dá como uma atividade interacional em situações concretas de produção e recepção, por meio de negociações bilaterais que se evidenciam na colaboração mútua; condição de abertura textual é a proposta de ―n‖ possibilidades interpretativas dentro de alternativas aceitáveis; condição de base contextual requer a presença de contextos situados num tempo e espaço definidos pelo leitor e o ouvinte; e a condição de determinação tipológica considerará o tipo de texto, pois cada um carrega em si condições restritivas específicas, tanto de contextualização como de indeterminação. A partir das propostas de Marcuschi (2005) para a realização da compreensão da leitura, percebemos que há uma cadeia de interação entre os

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fatores condicionantes para um bom entendimento do texto. E que não basta utilizarmos estas estratégias citadas anteriormente, no propósito somente de elencá-la como ―um jogo de adivinhação‖ (cf. MARCUSCHI, 2005 p.52), mas sim mostrar o quanto este processo de leitura é complexo e árduo, dado que incidem na percepção de elementos visuais, saliências textuais, predições e teste de hipóteses, e confirmação e reconstrução para chegar a um produto final. Dessa forma, para (cf. MARCUSCHI, 2005, p.52) ―a compreensão é em realidade um jogo de inferências‖, que concluiremos como impressões sociais, culturais e agregaremos mais adiante as entonacionais. Quanto ao texto falado é imprescindível perpassar pelas inferências do emissor no tocante ao texto, e como este se constitui em uma prática social, sendo um ato individual. Então, como extrair uma prática social de um ato individual? Essa é uma proposta feliz que aderimos para a realização da leitura de textos (em voz alta), pois a fala sinaliza como ato individual porque é um registro que constituímos sem necessariamente necessitarmos do coletivo, porém o social é tido como dependente do individual, já que a sociedade só se cristaliza com a fala. Para isso, faremos um recorte quanto ao fator fonológico da entonação, que se sustenta na fala, e que infere plausivelmente na atividade de compreensão de texto, ao esclarecer o quanto a entonação identifica o tipo de discurso estabelecido entre falante – ouvinte. Então, sugerimos a leitura da fala, ou seja, ler e extrair os significados do texto por meio de estímulos sonoros.

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LEITURA E ENTONAÇÃO O fato de estudar leitura e como conseqüência a relação que esta mantém

com o leitor, aguça aos nossos olhos à ênfase ao estudo da entonação, por isso a necessidade de ampliar ao foco da leitura, esta colocação prosódica tão pertinente à linguagem. Para que possamos deixar este estudo mais esclarecedor é conveniente definir a entonação. Segundo (MORENO, 2002, p. 24),

la entonación es un cúmulo de rasgos prosódicos – entre los que cabe destacar la frecuencia fundamental, en primer lugar, así como la cantidad de intensidad y las pausas, en segundo lugar – que emplean los hablantes de una lengua o de un dialecto con fines comunicativos.

Para que entendamos o interesse de incorporar os conhecimentos entonativos

neste

estudo

quanto

à

leitura

em

textos

particularmente

conversacionais, é fundamental, a priori, compreender que a ―função básica da entonação é transformar umas unidades lingüísticas (palavras, sintagmas, orações, frases) em unidades discursivas e comunicativas (enunciados, emissões, diálogos, monólogos)‖, esta é a função que (cf. CORTÉS MORENO, 2002, p.26) denomina integradora. E em segundo lugar, o cumprimento de uma função

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integradora-delimitadora, ou seja, que aglutina cada unidade entonativa, ao mesmo tempo que a separa das demais do discurso. Logo, este funcionamento primordial da entonação contribuirá para estruturar a fala em geral, e cada turno da fala, em particular, em porções discursivas significativas e de fácil manejo tanto para o falante quanto para o ouvinte. Assim, é sem dúvida uma valiosa coesão do discurso oral, seja um monólogo, seja um diálogo, é de certo modo, ―a pontuação do código oral‖ (cf. CORTÉS MORENO, 2002, p.26), que sem questionamentos representará papel esclarecedor na compreensão da leitura não só como um ato individual, mas também como detentor de traços sociais. Ao mencionar que no ato da leitura nos colocamos socialmente, e assim agregamos sentido ao texto, sinalizamos que é plausível incluir o fenômeno da entonação na realização deste ato. Haja vista, que o estudo da entonação cumpre funções lingüísticas, paralingüísticas e sociolingüísticas. Segundo, Cantero (1995) ―a função lingüìstica é usada para enunciar, perguntar..., a paralingüística é expressiva, espontânea, e através dela comunicamos a atitude e o estado de ânimo do falante‖ (cf. CORTÉS MORENO, 2002, p.27) Estas funções assumem papéis diferenciados, no que se refere às considerações atribuídas à entonação. Portanto, caso o fator lingüístico seja mais preponderante que o paralingüístico, se considera que a entonação é declarativa ou interrogativa, porém quando ocorre o contrário se considera enfática.

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Para ilustrar um fator paralingüístico, daremos exemplos da mesma frase com os mesmos tonos, porém pronunciadas com diferentes parâmetros emotivos, assim apresentaremos dois pares de orações pragmaticamente opostas, ditas pela mesma falante caraquenha de 37 anos. Na frase: ―Ya llegó mi abogado‖, segundo Sosa (1999, p. 166) a figura 1 exprime alegria, excitação, como participando de algo bom que irá suceder. Já na figura 2, em virtude da pouca variação tonal, junto com a energia articulatória utilizada e a maior duração, faz com que esta frase transmita tristeza, abatimento, depressão. Para que obtenhamos êxito na análise da leitura conversacional dos enunciados é fundamental o esclarecimento dos constituintes do grupo melódicoix: acento tonal (tonos associados com a última sílaba acentuada e um tono de juntura); tono de juntura (movimento tonal com função delimitadora que aparecem ao final das seqüências); tonema última sílaba tônica do grupo melódico); tono alto (representado por H; H*, H%); tono baixo (representado por L, L*, L%).

Figura 1: ¡Ya llegó mi abogado!

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A altura alcançada nesta frase ao final do pretonemax é considerável, até 360 Hz, o que faz percebê-la como , ainda que a freqüência final seja a linha de base tonal aproximadamente de 120 Hz. (SOSA, 1999, p.166)

Fig ura 2: Ya llegó mi abogado. Nesta frase a altura máxima chega somente a uns 220 Hz, portanto comparada a anterior se nota uma diferença quantitativa importante na altura do corpo do enunciado, de uns 140 Hz. (SOSA, 1999, p.166) No nível sociolingüístico, a entonação da conta de aspectos próprios do falante como individuo (idade, sexo, temperamento) e como membro de uma determinada comunidade (extração sociocultural, procedência geográfica). È quanto a este último aspecto sociocultural que pretendemos focalizar nosso estudo, já que, os contornos da enunciação dos textos se diferenciam consideravelmente ao inserir as questões de ordem social, porém todos os aspectos entonativos citados nos gráficos são pertinentes à leitura. Em seqüência trataremos de averiguar o fator sociolingüístico com evidentes inferências socioculturais a partir de duas variantes hispano-

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americanas, sendo a primeira uma variante de Buenos Aires e a segunda de San Juan, Porto Rico (c.f SOSA, 1999, p. 199 e 204)

Figura 3: ¿Le dieron el número del vuelo? Na figura 3, os descensos antes das subidas seguintes estão motivados pelo tono L do acento tonal H*+ L de ―dieron‖, que influencia em seguida o ―número‖ No núcleo (vuelo) se produz uma nova subida que se prolonga até o final pelo tono de juntura H%. Em conclusão, o tono de juntura inicial alto sobe o tono do primeiro pico, o acento tonal H* + L produz um descenso antes do H* seguinte, e o tonema ascendente L+H* H% coincide com a palavra vuelo

Figura 4: ¿Dieron el número del vuelo? Na figura 4, enfatizaremos que a pergunta absoluta do informante portoriquenho apresenta configuração oposta à figura 3. Esta constatação é mantida ao sinalizar que o tonema da figura 4 é descendente com o predomínio da entonação

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circunflexa. O efeito do tonema circunflexo por realização do acento tonal H + H* seguido do tono de juntura L% cabe esperar por um efeito de declinação composto pela seqüência H +H* L%. Depois de retratarmos quanto à leitura dos enunciados e as diferenças socioculturais que repercute na compreensão, tomaremos por base a aplicação da entonação em textos conversacionais. Convém salientar que esta atividade descrita abaixo, foi proposta a alguns alunos de ensino médio e alçamos êxitos na compreensão textual, porque conduzimos os aprendizes a uma leitura que resultaria na compreensão do texto em virtude de uma boa entonação.

Edgardo: ¿De dónde es usted? Leoncio: De Soria Edgardo: ¿Le dominan a usted las mujeres? Leoncio: No pueden conmigo, señor. Edgardo: ¿Sabe usted los principales trayectos ferroviarios de España? Fermín: (interviniendo) Hoy empezaré a enseñárselos, señor. Edgardo: ¿Sabe usted poner inyecciones? Leoncio: Sí, señor Edgardo: ¿Le molestan las personas nerviosas, de genio destemplado y desigual, excitadas y un poco desequilibradas? Leoncio: Esa clase de personas me encanta, señor. Enrique Jardiel Poncela. Eloísa está debajo de un almendro.

Assim percebemos que a estrutura lingüística, paralingüística e a sociolingüística que a entonação desempenha na produção e interpretação dos sentidos de um texto, são validas como primeiro passo para compreender que

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este fenômeno entonativo, assume pleno valor comunicativo, que deve atender ao conjunto da interação, ou a uma negociação que se produz entre os interlocutores (falante – ouvinte), quando tratamos de um texto oral, e na relação entre leitor e ouvinte (no caso da leitura do texto escrito em voz alta). No que concerne a percepção e interpretação da entonação, o ouvinte (do texto oral ou texto escrito) se encarrega de agregar uma bagagem lingüística e cultural (variação geográfica) para complementar o sentido da mensagem e contextualizar o discurso em sua globalidade, a través de unidades fonológicasxi.

5.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Portanto, neste trabalho, propusemos a tentativa de estudar a relação de

reciprocidade que a leitura, o social a entonação desempenham na construção do texto, ao anunciar o movimento do leitor em desempenhar uma prática sociocultural e entonacional na leitura, e o quanto essa prática possa repercutir positivamente no ensino. Além, da contemplação que a entonação e as questões socioculturais marcam no discurso.

REFERÊNCIAS

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COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Literatura e senso comum. Santiago – Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. Capítulo IV, p. 139-164. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Leitura e compreensão de texto falado e escrito como ato individual de uma prática social. In ZILBERMAN, Regina; SILVA, Ezequiel Theodoro da (organizadores). Leitura: perspectivas interdisciplinares. São Paulo. Ática, 2005, p. 38-57. LIMA, Luiz Costa (org). A literatura e o leitor. Textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Introdução, p. 9-36. GUMBRECHT, H. U. Introdução: O Leitor demanda (D) a literatura. In LIMA, Luiz Costa (org). A literatura e o leitor. Textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. Introdução, p. 9-36. ECO, Umberto. Ironia Intertextual e Níveis de Leitura. Sobre a Literatura. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. SOSA, Juan Manuel. La entonación del español. Su estructura fónica, variabilidad y dialectología. Ediciones Cátedra S. A.1999. CORTÉS MORENO, Maximiano. Didáctica de la prosodia del español: la acentuación y la entonación. Editorial Edinumen 2002. GONZÁLEZ, Hermoso Alfredo. DUEÑAS, Romero Carlos. Fonética, entonación y ortografía. Edelsa Grupo Didascalia, S.A. Madrid., 2002, p. 209-210. Texto de Enrique Jardiel Poncela. ―Eloìsa está debajo de un almendro‖

i

Antoine Compagnon (2001); Regina Zilberman (2005); Luiz Costa Lima (1979) e Umberto Eco (2003)

ii

Juan Manuel Sosa (1999); e Maximiano Cortés (2002)

iii

Doravante, ao processo de leitura se implicará as percepções entonativas e socioculturais do leitor.

iv

É o mesmo que contorno entonativo, ou seja, a possibilidade da mesma oração ser dita com um tono afirmativo, interrogativo, suspensivo, enfático, etc.

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v

Este leitor é o que promove uma leitura subjetiva do texto, e cria uma leitura ―efeitos e respostas‖, onde o texto é meramente um dispositivo potencial, no qual o leitor por interação constrói um objeto coerente. Logo, este leitor encarna todas as predisposições para que a leitura surta efeito. vi

Este leitor é construído pelo leitor implícito, e teu papel é o de compor sentido ao texto.

vii

A estética da recepção seria a exigência histórica para a compreensão do ser íntimo. O valorizar o texto, como sendo arte pela arte. Porém, aqui neste artigo e juntamente com a proposta de Costa Lima, a intenção é desconstruir a normas puramente estéticas do texto e a ela agregar normas socioculturais. viii

Aqui este termo se restringe aos pólos que permeiam a linguagem. Contudo, levantaremos ínfimas distinções quanto à fala e a escrita para o estudo da leitura, já que o objetivo é agregar informações que levaram as distinções quanto o âmbito da entonação e o foco no sociocultural. ix

É a frase em sua íntegra. O texto ou discurso se divide em unidades melódicas, e partir dessas unidades se constitui o grupo melódico. x

É um correlato lingüístico oposto ao tonema. De caráter funcional e estrutural. É sílaba tônica anterior ao tonema. xi

As unidades fonológicas seriam o acentema (unidade fonológica da acentuação) e o entonema (correlato fonológico abstrato de um número infinito de curvas entonativas com suficientes características em comum para ser interpretadas como similares por um ouvinte que domine a língua em questão).

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A ABORDAGEM PRAGMÁTICA DO TEXTO LITERÁRIO E SEU PAPEL NA FORMAÇÃO DO LEITOR Nívea da Silva Barros (UFS)

Estudos sobre leitura podem ser empreendidos baseados em diferentes abordagens teóricas. Atualmente, a leitura constitui um eixo de pesquisas que se desdobra pelos campos das ciências da cognição, antropologia, sociologia, estudos culturais, linguística e teoria literária. Neste trabalho, tomamos como objeto o texto literário, a fim de tecer algumas considerações sobre um frutífero caminho para sua compreensão e ensino: a abordagem pragmática. O texto literário resulta de um uso da língua que possibilita a expressão de imaginários, valores e comportamentos. Essa produção de sentidos é propiciada pela relação entre elementos diversos que tomam forma no trabalho com a linguagem. Se entendemos que o uso da língua não é neutro, devemos também considerar que as relações sociais estabelecidas mediante a linguagem caracterizam-se por uma intencionalidade, um desejo de atuar sobre os outros a fim de obter certas reações. Os atos de fala e os sentidos são constituídos a partir de fatores sociais, culturais, econômicos, políticos etc, todos integrados na produção e interpretação linguísticas.

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Nesse viés, nosso objetivo é discutir acerca dos aspectos pragmáticos essenciais para a compreensão do texto literário e como essa perspectiva pode ser útil para a atuação docente no desenvolvimento da competência leitora.

1



ALGUMAS

CONCEPÇÕES

SOBRE

A

CAPACIDADE

DE

COMPREENSÃO LINGUÍSTICA Sobre a capacidade leitora em geral, Marcuschi (2008) tece algumas ideias pertinentes. Ele coloca que ler não significa simplesmente extrair conteúdos ou identificar sentidos, mas sim um ato de produção e apropriação de sentidos. No entanto, a leitura não é uma experiência individual. Compreendemos por meio de esquemas cognitivos internalizados, mas não individuais e únicos, e sim como elaborações coletivas. Nossa percepção é ativada e orientada pelo sistema sociocultural internalizado que desenvolvemos ao longo da vida. Compreender é uma atividade interativa, que exige habilidade e trabalho e se realiza na inter-relação entre autor-texto-leitor (ou falante-texto-ouvinte). Como argumenta o autor, ―não é uma ação apenas linguìstica ou cognitiva. É muito mais uma forma de inserção no mundo e um modo de agir sobre o mundo na relação com o outro dentro de uma cultura e uma sociedade.‖ (MARCUSCHI, 2008, p.230)

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A concepção de leitura defendida por Marcuschi baseia-se na noção de língua como atividade sociointerativa e cognitiva e uma noção de texto como evento situacional, sendo o sentido, portanto, sempre situado. Conceber a língua como trabalho social e cognitivo e não como produto é fundamental para a nossa análise da compreensão linguística. A língua é mais do que uma forma, é uma forma de ação pela qual podemos realizar coisas. Ela é muito mais do que um sistema de estruturas. ―A língua não é sequer estrutura; ela é estruturada simultaneamente em vários planos, tais como o fonológico, o sintático, o semântico e o cognitivo, que se organizam no processo de enunciação.‖ (MARCUSCHI, 2008, p.240) Por ser uma atividade de produção de sentidos colaborativa, a compreensão acontece com base em atividades inferenciais. Os sentidos são produzidos em parte pelo texto e em parte pelo leitor.

Até por uma questão de economia, o autor de um texto sempre vai ter que deixar muita coisa por conta do leitor ou ouvinte. Um texto bem sucedido é aquele que consegue dizer o suficiente para ser bem-entendido, supondo apenas aquilo que é possível esperar como sabido pelo ouvinte ou leitor. (…) a atividade de produção de sentidos (ou compreensão de textos) é sempre uma atividade de co-autoria. (MARCUSCHI, 2008, p.241)

As inferências são processos cognitivos por meio dos quais os falantes ou ouvintes atualizam uma representação semântica partindo de uma informação

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textual. Elas funcionam como estratégias, hipóteses coesivas que compõem um contexto integrador de informações e que propicia a continuidade do texto. Marcuschi chama a atenção para o tratamento do texto, que não deve ser encarado como produto acabado, mas que deve ser visto como evento comunicativo em permanente elaboração de acordo com as diversas recepções pelos diversos leitores ao longo de sua história. O autor destaca o texto como uma proposta de sentido, sempre aberta a várias alternativas de compreensão. No entanto, há princípios que funcionam como limites para a compreensão textual, pois de outra forma teríamos um caos de interpretações. O sentido é um efeito das relações entre autor, texto e leitor de acordo com as atividades desenvolvidas. A estabilidade dos textos é sempre um estado transitório de adaptação a um determinado objetivo e contexto. (MARCUSCHI, 2008)

Tanto a escrita como a fala são atividades situadas e a situação, ou o contexto (cognitivo, social, cultural, histórico), em que são produzidas é parte integral do ato de escrever ou falar. Um texto é produzido sob certas condições, por um autor com certos conhecimentos e determinados objetivos e intenções. Em outro contexto de recepção, aquele texto assim produzido pode ter outras condições de recepção. (MARCUSCHI, 2008, p.243)

Sobre essa relação autor-texto-leitor, soma-se à discussão o autor Vincent Jouve, com sua obra A leitura, na qual trata dos processos de compreensão mais

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especificamente relacionados ao texto literário. A partir de 1970 os estudos de análise textual começam a voltar-se para a leitura. Até então a obra literária era considerada primordialmente em sua relação com uma época, uma biografia ou um inconsciente, deixando em segundo plano aquele que sustenta sua existência: o leitor. Os estudiosos perceberam que questões importantes como ―O que é literatura?‖ ou ―Como estudar os textos?‖são melhor compreendidas se nos interrogarmos sobre o que atrai os leitores nas obras. O avanço da pragmática, por sua vez, levou os estudiosos da literatura a se interessarem pelos problemas de recepção. Surgiram perguntas como: Qual é o objeto das teorias da recepção? O desempenho do leitor, o texto que lhes serve de suporte ou a interação entre esses dois elementos? ―Analisar a leitura significa se interrogar sobre o modo de ler um texto, ou sobre o que nele se lê (ou se pode ler).‖ (JOUVE, 2002, p.13) Observar ―como‖ a leitura acontece confere especificidade às teorias da recepção; já o problema do ―conteúdo‖ leva ao questionamento sobre os sentidos do texto e assim, consequentemente, o estudo da leitura confunde-se com o da obra, o que, no entanto, deve ser distinguido. O autor elenca algumas das teorias que buscam explicar como a leitura é processada. A primeira grande tentativa para renovar o estudo dos textos a partir da leitura foi a Escola de Constança . A abordagem alemã propõe deslocar a análise para a relação texto-leitor. Divide-se em dois ramos distintos: ―estética da recepção‖, de Hans Robert Jauss e a teoria do ―leitor implìcito‖, de Wolfgang Iser.

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A estética da recepção (dimensão histórica da recepção) surgiu no início dos anos de 1970, motivada pela vontade de repensar a história literária. Jauss constata que a obra literária só se impõe e sobrevive por meio de um público. ―A história literária, portanto, é menos a história da obra do que a de seus sucessivos leitores. A literatura, atividade de comunicação, deve ser analisada por seu impacto sobre as normas sociais.‖ (JOUVE, 2002, p.14) Segundo Jauss, o valor estético é decorrente da percepção estética que a obra é capaz de suscitar, ou seja, como a obra atende, supera ou decepciona as expectativas do público, o que ele chamou de horizonte de expectativas. Ele examina ainda as relações do texto com a época de seu aparecimento. A reconstituição do horizonte de expectativas cria oportunidade para que seja feita a recuperação da história da recepção. A obra é considerada dentro do horizonte em que apareceu. (RODRIGUES, 2010) A teoria do ―leitor implìcito‖, por sua vez, volta-se para o efeito do texto no leitor. O leitor é o pressuposto do texto e o objetivo é mostrar como uma obra orienta a leitura e o modo como o leitor reage cognitivamente aos percursos impostos pelo texto. Já o modelo semiótico de Humberto Eco (1979) propõe uma análise da leitura em termos de cooperação. A pretensão é examinar como o texto programa sua recepção e o que deveria fazer um leitor para corresponder da melhor maneira às solicitações das estruturas textuais. Jouve segue uma linha de estudos que defende a leitura como, antes de mais nada, um ato concreto e observável que recorre a faculdades humanas

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definidas. Ele coloca que antes de qualquer análise de conteúdo, ler é uma atividade de estruturação e interpretação dos signos. Essa organização prossegue num percurso cognitivo de abstração em direção ao despertar de emoções. A sedução da leitura ficcional deve-se às emoções que ela provoca. Criamos um vínculo de identificação com as personagens romanescas quando estas conseguem despertar em nós admiração, comoção, riso ou simpatia. Esse resultado, no entanto, não acontece de forma aleatória, provem do trabalho com os recursos da linguagem num esforço para convencer o leitor.

O texto, como resultado de uma vontade criadora, conjunto organizado de elementos, é sempre analisável, mesmo no caso das narrativas em terceira pessoa, como 'discurso', engajamento do autor perante o mundo e os seres. No vocabulário da pragmática, será dito que a intenção ilocutória (a vontade de agir sobre o destinatário, de modificar seu comportamento) é inerente aos textos de ficção. (JOUVE, 2002, p.21)

Jouve nos traz uma interessante discussão sobre o leitor e como este é importante na constituição das obras literárias. Para tal ele lança a seguinte provocação: é possível teorizar o leitor? O discurso escrito possui a especificidade de criar seu universo de referência apenas utilizando o potencial das palavras. Portanto, emissor e receptor são deduzíveis na escrita. O leitor assim pensado é uma figura abstrata postulada pelo narrador - a quem o texto se dirige.

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Dessa forma, Jouve distingue três máscaras do leitor: indivíduo concreto – dificilmente teorizável, pois sua reação ao texto depende de parâmetros psicológicos extremamente diversificados – público – que situa-se no plano da história coletiva – e figura virtual – o destinatário implícito para o qual o discurso se dirige. Essa imagem do leitor pode ser definida não só pelo gênero textual (um romance policial pressupõe um leitor-detetive; um conto filosófico um leitor crítico) como também pela própria enunciação de cada obra (A crítica da razão pura não se dirige ao mesmo público de Chapeuzinho Vermelho). (JOUVE, 2002) Diante dessas várias visões de leitor, o autor argumenta que a relação entre o leitor abstrato e o leitor de carne e osso é que o primeiro é um papel proposto ao segundo.

2 – LITERATURA, ENSINO DE LEITURA E PRAGMÁTICA: O QUE DIZEM OS PCNS E PCNEM Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (1998) destacam que a sua visão de linguagem é a de ação interindividual orientada para uma finalidade especìfica. ―(...) pela linguagem se expressam ideias, pensamentos e intenções, se estabelecem relações interpessoais e se influencia o outro, alterando o rumo de suas (re)ações.‖ (PCN, 1998, p.20)

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Dentro dessa concepção, os PCNs definem entre os objetivos do ensino de língua portuguesa no Ensino Fundamental a capacidade de analisar textos ―inferindo as possìveis intenções do autor marcadas no texto.‖ e ―percebendo os processos de convencimento utilizados para atuar sobre o interlocutor/leitor.‖ (PCN, 1998, p.33) Com relação à leitura, os PCNs colocam que ela deve ser encarada como uma situação de interlocução leitor/autor/texto socialmente contextualizada. Portanto, espera-se que o aluno consiga ler de maneira autônoma, articulando índices textuais e contextuais na construção do sentido do texto. Para isso, ele precisa utilizar inferências pragmáticas para dar sentido a expressões, deduzir informações implícitas e articular pressuposições para dar conta de opiniões e valores implícitos e das intenções do autor. Ao definir a especificidade do texto literário, os PCNs reforçam as proposições citadas acima, afirmando que esse é um tipo peculiar de uso da linguagem no qual predomina a força criativa da imaginação e a intenção estética. Espera-se, portanto, que os alunos tornem-se leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias. (PCN, 1998) Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM), por sua vez, também tecem considerações a respeito do caráter pragmático subjacente à compreensão do texto literário:

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A leitura do texto literário – e a consequente percepção dos recursos expressivos de que se vale o autor para constituir seu estilo –mobiliza uma série de relações: entre texto e contexto sociocultural de produção e recepção; entre escolhas do autor, temáticas abordadas, estruturas composicionais e estilo, apenas para citar algumas. (PCNEM, 1999, p.58)

3 – ASPECTOS PRAGMÁTICOS NA LEITURA DE TEXTOS LITERÁRIOS 3.1 – Atos de fala A Teoria dos Atos de Fala originou-se na Filosofia, com os membros da Escola Analítica de Oxford. Austin, em sua obra, How to do things with words, define a linguagem como uma atividade construída na interlocução, ou seja, discutir linguagem significa necessariamente discutir o ato de estar falando em si. John Searle, por sua vez, desenvolveu a teoria de Austin e acrescentou estudos sobre atos de fala indiretos. Sua contribuição é importante porque discute sobre as formas pelas quais os falantes colocam intenções implícitas em seus enunciados e como os ouvintes conseguem inferir esses significados extras. O conceito de atos de fala foi expandido também por van Dijk, que propõe-se a analisar os atos de fala globalmente. Para isso, o autor define o conceito de macroato de fala, ou seja, o ato global que organiza os atos individuais de um texto, identificado por sua relação com a intenção dos falantes num nível

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macro. Essa perspectiva possibilita a compreensão das estratégias usadas pelo locutor para atingir certo objetivo ou causar certo efeito sobre o interlocutor. Para Maingueneau (1996), é neste ponto que a problemática dos gêneros revela-se crucial, pois a identificação do gênero orienta a compreensão do texto. O autor sustenta que ―o discurso literário enquanto tal constitui uma espécie de metagênero que supõe um ritual específico e condições de êxito; um texto literário só é recebido de modo adequado se for interpretado como literário.‖ (MAINGUENEAU, 1996, p.15)

3.2 – Dêixis Encontramos uma vasta discussão sobre dêixis na obra de Stephen Levinson (2007). Dêixis (do grego ―apontar‖ ou ―indicar‖) é a maneira pela qual as línguas codificam traços do contexto enunciativo. Os dêiticos, portanto, são as marcas linguísticas da enunciação, pois fazem referência a pessoa, tempo, lugar ou partes do próprio discurso. A interpretação dos enunciados depende da análise desse contexto de enunciação. Levinson proporciona uma rica apresentação e análise desses marcadores: 1) São dêiticos de pessoa principalmente os pronomes pessoais, pois indicam quem fala, com quem se fala e de quem se fala; 2) São dêiticos de tempo especialmente advérbios de tempo e verbos, já que representam a organização temporal da enunciação; 3) São dêiticos de lugar principalmente os advérbios de lugar e os

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pronomes

demonstrativos,

que

constituem

as

referências

espaciais

do

acontecimento discursivo; 4) São dêiticos de discurso as expressões que fazem referência a partes do próprio discurso - isso ocorre com a reutilização de dêiticos de tempo e lugar para traçar o desenrolar do discurso.

3.3 – Modalização Interagir através da linguagem significa ter objetivos a serem atingidos: causar certos efeitos, estabelecer relações, desencadear reações. Quando dizemos algo, expressamos as nossas pretensões através de mecanismos linguísticos que dão aos nossos enunciados força argumentativa. Esse é o pensamento explorado por Koch (2001), que afirma ser essencialmente argumentativo o uso da linguagem.

Toda língua possui, em sua Gramática, mecanismos que permitem indicar a orientação argumentativa dos enunciados. (…) É a esses mecanismos que se costuma denominar marcas linguísticas da enunciação ou da argumentação (como se pode ver, tomada aqui em sentido amplo). Outras vezes, tais elementos são denominados modalizadores – também em sentido amplo – já que tem a função de determinar o modo como aquilo que se diz é dito. (KOCH, 2001, p.29)

A autora apresenta várias dessas marcas. Os operadores argumentativos, que fazem a relação entre atos de enunciação, indicam a força argumentativa dos

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enunciados: argumento mais forte, argumentos que se somam, argumentos alternativos, comparativos, contrários, entre outros. Além dos operadores, há também outros marcadores, como verbos, adjetivos e advérbios, com funções que vão além da visão morfossintática, indicando estados, atitudes e posicionamentos do enunciador em relação ao seu enunciado.

3.4 – Implicatura A implicatura é um tipo de inferência pragmática. Através desse conceito é possível explicar como é possível dizer mais do que é efetivamente dito e como os falantes são capazes de entender mais do que as expressões significam literalmente. A Teoria da Implicatura Conversacional é uma proposta de Paul Grice. É uma teoria que toma como base princípios gerais subjacentes ao uso cooperativo da língua. Esses princípios são definidos como máximas de conversação: qualidade, quantidade, relevância e modo. Essas máximas explicitam o que os falantes devem fazer para conversar de forma cooperativa e eficiente: ―eles devem falar com sinceridade, de modo relevante e claro e, ao mesmo tempo, fornecer informação suficiente.‖ (LEVINSON, 2007, p.127) Levinson (2007) destaca que esses princípios constituem as suposições básicas de ouvintes e falantes. Portanto, mesmo quando as diretrizes citadas não são seguidas ao pé da letra ainda assim continuam norteando a interação. Dessa

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maneira, a significação de certos enunciados depende do tipo de implicatura: temos aquelas que derivam da conformidade com as máximas e aquelas que derivam do desacato às máximas. 3.5 – Pressuposição A pressuposição é outro tipo de inferência pragmática. Levinson (2007) chama a atenção para a distinção entre pressuposição semântica e pressuposição pragmática, pois essa última é definida como a ―relação entre um falante e a adequação de uma sentença a um contexto.‖ (LEVINSON, 2007, p.221) Ou seja, são inferências que superficialmente são mais baseadas na estrutura linguística efetiva das sentenças, porém são muito dependentes de fatores contextuais. Entender como funciona a pressuposição é uma das preocupações centrais da Pragmática. Para tal, há dois conceitos básicos: adequação (ou condição de felicidade: condição necessária para que o enunciado produza uma significação bem sucedida) e o conhecimento mútuo, partilhado entre falante e ouvinte. Maingueneau (1996) destaca que a obra literária, por sua natureza plurissignificante, leva o leitor a perseguir o implícito. Ele ressalta ainda que os implícitos devem ser lidos em dois níveis, o do autor e o do narrador, e isso gera uma ―polifonia‖, pois a partir daì nos perguntamos quem assume o implìcito.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS No caso de uma atividade tão complexa como a leitura, nenhum modelo teórico tomado isoladamente consegue dar conta de desvendar-lhe todas as facetas. Neste trabalho, propusemos uma visão de leitura como atividade sociointernacional de produção de sentidos e para tal nos valemos das noções de uso linguístico, intencionalidade e recepção (ou compreensão), reunidas de forma mais delimitada sob o aporte teórico da pragmática. Discutimos algumas concepções sobre como compreendemos o que lemos e

destacamos

as

ideias

defendidas

por

Marcuschi,

com

sua

visão

sociointernacional e cognitiva da leitura, e as proposições do linguista francês Vincent Jouve, que direciona sua análise para uma abordagem pragmática do texto literário. Enfatizamos também o papel fundamental do leitor na produção e interpretação dos enunciados, uma vez que a abordagem pragmática centra-se na relação da linguagem com seus usuários. No caso do discurso literário, como afirma Maingueneau, a dissimetria entre enunciação e recepção desempenha um papel crucial no processo de compreensão. A Pragmática está entre as principais teorias que entendem a leitura, foco deste trabalho, como processo de significação construído pela interação entre interlocutores. Para entender melhor sua importância para o ensino, explicitamos

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ainda o papel da Pragmática no desenvolvimento das habilidades de leitura de acordo com os parâmetros para o ensino de língua materna. A análise pragmática, portanto, revela-se como uma perspectiva de fundamental importância para práticas docentes eficazes, que desenvolvam nos alunos a capacidade de compreender e produzir discursos levando em consideração as mais diversas situações de interação.

REFERÊNCIAS BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, 1998. BRASIL, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio – linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação, 1999. JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002. KOCH, Ingedore G. Villaça. A inter-ação pela linguagem. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2001. LEVINSON, Stephen. Pragmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007. MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

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PEREIRA, Tânia; GRAY, Adriana. A teoria dos atos de fala: da abordagem clássica à abordagem interacionista. In: CARNEIRO, Marísia (org.) Pistas e travessias: bases para o estudo da linguagem. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999. RODRIGUES, Raquel Terezinha. Um retrato com palavras: aspectos da recepção crítica de josé saramago no brasil. Revista Linguasagem, São Carlos, v.13, n.1, 2010. Disponível em : . SEARLE, John. Os atos de fala indiretos. In: Expressão e significado: estudo da teoria dos atos de fala. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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O AUTORITÁRIO, O POLÊMICO E O LÚDICO NA OBRA LEITE DERRAMADO Osvaldo Barreto Oliveira Júnior (IF Baiano) Edna Maria de Oliveira Ferreira (IF Baiano)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Segundo Fernanda Mussalim (2004, p. 120), na terceira fase da análise do discurso os procedimentos de análise voltam-se para a investigação das formações discursivas (ou do conjunto de discursos) que formam o interdiscurso, pois todo discurso é, na verdade, um interdiscurso que se forma através da relação de posições ideológicas distintas. Assim, conforme essa autora, ―As recentes pesquisas afirmam o primado do interdiscurso sobre o discurso‖. Por essa razão, a análise discursiva de um texto, para determinar os mecanismos sócio-histórico-linguístico-discursivos e ideológicos que interagem para a formação de sentidos, deve considerar as relações estabelecidas entre posicionamentos variados na constituição da interdiscursividade. Dominique Maingueneau (2008) também argumenta a respeito da supremacia do interdiscurso, sugerindo-o como unidade de análise, por se constituir espaço de convivência entre discursos distintos, propositadamente relacionados. Dessa forma, apregoa a heterogeneidade constitutiva como condição de existência dos produtos de linguagem, que, por isso, assumem

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sempre caráter interdiscursivo. Nessa lógica, segundo Maingueneau (2008, p. 20) ―[..] o interdiscurso tem precedência sobre o discurso. Isso significa propor que a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de troca entre vários discursos, convenientemente escolhidos .‖. Nesse percurso de formação do interdiscurso, os saberes, ideias, crenças, opiniões, enfim, as formações discursivas que interagem para formarem a interdiscursividade podem estabelecer entre si uma complexa rede de relações de variados tipos: de confirmação, contradição, negação, polêmica etc. A investigação sobre as relações estabelecidas entre as ideologias que constituem a interdiscursividade permite compreender o jogo de sentidos que é tecido no interior do interdiscurso. Explica-se: se todo texto é um interdiscurso, a construção de efeitos de sentidos a partir da análise discursiva de um objeto de linguagem depende não somente da determinação das condições sócio-históricas de sua produção, como também da análise sobre as relações de força estabelecidas na constituição da interdiscursividade. Nesse sentido, torna-se importante analisar as especificidades do discurso, considerando aspectos relativos às suas condições de produção, somados às maneiras de construção de sentidos e aos efeitos do jogo ideológico constituído para a formação da interdiscursividade. Isto é: a análise da formação de um interdiscurso possibilita ao analista definir como o jogo de sentidos é disputado e qual a relação estabelecida entre os interlocutores nessa disputa. E essa tarefa

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possibilita desvendar, por meio da leitura, o confronto de forças que se estabelece na constituição dos produtos de linguagem. Para Orlandi (2005, p. 86), quando o analista volta-se para a análise da constituição do complexo de forças que se relacionam formando o interdiscurso, ele prioriza a investigação sobre os modos de funcionamento do discurso, que podem ser assim distinguidos: discurso autoritário, discurso polêmico e discurso lúdico. No primeiro, segundo essa autora, a polissemia é contida, o referente apagado e o locutor atua como agente exclusivo do dizer, suprimindo a interlocução; no segundo, controla-se a polissemia, os interlocutores disputam o referente, mantendo-se presentes numa relação conflituosa de disputa pelos sentidos; o terceiro modo de funcionamento discursivo propicia a polissemia, sem cerceá-la ou controlá-la, o referente é presentificado, e os interlocutores interagem nessa presença, sem regular a relação de sentidos. Ao lermos o romance Leite Derramado, de Chico Buarque, notamos a presença desses três modos de funcionamento do discurso, haja vista a complexidade de formas de dizer que coexistem nessa obra, delineando uma complexa rede de relações que elas estabelecem para constituir o interdiscurso. Isso prova que, na instituição da interdiscursividade, os modos de funcionamento do discurso misturam-se, embora um tenda a prevalecer sobre os demais. Dessa forma, buscamos, neste artigo, analisar Leite Derramado como um exemplo de interdiscurso em que prevalece o funcionamento discursivo polêmico, mas que

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coexistem também, numa constante relação de forças, os modos autoritário e lúdico.

A TRAMA INTERDISCURSIVA EM QUESTÃO No interdiscurso do livro em questão, o narrador-personagem é um idoso já à beira da morte que, de um leito de hospital, dirige-se, ora à filha ora à enfermeira ou a quem quer que esteja ali presente. Sua narrativa é construída com rememorações sobre sua genealogia desde os ancestrais portugueses até o tataraneto, um garotão criado no Rio de Janeiro atual, passando também pela figura de um barão do Império e um senador da Primeira República. A história do Brasil referente aos dois últimos séculos perpassa, levemente, toda a narração desencadeada e sustentada até o final unicamente pelo narrador-personagem, permitindo-se fazer um atrelamento da decadência social e econômica da família a esses fatos históricos, sem que a história assuma papel central, pois a literatura é o forte da obra. A narratividade ―inconsistente‖, ou talvez inconsciente, do narradorpersonagem é tecida de forma a revelar-nos, mnemonicamente, ações construídas por vários personagens, em tempos distintos de uma época demarcada da história do Brasil. Acontece que a convalescência desse narrador leva-nos, o tempo todo, a questionar se os fatos narrados são verossímeis ou frutos de uma

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mente já em degradação. Para se ter ideia do constante movimento de indagação a que o leitor é incitado pela obra, reflitamos um pouco sobre a identificação do narrador-personagem, Eulálio, cujo nome só aparece no sexto capítulo, reforçando a condição de decadente e desfalecente; de alguém que não possui mais nem identidade. Ou, se a possui, que importância tem? Aliás, essa questão da identidade do narrador caminha ao longo de todo o relato e termina sem que se possa traçar para a personagem uma identidade definitiva. Embora acredite que consiga disfarçar sua personalidade excludente e discriminatória, Eulálio em suas falas mostra-se um velho preconceituoso, arraigado de valores pertencentes a uma classe da qual não faz mais parte, revelando-se inconsequente, autoritário e frustrado, devido ao amor não correspondido que sentia por Matilde, a esposa que o abandonou ainda jovem. Fracassado em suas correspondências amorosas, Eulálio revela-se também carente, por isso busca rememorar insistentemente os carinhos da mãe e os cuidados da governanta. Na diegese difusa construída por Eulálio, a progenitora é representada como omissa em sua função mãe, já que delega à governanta a tarefa de cuidar do filho. A imagem da mãe como figura apenas representativa, a cumprir tão somente uma determinação social, corrobora para a impassibilidade de Eulálio, que se demonstra um sujeito confuso sobre seus próprios sentimentos, uma pessoa em constante busca de se realizar na interação com o outro, potencializada sob a forma de desejo sexual, que, em momentos distintos da vida, se manifesta

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em diferentes representações de mulher: no mulato explorado pelo filho do senhor branco; na própria Matilde, que a posteriori se torna sua esposa; e, no leito do hospital, pela enfermeira, uma personagem emblemática da obra, já que a memória do narrador pode não ser confiável, e a última mulher desejada pode ser mero fruto da imaginação. Na velhice, em um leito de hospital, Eulálio encontra forças para desejar mais alguém, como se desejasse retroceder, para encontrar-se com uma energia esquecida no passado, capaz de movê-lo, fazê-lo senhor do próprio destino, uma vez que, no tempo presente, encontra-se à mercê da vontade alheia, dependente dos cuidados de outrem. Essa vontade de acionar ―a marcha ré‖ revela também o desejo de recuperar a situação financeira de outrora, quando a família desfrutava uma vida confortável, cheia de vigor e das pompas reservadas aos mais abastados. Assim, de forma difusa e contraditória, revelando desejos e fracassos, fatos vividos e inventados, o narrador-personagem constrói o perfil de um senhor decadente, receoso da morte, ligado às experiências e valores do passado, mas também esperançoso em um futuro que se materializaria na enfermeira ―conhecida‖ no leito do hospital. A construção dos perfis das outras personagens também vai acontecendo aos poucos, conforme os relatos, às vezes em meio a devaneios de Eulálio, e deixam transparecer as mazelas de uma instituição familiar desregrada, em que o poder e o dinheiro definiam os limites, próprio do período histórico em que se vivia no Brasil dos oitocentos, depois dos novecentos,

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quando os poderosos ditavam as ordens e os menos favorecidos obedeciam-nas. O contexto atual poderia permitir esse comportamento ainda, entretanto a decadência social e econômica da família os limitou.

O AUTORITÁRIO E O POLÊMICO NA ABORDAGEM DO PRECONCEITO Ao abordar o preconceito, o interdiscurso presentificado na obra ora revela-se autoritário ora polêmico. Em algumas passagens, a exemplo dos trechos em que o locutor comenta as concepções de sua mãe sobre a cor da pele de Matilde ―Minha mãe era de outro século, em certa ocasião chegou a me perguntar se Matilde não tinha cheiro de corpo.‖ (BUARQUE, 2009, p. 29), ou nos momentos em que ele ironiza as ideias abolicionistas do avô ―Meu avô [...] queria mandar todos os pretos brasileiros de volta para a África, mas não deu certo‖ (BUARQUE, 2009, p.15), nota-se a supremacia da formação discursiva autoritária, em que a cor da pele e a posição social são as maiores determinantes na configuração das relações interpessoais. Nessas passagens, o locutor evidencia posicionamentos fechados sobre um tema, que não permitem a negociação do referente, já que as falas da mãe e do avô respaldam-se numa visão aristocrática, cujo princípio norteador é a discriminação pelo critério cor da pele. Põe em voga, portanto, modos de pensar e agir característicos do século XIX, quando a sociedade brasileira era marcada pela

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exclusão despudorada, pela violência físico-emocional, pela hipocrisia religiosa e ganância dos nobres que legitimavam o tratamento desumano dispensado aos negros, sem permitir a contestação da ―ordem‖ vigente, para manter as relações de poder existentes na época. Por outro lado, o funcionamento polêmico também se materializa na obra, haja vista o conflito vivido pelo narrador ao assumir-se e negar-se preconceituoso. Essa titubeação em posicionar-se demonstra que o referente está sendo negociado numa relação de disputa constante, o que caracteriza o modo polêmico de funcionamento do discurso, como se pode ler na passagem em que Eulálio disfarça o incômodo sentido em virtude do comportamento de Matilde:

Talvez tenha concluído, ao longo da noitada, que ela era mulher para dançar maxixe, e não de beijar a mão. E no caminho de casa Matilde pegou a assobiar, assobiava a melodia do tal maxixe. Parecia má-criação, de uma feita assobiou num jantar de minha mãe, que se retirou da mesa. Mas agora deve ter percebido quanto me exasperava, porque se interrompeu para perguntar o que havia comigo. Nada, azia, eu disse, e não era mentira, meu estômago não suportava cachaça, que agora era moda servir até em locais requintados. (BUARQUE, 2009, p. 66)

No trecho supratranscrito, a confissão do narrador demonstra o conflito entre formações discursivas diferenciadas, convivendo no mesmo interdiscurso: a formação não preconceituosa forçada, que busca ratificar a convivência harmônica entre pessoas de classes sociais diferentes, acionada quando Balbino tolera as reações ―inadequadas‖ de Matilde à mesa; a formação preconceituosa

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declarada, em que essa convivência é (in)tolerada, haja vista a reação da mãe de Babilno diante do comportamento de Matilde, e a preconceituosa disfarçada, revelada pelas contradições no posicionamento do locutor, que se diz tolerante, disfarçando o exaspero diante do comportamento da amada, mas mostra-se austero, preconceituoso, ao condenar o uso da cachaça - bebida cujo consumo costuma ser associado às classes populares - em ―ambientes requintados‖. A convivência polêmica entre os discursos na obra em análise pode ser percebida também quando o narrador ironiza as reações forçadas ou não do avô, traço também marcante da sociedade brasileira pós-abolicionismo, em conviver com os escravos que continuaram a lhe render bons lucros. Ao mesmo tempo em que informa o leitor sobre a ação do avô pós-abolicionismo, o autor ainda ironiza essa ―boa convivência‖, associando-a aos bons lucros auferidos pelos escravos ao patriarca. Nessa lógica, a formatação do dizer é possibilitada pela associação de formações discursivas que disputam o referente e os mantêm presentes numa relação conflituosa de construção de sentidos, revelando que, apesar de capitalista, o avô era abolicionista, e que, embora abolicionista, também fosse capitalista: uma relação polêmica em que a aparente contradição dos discursos apenas controla a polissemia, sem cerceá-la. Mais adiante ou pouco antes - já que a narrativa não segue a ordem lógica dos acontecimentos, pois a volubilidade imprime o ritmo da narrativa, já que a diegese é construída pelas lembranças e pela falta de lucidez própria de uma velhice decadente - fica claro, na fala de Eulálio, outro enfoque interdiscursivo

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polêmico, quando ele ameniza a questão do preconceito ao dizer que o trato diário com Balbino fez dele um homem sem preconceitos de cor, diferente do pai que só gostava de loiras e ruivas. Dessa forma, para evidenciar sua concepção sobre a relação homem branco/homem negro, o narrador relaciona formações discursivas distintas, ser tolerante e ser preconceituoso, numa árdua disputa pelos sentidos. O ritmo da diegese, que é marcado pela volubilidade, também é propiciador da convivência polêmica entre os discursos que compõem a interdiscursividade da obra em análise. Prova disso é que, nesse mesmo capítulo, evidencia-se, de forma suave, uma das sutilezas psíquicas de Eulálio, que revela sua intenção por volta dos dezessete ou dezoito anos de ter intimidades com Balbino, ou seja, sua iniciação sexual, sem que isso pese tanto para o leitor quanto poderia pesar, se dito de outra forma. A habilidade no uso que faz da linguagem para descrever essas cenas ou apresentar esses fatos fica evidente também aqui, quando se percebe que por ser questão polêmica, fica apenas sugerida no interdiscurso. A forma selecionada pelo autor para, através do narrador, demonstrar a reação de Balbino ao perceber esse desejo demonstrado pelo filho do patrão e também para descrever a falta de coragem de Eulálio para a abordagem faz da cena uma passagem surpreendente e, ao mesmo tempo, natural, leve, devido às especificidades da linguagem com que se concretiza; principalmente porque, em seguida, fica evidente a opção sexual de Eulálio por Matilde, numa cena

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carregada de fantasias profanas a se passar dentro da igreja, num clima de pecado e perdão, em que culmina com mais um momento de devaneio do narrador. Ou ainda, na cena em que ele a vê na igreja, em outra ocasião, e libera os pensamentos também profanos, chegando a ter que se ajoelhar, para prevenir um escândalo, por conta de sua condição de excitado. Nas cenas supracitadas, a polêmica instaura-se no interdiscurso sob diversas nuanças: primeiro, o menino branco sente interesse sexual pelo escravinho, demonstrando o que poderia ser mais um caso de exploração do negro pelo branco, mas contém-se por falta de coragem de externar o desejo e também pela amizade que nutria; segundo, desejos sexuais são despertados em ambientes ―religiosos‖, instaurando tensão entre o sacro e o profano, relacionando prazer e religiosidade, carpe diem e cerceamento das emoções, numa nítida combinação de discursos divergentes que interagem para constituir o interdiscurso.

A VALORIZAÇÃO DA POLISSEMIA: O LÚDICO EM LEITE DERRAMADO Até aqui discutimos a presença de diferentes modos de funcionamento do discurso em Leite Derramado, revelando o conflito de forças entre o autoritário e o polêmico que se tecem para formar o interdiscurso presentificado no livro em análise. Agora é preciso destacar também a relevância do lúdico para a

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constituição dos sentidos numa obra literária, que, pela própria natureza, valoriza a polissemia, um dos aspectos configuradores do lúdico. Nessa perspectiva, ressaltamos algumas estratégias mobilizadas para a fruição do lúdico, enquanto modo de funcionamento do discurso: a volubilidade narrativa, cujo jogo com os fatos narrados constrói uma sedutora brincadeira com os sentidos; a plurissignificação de fatos, personagens e da própria linguagem; o labirinto formado pela tensão constante entre devaneio e verossimilhança, deixando os interlocutores expostos aos efeitos de sentido que surgem dessa construção narrativa bifurcada; o entremear do discurso histórico oficial com a ficção instaurada pela narrativa literária, provocando o questionamento da ótica oficial, pois suscita a polissemia numa arena em que o sentido costuma ser controlado. A literatura respalda-se num trabalho de linguagem que revela as potencialidades da palavra enquanto signo polivalente, capaz de fazer aflorar sentidos distintos. Nesse tipo de labor, conta muito a destreza do autor em articular as palavras para tecer uma rede completa de significações, em que a transitividade de sentido é fluida, pois a polissemia está aberta, oportunizando que, dialogicamente, os interlocutores negociem as interpretações possíveis. Para potencializar esse funcionamento lúdico no texto literário, Leite Derramado apresenta-nos uma narrativa volúvel, construída através do entrelaçamento de fatos vividos e inventados por um narrador cuja memória já não inspira confiança.

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O narrador (in)conscientemente conduz a narrativa de forma a atribuir várias possibilidades de interpretação aos fatos, aos personagens e à própria linguagem. Assim, o interdiscurso materializado na obra expõe os interlocutores aos efeitos de uma polissemia inteiramente não regulada. Fatos são narrados e reificados sempre de maneiras divergentes, apresentando, através da voz de um mesmo narrador, versões distintas para o mesmo acontecimento. Isso provoca o leitor, levando-o a indagar sobre que versão corresponde à verdade, haja vista que a verossimilhança da diegese é posta em xeque. De forma análoga, personagens e linguagem também são reinventadas pelo narrador, conforme as circunstâncias envolvidas no ato de narrar. Além disso, devaneio e verossimilhança tensionam-se constantemente, já que o ritmo da diegese é marcado por idas e vindas aos mesmos acontecimentos, vivificados sob óticas distintas, a partir de um mesmo enunciador, o que revela a pluralidade de formações discursivas que perpassam o interdiscurso entrelaçado por Eulálio. De maneira bifurcada, esse interdiscurso sempre nos apresenta vias polivalentes sobre o mesmo fato, deixando em aberto as possibilidades de construção de sentidos. É o lúdico instaurado na obra que, tensionando polos de uma mesma história, reinventa as formas de narrar, de ler e de atribuir significações. E qual o caminho percorrido para suscitar novos sentidos sobre um mesmo fato? Além da tensão supracitada, há também a intenção de metaficcionar, quando o discurso histórico oficial é ressignificado sob a ótica de uma

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personagem que supostamente fez parte dessa história. Assim, embora difuso e aparentemente ―insano‖, Eulálio pode se inserir no discurso histórico, já que vivenciou parte dos momentos questionados pela sua voz difusa e plural, que instaura a polissemia num terreno onde o referente costuma ser apagado, e a polivalência de sentidos, controlada. Ludicamente o narrador-personagem concretiza um interdiscurso em que o referente é presentificado como tal, expondo os interlocutores a uma rede labiríntica de compreensões, apoiada na não regulação dos sentidos, já que oferece múltiplas possibilidades de significações. Dessa forma, Eulálio, dialogicamente, instaura o lúdico na obra que - por também apresentar outros modos de funcionamento do discurso, como o autoritário e o polêmico, conforme já explicitamos – revela o ―primado do interdiscurso‖ (MAINGUENEAU, 2008, p. 31), uma vez que várias formações discursivas interagem numa mesma conjuntura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao acionar os saberes levantados pela Análise do Discurso para analisar um produto discursivo qualquer, o analista pode fazer uma série de predileções, que dependerão das suas intenções, bem como do recorte teórico que fizer dentro de uma disciplina bastante ampla. Nessa lógica, buscamos instaurar nosso

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trabalho de análise da obra Leite Derramado na perspectiva teórica da terceira fase da AD, cujos trabalhos sobre a heterogeneidade constitutiva levaram a proposições que defendem o primado do interdiscurso sobre o discurso. Por essa razão, buscamos nesse trabalho concretizar uma análise do romance em voga que revelasse os diferentes modos de funcionamento do discurso presentes na obra. Essa intenção levou-nos à identificação dos discursos autoritário, polêmico e lúdico no interdiscurso em tela, comprovando a heterogeneidade de modos de dizer presente em uma mesma realização interdiscursiva. Direcionamos, portanto, nossas reflexões e análises para investigar os diferentes funcionamentos discursivos que se entrelaçam num mesmo produto de linguagem, que, ao se mostrar multimodal, revelou-nos importante corpus de análise para argumentar acerca da heterogeneidade constitutiva do interdiscurso. A coexistência dos discursos autoritário, polêmico e lúdico numa mesma obra literária serve para demonstrar que todo produto interdiscursivo é múltiplo, complexo e possibilita a convergência de modos de dizer variados. Isso nos põe em afinidade com renomados estudiosos da Análise do Discurso, como Fernanda Mussalim (2004), Maingueneau (2008) e Orlandi (2005), para os quais a evolução dos estudos na área da AD comprovou que todo discurso é, na verdade, um interdiscurso, haja vista que congrega diversos modos de dizer e, por conseguinte, variadas formações discursivas. Isso evidencia que, para fazer análise de produtos de linguagem, é precisa extrapolar os limites do aparente ou

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do rotulável – como a típica categorização dos discursos em político, jornalístico, escolar etc. – para revelar os modos de articulação do dizer que, numa relação de força, se inter-relacionam e possibilitam a emergência de novos sentidos. Noutros termos, poderíamos afirmar que um modo de funcionamento do discurso, isoladamente, faz emergir sentidos menos intrigantes e complexos do que quando está associado a outros modos, porque, na relação de forças que estabelecem entre si, distintas estratégias de articulação do dizer tornam a rede de sentidos mais entrelaçada, consequentemente mais dinâmica e rica de possibilidades. É justamente isso que constatamos através da leitura da obra Leite Derramado, de Chico Buarque, haja vista que os sentidos que de sua leitura emergem revelam-se ora inegociáveis, ora democráticos, ora dispersos num relicário de possibilidades de leitura, pois o autoritário, o polêmico e o lúdico interagem dinamicamente para configurar novos sentidos.

REFERÊNCIAS BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. MUSALIM, Fernanda. Análise do discurso. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Ana Cristina. Introdução à linguística: domínios e fronteiras, v.2. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2004. ORLANDI, Eni p. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 6 ed. Campinas, SP: Pontes, 2005.

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MONSTRO E DUPLO, LAMPIÃO NA OBRA DE FRANCISCO DANTAS, OS DESVALIDOS Ozéias Pereira da Conceição Filho (UFS) INTRODUÇÃO O nordeste brasileiro foi marcado pelas décadas de 1920-30 por um fenômeno político-social que fez nascerem alguns nomes que mais tarde se tornaram lendas, mitos populares. Esse fenômeno, o Cangaço, apareceu como resistência a um sistema social que favorecia uns poucos em detrimento de uma população carente das mais básicas garantias de sobrevivência. O coronelismo apoderava-se da região de forma violenta, gerando medo nas pessoas, uma vez que, entre as autoridades, revelava-se uma corrupção e muitas vezes eram eles mesmos os próprios bandidos e exploradores da população, desprovida de segurança pública. Dessa forma, o cenário nordestino propiciava o nascimento de figuras que se rebelassem contra essa tirania, e o Cangaço, embora tivesse as mesmas características de violência, surge como uma vingança contra os grandes proprietários, os latifundiários, os governos coronéis, surge de forma lendariosa e transforma alguns personagens em verdadeiros mitos, o principal deles, Virgulino Ferreira, mais conhecido popularmente como Lampião.

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Lampião entrou no imaginário das pessoas, na memória coletiva do sertanejo de formas diversas: bandido, herói, fera, homem do diabo, vingador dos pobres, cangaceiro. Conseqüentemente essa figura notória entrou na literatura brasileira, principalmente no Cordel, nesse o cangaço era o principal palco das histórias contadas e cantadas pelo povo. Na prosa de Francisco Dantas o tema do cangaço surge como leitura de uma realidade, que como já foi dito, era dura, escaldada pelo sol do sertão e pelas agruras da falta de oportunidades. Na obra de Dantas, Lampião aparece como um fantasma na memória dos personagens, como uma serpente que está prestes a atacar. Francisco J. C. Dantas nasceu em 1941, no engenho do avô em Riachão do Dantas, interior de Sergipe. Ele só ingressou na Universidade aos 30 anos, já casado e pai de uma garota. Fez a dissertação de seu mestrado analisando obra de Osman Lins e sua tese de doutoramento em Eça de Queiroz, com título A mulher no romance de Eça de Queiroz, defendida no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP, sob a orientação de Maria Helena Ribeiro da Cunha. Sua tese de doutoramento logo viria a ser publicada como livro pela Editora UFS, em 1999. Dantas já foi professor da Universidade Federal de Sergipe, já deu aulas regulares de Literatura Brasileira em Berkeley – Universidade da Califórnia – no ano de 2000, e nesse mesmo período ganhou o Prêmio Internacional da União Latina de Literaturas Românicas. Nesse prêmio Francisco Dantas, representando o Brasil,

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concorreu com obras de autores de 35 países de língua românica, e vale lembrar que ele foi o primeiro brasileiro a ser outorgado com essa comenda. Dantas apareceu na cena literária brasileira com a publicação de seu primeiro romance, Coivara da memória (1991), seguida de: Os desvalidos (1993), Cartilha do silêncio (1997), A mulher no romance de Eça de Queiroz (1999), Sob o peso das sombras (2004) e Cabo Josino Viloso (2005). Sua obra foi acolhida de maneira positiva pela crítica brasileira, sua arte narrativa foi considerada pelo historiador da literatura brasileira, Wilson Martins, como uma ―arte narrativa para além de Guimarães Rosa‖ (FARRA, 2009, p. 17).

UM MONSTRO E DUPLO QUE SE CHAMA LAMPIÃO O tema do monstro é um assunto que chama a atenção do homem desde escritos muito antigos, como a Odisseia, onde a aparição de sereias e um gigante sempre foram muito atraentes e perturbadoras ao ser humano, que considera essas

criaturas

como

monstruosas.

Podem-se

encontrar

registros

de

monstruosidades ainda nos mitos populares: sacis, caiporas, minotauros, esfinges, lobisomens. Todos esses seres fazem parte de um acervo cultural que enxerga os monstros como criaturas que impõem medo ao mesmo tempo em que chamam a atenção, que se apresentam como transgressores da ordem natural.

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A Idade Média foi uma época fecunda na criação de muitos desses seres tenebrosos devido ao medo provocado pelo desconhecimento do mundo, ainda cheio de fronteiras não exploradas. Nesse sentido, comenta Mary Del Priore:

Durante a Idade Média, quando a maior parte do mundo era considerada terra incógnita, momento em que as fronteiras do mistério ainda não tinham sido devassadas pelas novas descobertas científicas e enquanto a razão não dominava o universo, uma vida intensa fervilhava nos quatros elementos. Vindos do caos, os seres que aí se debatiam povoavam as mitologias, nutriam as superstições, agitavam os espíritos e tomavam forma graças ao pincel dos artistas e ao martelo de escultores (PRIORE, 2000, p. 17).

Dessa forma a imaginação criava mundos distantes, mundos para alémfronteiras cheios de seres fabulosos, mundos distintos do que vivia as pessoas. E assim também uma concepção muito importante que beira a monstruosidade foi sendo criada: a noção de que o monstruoso é aquilo que está no outro, aquilo que não pertence a mim, ao meu povo, à cultura a qual pertenço. O monstro é aquilo que se manifesta como estranho, embora isso que é pensado como distante (estranho) possa também ser próximo (COHEN, 2000, p. 41). Sobre o Duplo, é corrente na literatura histórias que tratam de personagens perpassados por essa temática. Os casos mais famosos da literatura ocidental são as obras: Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Stevenson, traduzida para o português, O Médico e o Monstro; e a obra de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray.

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Outro caso é a obra de Dostoievski, O duplo. Na literatura brasileira é possível identificar o caso do duplo no romance de Machado de Assis, Esaú e Jacó. Para Zilá Bernd: ―segundo uma acepção psicológica o duplo é a projeção do sujeito, que se vê a si mesmo, como Outro, como entidade autônoma, mas idêntica ou semelhante em todos os aspectos‖ (BERND, 2007, p. 229). O duplo, como o próprio termo sugere, se constitui de duas partes que se complementam em sua essência, ao mesmo tempo em que se repelem em suas características. Os desvalidos conta a história de Coriolano, um sertanejo marcado pelo infortúnio, pelo azar, ele faz uma trajetória nômade em busca de uma vida melhor e levado pelo medo de se deparar com Lampião. Sua vida é conhecida pelo leitor através de suas memórias, que são mescladas entre seu passado e o seu presente, a trajetória percorrida e o caminho a seguir, em busca do sossego de um lugar seguro para construir uma vida. O romance é dividido em três partes: Primeira Parte – o cordel de Coriolano; Segunda Parte – jornada dos pares no Aribé; e Epílogo – exemplário de partida e de chegada. A história começa com o anúncio da morte de Virgulino, no primeiro capítulo:

- Lampião morreeeeu!... Apanhado de susto, no papoco da notícia que acaba de atroar, Coriolano estremece de coração em rebates pegando a boca do peito. Freme-lhe o couro, esbarra a costura da chinela e apura as ouças de faro aguçado, espichando o pescoço pra fora da cacunda. Será, meu Pai do Céu, que o Herodes, enfim, desencarnou? [...] Furando a escuridão lá de fora, relampeia

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aqui dentro a mesma voz: morreu o peste cego! [...] Coriolano larga a linha pra uma banda, e pula do banquinho a rosnar vitoriado: - Toma lá, satana dos infernos! (DANTAS, 1993, p. 11).

Já aqui é possível perceber a figura monstruosa representada por Lampião. O sentimento de alívio expressado pelo personagem logo na frase que abre o romance marca muito bem o medo que gerava o ―peste cego‖. A associação que faz Coriolano da imagem de Lampião com um dos tiranos mais conhecidos da tradição cristã, Herodes, deixa claro o que simboliza a morte daquele que era a causa de sua aflição. Herodes, assim como Lampião, são figuras transgressoras, imponentes diante da sociedade. Os dois contrariavam a lógica da ordem social, concomitantemente causavam espanto e assustamento. Nesse momento, eles dois figuram o estranho, o outro em sua forma cruel, que se distancia da política que zela pelo apaziguamento das coisas, pois o que é o ―satana‖ expressado por Coriolano senão a figura do diabo sem piedade que mata e destrói? Nesse sentido, o monstro também pode ser entendido como um prenúncio de morte, anunciação de um perigo iminente, ele se revela contra aquilo que está posto, ele age num determinado momento histórico contra o sistema que o rege. O cangaço, insígnia máxima de Lampião, agia dessa forma, deixando os rastros de sangue por onde passava, conforme se observa em uma das memórias de Coriolano:

Lá se vai tio Filipe tocando na batida do destino, atravessando ruas e ganhando estradas, bebendo os ares do relento, cruzando com aguardenteiros e tangerinos,

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partindo deste mundo no encalço de suas ilusões. Agora sim, é um senhor governado por si mesmo, um homem empatado com a sua sina! Só uma coisa o arrepia e lhe morde a alma: é o comento que corre por aí, das judiarias e façanhas do cangaço a empapar de sangue as areias dos caminhos (DANTAS, 1993, p. 76). A atitude dos cangaceiros, que representa a ação também de Virgulino, adverte a todos de seu perigo, impõe cuidado, vigilância para aqueles que pretendem lançar-se ao mundo, como era o caso do tio de Coriolano, tio Filipe. A autora Josalba dos Santos diz: ―O monstro adverte que seu território está prestes a ser invadido‖ (SANTOS, 2007, p. 128). O território sempre prestes a ser violado pelo monstro que simboliza Lampião é o nordeste. Os caixeiros viajantes, os andantes, os sertanejos conheciam essa possibilidade, esse terror que habitava as estradas que tinham que percorrer, o sangue derramado sinalizava a presença monstruosa, simbolizava que por ali passou o peste cego. Coriolano vivia sob a égide da incerteza, medo dessas possibilidades tornarem-se reais. O encontro de Coriolano com o bando de Virgulino é uma representação da expectativa que se tem uma pessoa ao vir-se que vai se deparar com algo do qual não se quer nunca ter chegado perto, com um monstro real, encarnado:

Assim bambo de tão besta, ia torando léguas por um agreste esquisito a fim de atalhar caminho, e adivinhem com quem topo no cotovelo de uma ladeirinha empinada, por onde eu descia quase cego de tanta ruindade na cabeça cutucar! Ah meu Pai do Céu! Êta vidinha caipora! Pois não é que, em carne e osso, estufa

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em cima de mim o bando de Lampião! Coriolano força as vistas, aboteca a menina do olho quase avoada de medo – ói encrenca... ói encrenca... – e enrijece as juntas moles do corpo, já com as tripas roncando quase a se desvaziar, mal reparando no mundo que empretecia de tanto bicho assim feio agarrado a um mosquetão (DANTAS, 1993, p. 101).

Se na narrativa de Dantas, em Os desvalidos, é possível detectar essas simbologias monstruosas que dizem respeito a Lampião, o contrário também acontece. Nesse contrário, representado por uma figura protetora, é que se encontra a figura do duplo em Virgulino. No mesmo romance Lampião também aparece no imaginário de alguns personagens de forma que contraria o monstro, ele surge como um tipo de herói, um guardião que luta pelos pobres. Nesse sentido o duplo de Lampião, o monstro, se encontraria na outra visão, imagem que alguns fazem dele mesmo. É o que se pode observar na seguinte passagem:

Eis que uma voz retumba sobre o alarido, passa por cima das outras, e todos se voltam para a banda donde sopra o vento. É o velho Chico Gabiru. Chega enlutado no capote colonial, e vai logo abrindo as abas como um morcego a decretar carvenoso: - Agora tudo muda pra pior! Não há mais quem puna pelo pobre! Corre um choque nas criaturas que se entreolham e vacilam, e muitas delas até balangam as cabeças, e batem os beiços apregando na feição abrutada o seu pesar, em apoio ao homem consabido que falou (DANTAS, 1993, p. 14-15).

Dessa feita, o duplo aqui não é o sujeito que se vê a si mesmo como outro, mas sim outra imagem, uma segunda representação de um determinado

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personagem que destoa da imagem cristalizada que se tem sobre ele, uma imagem criada a partir de outros olhares que não o dele sobre ele mesmo, mas que de alguma forma está lá, faz parte dele. Dessa maneira as duas partes que formam o duplo se encontram na mesmo personagem, não são dois papéis representados por dois personagens que se complementam para formar um duplo. Algumas dessas imagens literárias que se formaram a respeito de Lampião são condizentes com a realidade, pois em se tratando de memórias recontadas (e muitas vezes reinventadas) através da literatura a linha entre realidade e ficção se apresenta tênue. O mesmo Lampião que se pode captar da leitura da obra de Dantas se encontra em muitos noticiários da época em que morreu o ―famigerado‖ cangaceiro:

Como órgão de opinião, as nossas colunas têm dado ao conhecimento do público pormenores sobre o fato da morte de Lampião e de seus sequazes mais diretos, libertando o hinterland nordestino do maior flagelo que impossibilitava a sua prosperidade. Maior que a seca horrível com todo o seu cortejo de miséria e sofrimentos, o cangaço praticado por Lampião e seus grupos, desabitava povoados, cidades matando, saqueando, depredando, humilhando famílias, levando, enfim, a desgraça por toda parte. Justas são, pois, as alegrias das populações que sempre estiveram à mercê do bandido agora caído em combate com as forças do estado de Alagoas (SOBRINHO, 2008, p. 42).

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Essa notícia que saiu no Sergipe Jornal, na edição de 29 de julho de 1938, parece mais o grito de alívio de Coriolano ao saber da morte de Lampião. A informação extraída da leitura do jornal que Virgulino era a causa da desabitação de povoados se parece com a trajetória que sofreu Coriolano, a procura de lugar seguro, de um local onde pudesse encontrar prosperidade, acalmado do perigo do cangaço. As populações, segundo o jornal, que ficavam ―a mercê do bandido‖ se assemelham com as cidadelas percorridas pelo protagonista de Os desvalidos. Cidadezinhas que respiravam tensão, que viviam temendo a chagada do bestafera, que se escondiam, que andavam nas estradas tremelicando somente de pensar num encontro com os cangaceiros, cidadelas que soltaram fogos de artifícios ao saber da notícia aliviante da morte de Virgulino.

APRECIAÇÕES CONCLUSIVAS Em Os desvalidos, o que se pode perceber é uma releitura crítica da realidade, uma apresentação apurada de personagens, no caso especial dessa investigação, Lampião, que são complexos em seu entendimento, passíveis de distintas construções de sentido, aspecto que foi trabalhado minuciosamente pelo narrador, pois se ao mesmo tempo em que ele constrói uma figura marcada pela monstruosidade, pela crueldade, uma figura que aparece em suas memórias como uma fera a assustar o nordeste, ele também revela outro lado de Virgulino

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através do sentimento de perda de alguns personagens que viam na figura de Lampião a representação da segurança dos pobres, um herói não compreendido. A ficção e a realidade se confundem em Dantas, o personagem parece respirar de uma realidade fora das páginas do romance, da mesma forma que na literatura encontra pormenores, invenções, artimanhas que a realidade não apresenta. O Lampião de Dantas percorre no imaginário popular, na realidade, mas só podia encontrar na literatura sua complexidade, suas várias facetas.

REFERÊNCIAS DANTAS, Francisco J. C. Os desvalidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. PRIORE, Mary Del. Esquecidos por Deus - monstros no mundo europeu e iberoamericano (XVI-XVIII). São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 17-38. BERND, Zilá (org.). Dicionário de figuras e mitos literários das Américas. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2007. p. 227-234. SANTOS, Josalba Fabiana dos. Monstros e duplos em A menina morta. In: JEHA, Julio (org.). Monstros e monstruosidades na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. p. 125-145. COHEN, Jeffrey Jerome. A cultura dos monstros: sete teses. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Pedagogia dos monstros: Os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 23-60. SOBRINHO, Antônio Corrêa. O fim de Virgulino Lampião – o que disseram os jornais sergipanos. Aracaju: Gráfica Santana, 2008, p. 20-67.

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FARRA, Maria Lúcia Dal. Um olhar (enamorado) sobre a obra de Francisco J. C. Dantas. Revista Interdisciplinar, Aracaju, v. 8, p.15-21, jan/jun. 2009.

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L’ALLEGRO E IL PENSEROSO OBSERVADOS À LUZ DO CONTEXTO DEFENSIVO DE JOHN MILTON Paloma Catarina Zart (UFSM)i

O poeta inglês John Milton (1608 – 1674) é lembrado por sua participação ativa no movimento político que resultou, após a derrota do rei Charles I (1625 – 1649), no estabelecimento do Commonwealth. Diante desta atividade fervorosa que tomou boa parte de sua vida, de sua insistente defesa da causa republicana e fortalecimento de um fazer religioso mais caracteristicamente britânico, as obras literárias do poeta são, muitas vezes, observadas, analisadas e interpretadas tendo o engajamento político e religioso de Milton como matéria base para qualquer postura assumida com relação às obras ficcionais. Considerando esse aspecto, E. M. W. Tillyard (1938) lembra que a falta de indícios polêmicos e a ausência de uma posição religiosa nos poemas L‘Allegro e Il Penseroso fez com que as peças fossem locadas no período em que Milton ficara ausente de Londres e do burburinho acadêmico de Cambridge, após a conclusão de seus estudos. Uma posição defendida inicialmente por Hayley e amplamente aceita após a recriação, por Masson Bush, em sua biografia do poeta revolucionário, dessa fase bucólica que Milton vivera durante seu auto-exílio de estudos em Horton e Hamersmith. Tillyard (1938), no entanto, afirma que os poemas foram compostos nos anos finais em Cambridge como um exercício retórico.

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Ao poeta teria sido apresentada a questão de qual período era o melhor, o dia ou a noite. A escolha entre a companhia da noite ou do dia que deveria de ser apresentada diante de seus pares (Bradford, 2001), o estudante preferiu, no entanto, não se posicionar, a princípio, entre um ou outro, antes, Milton optou por compor duas peças distintas em que elogia as duas metades de uma rotação terrestre completa. Para David Miller (1971), os dois poemas indicam que o poeta compreendia a importância destes dois comportamentos na vida do homem, pois não haveria meios de excluir totalmente momentos de prazer, cantados em L‘Allegro, ou situações em que a reclusão, principalmente, uma reclusão de estudos, como apresentado em Il Penseroso, se fazem necessários. Assevera Miller que,

Both play and study are given full and fair treatment before they are incorporated into a unified vision. Initially the two poems appear to be neatly balanced: either mirth or melancholy is satisfactory. Man may sometimes have one, sometimes the other, or some men may choose study, some play. (1971, p. 32)ii

Com isso, Milton defenderia com as composições gêmeas, a importância tanto do dia quanto da noite para qualquer sujeito. Isso, no entanto, não o impede de mostrar-se mais inclinado a um modo de concepção em relação ao outro, como veremos adiante. Quando contrapostos com o contexto biográfico do poeta, descobre-se que os poemas estão próximos a uma observação feita em uma missiva

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endereçada a Milton, por seu amigo íntimo, o italiano Charles Diodate. Enquanto estudante do Christ‘s College, a atenção do futuro poeta estava mais voltada a sua preparação literária. Dedicando-se com grande afinco para a compreensão e bom uso de estruturas formais líricas e cuidando de conhecer profundamente a literatura clássica, para a época, o grande modelo a ser seguido e imitado (RIVERS, 1994). O afinco com que o estudante tratava seu desejo de um dia vir a ser um grande poeta inglês rendeu-lhe horas e dias intermináveis diante dos livros, o que causava certa apreensão em seu amigo íntimoiii. Nesta carta acreditase que Diodate tenha questionado a austeridade vivida pelo amigo inglês. O conteúdo da carta do italiano é inferido pela resposta de Milton em uma epístola escrita em dezembro de 1629. Conhecida como Elegia VI, o escrito apresenta a crença do poeta de que sua vida sóbria e comprometida com a ilustração pessoal correspondia aos cuidados que um bardo deveria observar a fim de ser capaz de escrever sobre temas nobres e elevados enquanto que uma vida regada pelos prazeres estava relacionada a outro modo de compor literatura, o qual não interessava ao poeta:

In fact, the light elegy is in the care of many of the gods, and she calls whomever pleases her to her lines. With Elegy stand Liber, Erato, Ceres, and Venus, and, next to his rosy mother is tender Love. For good dinner companions are valued by such poets, and very often old wine is ordered. But he who represents wars and heaven beneath a mature Jupiter and pious heroes and semi-divine rulers now sings the best in the sacred council of the gods, and now the infernal realm holding the howling dogs, let him live sparingly in the manner of the Samian teacher, and let

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herbs furnish his innocuous meals. Let glimmering pure water stand in a vessel made of beech, and let him drink sober draughts from the pure spring. Let it be added to this that his youth should be crime-free and chaste, his ways must be upright, and his hand without blemish. He should be of your type. O priest glittering with the sacred cloth and sacrificial water standing with the angry gods. By this rule wise Tiresias is said to have lived after his eyes were taken and Ogygian, Linus, and Calchas, a refugee from his accursed home, and Orpheus as an old man smote the wild beasts of the lonely cave. Thus Homer, spare eater and drinker of the stream water, sailed Ulysses through the wise sea and through the monster-making palace of Phoebus and Perseis, and through the shoals of the sirens, and through your houses, infernal king, where it is said swarms of shades are imprisoned by black blood. For truly the bard is sacred to the gods and he is priest to the divine. His secret heart and his lips breathe out Jove. But it you will know what I am up to (if you, at least by custom, consider what I do of such importance to know), I sing to the peace-bringing God descended from heave, and the blessed generations covenanted in the sacred books, the cries of the infant God who, stabled under a poor roof, dwells in the heavens with his father. I sing the starry axis and the singing hosts in the sky, and of the gods suddenly destroyed in their own shrines. We assuredly owe these gifts to Christ on his birthday, gifts which the first before the dawn brought to me. iv

Nesta missiva está, talvez, o embrião dos poemas gêmeos. Não é, no entanto, impossível que estejam ligados de modo mais íntimo ao desejo inicial de Milton de se destacar como um grande poeta. Barbara Lewalski (2003) lembra, ecoando o artigo de Miller (1971), que L‘Allegro e Il Penseroso podem ser compreendidos como uma manifestação de estilos de vida e literário distintos, pois

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In these poems Milton stages an ideal solution to his youthful anxieties about slow development, lifestyles, and poetry – a natural progression from L‘Allegro to the higher life and art of Il Penseroso, which offers to lead, after ―long experience,‖ beyond ecstatic vision to prophetic poetry that can convey that vision to others. (LEWALSKI, 2003, p.52)v

Como a própria carta de Milton demonstra, o jovem inglês considerava e observava muitos aspectos cantados em Il Penseroso. Os poemas são considerados gêmeos, ou companheiros, porque, além de uma estrutura semelhante, trazem visões antagônicas e complementares, sendo quase impossível a compreensão de um sem se considerar o outro. L‘Allegro inicia rechaçando a melancolia. Vista como um estado de ânimo negativo, lembrando o desequilíbrio entre os humores, conforme a concepção grega (MILLER, 1971, p. 33), sua presença é sintomática de um estilo de vida contrário ao que será cantado no poema. Depois de negada a melancolia, o poeta lembra as origens de Mirth (Júbilo), musa inspiradora daqueles que levam uma vida mais leve e prazerosa. Depois de mencionar os dois possíveis pares paternos da musa, tem-se a descrição de um dia dedicado aos deleites campesinos de uma existência festiva e jocosa. O poema é encerrado com um apelo, se Júbilo for capaz de prover os prazeres descritos, o poeta lhe acompanhará. Il Penseroso, por sua vez, também inicia com o repelimento de um mítico, porém trata-se, aqui, de Júbilo. O poeta lembra o nascimento de Melancolia, companheira daqueles que preferem uma vida reclusa e de estudos. A

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melancolia, aqui, porém, não é a mesma apresentada no poema anterior, de acordo com Miller (1971), trata-se da melancolia áurea, descrita inicialmente por Aristóteles e responsável pela inspiração dos poetas. Após a menção das origens da musa de Il Penseroso, tem-se a descrição de um período noturno dedicado à contemplação e à ilustração de quem prefere os livros às delicias de uma vida farta em diversão. De modo análogo ao outro poema, Il Penseroso termina com o poeta afirmando seu desejo de permanecer ao lado de Melancolia. Há, no entanto, uma pequena diferença nestas afirmações. Como indicamos anteriormente, para Lewalski (2003) os dois poemas podem ser compreendidos como um processo evolutivo onde, partindo-se de uma vida mais experimental, alcança-se a contemplação dos eruditos. Como já mencionamos acima, a posição da professora americana está em sintonia com a visão de Miller (1971). Para o crítico, o público de Milton esperava que o poeta defendesse retoricamente a melancolia, ou seja, o conhecimento, mas opta por dois poemas que se confundem. Em princípio, tem-se a impressão de que Milton está mais inclinado aos prazeres propiciados por Júbilo, pois o poeta admite a possibilidade de seguir a musa (These delights, if those can‘st give/ Mirth with thee, I mean to live)vi, mas ao final de Il Penseroso, Milton confirma a escolha pela erudição (These pleasures Melancholy give/ And I with thee will choose to live)vii. Desta forma, o poeta reafirma sua ideia de evolução. A assertiva final de Il Penseroso reforça a opinião de Miller (1971) e de Bradford (2001) acerca da inclinação pessoal de Milton sendo manifestada nos poemas.

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A interpretação dos poemas, entretanto, não é tão simples. O único ponto convergente entre a crítica é a clara distinção entre dois modos particulares de se conduzir a vida. É arriscado dizer se Milton representa-se em um ou noutro poema, apesar de conhecermos a opinião do poeta sobre o tema. Certo está, contudo, que a temática não seria de todo uma novidade para o próprio Milton, já que, em contexto privado, defendera posição semelhante quando contestado pelo amigo Diodate. De modo geral, nos dois poemas, mas principalmente em Il Penseroso, encontra-se uma posição que Milton defende em vários momentos de vida. Há uma constante lembrança na produção ficcional e não literária acerca da necessidade e da importância que o poeta atribui a observância de uma vida mais regrada e dedicada aos estudos. Conforme encontramos em An Apology for Smectymnuus, o constante estudo permitiu que Milton fosse capaz de tratar dos mais distintos temas, dando-lhe autoridade para discutir as temáticas que estavam em pauta no período. Na mesma obra, entretanto, o poeta comenta o teatro, demonstrando que tanto os prazeres quanto a erudição são importantes para o sujeito, a questão estaria mais no equilíbrio entre os dois. Parece ser, por fim, deste equilíbrio que os poemas gêmeos tratam. Considerando-se que a posição de Miller (1971) seja mais adequada, quando se considera o conjunto das obras miltonianas, o que temos tanto em L‘Allegro quanto em Il Penseroso é a observação de que, independente da escolha individual pelo dia ou pela noite, importa chegar a uma evolução, é relevante conseguir

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realizar seus próprios intentos, respeitando as características peculiares de cada um. Os poemas dizem, portanto, algo semelhante ao que Milton deixara mais explícito em sua carta ao amigo, se um homem escolhe a diversão ou o estudo essa escolha deve estar em conformidade com aquilo em que acredita. Defender seu ponto de vista é o que Milton faz nos poemas, na carta ao amigo, no An Apology como em muitas de suas obras.

BIBLIOGRAFIA BRADFORD, Richard. The Complete Critical Guide to John Milton. London: Routledge, 2001. LEWALSKI, Barbara K. The Life of John Milton: a critical biography. Oxford: Blackwell Publising, 2003. MILLER, David. From Delusion to Illumination: A larger structure for L'Allegro-Il Penseroso. IN: PMLA, v. 86, n° 1, Jan. 1971, p. 32-39. Versão eletrônica disponível em http://www.jstor.org acesso em 15 Jun. 2009. MILTON, John. The Sixth Elegy. Translation by Glenn Buchberger and Thomas H. Luxon. versão digital disponível em http://www.darmouth.edu/~milton/reading_room/elegiarum/elegy_6/text.sh tml acessado em 29 mar. 2010. __________. L'Allegro; Il Penseroso; An Apology for Smectymnuus. IN: John Milton the Major Works: including Paradise Lost Edited with an introduction and notes by Stephen Orgel and Jonathan Goldberg. New York: Oxford University Press, 2003, p. 22-25, 25-30, 173-182. (Oxford World‘s Classics).

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RIVERS, Isabel. Classical and Christian Ideas in English Renaissance Poetry: A Student's Guide. New York:Routledge, 1994. TILLYARD, E. M. W. The Miltonic Setting: Past and Present. Cambridge: Cambridge University Press, 1938.

i

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal de Santa Maria, bolsista Capes. ii

Ambos, diversão e estudo, são dados tratamento justo e amplo antes de eles serem incorporados em uma visão unificada. Inicialmente os dois poemas parecem estar nitidamente equilibrados: tanto o júbilo quanto a melancolia são satisfatórios. O homem pode algumas vezes ter um, algumas vezes, o outro, ou alguns homens podem escolher estudo, outros a diversão. Tradução livre da autora. iii

Maiores informações sobre a vida de estudos e reclusão de Milton podem ser encontrados na biografia de Lewalski ou em muitos textos políticos do próprio Milton, onde o poeta relembra sua juventude em Cambridge ou na casa paterna e a atenção devotada aos livros. iv

Escrita em latim, a presente tradução, em inglês, tem co-autoria de Glenn Buchberger e Thomas H. Luxon. A versão integral em inglês está disponível em http://www.dartmouth.edu/~milton/reading_room/elegiarum/elegy_6/text.shtml De fato, as elegias leves estão aos cuidados de muitos deuses e ela chama qualquer um que a agrade e aos seus versos. Com a Elegia, fica Líber, Erato, Ceres, Vênus e, próximo a sua rosada mãe, tenro Amor. Pois boas companhias de jantar são valiosas para tais poetas e, muito frequente, o vinho antigo é pedido. Mas ele, que representa as guerras e o céu sob o maduro Júpiter e heróis pios e governantes semi-divinos, ora canta o melhor no concílio sagrado dos deuses, e ora o reino infernal segurando cães uivantes, deixe-o beber as sóbrias correntes de ar da primavera pura. Deixe acrescentar que sua juventude deve ser livre de crimes e casta, seus caminhos devem ser honrados, e sua sem manchas. Ele deve ser do seu gênero. O sacerdote cintilando em roupas sacras e água sacrificial ao lado dos deuses raivosos. Foi dito que, por esta regra, o sábio Tirésias viveu depois que seus olhos se foram. Ogigiano, Linus e Calchas, um refugiado de sua casa amaldiçoada, e Orfeu, já um homem velho, encantou as bestas da caverna solitária. Deste modo, Homero salvou o comensal e bebedor de água corrente, pôs Ulisses a navegar pelo mar vasto e através dos palácios construídos por monstros de Febo e Perseu, pelos baixios dos sirenes, pelas vossas casas, rei infernal, onde é dito que o enxame de sombras estão preso pelo sangue negro. Pois, verdadeiramente, o bardo é sagrado aos deuses e ele é sacerdote do divino. Seu coração secreto e seus lábios exalam Júpiter. Mas você saberá no que eu me ocupo (se você, ao menos por costume, preocupa-se com o que eu faço de tão importante), eu canto para o Deus vindo do céu, que traz a paz, e as gerações abençoadas contratadas com os livros sagrados, os choros do Deus criança que, estabelecido sob um teto pobre, habita nos céus com seu pai. Eu canto o eixo estrelado e as hostes cantoras do céu e dos deuses em seus santuários destruídos repentinamente. Nós, com certeza, devemos estes presentes a Cristo em seu aniversário, presentes que a primeira luz depois da madrugada me trouxe. Tradução livre da autora.

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Enfase no texto. Nestes dois poemas Milton organiza uma solução ideal para as suas ansiedades juvenis quanto ao desenvolvimento lento, estilos de vida e poesia – uma progressão natural de L’Allegro para uma vida e arte mais elevada de Il Penseroso, que se oferece para guiar, depois de uma ‗longa experiência‘ para além da visão estática à poesia profética que pode transmitir essa visão aos outros. Tradução livre da autora. vi

Estes prazeres, se você podes me dar/ Júbilo contigo, eu pretendo viver. Tradução livre da autora.

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Estes prazeres Melancolia dá,/ E eu contigo escolho viver. Tradução livre da autora.

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SENHORA: A ÁUREA VINGANÇA Patrícia de Souza Fraga (UFS)

A obra Senhora de José de Alencar escrita durante o século XIX, situado no Segundo Império, reflete a situação da sociedade, na época voltada para os interesses burgueses. Produzida no Romantismo, a arte em profunda subjetividade e individualismo, que teve seu apogeu no século XIX, e foi fortemente influenciada pela Revolução Industrial (iniciou-se na segunda metade do século XVIII) que foi a causadora da consolidação da sociedade de classes: composta neste momento pela burguesia e o operariado. E a Revolução Francesa, em 1789, que deu ascensão a burguesia e o desenvolvimento do capitalismo. Ambas foram de forte incentivo para a iniciativa livre e para o nacionalismo. Com estas influências, o Brasil passa por transformações sociais e econômicas, consolidando, portanto, o capitalismo no país. Diante a sociedade fundamentada no ato patriarcal, a mulher não possuía título de cidadã, ou seja, o ser tido como 'frágil', era excluída de todas as decisões, nem tinha quem falasse por ela, e não podia participar do âmbito social, apenas devia estar no lugar que lhe era imposto- o lar. Com isso, restava-lhe se preocupar com os filhos, com o marido, com a casa e, para as que eram solteiras, procurar estar sempre apresentável para os pretendentes. O acesso a educação era restrito. Possuíam uma formação voltada

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para o casamento, como saber costurar, cuidar da casa e ter conhecimento de uma língua estrangeira e uma área artística (como saber tocar piano, pintar ou dançar). Temos que lembrar que, na época o casamento era um contrato entre as famílias, O pai da jovem escolhia o pretendente e lhe pagava um dote, formado o 'contrato, realizava-se a cerimônia, Quanto mais dinheiro tivesse a família mais rápido conseguia marido, do contrário, tinham que depender da boa aparência (primeiro casavam as jovens da burguesia, depois as da classe média e por fim as mais bonitas das famílias sem muita condição). Sendo que, as que não conseguiam um casamento eram consideradas as 'velhas que ficaram para a tia'. Formada a desigualdade (em que a burguesia era privilegiada) a mulher desprovida de bens materiais eram sempre as últimas a serem escolhidas e quando não o eram sofriam preconceito e eram motivo de deboche. As mulheres tinham em seu vestido um decote obrigatório, sua ausência indicada que a mulher era uma dama de companhia, (geralmente escravas escolhidas para acompanhar a sinhá) não podia questionar direitos, tendo que aceitar sua condição de ser inferior. Quanto a essa situação nos diz o sergipano Francisco J.C. Dantas em sua obra A Mulher no Romance de Eça de Queiróz:

No decurso do século XIX, a mulher ainda não tinha voz para se nomear e fazer ouvir, nem contava com alguma representatividade ou instituição pública que cuidasse de seus interesses. Sem ter como fazer prevalecer a sua presença e os seus direitos enquanto ser social, ela se manteve todo o tempo excluída das preocupações dos grandes legisladores, bem como dos homens eminentes que gastavam o tempo a construir uma

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história de pretensões científicas. Essa história- que mantinha para a mulher a segregação que pedia qualquer tomada ou manifestação de consciência- cuidou de rebaixá-la ainda mais, enfatizando, em nome da ciência, os traços físicos e as características psicológicas de sua inferioridade. (DANTAS, 1999, p. 13)

Sendo assim, dentro de uma sociedade aristocrática da segunda metade do século XIX as atividades femininas eram limitadas ao espaço doméstico e familiar. Antônio Cândido, crítico literário de apurada visão social, em sua obra Formação da Literatura Brasileira, classifica o autor Alencar em fases, estando na 'fase adulta' uma das suas maiores obras: Senhora. Romance de caráter urbano, tendo como tema central o jogo de interesses presente numa sociedade voltada para o individualismo.

"É o Alencar que se poderia chamar dos adultos, formado por uma série de elementos pouco heróicos e pouco elegantes, mas denotadores dum senso artístico e humano que dá contorno aquilino a alguns dos seus perfis de homem e de mulher." (CÂNDIDO, 2000, p. 204)

Como já vimos, a sociedade do séc. XIX, estava passando por transformações, dentre elas a consolidação do capitalismo, sistema no qual a burguesia é favorecida. Esta ascensão pode ser observada no romance Senhora em que todos os personagens vivem situações vinculadas ao sistema burguês. Cada indivíduo, por mais desinteresse que tenha, está ligado ao meio capitalista, inclusive Aurélia, que revela em todo o romance sua oposição ao

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dinheiro, no entanto utiliza-se dele para conseguir alcançar seu objetivo. Teremos a seguir a descrição dos principais personagens da obra. O Sr. Lemos que, nas palavras de Roberto Schwarz, "pelintra e interesseiro tio da heroína, é gordinho como um vaso chinês e tem ar de pipoca" (SCHWARZ, 1992, P. 42). Dentre outros, ele foi um causador dos problemas de Aurélia e Fernando. A dona Firmina que estava sempre ao lado da protagonista, chamada pelo autor de mãe de encomenda, na verdade tratava de uma dama de companhia (exigida pela sociedade, principalmente para as jovens solteiras da corte). Fernando Seixas era um jovem pertencente a uma família pobre, conhece Aurélia e compromete-se com ela, mas desfaz o noivado para marcar compromisso com Adelaide Amaral por trinta mil réis. Aurélia uma jovem humilde, filha de um rico filho de fazendeiro que não assume a família. Ao ficar totalmente órfã dos parentes que tinha contanto, recebe a herança de seu avô paterno. A mais nova herdeira resolve aparecer na sociedade pronta para cumprir seu objetivo- vingar-se de Seixas. O autor divide a obra em quatro partes, que segundo Roberto Schwarz "a protagonista reduz o casamento de conveniência a seu aspecto mercantil... A tal ponto que, as quatro etapas da história são chamadas 'o Preço', 'Posse', 'Quitação', 'Resgate'." (SCHWARZ, 992, p. 52). Títulos apropriados a questão da época (em que o homem estava voltado para os interesses materiais) cuja sociedade realizava o culto ao dinheiro, desprezando os sentimentos.

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Trata-se em toda obra da vingança, que é tida como uma reação a algo que aconteceu e foi negativamente sentido, tem a função, na maior parte das vezes destrutiva. Quem a adquire procura fazer com que o outro passe pela mesma ou pior situação do que passou. É o que acontece no romance quando Aurélia movida pelo sentimento que a toma: o rancor e, resolve se vingar do causador da sua maior decepção amorosa causada por Seixas. A jovem herda de sua infância conturbada ao lado da mãe, os sentimentos foram sendo misturados. Torna-se uma jovem bem apanhada em dotes de beleza e sendo abastada em termos financeiros, como mulher de alta classe. Vivia recebendo visita de pretendente, no entanto, dispensava a todos por saber que a procura era apenas por interesses materiais, por isso recusava-os dando-lhes a quantia equivalente a o seu preço.

Na sala, cercada de adoradores, no meio das e4splêndidas reverberações de sua beleza, bem longe de inebriar-se de adoração produzida por sua formosura e do culto que lhe rendiam, ao contrário parecia unicamente possuidora de indignação por essa turba vil e abjeta. (ALENCAR, 1993, p. 20)

Na primeira parte (o Preço), o leitor conhece Aurélia. Uma jovem de 18 anos, órfã, "rica e formosa" (ALENCAR, p.19) que se apresenta à sociedade e é motivo de dúvidas para alguns e de interesse para outros. Inicia-se o processo de vingança da protagonista. Com os olhos e o coração fixos em seu objetivo, Aurélia, despreza todos os pretendentes e escolhe o futuro marido: Seixas, que

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acabara de voltar à cidade. No entanto, este encontrava-se comprometido com Adelaide Amaral. Sabendo disso, a jovem pede ao tio Lemos que ofereça dinheiro ao Dr. Torquato Ribeiro para que tenha a permissão do Manuel Tavares do Amaral (pai da jovem) para casar com Adelaide. O diálogo a seguir revela uma Aurélia fria, calculista, agindo como uma verdadeira negociadora:

-É preciso quanto antes desmanchar esse casamento. A Adelaide deve casar com o Dr. Torquato Ribeiro, de quem ela gosta. Ele é pobre, e por isso o pai o tem rejeitado; mas se o senhor assegurasse ao Amaral que esse moço tem de seus uns cinquenta contos de réis, acha que ele recusaria? / - Suponha que eu assegurasse isso. Donde sairia o dinheiro? / -Eu o darei com o maior prazer. (ALENCAR, 1993, p. 33)

Fernando Seixas é um jovem pobre que foi noivo de Aurélia, deixando-a por ela também ser pobre e ter conseguido comprometer-se com Adelaide que, apesar de não fazer parte da alta classe, possuía o dote de trinta contos de réis. Mimado pela mãe e pelas irmãs, Seixas vive demonstrando riqueza, enquanto a família passa por dificuldades financeiras. Por necessidade, ele aceita o casamento proposto por Lemos (a pedido de Aurélia que, apresenta o compromisso assumido como uma negociação comercial). Em um dos encontros dos noivos, Aurélia chega a encantar-se por Seixas, mas o rancor novamente a domina: "Ela abria a alma ao amor; porém o amor que

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filtrava nas meigas falar de Seixas evaporava-se como uma fragrância que a envolvia um instante, sem penetrar-lhe os seios d'alma." (ALENCAR, 1993, p. 63) Após o casamento, estando Aurélia na câmara nupcial, pensa novamente em desistir do seu objetivo (vingar-se), no entanto logo se recupera. E, tendo o marido aos seus pés, preste a beijá-la, afasta-o e chega ao ápice da vingança. Tendo o documento do contrato de casamento na mão, a protagonista o chama de 'mercadoria comprada'.

Vendido sim: não tem outro nome. Sou rica, sou milionária; precisava de um marido, traste indispensável às mulheres honestas. O senhor estava no mercado, comprei-o. Custou-me cem contos de réis, foi barato; não se fez valer. Eu daria o dobro, o triplo, toda a minha riqueza por este momento. (ALENCAR, 1993, p. 73)

O termo 'momento' utilizado pela esposa, refere-se a oportunidade de humilhar aquele que a abandonou, a fim de retomar sua dignidade e fazê-lo sentir a dor que por si foi sentida. Tamanha foi a frieza das palavras citadas pela herdeira que não mediu esforços para declarar seu mais novo pertence: o marido (deixando-se, portanto, envolver pelo rancor, a jovem trata Seixas como o seu novo objeto). Essa forma de desabafar a mágoa sufocada há tempos, pode ser observada no trecho a seguir:

"-Agora, meu marido, se quer saber a razão por que o comprei de preferência a qualquer outro, vou dizê-la; e peço-lhe que me não interrompa. Deixa-me vazar o que tenho dentro desta alma,

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e que há um ano a está amargurando e consumindo." (ALENCAR, 1993, p. 74)

Passando para a segunda parte, (titulada a quitação) revela-se a história de Aurélia. Filha de D. Emília Camargo e do estudante de medicina Pedro de Souza Camargo (filho natural de um fazendeiro abastado). D. Emília foge da casa do seu irmão Lemos para se casar com Pedro, no entanto um tempo após o casamento o recém casado cumprindo ordem do pai voltou para a fazenda, prometendo retornar em breve para a esposa. Não tendo coragem de revelar seu compromisso firmado ao pai, ele arrumava formas de subsistir a mulher. Quando teve oportunidade, volta para a mulher encontrando seu primeiro filho o qual pôs o nome de Emílio. Logo depois nasce a menina, a esta Pedro deu o nome de sua mãe: Aurélia. D. Emília fica novamente sozinha, agora, com seus dois filhos, temia pelo futuro, pois seu marido ainda não era reconhecido pelo pai (na época o patriarcalismo dominava e a lei não protegia ao filho que não era legalmente assumido pela figura paterna), Pedro poderia ser abandonado sem direito a nada. Pedro falece acometido por febre cerebral,

deixando a família

desprotegida e sem condições financeiras. Para D. Emília, "além da viuvez a morte do marido deixava-lhe a pobreza e a desonra." (ALENCAR, p. 79) Emílio com 18 anos passa a trabalhar como muita dificuldade recebe o auxílio da irmã, Aurélia, que consegue facilmente te aprender em uma semana o que o irmão não

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conseguiu em meses. Portanto, Emílio ia ao trabalho e Aurélia fazia todos os cálculos. Podemos perceber, nesse capítulo que, Aurélia era o sustento da casa, o irmão dependia dela nas contas, a mãe lamentava pelo presente e futuro e ela fazia todas as tarefas da casa, as contas de Emílio, além dos trabalhos de costura. Sem restar para si momentos vagos, a jovem atendendo ao pedido da mãe passa a ficar alguns instantes na janela, passando a ficar todas as tardes (o que não lhe agradava, pois não queria um casamento arranjado por sua beleza) após o falecimento de Emílio (tomado pela pneumonia). A fama da jovem formosa exposta na janela chegou a Lemos, que interesseiro, procurou a sobrinha. Aurélia com esperança de o tio reconciliar a família não vê a maldade e a ambição que se encontra nas visitas do tio. Ao descobrir através de uma carta escrita por ele, ela passa a evitá-lo, como também a todos os homens que queriam apenas uma aventura sem compromisso. Ao conhecer Seixas, tanto ele como ela, encontrados, iniciaram uma história amorosa. Fernando não pensava em compromisso, mas encontrando-se numa situação em que fora interrogado por D. Emília e, ao saber que sua amada recusou o casamento com um dos melhores partidos, pediu a mão da jovem. Ao ter conhecimento da notícia, Sr. Lemos, resolve acabar com esse noivado, fazendo com que Seixas perceba o prejuízo de casar-se com Aurélia, levando-o a aceitar o compromisso com Adelaide Amaral por trinta contos de réis.

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Na verdade, Seixas aceitou o noivado apenas pelo dote, ele não era apto ao casamento, mas por interesse financeiro fez-se de acordo. O Sr. Amaral tentou realizar a cerimônia antes da viagem para Pernambuco que Fernando estava prestes a fazer, mas o noivo não foi a favor, pois, segundo ele, tinha que partir com urgência. O que comprova seu desinteresse sentimental. Após ser abandonada Aurélia recebe uma carta anônima escrita, talvez por Lemos, na qual dizia ter Seixas desfeito o compromisso para receber o dote de Adelaide, confirmado o pensamento, a jovem percebeu que, perdoava o amado por deixá-la devido a pobreza (por ambos não terem boa condição financeira), mas não aceitava o rebaixamento dele por dinheiro. O amor que sentia, começa aqui, a transformar-se aos poucos em ressentimento. Para a alegria da D. Emília e de Aurélia o Sr. Lourenço Camargo (pai de Pedro) descobre através de uma carta guardada nos pertences do filho, os documentos que legitimava, tanto o casamento como Aurélia e Emílio. Emocionado, enche-as de presentes e antes de voltar à fazenda entrega um pacote a neta. Passando um tempo falece o Sr. Lourenço e logo depois a D. Emília. Órfã (de pai e de mãe) e pobre, a jovem não foi procurada por nenhum parente somente pela D. Firmina (parente distante) que a levou para sua casa a pedido do Dr. Torquato Ribeiro que a acompanhou durante toda a situação. Descobrindo que o avô faleceu a jovem é levada pelo amigo do Sr. Lourenço a abrir o pacote que continha o testamento que legitimava o folho Pedro e deixava toda para a neta toda a herança. A nova herdeira passa a receber a

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visita do Lemos (que logo corre para ser tutor da sobrinha) e das primas. Calculista, a jovem aceita o tio, por ter na mãos a carta (em que ele se oferecia para alcovitá-la) e por isso ele faria tudo que ela dissesse. O primeiro passo para ela é, viver sozinha com D. Firmina ( já que a sociedade não aceitava que uma jovem andasse ou vivesse sozinha). Começa aqui o desprezo pelo vil objeto o que só fazia atrair interesseiros, considerava o ouro um mero metal que levava os homens a se rebaixarem: "Era um desafio que lançava ao mundo; orgulhosa de esmagá-lo sob a planta, como a um réptil venenosa." (ALENCAR, 1993, p. 20). A jovem, apesar do rancor que trazia no peito, não mudara a sua essência, somente as atitudes perante à sociedade. Continuara com o coração amável, apesar de todos os transtornos vividos. Na terceira parte é descrita a forma que o casal passa a viver. No teatro, festa ou, na presença de outras pessoas demonstravam um casamento repleto de amor, mas longe dos olhos da sociedade, o casal voltava ao casamento por conveniência, brigavam sem chegar à conclusão nenhuma. Seixas começa a tentar conseguir o preço que o prende a Aurélia para alcançar sua liberdade. É na quarta parte que percebemos o desejo do casal em uma reconciliação, mas orgulhosos seguem num jogo de conflito entre si e o outro. Ora Aurélia deixa-se invadir pelo sentimento ardente, ora retorna a insultar o marido. Nesta situação Seixas age como servo da dama, fazendo somente o que ela ordena (o que inquieta Aurélia, pois acredita ser uma forma do marido de zombar de seus

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sentimentos como outrora fizera). Agora, não reina o desejo da vingança, mas sim o exacerbado orgulho.

O sentimento que animava Aurélia podia chamar-se orgulho, mas não vingança [...] Não sentia ódio pelo homem que a iludira; revoltava-se contra a decepção, e queria vencê-la, subjugá-la, obrigando esse coração frio que não lhe retribuía o afeto, a admirá-la no esplendor de sua paixão. (ALENCAR, 2000, p.115)

Ambos (Aurélia e Fernando) estavam vivendo o auge do casamento de conveniência, o afeto que era transmitido apenas em público, aumentava a cada dia o desejo de entrega ao amor. Após sentirem ciúmes recíprocos, Seixas acelera a sua procura de conseguir a quantia do dote, para enfim ter sua vida de volta. Quando possui o dinheiro, imediatamente paga a sua esposa, mas grande é a surpresa de Seixas, Aurélia, a mulher que o humilhou, ajoelha-se a seus pés, pedindo-lhe que o jovem aceite o amor dela:

-Aquela que te humilhou, aqui a tens abatida, no mesmo lugar onde ultrajou-te, nas iras de sua paixão. Aqui a tens implorando seu perdão e feliz porque te adora, como o senhor de sua alma. (ALENCAR, 1993, p. 199)

A jovem que outrora pensava em se vingar, que presa a um rancor, tenta humilhar o marido até que ele possa amá-la tão profundamente como ela o ama,

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agora, vê-se completamente livre para servir àquele que chama de dono de sua alma: Seixas.

Não, Aurélia! Tua riqueza separou-nos para sempre ./ A moça desprendeu-se dos braços do marido, correu ao toucador e trouxe um papel lacrado que entregou a Seixas. / -O que é isto, Aurélia? / -Meu testamento. [...] / -Eu o escrevi logo depois do nosso casamento; pensei que morresse naquela noite- disse Aurélia com um gesto sublime. (ALENCAR, 1993, p. 200)

Portanto, como todo romance do período do Romantismo, Senhora, tem seu fim com o amor vencendo o sentimento de rancor, mágoa e vingança. No romance, o orgulho perde para a emoção, pois entendendo o que sentia, Aurélia passa todos os seus bens para o marido, para que no momento exato pudesse provar que o amor dela sempre esteve presente. Como já foi citado, após receber a herança do avô, Aurélia mantem sua essência, ajudando o Dr. Torquato com o casamento com Adelaide (de quem gostava), sendo justa com o Eduardo Abreu e, apesar de sua ira contra Seixas, passa todo o seu dinheiro para que o marido tenha a vida que sonhava. Quebrando todas as correntes que a prendia, a jovem se sente capaz novamente de servir a quem amou e continuava a amar. Com isso, percebe-se que o desprezo da jovem pelo dinheiro pode ser explicado pelas situações pelas quais passou (primeiro com a mãe e o pai, com o irmão, e depois com Seixas).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: O nosso intuito com este artigo não foi à análise completa da obra Senhora, história de uma mulher inserida no contexto burguês do século XIX, em que a sociedade estava voltada para o âmbito capitalista. Mas avaliar a capacidade da personagem de transformar uma paixão em ressentimento, gerando o rancor e consequentemente ‗a vingança‘. Observando também, até que ponto pode ir para alcançar seu objetivo. Expondo Aurélia como reflexo (sendo ao mesmo tempo resultado da mesma) de uma sociedade burguesa da qual ela faz parte, o autor questiona, através da personagem, os valores burgueses e com eles, a instituição do casamento de contrato, dando voz ao papel da mulher oprimida na sociedade patriarcalista.

REFERÊNCIA ALENCAR, José. Senhora. 39.ed. Rio de Janeiro: Ediouro,2000. ALENCAR, José. Senhora. São Paulo: Moderna, 1993. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006. CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: Momentos decisivos. 10 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

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SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. 4. ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1992. SANTANA, Maria da Piedade. Senhora Vingança. Lagarto-SE, 2008. DANTAS, Francisco J.C. A mulher no romance de Eça de Queiroz. São Cristovão-SE: Editora UFS; Fundação Oviêdo Teixeira, 1999.

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A MÚSICA DE PROTESTO EM CHICO BUARQUE Paulo André Siqueira Lima (UFS)

Este artigo cientifico apresenta uma reflexão sobre as tendências da literatura contemporânea no período de 1964 a 1984, as questões que darão suporte a este trabalho são: De que modo a literatura foi usada para resgatar os valores sociais e políticos censurados pela ditadura? O compositor Chico Buarque através das suas letras tenta criar uma contra-ideologia para combater a ideologia ditatorial? Como Chico Buarque consegue fazer uma intertextualidade das letras de suas músicas com a realidade social da época? Essas questões nortearão este trabalho, considerando os princípios teóricos da Linguística textual, da Sociologia e da Análise do Discurso, relacionando a pesquisa com o universo teórico apresentado. Convém salientar que, na historiografia brasileira, o Presidente Emílio Garrastazu Médici (1969 a 1974), destacou-se como o mais terrível ditador com a implementação do AI-05. Ele suspendeu os direitos fundamentais do cidadão brasileiro atingindo todas as instituições e não críticas nem oposição pacífica. Para encobrir sua face cruel, gastava milhões de cruzeiros em propaganda destinada a melhorar sua imagem junto ao povo. Um dos slogans dessa propaganda dizia: Brasil – ame-o ou deixe-o, que na prática significava apoé o regime militar ou abandone o país.

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A ditadura militar é um assunto muito polêmico que está sempre em discussão na sociedade brasileira. Por esta razão é que a temática escolhida mostrará como Chico Buarque, um dos nomes mais representativos da música popular brasileira, fez letras de protestos ou que foram consideradas contrárias ao regime ditatorial, carregadas de um discurso político ideológico e engajadas com o contexto sócio-político econômico, mostrando como a linguagem literária foi trabalhada como denunciadora dos desajustes sociais da época. Dentre as letras colhidas para realização desta investigação cientìfica estarão ―Os Saltimbancos‖, ―Apesar de você‖ e ―Vai passar‖. Francisco Buarque de Hollanda nasceu no Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1944. Filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda e de Maria Amélia de Hollanda, pianista-concertista, morou em São Paulo, Rio de Janeiro e Roma durante a infância. Desde criança teve contato em casa com grandes personalidades da cultura brasileira, como Vinícius de Moraes (que viria a se tornar seu parceiro) Baden Powell e Oscar Castro Neves, amigos dos pais ou da irmã mais velha, Miúcha, também cantora e violinista, fato que influenciou sua formação de compositor e escritor. Sua produção tem o comprometimento com o social, sua própria formação o leva a esse caminho: na infância, o trabalho getulhista; na adolescência, o nacional desenvolvimento de J.K.; na vida universitária, o envolvimento com os movimentos populares. Com o golpe militar de 64, a ação da censura política ganha força, a linguagem artística tem dois caminhos: ou o silêncio ou a metáfora. Depois de

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passar quinze meses na Itália, onde esteve exilado, o compositor confronta-se novamente com a censura e para desta se desviar assumiu os nomes de Julinho de Adelaide e Leonel Paiva. Para Adélia Bolle, Chico Buarque com sua obra consegue aquilo que só os grandes poetas conseguem: seu poder de lidar com as palavras fazem delas um instrumento de desvendar a realidade, de romper o silêncio. Os trabalhos feitos por ele apresentam um grande valor literário, sempre marcado pela inquietação proveniente da sua relação com o mundo, e isso fica evidente em suas produções realizadas no período militar o qual desempenhou uma crítica contestadora em relação à ordem vigente. Fazendo um breve apanhado do contexto sócio-político econômico do Brasil de 45 a 64, é importante salientar que a democracia populista empreendeu uma política econômica industrial e desenvolvimentista. Com o objetivo de desenvolver cinquenta anos de sua história em cinco, Juscelino abre as portas ao capital estrangeiro que aqui estala suas indústrias e se aproveita de nossa mão-deobra barata. Com a vitória do Golpe militar de 1964, manteve-se o sistema capitalista e a meta de enriquecer o país. Por outro lado a democracia política passou a ser encarada como um obstáculo ao rápido crescimento econômico. A distribuição de renda, então foi propositadamente deixada de lado, dentro do princípio de que ―primeiro é necessário fazer o bolo crescer para depois dividi-lo‖.

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Os projetos de reforma de base foram abandonados e ganharam força os princípios do desenvolvimento ligados a uma elevada participação de capitais e empresas estrangeiras na economia brasileira. Esses fatos culminaram a recessão e o desemprego que surgiram na década de 80, o crescimento da dívida externa e o achatamento salarial desde 1964, a corrupção tornou-se um mau crônico já na década de 70 e a pobreza e a violência que ultrapassaram o limite do absurdo. Após a decretação do AI-5, durante o governo Médici, verificou-se em todo país um controle rígido dos principais meios de comunicação e informação. A censura atuava diretamente nos jornais, nas TVs, nos teatros e nos cinemas. Passou a ser proibida a livre organização política e a liberdade de expressão tornou-se um sonho. Quase tudo que o regime militar realizava era planejado e decidido entre quatro paredes, por pequenos grupos de tecnocratas, sem o conhecimento da população e sem qualquer discussão com entidades representativas da sociedade. Logo, qualquer crítica tecida ao regime, era violentamente sufocada com a repressão policial e a rígida censura à imprensa. E os poucos que se manifestavam eram

rapidamente

retirados

de

circulação,

acusados

de

contestadores,

subversivos e comunistas. As letras das músicas ―Os Saltimbancos‖, ―Apesar de você‖ e ―Vai passar‖, de Chico Buarque foram elaboradas considerando o clima histórico vivenciado pelo autor. Tais letras apresentam um discurso político ideológico, e

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os seus versos denunciam o regime militar, mantendo uma postura politizada e uma relação dialógica com o Período Realista. Depois de passar mais de um ano vivendo na Europa, em 1970 Chico Buarque voltou ao Rio de Janeiro influenciado pelo seu diretor da gravadora que lhe assegurou que as coisas no Brasil estavam melhorando. Ao chegar, descobre que, ao contrário, a situação piorara e muito. Foi quando escreveu ―Apesar de você‖, letra que foi elaborada ao fazer uma análise de conjuntura do seu país, trabalhando discursivamente uma contra ideologia. Para viabilizar esta análise é necessário que se compreenda um conceito feito sobre a Análise do Discurso, considerando como o discurso é permeado através dos não ditos nos versos das músicas e pelos recursos polissêmicos utilizados pelo compositor. Considerando uma definição de ideologia, segundo a concepção marxista, Chauì (apud BRANDÃO, 2004, p.21) caracteriza a ideologia como ―um instrumento de dominação de classe porque a classe dominante faz com que suas idéias passem a ser idéias de todos.‖ Para criar na consciência dos homens essa visão da realidade, a ideologia organiza-se:

Como um sistema lógico e coerente de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que pensar e como devem pensar o que devem valorizar o que devem fazer e como devem fazer (CHAUÍ, idem, p.22).

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A letra ―Apesar de você‖ denota o clima histórico vivenciado pelo autor e pela sociedade da época, à qual tornou-se um samba que virou febre, tocando nos rádios e por pouco não virou hino, se não fosse a proibição da censura. Nos primeiros versos desta música: ―Hoje você é quem manda / Falou tá falado / Não tem discussão‖. Com o advérbio ―hoje‖ o tempo adquire sua dimensão histórica e fica configurada uma situação de sujeição, de escuridão, caracterizando, assim, o perìodo vivido. ―Você‖ foi, na época, decodificada pela censura como sendo o Presidente Médici. ―A minha gente hoje anda / Falando de lado / E olhando pro chão, viu‖, estes últimos versos da primeira estrofe remetem as atitudes repressoras do governo Médici marcado pela violência policialesca, prisões e torturas – um verdadeiro aparelho repressor. Althusser (apud, BRANDÃO, 2004, p.23) afirma que:

Para manter sua dominação, a classe dominante gera mecanismos de dominação de perpetuação ou de reprodução. É ai então, que entra o papel do Estado que, através de seus Aparelhos Repressores – ARE – (compreendendo o governo, a administração, o Exército, a polícia, os tribunais, as prisões etc.) e Aparelhos Ideológicos – AIE – (compreendendo instituições tais como: a religião, a escola, a família, o direito, a política, o sindicato, a cultura, a informação), intervém ou pela repressão ou pela ideologia, tentando forçar a classe dominada a submeter-se às relações de condições de exploração (p.23).

Considerando o que assinalou Althusser, percebe-se que há uma compatibilidade com o que houve na história do Brasil e com que fica evidente no

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contexto das músicas de Chico Buarque. Já nos versos da segunda estrofe ―Apesar de você/ Amanhã há de ser / Outro dia / Eu pergunto a você/ Onde vai se esconder/ Da enorme euforia/ Como vai proibir/ Quando o galo insistir/ Em cantar/ Água nova brotando/ E a gente se amando/ Sem parar‖, Chico insiste em mostrar sua certeza que tudo vai melhorar, alimentando a esperança do povo brasileiro de que tudo vai mudar. O galo anuncia um novo amanhã pondo fim à ditadura, e esse trecho remete a João Cabral de Melo e Neto ―Tecendo a manhã‖. É a perspectiva da alteração radical da situação vigente, ironizando o governo Médici que, conhecido pelas suas proibições e imposições, não conseguiria impedir a chegada deste novo dia. A ditadura Médici contou com circunstâncias econômicas externas e internas favoráveis, cooptando ideologicamente grande parte do proletariado, da classe média, principalmente a menos crítica e intelectualizada. Em torno, a situação era assustadora. Ao mesmo tempo em que a tortura e o desaparecimento de adversários do regime se tornavam rotina, grassava o mais ensandecido ufanismo. Os automóveis, aos milhares, circulavam com adesivos ameaçadores para quem não estivesse afinado com o ―Brasil grande‖: ―Ame-o ou deixe-o‖, liase nos vidros dos carros, quando não coisa pior:‖Ame-o ou morra‖.O tom ufanista foi também bastante intensificado pela conquista brasileira no México, na copa de 70. A tudo isso Chico reagiu com ―Apesar de você‖ e em 1977 com ― Os Saltimbancos‖, esta última com o presidente general Ernesto Geisel no poder, o qual procurou manter a repressão e a violência à sociedade civil.

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―Os Saltimbancos‖ apresentam a história de quatro personagens, o jumento, o cachorro, a galinha e a gata, os quais, do ponto de vista discursivo, figura mente representam os artistas, o operariado e os membros da sociedade civil que sofriam com a cruel ditadura. Esta produção foi elaborada com uma sequência de faixas intituladas ―Bicharia‖, ―O jumento‖, ―Um dia de cão‖, ―A galinha‖, ―História de uma gata‖, ―A cidade ideal‖, ―A pousada do bom barão‖, ―Minha canção‖, ―Esconde-esconde‖, ―Todos juntos‖. No entanto, esta letra é divulgada aparentemente com uma linguagem ingênua, voltada para o público infantil, onde na verdade traz um discurso político camuflado propositalmente para criticar a censura. Esta forma que Chico Buarque trabalhou a linguagem em ―Os Saltimbancos‖, na análise do discurso remete aos não-ditos, trata-se do silêncio. A essa questão Orlandi (2005, p.83) afirma, ―o silêncio pode ser pensado como a respiração, lugar de recuo necessário para que possa significar, para que o sentido faça sentido. É o silêncio como horizonte, como iminência de sentido‖. Nos versos da música Bicharia ―Au, au, au. Hi-ho, hi-ho/ Miau, miau, miau. Cocorocó/ O animal é tão bacana/ Mas também não é nenhum banana/ Au, au, au. Hi-ho, hi-ho/ Miau, miau, miau. Cocorocó/ Quando a porca torce o rabo/ Pode ser o diabo/ E ora vejam só‖, Chico remete a ―polìtica do silêncio‖, o qual intencionalmente destina uma crítica ao governo militar de modo que o leitor que está inserido no seu mesmo contexto histórico possa corresponder a essa leitura. A respeito desta questão Orlandi (2005, p.83) coloca que ―as relações

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de poder em uma sociedade como a nossa produzem sempre a censura, de tal modo que há sempre silêncio acompanhando palavras‖, por esta razão tem que ser observado o que não está sendo dito e o que pode ser dito. Nestes versos ―Era uma vez (E é ainda) / Certo paìs ( E é ainda)/ Onde os animais / Eram tratados como bestas ( São ainda, são ainda)/ Tinha um barão ( Tem ainda)/ Espertalhão ( Tem ainda)/ Nunca trabalhava/ E então achava a vida linda ( E acha ainda, e acha ainda)‖, o compositor usa a figura do barão para se referir

aos

pequenos

grupos

tecnocratas

e

aos

militares,

opressores,

concentradores de renda que destruía a consciência política da sociedade e do operariado aniquilando-o. Na terceira estrofe da música Bicharia, os versos ―O animal é paciente/ Mas também não é nenhum demente/ Au, au, au. Hi-ho, hi-ho/ Miau, miau, miau. Cocorocó/ Quando o homem exagera/ Bicho vira fera/ E ora vejam só‖, Chico Buarque já tematiza que a sociedade civil tem condições de reagir contra a ditadura militar, que o homem tem uma grande força dentro de si e pode lutar contra o que já vinha acontecendo desde 1964. Na letra da música ―O jumento‖, intencionalmente é usada a figura deste animal para conotar inteligência e sabedoria, uma vez que a sociedade sempre o utilizou somente para extrair sua força animal. Logo, nos versos ―Jumento não é/ Jumento não é/ O grande malandro da praça/ Trabalha, trabalha de graça/ Não agrada ninguém/ Nem nome não tem/ É manso e não faz pirraça/ Mas quando a carcaça ameaça rachar/ Que coices, que coices/ Que coices que dá/ Hi-

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hoooooooooooo‖, percebe-se que o compositor associa a figura do jumento ao proletariado, que no afã do milagre brasileiro enquanto o operário é excluído socialmente, houve uma maior concentração de renda, com um conseqüente arrocho salarial. Já ―na letra da música ―Um dia de cão‖, os versos‖ Lealdade eterna-na/ Não fazer baderna-na/ Entrar na caserna-na/ O rabo entre as pernas-nas/ Volta, cão de raça/ Volta cão de caça/ Volta cão chacal/ Sim, senhor/ Cão policial/ Sempre sou/ Às ordens sim, senhor‖, Chico Buarque remete a situação de subserviência que a sociedade civil sofria às ordens de quem estava no poder, obedecendo as normas que eram instituídas pelo regime autoritário, sem direito a questionar, nem contestar, passando por constantes humilhações. A música que apresenta a história da galinha, na última estrofe temos ―Pois um bico a mais/ Só faz mais feliz/ A grande gaiola/ Do meu paìs/ Cocorocococó‖, o compositor faz uma crìtica a situação do Brasil, onde a sociedade encontra-se aprisionada a um regime ditatorial, que persegue, tortura, cassa os direitos políticos e civis, ocasionado inúmeros exílios por conta da falta de liberdade do povo brasileiro. Na ―História de uma gata‖, letra que representa mais um personagem dos ―Saltimbancos‖, o compositor faz referência aos artistas que estavam sendo perseguidos pelo regime ditatorial, principalmente aqueles que utilizaram a arte e a música, como foi o caso do próprio Chico, como instrumento para politizar a sociedade. No entanto, nos versos ―Nós gatos, já nascemos pobres/ Porém, já

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nascemos livres/ Senhor, senhora ou senhorio/ Felino, não reconhecerás‖, significa que os artistas mesmo que sejam pobres, nascem livres, contrariando a censura que intimidava o teatro, a música, o cinema, enfim, todo meio artístico. No final da década de 70, a ditadura militar já se mostrava desgastada e mais alguns anos tristes se passaram até sua queda final em meados de 80. Chico constatava então um Brasil diferente que lutava pela redemocratização. Em 1984, ele compôs ―Vai passar‖ em parceria com Francis Hime, que alguns anos depois se tornou um dos hinos da campanha das Diretas Já. A letra da música relembra o momento repressivo da ditadura e a ânsia do povo por liberdade, também apresenta um discurso político ideológico, do qual submete-se uma manifestação contra ideológica ao regime ditatorial. Na primeira estrofe da música ‗‖Vai passar‖, percebe-se que ao usar o verso ―Vai passar/ nessa avenida um samba popular‖, o compositor faz uso da metáfora para se referir a transição do governo militar para o governo civil. Nos versos seguintes ―Cada paralelepìpedo/ Da velha cidade/ Esta noite/ Vai se arrepiar/ E ao lembrar/ Que aqui passaram sambas imortais/ Que aqui sangraram pelos nossos pés/ Que aqui sambaram nossos ancestrais‖, ilustram as incertezas e as angústias vividas durante a longa noite que durou vinte e um anos, excluindo direitos, instaurando a censura, enterrando sonhos e pessoas. Nos versos ―Num tempo/ Página infeliz da nossa história‖, referencia os trágicos acontecimentos do pós-64. ―Passagem desbotada na memória/ Das nossas novas gerações,‖ denota o desconhecimento que a nova geração tem dos

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problemas vividos durante a ditadura. A seguir o compositor utiliza-se dos versos ―Dormia/ A nossa pátria mãe tão distraìda/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações‖, para criticar o que era feito pelos grupos dominantes – latifundiários, multinacionais e militares – que realizavam uma intensa exploração econômica do país. Nos quatro primeiros versos da terceira estrofe, ―Seus filhos/ Erravam cegos pelo continente/ Levavam pedras feito penitentes/ Erguendo estranhas catedrais‖, Chico Buarque metaforicamente também fala do trabalho ―escravo‖ do povo brasileiro que, imbuído pela ideologia do desenvolvimento (trabalho e progresso) não percebia o quanto estava sendo explorado. ―E um dia, afinal/ Tinham direito a uma alegria fulgaz / Uma ofegante epidemia/ Que se chamava carnaval, o carnaval, o carnaval‖, este carnaval poderia ser representado pela campanha das Diretas Já. Esta euforia era predominante tanto na festa cívica dos comícios quanto na festa popular do Carnaval daquele ano de 1984, quando a campanha Diretas Já foi incorporada às letras dos sambas e marchinhas carnavalescas. Nos sete últimos versos da terceira estrofe ―Palmas pra ala dos barões famintos/ O bloco dos napoleões retintos/ E os pigmeus do bulevar/ Meu Deus vem olhar/ Vem ver de perto uma cidade a cantar/ A evolução da liberdade/ Até o dia clarear‖, ele usa outra metáfora para a transição do governo da ditadura para o governo civil.

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Na última estrofe, ―Ai que vida boa olerê/ Ai que vida boa olará/ O estandarte do Sanatório Geral vai passar‖, Chico Buarque através dos seus versos alimenta uma esperança por dias melhores com o final deste ―carnaval‖, comandado pelo ―sanatório geral‖ que iria passar, isto é, acabaria e seria substituìdo pelo ―carnaval popular‖. E, foi encontrado nos não ditos da letra dessa música, como também nos seus recursos polissêmicos, uma verdadeira alusão ao regime militar e as conseqüências da suas ações para pátria, como também a esperança de um Brasil melhor, numa perspectiva de uma nova política que se desponta.

CONCLUSÃO Considerando a base dos princípios teóricos da Linguística Textual, podese fazer diferentes leituras possíveis de textos poéticos, focalizando a intencionalidade. Logo, considerando as letras da música de Chico Buarque, percebe-se que o momento da intencionalidade aparece como um atributo de vontade de uma mensagem ao ser propositadamente direcionada para atingir o seu destino. Beaugrande e Dressler (apud, KOCH e TRAVAGLIA 2002, p.79) afirmam que ―para que uma manifestação linguìstica constitua um texto, é necessário que haja a intenção do emissor de apresentá-la e a dos receptores de aceitá-la como tal‖.

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Retomando as condições de produção do discurso do autor, observa-se que, sócio-historicamente, o autor é regido por uma formação discursiva que lhe impõe dizer e significar implicitamente de acordo com as formações ideológicas. Dessa forma, percebe-se que Chico Buarque tenta desviar a atenção do governo militar passando sua mensagem para a sociedade, utilizando o seu poder de lidar com as palavras revestidas de poesia e polissemia. Entretanto, se o leitor não souber o contexto em que se deu a produção crítica ideológica, trabalhada pelo compositor, a interpretação pode ficar obscurecida, já que toda interpretação implica o conhecimento de mundo.

REFERÊNCIAS CHAUÍ, Marilena Sousa. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 9ª. ed. São Paulo: Cortez, 2001. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 11ª. ed. São Paulo: Contexto, 2002. HOLLANDA, Chico Buarque de. Letra e música. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça e TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. 8ª ed. São Paulo: Cortez, 2002. MOTA, Carlos Guilherme. Viagem incompleta: a experiência brasileira (1500:2000) a grande transação. 2ª ed. São Paulo: Editora SENAC, São Paulo, 2000. ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 6ª ed.Campinas, SP: Pontes, 2005. RODRIGUES, Nelson Antônio Dutra. Os estilos literários e letras de música popular brasileira. São Paulo: Arte & Ciência, 2003.

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LUGARES DE MEMÓRIA NA LITERATURA NIPO-AMERICANA Paulo Augusto de Melo Wagatsuma (UFMG)

Sobre a parte desempenhada pelos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, decisiva para a vitória dos Aliados e a derrubada dos regimes totalitários do Eixo, há um fato menos conhecido, ocorrido em casa, e não digno de igual louvor ao obtido na Europa: o encarceramento da população de descendência japonesa, ocorrida entre 1942 e 1945. Motivada pelo estado de guerra entre os EUA e o Império Japonês, essa decisão de Washington resultou na remoção de aproximadamente 120.000 imigrantes japoneses e seus descendentes da costa oeste americana para campos de internamento, ou centros de relocação, espalhados por vários estados do país. Sem escolha, a população nipo-americana foi forçada a abandonar seus lares, propriedades e fontes de sustento e viver isolada do resto do país até o fim da guerra sem que as suspeitas de atividade pró-Japão tivessem sido provadas (FUGITA & O'BRIEN, 1991, p. 45), o que constituiu, na visão de Brian Masaru Hayashi, uma afronta aos direitos de cidadãos americanos (HAYASHI, 2008, p. 6). Há disponível hoje uma considerável literatura sobre o internamento que inclui análises histórico-antropológicas, relatos auto-biográficos, poesia e ficção, da qual se destacam os romances No-No Boy, de John Okada, e Obasan, de Joy Kogawa. Embora tratem de locais e personagens muito diferentes, ambos

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mostram-se preocupados em ir além dos dados oficiais, dos números e fatos frios, para dramatizar os conflitos dos indivíduos durante e após o internamento. Neste esforço, a necessidade de se lembrar e de se estabelecer uma memória do episódio baseada em experiência legítima se torna não só um tema, mas também um método importante no desenrolar dos dois livros. Ao explorar suas memórias, os personagens de No-No Boy e Obasan entrecruzam lirismo e história documentada, proporcionando ao leitor uma visão ao mesmo subjetiva e fundamentada da experiência nipo-americana. A história nipo-americana é fortemente ligada aos lugares em que os imigrantes e suas famílias estiveram – e, naturalmente, de onde partiram. Da necessidade de permanecerem unidos em comunidades étnicas à posterior remoção para instalações no deserto, a memória nipo-americana foi se construindo a partir dos alicerces que essas pessoas deixaram em vários locais. Como escreveu o poeta Lawson Inada, os dez campos de internamento americanos são como uma constelação impressa sobre o solo, uma marca indelével dos eventos ocorridos na vastidão do oeste. Esta relação se reflete notavelmente nos romances de Okada e Kogawa, em que as narrativas sempre acontecem em torno de lugares, sejam eles físicos, simbólicos ou psicológicos, que os protagonistas desejam re-encontrar. A relação entre lugar e memória é possivelmente tão antiga quanto o próprio estudo sistemático desta faculdade no ocidente. Lendariamente, atribuise o início da arte da memória ao poeta grego Simônides, o qual teria sido capaz

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de identificar as vítimas de um acidente lembrando-se das posições que ocupavam ao redor da mesa. A partir de então, a prática da memória, enquanto uma das partes da retórica, levou estudiosos greco-romanos a desenvolver métodos que incluíam o uso de lugares, especialmente escolhidos por suas características, para abrigar o conteudo a ser armazenado. Desta forma, segundo Frances Yates em seu famoso livro A arte da memória, ―[o]s lugares da memória artificial encontram (…) um fundamento racional na teoria aristotélica da reminiscência, baseada na ordem e na associação‖ (YATES, 2007, p.97). De forma semelhante, Jan Assmann explica o ser humano sempre criou artefatos para impedir o esquecimento das coisas, os chamados lieux de mémoire, que podem ser desde ―o famoso nó no lenço até monumentos nacionais‖ (ASSMANN, 2006, p.8, tradução minha). Com estas duas perspectivas, abrangemos as duas acepções do termo memória importantes aqui, ou seja, o ato de se resgatar ou reconstruir mentalmente os fatos do passado (reminiscência) e a entidade coletiva pertencente a indivíduos do mesmo grupo, sobre a qual escreveu Maurice Halbwachs. No-No Boy foi publicado em 1957, mas só começou a receber atenção em meados dos anos 1970. Trata do retorno do jovem Ichiro Yamada, filho de imigrantes japoneses, à sua cidade e família após passar dois anos preso por se recusar a servir às forças armadas dos EUA. Ao regressar, Ichiro encontra uma série de mudanças na configuração que ele deixou ao partir para o internamento: não apenas a sua própria vida é diferente, mas tudo e todos em sua comunidade.

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A princípio, ele precisa lidar com as consequências da escolha que fizera dois anos atrás, sua recusa em lutar. A alcunha que ele e outros carregam, ―no-no boy‖, refere-se ao fato de terem respondido ―não‖ a duas das perguntas do questionário passado aos nipo-americanos, a saber, se renunciariam lealdade ao imperador japonês e se lutariam no exército dos Estados Unidos caso convocados. Por considerarem que estavam sendo tratados como prisioneiros de guerra e não como cidadãos, ou por se sentirem vítimas de preconceito, alguns indivíduos responderam o infame ―no-no‖ e por isso acabaram presos. Ichiro juntou-se a esse grupo porque seus pais foram separados no internamento e as autoridades se recusaram a reuni-los. Com o fim da guerra, Okada mostra que os no-no boys são hostilizados como traidores por aqueles que antenderam ao chamado da nação, que acreditaram que o sacrifício ajudaria a restaurar a credibilidade dos nipoamericanos. Logo ao desembarcar em Seattle, Ichiro recebe uma uma demonstração de ódio de um ex-colega, agora veterano, que o faz perceber que aquele lugar não vai recebê-lo de braços abertos. Ichiro se sente como ―um intruso num mundo do qual não fazia parte‖ (OKADA, 1979, p. 1, tradução minha), e sua reinserção nesse mundo é o conflito principal do livro de Okada. O sentimento de estranheza não passa quando Ichiro finalmente chega em casa. O endereço não é mais o mesmo, e as lembranças que ele tem daquela nova entrada são diferentes: o pequeno armazém, com um sino na porta, costumava representar momentos de alegria e segurança. Ichiro reflete que todos os armazens que ele conhecia tinham sinos na porta e que o som deles costumava

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acalmá-lo (OKADA, 1979, p. 6). Agora é a sua própria família que habita a modesta casa atrás da loja, mas a família, enquanto um lugar afetivo e psicológico, é um dos lugares que Ichiro tem mais dificuldade de re-encontrar. Em sua cabeça há um conflito entre os papéis de filho e cidadão, pois ao tentar reunir sua família, Ichiro acredita ter falhado em seu dever com o país. Ao revê-lo depois de dois anos, a sra. Yamada declara-se orgulhosa do filho, mas Ichiro não aprecia nem retribui esse sentimento. Para ele, a mãe é a grande responsável pelo fracasso e vergonha que ele sente. Embora seja um nisei, filho de imigrantes, Ichiro sente-se tão americano quanto qualquer outro. O crítico Bryn Gibben (GIBBEN, 2003, p. 32) sugere que a atitude dominadora da sra. Yamada se choca com a masculinidade de Ichiro, que se vê forçado a ceder às vontades dela, das quais a maior é que ele permaneça ―leal‖ ao Japão . Outro exemplo de como a mãe costuma cercear o lado americano do filho era proibi-lo de escutar música americana em casa (OKADA, 1979, p. 204). Okada retrata a sra. Yamada como uma mulher rígida, fria e por fim louca que acaba perdendo o amor de seu filho, mas lhe faz justiça contando a versão dela, pela qual pode-se ter uma idéia das dificuldades que ela passou. Como a maioria dos imigrantes japoneses, os Yamada chegaram aos EUA com a esperança de um dia voltar ao Japão ricos. A sra. Yamada teve de abrir mão de sua família e suas perspectivas, ou seja, seu lugar no mundo, para buscar um futuro melhor numa terra estranha. Com o passar dos anos, a esperança de retorno se perde, só restando à sra. Yamada apegar-se fervorosamente à única esperança disponível, a vitória do Império

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Japonês, que permitiria a ela voltar à sua terra natal triunfante. A recusa em acreditar na realidade acaba deixando-a louca e incapaz de exercer o papel materno que Ichiro espera que ela exerça. Assim, ao ouvir a história de sua mãe durante o funeral (OKADA, 1979, p. 195). Ichiro percebe que, ao contrário dele, ela de fato vivia sem esperanças e sem laços com o mundo que amava. Na tentativa de retomar a vida, Ichiro sai por Seattle para se familiarizar com a cidade outra vez. Por onde ele vai, as reações são diferentes, ora compreensivas, ora veladamente reprovadoras, por diversos setores da sociedade, faculdade, trabalho, polícia, e até mesmo em seu próprio enclave étnico. Presenciando uma variada gama de preconceitos raciais acontecerem na cidade, brancos contra negros, negros contra asiáticos, asiáticos contra negros, entre outros, cada um numa vã tentativa de, por assim dizer, assegurar seu território, Ichiro reflete no grande contraste existente entre o ideal de América que todos conhecem e a realidade fragmentada do país, das ruas, dos lugares públicos, das instituições. A imagem idealizada do American way of life, de casas brancas ao redor da igreja, famílias felizes com um filho e uma filha, um cachorro, um gato e o carro na garagem, devem estar ―em algum lugar na América‖ (OKADA, 1979, p. 159, tradução minha). Desta forma, Ichiro coloca a si mesmo numa condição marginal, sem laços de identidade com a nação, com a ―raça‖ e nem mesmo com a família. Ichiro pondera se deve deixar Seattle por outra cidade onde ninguém o conheça, mas, onde quer que ele vá, ele não é capaz de mentir sobre o seu passado, sobre a sua ―infâmia,‖ e assim ele conclui que deve se

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reencontrar onde ele começou a se perder (OKADA, 1979, p. 154), ali mesmo na sua comunidade. A reinserção de Ichiro acontece gradualmente através do diálogo com personagens mais compreensivas e que passaram por experiências semelhantes, como o amigo e veterano Kenji, fadado a morrer devido a um ferimento da perna, a nisei Emi, que em certos momentos atua como uma figura materna, e outros que ele encontra em suas tentativas de apagar o passado. A própria linguagem empregada demonstra essa progressão, num efeito que Gibben chama de um ―bildungsroman psicológico‖ (GIBBEN, 2003, p. 31): a princìpio, o monólogo interior tenta retratar a mente confusa de Ichiro com um estilo espontâneo e enervado, orações longas, reminiscências avulsas e uma alternância às vezes imperceptível entre primeira e terceira pessoas. À medida em que Ichiro tem a oportunidade de interagir com os demais, o monólogo vai dando lugar a diálogo e uma prosa mais controlada e convencional, sinalizando que Ichiro está aos poucos refazendo seus vínculos com aquele lugar. O episódio final, em que Ichiro perdoa o veterano Bull, que o vinha hostilizando, demonstra que ele foi finalmente capaz de se reencontrar dentro dos lugares físicos e ideológicos do qual ele se havia se excluido, família, etnia, América. Obasan foi publicado em 1981 e narra as memórias e descobertas da neta de imigrantes Naomi Nakane por ocasião da morte de seu tio, que a força a voltar a sua velha casa para rever a tia anciã. Joy Kogawa usa linguagem poética e simbolismo para abordar a questão do trauma e a dificuldade de se expressá-lo,

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linguagem esta que contribui para a exploração dos espaços de memória que intercalam a subjetividade da narradora com os fatos históricos, representados por recortes de documentos e notícias da época. Naomi é professora numa pequena cidade do interior canadense. Um dia, recebe uma ligação dizendo que seu tio, por quem ela e o irmão Stephen foram criados, havia falecido. Um mês antes, Naomi e o tio haviam estado num coulée, nome dado a um tipo de área úmida ou semi-alagada coberta por mato denso, que ela e o tio visitavam todo ano numa espécie de ritual. A água que corre sob o chão do coulée ilustra o simbolismo do fluxo reprimido, da incapacidade de romper barreiras e dar voz aos sentimentos. Ali, também, o tio Isamu relembra-se de seus dias como pescador terminados pelo encarceramento, pois o suave balanço da grama ao vento o faz lembrar o mar, outra imagem que sugere a relação da água com liberdade, o mar como o destino final do curso d'água de palavras. A velha casa dos tios é um lugar de intensas memórias para Naomi. Logo ao chegar, ela ainda pode encontrar sinais da presença do falecido tio, tais como o que restou do pão que ele fazia, apelidado ―pão-pedra‖ (―stone bread‖) por ser quase impossível de morder, uma das várias ocorrências simbólicas da palavra ―pedra‖ para ilustrar o silêncio inquebrantável dos tios de Naomi. Os demais objetos dispostos ao redor da casa, da forma como estiveram por anos, também suscitam lembranças, principalmente da tia Aya Kato. Naomi diz que aqueles objetos são como partes do corpo da tia, pequenos fragmentos de memória

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(KOGAWA, 1994, p. 18) . A casa dos tios Isamu e Aya também reacende as angústias do presente para Naomi e seu irmão Stephen, pois, estando ali, eles se lembram que os tios sempre se recusaram a lhes contar o que aconteceu com sua mãe anos atrás, quando ela foi ao Japão durante a Segunda Guerra Mundial e nunca mais voltou. Stephen lida com essa dúvida permanecendo longe, de fato longe do páis, a maior parte do tempo, resoluto a não revisitar os sentimentos que estão encerrados em casa. Quanto a Naomi, aos poucos ela aprende a conviver com a linguagem silenciosa dos tios, não sem alimentar uma profunda angústia por não saber o destino da mãe. Na noite do falecimento do marido, a tia Aya Kato, chamada simplesmente Obasan (em japonês, ―tia‖), sobe ao sótão em busca de alguma coisa que Naomi, embora pergunte, não consegue descobrir. Obasan já está debilitada pela idade, comunica-se muito pouco e mumura diversas vezes que ―tudo é esquecimento‖ (KOGAWA, 1994, p. 31, tradução minha). O sótão é um cômodo mal-iluminado, coberto de poeira e cheio de objetos velhos guardados em caixas de papelão, podendo ser interpretado como a própria representação física da memória da tia, que armazenou uma série de lembranças dos tempos felizes da família unida e também dos tempos de tristeza e sofrimento, talvez não para não perdê-las, mas, sim, para poder esquecê-las. Entre as memórias encontradas no sótão estão uma colcha feita pela mãe de Naomi, que imediatamente a remete à infância, as ferramentas do tio, e várias revistas e documentos velhos. Ao não conseguir o objeto de sua busca, Obasan declara-o

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―perdido‖, que, Naomi explica, significa também ―morto‖ na lìngua japonesa. Logo depois, Naomi recebe um pacote cheio de papéis velhos pertencentes à outra tia, Emily, entre os quais está um diário datado de 1941. A tia Emily é, segundo Naomi, uma ―guerreira de palavras‖, o perfeito contraste para Obasan, sempre em busca de diálogo, troca de experiências e justiça. O diário de Emily Kato registra o desenrolar do processo de internação dos nipo-canadenses de sua própria perspectiva, mostrando como este afetou sua família e a toda a comunidade nipo-descendente. Em grande parte do diário, Emily dirige-se à irmã, mãe de Naomi, que no momento se encontrava no Japão visitando familiares. Portanto, em vez de ser uma forma de se informar a alguém ausente, o diário é, de fato, um exercício pessoal para Emily, uma forma de dar vazão a seus sentimentos, de revivê-los a fim de se poder entendê-los melhor. Anos depois, ao chegar às mãos de Naomi, o diário se torna um lugar de memória privilegiado, como se a voz de Emily Kato tivesse permanecido encapsulada nas páginas frágeis, unindo ao mesmo tempo a subjetividade de uma pessoa diretamente envolvida nos acontecimentos com as versões dos textos midiáticos e governamentais. A esta conjunção que permite ao olhar crítico da narrativa literária se interferir na história, ou acrescentar a ela, podemos chamar uma metaficção historiográfica, nos termos de Linda Hutcheon, caracterizada por um interesse na ―multiplicidade e dispersão da(s) verdade(s), verdade(s) relativas à especificidade do lugar e da cultura‖ (HUTCHEON, 1988, p. 108, tradução minha).

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A casa permanece como o principal lugar de memória do romance de Kogawa à medida em que Naomi lê o diário da tia Emily. Naomi se sente como um ladrão invadindo sua própria casa e descobrindo cômodos até então desconhecidos (KOGAWA, 1994, p. 95), uma metáfora de duplo sentido na narrativa de Kogawa, tanto pela associação clássica com arte da memória quanto pelo sentimento de perda que Naomi tem pelo lar. Percebe-se, novamente, que a memória de Naomi é fortemente amaparada na organização espacial, nas coisas, pessoas e atividades que ela esperaria encontrar em cada ambiente. Desta forma, ela consegue se lembrar detalhadamente da família reunida em casa, em Vancouver, nos dias felizes antes do encarceramento. Esta imagem familiar, doce e distante, oprime Naomi pelo resto de sua vida, pois ela sabe que jamais poderá voltar àquele lugar, ao lugar onde morava a felicidade. Emily também lamenta não poder voltar mais à casa que sua família, como tantas outras famílias nipocanadenses, teve de abandonar para se submeter ao governo do Canadá: em seu jornal, Emily registra sua tristeza por ter de deixar para trás o lar e todas as coisas que ela coletou ao longo dos anos, refletindo um sentimento semelhante ao de Naomi com relação à necessidade de espaços físicos, de estruturas capazes de preservar os sentimentos e memórias do indivíduo e seu grupo. As memórias do diário de Emily desencadeam as de Naomi, que nos levam a outros lugares onde ela e os demais nipo-canadenses estiveram durante o encarceramento. A narrativa constrói dessa forma uma versão mais intimista dos episódios que muitas vezes confronta as imagens estereotípicas ou enviesadas

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pela propaganda nacional. É o caso, por exemplo, de uma das mais respeitadas instituições canadenses, a Real Polícia Montada, galantes protetores da pátria de uniforme vermelho, retratados por Emily como racistas e espancadores de mulheres (KOGAWA, 1994, p. 118). Naomi, por sua vez, questiona a forma positiva como o noticiário descreve o internamento no interior, onde os nipocanadenses trabalharam em lavouras de beterraba. O recorte de jornal no diário mostra uma família feliz e sorridente em meio a uma lavoura farta e os dizeres, ―os mais eficientes lavradores de beterraba‖ (KOGAWA, 1994, p. 236, tradução minha), que, para Naomi, não representam a verdadeira experiência de dificuldade, desconforto, e ostracismo que foi plantar beterrabas sob o calor do verão, em meio a mosquitos, lama, suor e um futuro incerto pela frente. Através do olhar crítico de Naomi sobre a representação externa de uma das estações de sua memória do internamento, Kogawa ao mesmo tempo reconhece a história existente e a reescreve com os recursos da ficção. Após revisitar os lugares em que ela e sua família estiveram, onde, anos depois, pouca ou nenhuma memória sobrou dos dias dos nipo-canadenses (KOGAWA, 1994, p. 139), Naomi precisa encarar seu presente, acertar as contas com o passado. A tia Emily deixa de ser apenas uma voz no diário e se torna uma força persistente arrastando Naomi de sua inércia. ―A reconciliação não pode começar sem um reconhecimento mútuo dos fatos‖ (KOGAWA, 1994, p. 219, tradução minha), brada tia Emily, e para que Naomi possa se reconciliar consigo mesma, ela precisa saber qual foi o que aconteceu com sua mãe, que lhe foi

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negado saber por décadas. Está chovendo quando a família se reune e Naomi e o irmão Stephen finalmente ouvem a carta da avó, enviada do Japão há anos, outra ocorrência simbólica da água como a liberação da dúvida, mas ao mesmo tempo como o horror de saber que a mãe e a avó foram vítimas da bomba de Nagasaki. Após um momento de reflexão poética em que a água e os demais elementos são evocados, Naomi retorna ao coulée, lugar que sintetiza todo o simbolismo e os sentimentos explorados durante a narrativa. O céu nublado de chuva dá lugar a um azul plácido, a lua de pedra perde sua dureza no balanço das águas do rio (KOGAWA, 1994, p. 296), e Naomi parece encontrar paz. Como duas das mais importantes obras da literatura de nipo-descendentes nos Estados Unidos e Canadá, No-No Boy e Obasan ilustram a necessidade da narrativa, especialmente da narrativa ficcional, para se discutir e estabelecer uma memória do encarceramento a partir da perspectiva dos próprios indivíduos envolvidos, sejam eles os autores ou suas personagens. Essas narrativas ilustram o conceito de emplotment, de Hayden White, que vê no ato de contar histórias uma maneira de se criar um espectro de sentidos, de se encadear fatos e eventos que, de outra forma, seriam unidades separadas e desprovidas de valor. White considera este um ―processo terapêutico,‖ um ―exercìcio de re-familiarização de eventos que foram desfamiliarizados‖ (WHITE, 1986, p. 399, tradução minha), que é exatamente o processo pelo qual passam as personagens de Okada e Kogawa ao revisitarem lugares físicos e psicológicos que os definiram como indivíduos e membros uma coletividade maior, seja esta a etnia, a nação, ou

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maior de todas, a humanidade, que tem por uma de suas mais fortes características a necessidade de contar histórias para se lembrar de quem é.

REFERÊNCIAS ASSMAN, Jan. Religion and cultural memory. Trad. de Rodney Livingstone. Stanford: Stanford University Press, 2006. FUGITA, Stephen & O'BRIEN, David. The Japanese American experience. Bloomington: Indiana University Press, 1991. GIBBEN, Bryn. “The mother that won't reflect back: situating psychoanalysis and the Japanese mother in No-No Boy”. Mellus 28.2 (2003). p. 31-46. HUTCHEON, Linda. A poetics of postmodernism. New York: Routledge, 1988. KOGAWA, Joy. Obasan. New York: Anchor, 1981. OKADA, John. No-No Boy. Seattle: University of Washington Press, 1979. WHITE, Hayden. “The historical text as a literary artifact”. In: LEROY & SEARLE. Critical theory since 1965. Tallahassee: University Presses of Florida, 1986. p. 394-407. YATES, Frances. A arte da memória. Trad. de Flavia Bancher. São Paulo: Unicamp, 2007.

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O LUGAR DAS TRADIÇÕES EM MIA COUTO Paulo Roberto Machado Tostes (UFF)

No cerne das questões trazidas pela escrita de Mia Couto, estão os confrontos e os rastros culturais decorrentes da colonização e do entrecruzamento de culturas em que se encontra Moçambique. De um lado, a visão do colonizador português; de outro, o terreno movediço de tradições, cuja linguagem exige a necessidade constante de enfrentamento dos novos enunciados que decorrem dessa geografia cultural. Nessa perspectiva é que Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2005) se configura no grande embate de tradições culturais: aquelas dos antepassados, de matriz Bantui, e a que foi imposta pelo colonialismo. Assim, sem referir-se diretamente a questões políticas, mas apontando os confrontos e conflitos de uma realidade comum a um dos países mais pobres do mundo, Mia Couto desenrola, de forma poética e crítica, as últimas décadas da história de Moçambique:

Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas. (COUTO, 2005, p. 18)

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É nesse cenário que o personagem Marianinho, um jovem universitário, retorna à sua terra natal para participar do inusitado funeral do avô, Dito Mariano, um defunto cuja morte continua incompleta. Enquanto aguarda pelo cerimonial fúnebre desse semidefunto (ou semivivo?), o estudante é testemunha de estranhas visitações através de pessoas e cartas que lhe chegam do outro lado do mundo. São revelações de um universo cultural, tênue e ameaçado, que Marianinho reencontra, à medida que daí se aproxima, ao mesmo tempo em que se vê como um estranho para os familiares: ―Me olham, em silenciosa curiosidade. Há anos que não visito a Ilha. Vejo que se interrogam: eu, quem sou? Desconhecem-me. Mais do que isso: irreconhecem-me‖ (COUTO, 2005, p. 29). Vivendo em espaços que comportam simultaneamente presença e ausência, os personagens de Luar-do-Chão representam o sujeito-objeto de uma travessia infindável, pela qual eles são instigados a buscar um meio de ingressar na contemporaneidade, tendo que enfrentar, para isso, o mundo de fuga e violência do passado colonial:

– Você lê o livro, eu leio o chão. [...] Se conformara. Afinal, não é o cego quem mais espreita à janela? Lhe fazia falta, sim, o azul. Porque tinha sido a sua primeira cor. Na aldeiazinha onde crescera, o rio tinha sido o céu de sua infância. No fundo, porém, o azul nunca é uma cor exata. Apenas uma lembrança, em nós, da água que já fomos. (COUTO, 2005, p. 20)

Nessa passagem, o personagem Abstinêncio, como sugere o próprio nome, abstém-se de ver o mundo de sua infância unicamente com os olhos do

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outro. Como se ocupasse outra margem da existência, esse personagem aponta a condição daqueles que devem adotar uma postura de maior entendimento acerca do mundo e de si mesmos. A busca constante do diálogo entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos traz, assim, o confronto entre o legado da oralidade a que pertence o velho e a cultura da escrita na qual se encontra o jovem que vive na cidade. A morte, primeiro substantivo nomeado no romance torna-se o umbigo do mundo: ―A morte é como o umbigo do mundo: o quanto nela existe é sua cicatriz, a lembrança de uma anterior existência‖ (COUTO, 2005, p. 15). Sendo a Ilha o último espaço de convivência entre o avô e a família, a morte se faz como o umbigo – a porta de entrada e saída, e a derradeira possibilidade de restauração de uma série de elementos estruturais de que o patriarca depende para poder, finalmente, assumir seu lugar no mundo dos mortos. A obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra não traz a amargura de épocas mais sofridas, todavia, a Ilha Luar-do-Chão, onde se desenrola a narrativa, encontra-se num estado de abandono e decadência. Mostrando que o sonho de Samora Machel e de seus seguidores ficou longe de se concretizar, o que ainda se apresenta ao povo moçambicano é a dura realidade pós-colonial. Portanto, todo estranhamento que põe em contato o mundo dos mortos e o dos vivos é caracterizado pela diversidade de olhares que se confrontam, diante não somente da instigante relação entre o avô e o neto, mas também do embate de

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se passar uma cultura ao outro. Cabe ao jovem, então, redescobrir outros sentidos para a sua própria história e para a de sua terra:

Manhã cedo me ergo e vou à deriva. [...] Pretendo apenas visitar o passado. Dirijo-me às encostas onde, em menino, eu pastoreava os rebanhos da família. As cabras ainda ali estão, transmalhadas. Parecem as mesmas esquecidas de morrer. Se afastam, sem pressa, dando passagem. Para elas, todo o homem deve ser pastor. Alguma razão têm. Em Luar-do-Chão não conheço quem não tenha pastoreado cabra. Ao pastoreio devo a habilidade de sonhar. Foi um pastor quem inventou o primeiro sonho. Ali, face ao nada, esperando apenas o tempo, todo o pastor entreteceu fantasias com o fio da solidão. As cabras me atiram para lembranças antigas. (COUTO, 2005, p. 190)

A citação acima sugere que a interlocução entre muitos sonhos e enunciados coexistentes em Moçambique é permeada por uma intensa relação entre o passado e o presente, o real e a fantasia, evidenciando simultaneamente o local e o global, o antigo e o moderno, o hegemônico e o subalterno. Em consonância com essa perspectiva, Edward Said reconhece a necessidade de se combinar práticas e empréstimos culturais como uma forma de inserção no mundo moderno, sem haver, contudo, a ruptura com as origens culturais:

[...] Mas a história de todas as culturas é a história dos empréstimos culturais. As culturas não são impermeáveis; assim como a ciência ocidental fez empréstimos dos árabes, estes haviam tomado emprestado da Índia e da Grécia. A cultura

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nunca é uma questão de propriedade, de emprestar e tomar emprestado com credores absolutos, mas antes de apropriações, experiências comuns e interdependências de todo tipo entre culturas diferentes. (SAID, 1995, p. 275)

De acordo com a reflexão de Edward Said, a mediação entre os dois mundos que se encontram em Luar-do-Chão é marcada por um grande empenho dos personagens na busca de um mútuo entendimento. Perpassado não apenas pelo estranhamento, mas também pelos desafios em meio à estrutura política e social que se instalou em Moçambique, após a independência, o personagem Marianinho é levado a pensar os desígnios das misteriosas cartas que lhe chegam:

[...] Enquanto espalho as roupas que trazia amarfanhadas na mochila, noto que há uma folha escrita por cima da secretária. Leio, intrigado: ―Ainda bem que chegou, Mariano. Você vai enfrentar desafios maiores que as suas forças. Aprenderá como se diz aqui: cada homem é todos os outros. Esses outros não são apenas os viventes. São também os já transferidos, os nossos mortos. Os vivos são vozes, os outros são ecos. Você está entrando em sua casa, deixe que a casa vá entrando dentro de si.‖ (COUTO, 2005, p. 56)

Tal condição reflete, aos olhos do escritor Mia Couto, a importância da relação entre os homens e os seus ancestrais, convergindo, também, para o pensamento de Édouard Glissant:

[...] Veremos que a poética não é uma arte do sonho e da ilusão, mas sim uma maneira de conceber-se a si mesmo, de conceber a

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relação consigo mesmo e com o outro e expressá-la. Toda poética constitui uma rede. (2005, p. 159)

Nota-se que a prosa de Mia Couto, em consonância com o pensamento do martinicano Édouard Glissant, também traz à tona a imbricação cultural na qual vivem as tradições orais africanas, particularmente as de Moçambique, cujo passado não apenas ressoa como cicatrizes de feridas profundas, mas como uma reflexão

crítica

que

melhor

possa

revisitá-lo

e

reinterpretá-lo

na

contemporaneidade. Diante do mosaico cultural em que se encontra o país de Mia Couto e do amplo e tenso processo de dominação e assimilação, o personagem Marianinho tem, portanto, a tarefa de redescobrir a sua comunidade e reinterpretar a sua própria história. Embora nascido na Ilha, ele é o habitante da cidade que se vê agora obrigado, pelas inusitadas circunstâncias de uma morte, a lançar um novo olhar para as tradições que o cercam. Transitando, então, nos domínios do natural e sobrenatural de Luar-doChão, onde o sagrado impera a todo o momento, o neto querido do velho patriarca percebe que as histórias individuais estão profundamente ligadas aos destinos da coletividade e da Ilha. As tradições, descritas com seus ritos e princípios éticos, são construídas de forma a dar uma dimensão da estreita ligação dos homens à Nyumba-Kaya, a casa, a legítima morada e cara lembrança de uma África originária.

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Pensando essa dimensão, Mia Couto insere na narrativa os conflitos vividos durante o processo de independência política, ao mesmo tempo em que a ficção se constitui dentro de uma perspectiva de relação, na qual todos os seres – os vivos e os antepassados – constroem conjuntamente suas histórias. Aqui, a trama da relação que se estabelece entre esses dois mundos permite pensar, também, um paralelo com o pensamento de Deleuze e Guattariii. Uma vez que o modelo rizomático ao se contrapor à lógica cartesiana está revestido de inúmeras ramificações, estas, numa conexão múltipla de hastes e linhas de diferentes naturezas, vão-se metamorfoseando continuamente e abrindo, assim, outras formas de percepção da realidade, tal como os que se impõem aos personagens de Luar-do-Chão. A visão rizomática alude à diversidade cultural na qual as tradições orais em Moçambique buscam se equilibrar, entre as fendas do passado colonial e a tentativa de sustentar um sentimento épico no presente. Contudo, a perspectiva de uma nova sociedade revela que os personagens de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, sensíveis às bruscas transformações, já estão marcados profundamente pelos deslocamentos culturais por que passam a Ilha:

[...] Não fora muita a distância, mas era o além-margem, o outro lado do rio. E isso bastava para que nada soubéssemos dela. Que país é este que a pessoa se retira um meio-passo e já está no outro lado do mundo? Admirança só regressou anos mais tarde, quando eu ganhava olho de lambuzar a vida. (COUTO, 2005, p. 146)

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Aqui se percebe como foi complexo o processo de descolonização imposto ao povo moçambicano e que gerou um intenso conflito cultural bastante peculiar à contemporaneidade. No caso, um modo de ser de uma comunidade se tornou uma questão essencialmente transnacional e transcultural. Basta ao personagem ―meio-passo‖ para estar em outro mundo, mundo que faz com que personagens, como Admirança, sejam atravessados por outras culturas, apesar de viverem numa pequena Ilha. Dessa forma, os personagens de Mia Couto expõem também o desencanto diante da independência conquistada e de uma tradição que se imaginava assegurada, mas que se encontra agora sob o temor de perder sua Nyumba-Kaya. Por isso, ao receber do avô a missão de restaurar a normalidade da vida, Marianinho precisa estar sensível aos dramas interiores de cada um de seus familiares para poder desvendar os segredos mais antigos de Luar-do-Chão, o que insere, assim, a profundidade psicológica que caracteriza os personagens da narrativa – símbolos de diversas formas de existência e de lutas humanas. É diante dessas lutas que o título da narrativa, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, sugere que o imaginário cultural a que se associam as metáforas espaciais, em questão, é não somente uma forma poética de as tradições orais continuarem se afirmando, mas também um meio de resistência frente ao legado cultural imposto pelo colonizador. Por conseguinte, o falecido avô, Dito Mariano, resiste em morrer, cabendo a Marianinho retornar às origens

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como uma garantia de permanência das tradições, liberando, assim, a partida do avô. Enquanto isso, fatos insólitos envolvem o retorno de Marianinho:

O que se passava era, afinal, bem simples: a terra falecera. Como o corpo que se resume a esqueleto, também a terra se reduzira a ossatura. Já sem ombro, só omoplata. Já sem grão, nem poeira. Apenas magma espesso, caroço frio. (COUTO, 2005, p. 182)

Sendo então um dos pontos fulcrais do romance, a recusa da terra em receber o corpo do semidefunto é uma forma de confrontar os pressupostos capitalistas representados pelo burocrata Ultímio, personagem que só pensa em sepultar logo o corpo do familiar para retornar ao utilitarismo dos seus afazeres profissionais: ―– Foi sua culpa, Ultímio, você é que traiu os mandamentos da tradição. – Que mandamentos, porra? – Encheu-se sozinho lá no governo. Esqueceu a famìlia, Ultìmio‖ (COUTO, 2005, 180). É assim que o solo adubado pela ganância de Ultímio e por toda insensatez daqueles que romperam os laços com as tradições acaba por se fechar, fazendo com que até a pá do coveiro se vergue ensimesmada no terreno, agora desprovido da maciez de outrora. Na Ilha, a presença humana, indelevelmente marcada pela experiência do sagrado, identifica que, embora ela tente manter vivas as tradições da comunidade, as vozes da cidade que a margeia, do outro lado do rio, fazem-se cada vez mais próximas e impositivas. Aqui, o ethos do homem moçambicano revela que o desejo pela cidade, espaço fundamental da modernidade ocidental,

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deixa todos aqueles personagens transtornados juntamente com a própria Ilha. Mas, entre assimilação e resistência, Luar-do-Chão tenta manter-se como um só lugar – o das tradições orais. Para isso, a volta de Marianinho à própria infância e a partida do avô rumo ao futuro indicam um movimento sincrônico, visto que a chegada de um e a partida do outro sinalizam pontos limítrofes, onde o mundo visível dos homens e o mundo invisível dos antepassados se entrelaçam no encontro do velho com o novo. É onde a morte se faz "o umbigo do mundo", estabelecendo com a vida um elo vital, pois morrer é renascer para continuar mantendo os ciclos necessários à vida. Luar-do-Chão, sendo o último espaço de convivência entre o avô, o neto e a família, deve ser o espaço fundamental à restauração de uma série de elementos estruturais de que o avô depende para poder, enfim, assumir seu lugar noutro mundo. Esta premissa, inicialmente apresentada na epígrafe do primeiro capítulo da narrativa: "Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações — a dos vivos e a dos mortos" (COUTO, 2005, p. 13), revela, antes, a real delimitação entre as nações, que é, sobretudo, a de vivos e mortos, a verdadeira e inexorável fronteira entre os homens. Como escritor, Mia Couto propõe em seus romances não apenas uma experiência estética, mas também atitudes políticas que resultem em ações capazes de integrar os lugares às culturas, aí presentes. Daí as angústias e perplexidades do universitário Marianinho que, ao redescobrir suas origens, é levado a questionar o sentido de sua própria história. E o espaço que o separa

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desta é o tempo sagrado das tradições de Luar-do-Chão, o que diz respeito aos sonhos de todo um povo. Porém, em meio à confluência de diversas percepções culturais, intensifica-se, cada vez mais, o caos cultural entre os mais variados povos do planeta, tal como o caos-mundoiii, cuja noção é elaborada por Édouard Glissant. Segundo o pensador martinicano, o estado de imprevisibilidade daí decorrente constitui não apenas a base da ciência do caos, mas também caracteriza a relação entre as culturas na contemporaneidade – a trama da relação que envolve o eu e o outro num movimento sem fronteiras, e na qual estão os personagens de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra:

[...] Os lugares são bons e ai de quem não tenha o seu, congênito e natural. Mas os lugares nos aprisionam, são raízes que amarram a vontade da asa. A Ilha de Luar-do-Chão é uma prisão. A pior prisão, sem muros, sem grades. Só o medo do que há lá fora nos prende ao chão. E você saltou essa fronteira. Se afastou não em distância, mas se alonjou da nossa existência. (COUTO, 2005, p. 65)

Se a relação de pertencimento a um lugar é indelevelmente inerente à existência humana, para os personagens de Luar-do-Chão, esse pertencimento é mais acentuado ainda quando se considera a relação com toda a natureza à volta como extensão da própria vida. Por isso, é nas águas do rio Madzimi que Marianinho deve iniciar sua travessia para reencontrar a Ilha dos antepassados, empreendendo, para isso, um intenso mergulho nas suas memórias de menino,

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para, em seguida, reescrever junto com o avô a história de Luar-do-Chão. De um lado a tradição da oralidade; de outro, o universo da escrita no qual está inserido o jovem estudante da cidade:

[...] Esse é o serviço que vamos cumprir aqui, você e eu, de um e outro lado das palavras. Eu dou as vozes, você dá a escritura. Para salvarmos Luar-do-Chão, o lugar onde ainda vamos nascendo. E salvarmos nossa família, que é o lugar onde somos eternos. (COUTO, 2005, p. 65)

Aqui, observa-se a complexidade de imagens que refletem os anseios e as angústias de um personagem em sua tentativa de se fazer ouvir pelo familiar estimado. O texto, animado pela tensão incessante do encontro do neto com o outro identifica um país onde as palavras percorrem uma travessia imensurável de tradições. O retorno de Marianinho à terra natal está, portanto, revestido de questionamentos que se expressam não apenas nas suas surpresas e inquietações, mas na redescoberta de uma cultura que originou a Ilha. Transitando, então, por um espaço dominado pelo natural e sobrenatural, onde o sagrado se faz intenso no cotidiano, a Ilha é o palco de histórias individuais profundamente ligadas às memórias do rio Madzimi e aos destinos que aí navegam. Como ocorre em grande parte da obra de Mia Couto, o rio é um elemento bastante significativo no decorrer de suas narrativas, sobretudo no que tange à sua representação simbólica, pois ao apresentar-se como elemento orgânico primordial, esse rio sugere ao homem retornar às origens da vida e ir além da

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lógica: ―– O homem trança, o rio destrança‖ (COUTO, 2005, p. 26). Assim, a função do rio como um espelho do tempo sagrado e, por isso mesmo, periodicamente reatualizado, deve ser indefinidamente recuperável diante do estado movediço dos espaços multiculturais. É diante desse contexto histórico-cultural que as tradições orais têm o desafio de continuar potencializando e perpetuando seu imaginário míticopoético. Segundo Glissant:

Não vivemos no ar, não vivemos nas nuvens em volta da terra – vivemos em lugares. É preciso partir de um lugar e imaginar a totalidade-mundo. Esse lugar, que é incontornável, não deve ser um território a partir do qual olha-se o vizinho por cima de uma fronteira absolutamente fechada, e imbuído do desejo surdo de ir ao espaço do outro para impor-lhe as próprias idéias ou as próprias pulsões. (2005, p. 156)

Impõe-se, consequentemente, outro lugar para as tradições, sendo que, no caso de Luar-do-Chão, estas também estão revestidas de significativo teor político. É onde se constata que a independência política de Moçambique, em pleno contexto global, deve ser a possibilidade de os moçambicanos poderem interagir com a sua identidade (ou identidades), dentro de uma perspectiva mais dinâmica e criativa. Por isso, a escrita coutiana aponta que o grande embate se dá também no rio-tempo, que é de vivos e de mortos, do centro e da periferia – a totalidade-terraiv, que, embora incontornável, apresenta-se como a grande mantenedora da vida.

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Para Glissant, portanto, a função do escritor é aquela que desperta e amplia o imaginário da sociedade, reaproximando poesia e conhecimento como experiências que co-existem na relação do homem com o mundo. Desse modo, o intelectual se torna aquele que deve subverter os valores do dominador, criando possibilidades reflexivas e políticas que possam abrir o diálogo entre as várias percepções culturais e em diferentes lugares. Com isso, a diversidade cultural nas ex-colônias faz surgir um panorama cultural, onde as experimentações estéticas são pautadas agora pela reinvenção das representações, frente às diferentes culturas que hoje se confrontam num mesmo lugar: ―O importante não é a casa onde moramos. Mas onde, em nós, a casa mora‖ (COUTO, 2005, p. 53). Esse embate cultural presente em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra evidencia um espaço onde as muitas identidades estabelecem uma apropriação criativa de outras tradições. Uma apropriação que seja perpassada pela busca de processos cognitivos capazes de dar às diversas culturas orais a condição de agentes da imprevisibilidade diante do contexto em que se encontram. A relação com os antepassados, por sua vez, ocupa uma instância sagrada e uma atitude política, que deve abrir outros caminhos para o enfrentamento dos pressupostos da modernidade.

REFERÊNCIAS AGUESSY, Honorat. Visões e percepções tradicionais. In: Introdução à cultura africana. Lisboa: Edições 70, 1980.

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COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Cia das Letras, 2005. DELEUZE, Giles e GUATTARI, Félix. Mil platôs. Vol. I. Trad. Ana Lúcia de Oliveira. Rio de Janeiro: Ed. 34 Ltda, 2004. GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Enilce Albergaria Rocha. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005. SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Notas i

Bantu é a cultura dos povos do centro sul africano, falantes do tronco linguístico bantu.

ii

Deleuze e Guattari propõem a relação entre raiz, radícula e rizoma como possibilidades para se pensar o embasamento epistemológico acerca dos sistemas. Enquanto a raiz e a radícula expressam um totalitarismo estrutural, o rizoma é um sistema a-centrado, a expressão máxima da multiplicidade. Com o conceito de rizoma, eles apresentam então um modelo de anunciação da pós-modernidade, permitindo reconhecer, no caráter dinâmico da vida, a multiplicidade, o movimento e o devir. iii

Para Glissant, o caos-mundo é o entrelaçamento, bem como os conflitos, atrações e oposições, que ocorre entre as culturas dos povos no mundo contemporâneo. iv

Termo usado por Édouard Glissant para se referir à presença da diversidade dos povos que continuam lutando para conquistar seu lugar na terra.

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LUÍS DA SILVA E O ESPAÇO NEGATIVO EM ANGÚSTIA, DE GRACILIANO RAMOS Priscila Evaristo da Luz Rodrigues (UNEAL)i

Objetivamos nesse artigo expor os espaços negativos e a presença do narrador personagem que surgem no romance Angústia, de Graciliano Ramos, como projetor das aflições vividas por Luís da Silva, levando-o a fragmentação. Após as conquistas alcançadas na Semana de 22, a literatura brasileira passa por uma reformulação e ganha uma nova roupagem. Entretanto, ela não perde os moldes dos primeiros modernistas que preconizavam o nacionalismo e o retrato do cotidiano. Contudo, a partir das décadas de 30 e 40 esse caráter assumiu um amadurecimento mais centrado nos problemas da realidade, partindo daí a literatura regionalista associada a denuncia social. Bosi (1975, p.431 - Grifo do autor) ressalta que ―a prosa de ficção encaminhada para o ‗realismo bruto‘ [...] em parte de Graciliano Ramos, beneficiou-se amplamente da ‗descida‘ à linguagem oral, ao brasileirismo e regionalismo léxicos e sintáticos, que a prosa modernista tinha preparado‖. Sendo a produção literária de Graciliano Ramos densa e complexa, sabe-se que o autor sempre se preocupou em abordar em suas obras, a vivência dolorosa do povo brasileiro, em especial dos nordestinos, a situação miserável a qual são submetidos, desde a seca até a infinita e constante luta pela sobrevivência. A

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exploração da alma humana, que representa os conflitos interiores causados pela não adaptação à modernidade, que extrai o homem de seu meio natural e o leva ao urbano, meio social, promovendo assim a descentralização social e cultural, como nos ensina Stuart Hall (2001). Os atributos trágicos presentes na construção graciliânica representam a inadaptação no que concernem ao meio social e às armadilhas da vida; esses concedentes são dotados de maturidade, ao elaborar com requinte os ares sufocantes, depreciativos, pessimistas e angustiantes de suas obras. Esses elementos contribuem para o deslocamento do subconsciente da personagem, favorecendo, dessa forma, para o não reconhecimento dos espaços que formam no romance ou, contrariamente, convivendo com ele, dando-lhe um retoque amplamente negativo da cidade. Mestre Graça trabalhava com destreza uma linguagem forte e enxuta, sem exageros, mas carregada de objetividade tão cortante como uma espada que dilacera a carne e a alma do leitor. Todavia, sua obra move-se do particular para o universal, visto que, ao expandir a condição coletiva, expõe também a exploração social e o abrutamento motivado por esse meio. Ressaltando as observações em Angústia (1936), vemos que é a retratação da vida de Luís da Silva reforça a construção de relação entre os espaços rurais (infância) e urbanos (adulto). Essa dicotomia permite à personagem construir uma imagem muito descritiva da cidade de Maceió, espaço em que a realidade se mostra cada vez mais trágica, como nos ensina Candido (2006).

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Segundo o esquema de Bosi (1975, p. 439-40 apud GOLDMANN, 1967), o romance se define segundo as condições de suas tensões. Com isso, Angústia se encaixa no que é chamado de tensão crítica, uma vez que o herói não se acomoda ao meio no qual está inserido e sente-se incomodado durante todo a narrativa, refletindo assim na categoria da negatividade que o rodeia. Quanto ao narrador podemos conceituá-lo por sua posição frente à narrativa, ele se apresenta em primeira pessoa, seguindo a configuração do monólogo interior, fazendo o leitor mergulhar em seus pensamentos, passear nas lembranças passando a conhecê-lo intimamente e desse modo reduz a distância entre o leitor e a obra. BRAIT (1985, p. 62) alega que ―o monólogo interior é o recurso de caracterização da personagem que vai mais longe na tentativa de expressão da interioridade da personagem‖. Na estruturação do romance ora analisado, notamos que o narrador possui uma caracterização conhecida por onisciência seletiva, como nos ensina Leite (1985). Sobre isso, Leite (1985, p. 54) robustece que ―nessa categoria ocorre à transferência detalhada dos pensamentos e sentimentos íntimos de apenas um dos personagens‖. Outra especificidade marcante desse narrador é a figuração do herói às avessas, problemático, descentralizado, desfigurado e impossibilitado de viver segundo normas sociais urbanas. Conforme a afirmação de Bosi (1975, p. 453), ―tudo nesse romance sufocante lembra o adjetivo ‗degradado‘ que se apõe ao universo do herói problemático‖.

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O narrador é constituído pela desordem promovida por aspectos exteriores já que a todo o momento busca em suas lembranças a vida na fazenda, realizando associações da infância com a vida adulta, vida fragilizada pelos acontecimentos do passado, daí a personagem vai sempre ligando objetos, pessoas e locais identificando-se com eles progressivamente, mas sem se ajustar profundamente nos lugares, vagueando superficialmente entre as camadas da imaginação e da realidade. Fontes (2009, p.1) diz que:

No romance Angústia, o narrador personagem passa por um deslocamento espacial, e a intenção é mostrar o mesmo processo de deslocamento espacial, que foi infligido a Luís da Silva, pode ser visto também no deslocamento temporal, uma vez que o personagem, assim como saiu de sua terra de origem para outro local, fará também deslocamento com o tempo presente e suas reminiscências.

Observando a narrativa em questão, pode-se perceber que Luís da Silva apresenta-se como um homem que vive inicialmente um processo capitalista, no qual quem sobrevive é sempre o mais forte, numa sociedade repressora, que torna o indivíduo um enclausurado, feito um bicho, passando a agir pelo instinto, induzindo-o a cometer as maiores atrocidades iguais a suicídios ou assassinatos e com isso aos poucos perde o que havia de bom em seu caráter. Sobre esse ponto de vista, Fontes (2010, p. 66) reforça que ―o mundo contemporâneo apresenta uma configuração específica do capitalismo e o papel essencial que o dinheiro desempenha é uma de suas principais caracterìsticas‖.

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Ainda nesse raciocínio, podemos encontrar esses aspectos também em outras obras de Ramos como Vidas secas na morte de animais para saciar a fome e São Bernardo. Esse novo espaço inicia no individuo a modulação da personalidade, assumindo uma nova caracterização que, por vezes, iguala-se aos animais, assim como Luís da Silva, que luta para não se sentir e tornar-se um rato. ―Não sou um rato, não quero ser‖ (p. 9). A construção da personagem Luís da Silva se faz complexa e abrange tanto o aspecto psicológico quanto social, criando nele uma duplicidade entre o interior e exterior, o primeiro surge a partir de seu passado com aflições e dilemas; o segundo surge da presença de Julião Tavares como representante dum status ao qual Luís da Silva, deseja fazer parte, mesmo que esta sociedade transgrida aos seus valores morais. No entanto, o anseio de ascensão social vem desde a decadência de sua família na fazenda, pois o legado de poder foi partido, podemos notar isso, a partir da redução dos nomes dos homens da família Silva, gerando com isso o não avanço na categoria político-social, mas, demonstra o grande poder latifundiário da época que aos poucos deixa de existir somente nos damos conta desses fatos dentro da leitura corrente e atenciosa de Angústia. Seguindo esse pensamento, Paula (2009, p.12) assevera que ―Luìs da Silva, é representante da aristocracia decadente que não consegue se estabelecer no novo sistema de classe média urbana que começa a dominar os setores da sociedade [...]‖.

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Luís da Silva mantém uma luta incessante com a cidade, uma vez que essa é a reprodução dos valores repugnados por ele. Fontes (2009, p.157) ressalva que ―por toda trajetória, torna-se um homem inadaptado à nova engrenagem social, que se instaurou no Brasil, no inìcio do século XX‖. Este mesmo espaço representa a aversão de Luís da Silva, a sua condição de vida, pois ele se vê obrigado a aceitar as normas convencionais da sociedade alagoana, e essa inadaptações cria um conflito não apenas de localidade, mas também de aceitação e convenção a novos padrões de vida desajustada considerando que os males da cidade são as desconjunturas de Luís da Silva. Essa mesma cidade serve como recurso impulsor para trazer à tona as reminiscências do narrador, de sua vida no campo dando-lhe escape do choque entre a realidade urbana e o passado rural. Luís da Silva é dotado de um sentido autodepreciativo, não se satisfaz com nada, nem com ninguém (CANDIDO, 2006). As pessoas, os lugares, os sentimentos não são meros recursos para facilitar a inadequação ao novo meio, pois quando se dispõe a analisar o que o cerca percebe que há uma desconfiguração espacial, cultural e principalmente sentimental corroída, desconjuntada que sendo vista sob as perspectiva de Luís da Silva não haveria possibilidades de melhoras. Aliado a esse conflito social está à superioridade de Luís da Silva sobre as pessoas que o cerca; ao julgar-se melhor tanto intelectual quanto socialmente, mesmo assim os lugares que mora ou frequenta – apesar de o café e o teatro ser o

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local de lazer e encontros da elite maceioense – são sempre de uma classe inferior, subalterna e mesquinha. Podemos detectar isso em vários momentos na narrativa. Candido (2006, p.112) diz que ―[...] dotado de um poder mórbido de autoanálise, que o faz em consequência, desenvolver um nojo impotente dos outros e de si mesmo‖ [...]. No decorrer na narrativa, podemos notar que os sentimentos que afligem Luís da Silva e as situações vivenciadas sempre leva-o à solidão, ao confinamento em si mesmo, Luís da Silva sente-se apenas mais um em meio à multidão, interiormente carregado de superioridade, mas externamente – ―um cidadão como todos os outros, um diminuto... um Luìs da Silva qualquer‖ (p.22) – sem vez e sem voz, não encontra um abrigo, refúgio.

Também a solidão de Luís da Silva, na obra em questão, cola-se à vida de um pequeno funcionário, de veleidades literárias, mas condenado a esgueirar-se na mordidão poenta das pensãozinhas de províncias e a repetir até a náusea os contatos com um meio onde o que não recalque é safadeza (BOSI, 1975, p. 453).

Luís da Silva vê-se como uma criaturinha insignificante que recua a todo o momento, em todos os lugares – ―encolhido junto à porta‖ (p.24) –, pois não é percebido e ―estava tão abandonado neste deserto [...] fora daì o silencio, a indiferença‖ (p.25). Esse isolamento é cada vez mais crescente desde a infância, na perca dos pais e avós, no brincar solitário, no cotidiano rotineiro.

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Desse afastamento surge a necessidade de produzir algo que o complete, preencha o vazio causado pelo abandono, não reconhecimento dentre tantas crises pessoais, Luís da Silva, usa esse sentimento para impulsionar o anseio que há dentro de si, ou seja, o desejo de eliminar, Julião Tavares. Rolnik (2004, p. 26) certifica que ―isolado cada indivìduo deve produzir tudo aquilo que necessita para sobreviver‖. Com isso há o favorecimento da aproximação do eu interior, a busca por conhecer a si mesmo, encontra-se em meio a tanta. Ainda seguindo esse pensamento, Lino (2009, p. 7) assegura que ―o isolamento, distanciamento do convìvio social são atitudes que facilitam encontro consigo mesmo‖. A construção do espaço na narrativa se dá de modo sucessivo, contudo, em Angústia, a narração acontece de modo não linear, é circular e faz uso do flashback como recurso condutor da descrição, nessas idas e voltas que oscilam entre o sensato e o insano, presenta e passado surge o rompimento com aquilo que podemos chamar de espaço-temporais, que aleatoriamente segue sem sequência definida de fatos. Nessa acepção Moisés (2007, p. 454) destaca que o ―[...] monólogo que fecha o romance com ele o protagonista e nós retornamos ao ponto de partida da narrativa (―Levantei-me há cerca de trinta dias‖, etc.), assim estabelecido um circulo vicioso ininterrupto, que exprime a angústia reinante em Luís da Silva até o fim dos dias‖.

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Sabendo, que a categoria espaço não possui o mesmo prestigio adquirido por outras categorias literárias, e que os estudos a cerca dele ainda são escassos, Dimas (1987, p.16) certifica que, ―apesar da forte adesão do romance brasileiro ao espaço, seja urbano, rural ou selvático, a nossa crítica pouca atenção tem dedicado ao assunto, preferindo deter-se ora nas formas narrativas, ora em seus temas‖. Contudo, essa categoria nos últimos anos tem assumido gradativamente o real sentido/ reconhecimento que lhe cabe dentro do romance, visto que, segundo Abdala Junior (1995, p. 48), o significado de espaço ―é lugar em que se desenrola a ação; espaço fìsico‖. Com isso, entendemos que o espaço deixa de ser apenas o local onde se passa a ação e ganha à função de representar um estado de espírito, sendo o esboço do subjetivo, promovendo a interação entre a ação e cenário, numa multiplicidade de conflitos. De acordo com Gardel (2007, p.118) comprovamos que ―o ambiente, dessa forma, não pode mais ser decorativo como o árcade, mas sim representativo de um estado de espírito, sendo mesmo uma ilustração da subjetividade do poeta‖. Numa perspectiva mais ampla, compreendemos que o espaço também pode assumir várias direções/características dentre elas ele pode apresenta-se como motivo associado, e é essencial a narrativa, pois, perderia o significado caso fosse retirado. Nesse sentido, o espaço age como aparelho auxiliar, dando suporte à construção da personagem, e trabalha inseparavelmente e unindo-se a outro fator

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predominante que chamamos de tempo. Lins (1976, p.63) diz que ―não só espaço e tempo, quando nos debruçamos sobre a narrativa, são indissociáveis. A narrativa é um objeto compacto e inextricável, todos os seus fios se enlaçam entre si e cada um reflete inúmeros outro‖. Espaço, ambientação e personagem são categorias semelhantes que exercem funções relevantes no cenário e na construção do texto, dessa forma, o contexto social evidencia-se a partir de elementos externos, visto que o espaço ganha funcionalidade no conjunto geral da obra, compreendemos, assim, que o espaço possui multiplicidade. Com isso, alguns ramos podem ser facilmente detectado, no quesito espaço caracterizador, que por sua vez, se apresenta de modo a projetar-se na personagem. Lins (1976, p. 79) arremata que ―o interesse dos recursos literários para estabelecer, nas histórias, o espaço‖ ou ―são categorias que se misturam e causam na narrativa‖. Ainda nessa visão, o espaço destaca-se como provocador nessa caracterização, a personagem vive a margem dos fatos que a cerca, sem se preocupar com ações que a conduza na narrativa. Promovendo ainda, uma troca de influência atuada uma sob a outra, numa alteração de poderes e unidades significativas, essa influência age ainda de maneira subjetiva operando para o crescimento ou declínio de emoções que são convertidas em atitudes já que o espaço não é apenas utilizado para influenciar ou caracterizar, mas, além disso, situa representando por muitas vezes sentimentos do que mesmo as características pessoais da personagem. Para Lins

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(1976, p.99), ―se há o espaço que nos fala sobre a personagem, há também o que lhe fala, o que a influência‖. Nesse sentido, os espaços em Angústia vão se constituído pausadamente, fragmentando-se, seguindo o ritmo dos fluxos de memórias do narrador, manifestadas de modo real, outras vezes através da imaginação, daí vai se costurando nessas idas e voltas de pensamentos e alucinações, misto de presente e passado, adquirindo funcionalidade como um quebra cabeças ou uma engrenagem que se encaixa a cada movimento. ―Tenho-me esforçado por tornarme criança – e em consequência misturo coisas atuais a coisas antigas‖ (p.17). Junto a isso Paula (2009, p. 7) reforça ―o que queremos demostrar é que não há como narrar uma história sem a interferência do passado, visto que nossa consciência é constituída pelo que vivemos e pelo que pretendemos viver‖. Ainda nessa perspectiva, vemos que os espaços negativos povoam todo o romance, desde as primeiras páginas do livro até as últimas, são todas sempre sobrecarregadas de sombras e densidades. Toda cidade parece está organizada para o definhar de Luís da Silva. Nesses espaços negativos se manifestam através de pessoas, mas também se alternam entre pensamentos, sentimentos, sensações, lugares e cores. Silva (2007, p. 68) ratifica que ―nesse universo ele [Luìs da Silva] se confronta com a imagem da cidade, em que aspectos negativos do espaço urbano vão construindo consigo uma negatividade urbana. O narrador apresenta a cidade como se ela estivesse toda contra a personagem. [...] Essa característica se

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mostra na imagem da cidade grande e o interior, provocando na narrativa, a verdadeira face da cidade [...]‖. Diante disso, são justamente esses espaços que mais atraem o olhar de Luís da Silva, eles são pessimistas, sem cores positivas, aparentemente opacas, são atropelados pela negatividade - as imagens fúnebres que inundam sua mente ―enxoto as imagens lúgubres‖ (p. 9), as humilhações vividas durante o tempo em que perambulou pelo país, o monte de lixo no quintal de sua casa, os casebres miseráveis, vida miserável de seu Ivo. A fragmentação de Luís da Silva alterna entre o espaço e a construção de suas particularidades, transcorrendo para o ambiente que ainda busca arranja-se na modernidade tão presente nos valores e nas concepções da sociedade maceioense. Frente a isso, Luís da Silva, projeta-se em tudo que o cerca, desde o roer dos ratos em suas entranhas, o diluir do cigarro em cinzas, ao cheiro de esperma no ar vindo da casa de D. Rosália, espaços esses que compõem o âmbito da negatividade que atuam junto ao narrador personagem para se torna cumplice tanto na ascensão quanto no decair da narrativa. E com isso, o espaço vai ligandose a outros elementos que compõem a narrativa e se ajusta aos sentimentos produzindo a verossimilhança do romance de modo natural. As cores em Angústia também contribuem para evidenciar o negativo, transfigurando os sentimentos que permeiam a alma do narrador personagem. Elas aparecem em diversos momentos na narração - na mancha de sangue no lençol que cobria ―Camilo Pereira da Silva continuava escondido debaixo do pano

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branco, que apresentava no lugar da cara uma nódoa vermelha coberta de mosca‖ (p.18); na carne em estado de putrefação ―Como estaria os pés de Camilo Pereira da Silva? Certamente estavam inchados, verdes, com pedaços ficando pretos‖ (p.20); nas unhas e nos sapatos de Marina, nas roupas encardidas de Luís da Silva ao perambular nas fazendas ―Entro a falar sobre a minha vida de cigano, de fazenda em fazenda, transformado em mestre de meninos‖ (p.26), no tapete da escadaria do Palácio do Governo, nas luzes do farol ―A luz vermelha do farol espalhava-se pelo telhado‖ (p.81). Cores essas que representam tanto a morte quanto a vida que corre nas veias de Luís da Silva no anseio de viver ao lado de sua amada e simultaneamente de extinguir a vida do homem que a tomou de si. Isso ainda contribui para trazer a memória do narrador às percas dos entes querido tidas durante a infância. E todas as mortes que cercaram Luís da Silva corroboraram para o crescimento da fragmentação e da negatividade do espaço. Esse espaço também se caracteriza pelo contraste existente entre o luxo e a pobreza, evidenciado no romance na descrição de Julião Tavares e Luís da Silva, quando representam classes sociais distintas. ―Do lado esquerdo são as casas da gente rica, dos homens que me amedrontam, das mulheres que usam pele de contos de réis. [...] do lado direito, navios‖ (p.10). A duplicidade espacial que permeia o romance mesmo que os espaços sejam psicológicos confirmam a fragmentação de Luís da Silva frente à nova realidade.

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Com isso, o espaço assume, então, uma ambivalência, em que parte do social se projeta nos espaços internos da personagem e se dilatam no olhar que ele impõe à cidade. Na verdade, essa capacidade do narrador e do personagem são alterações entre as atmosferas interiores e exteriores da criação literária, dando densidade aos conflitos da personagem e criando um quadro, muitas vezes, sombrio, tenso e misterioso.

REFERÊNCIAS BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1975. BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo Ática, 1985. CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaio sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2006. DIMAS, Antônio. Espaço e romance. São Paulo: Ática, 1987. FONTES, Rosa Lúcia Miguel. O tempo e o espaço em Angústia. Revista Interdisciplinar UFMG, Ano IV, V. 8, jan./jun. 2009, p. 155-162. ________. O romance como epopeia de uma era: um estudo do romance Angústia, de Graciliano Ramos. 2010. 107 f. Dissertação. (Mestrado em Teoria da Literatura). Programa de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. LINO, Simone Aparecida da Silva. Memórias de Luís da Silva: o homem do subsolo. Darandina revista Eletrônica, Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora, vol. 2, nº 2, 2009, p. 1-17.

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LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco: ensaio. São Paulo: Ática, 1976. SILVA, Márcio Ferreira da. A geografia literária de Lêdo Ivo: a cidade nos romances As alianças e Ninhos de cobras. 2007. 147 f. Tese. (Doutorado em Literatura Brasileira). Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Maceió. ________. A Cidade desfigurada: uma análise do romance Ninho de cobras, de Lêdo Ivo. Maceió, Cataventos, 2002. RAMOS, i

Graciliano.

Angústia.

57ª.

ed.

São

Paulo:

Record,

2004.

Aluna do curso de Letras, da Universidade Estadual de Alagoas-UNEAL, Campus IV, São Miguel dos Campos, Alagoas; aluna-pesquisadora participante do Núcleo de Estudos e Pesquisa da Narrativa-NUCEN, coordenado pelo Prof. Dr. Márcio Ferreira da Silva.

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LITERATURA E MEMÓRIA NA NARRATIVA DE BRÁS CUBAS Priscila Tenório (UFAL)

Walter Benjamin, em seu ensaio ―O narrador‖ (1994), afirma, logo de início, que a arte de narrar está por extinguir-se, pois para ele o homem está privado da faculdade de intercambiar experiências – que são passadas de pessoa a pessoa pela oralidade, e se constituem fonte dos narradores. Conclui que, se não há experiência, não há o que contar, porque a narrativa provém da experiência. Para reforçar seu argumento, diz que a narrativa escrita deve se diferençar o mínimo possível das histórias contadas pelos inúmeros narradores anônimos, pois a arte de narrar está baseada na oralidade em que o narrador anônimo, a experiência e a memória são coletivas. Benjamin chega a comparar o narrador a um camponês sedentário e a um marinheiro. O camponês sedentário conta as experiência vivenciadas na sua aldeia. O marinheiro conta as experiências vivenciadas nos diferentes lugares por onde viaja. Sejam trazidas de tempos longínquos ou de lugares longínquos, as experiências são narradas e bem narradas porque ―se interpenetram de múltiplas maneiras [...] o saber trazido para casa pelos migrantes, com o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário‖ (BENJAMIN, 1994, p. 198-199). A extinção da narração está relacionada ainda ao advento da forma romanesca e da informação jornalística. Por um lado, o romance está pautado na

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escrita impressa e constitui uma atividade individual, tanto de produção, quanto de recepção, já que a leitura se dá também de modo individual e silencioso, ao contrário do trânsito da narrativa oral, que remete à coletividade. Com a ruptura entre oralidade e escrita que se manifesta num processo de produção e recepção da escrita, calcado na segregação do romancista e na leitura individual e silenciosa, Benjamin afirma: ―a origem do romance é o indivìduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e não recebe conselhos nem sabe dá-los‖ (BENJAMIN,1994,p.201). Por outro lado, a informação jornalística vai mais longe e reduz, quando não elimina, os relatos e riquezas da vida humana através de objetividade acurada, mensurada, em apenas dados. Ou seja, ―Cada manhã recebemos notìcias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes‖ (BENJAMIN, 1994, p. 203). No entanto, o fracasso na arte de contar vinculada a uma experiência vivida

coletivamente,

precisa

ser

acompanhado

de

novas

formas

de

narratividade. O leitor do romance procura nos livros uma forma rígida e acabada: uma história com início, meio e fim linear. Algo que seja diferente do caos que se encontra na sociedade moderna. Mas, segundo Bakhitin (1998) não há um romance que tenda à conclusão, pois o próprio presente, com seu aspecto inconcluso, enfatiza uma transformação na mente inventiva do homem. Para Bakhitin (1998, p. 398) o romance ―trata-se do único gênero que ainda está evoluindo no meio de gêneros já há muito formados e parcialmente mortos‖. Este aspecto inovador do romance se acentua na pós-modernidade, onde a narrativa

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passa a ser fragmentária e cambaleante, como as memórias de Brás Cubas, seguindo um fluxo desordenado, não linear, que não tem utilidade ou objetivo algum a ser alcançado. Sob essa perspectiva, a memória não é mais tradição, no sentido de um conhecimento que passa a cada geração e participa da construção dos sentidos de um mundo marcado pela oralidade, mas uma leitura paródica da tradição. Aliás, Bakhitn diz que o romance é a forma que é capaz de parodiar a si própria. Nas palavras do filósofo

O romance parodia os outros gêneros (justamente como gêneros), revela o convencionalismo das suas formas e da linguagem, elimina alguns gêneros, e integra outros à sua construção particular, reinterpretando-os e dando-lhes um outro tom. (BAKHITN, 1998, p. 399)

Por outro lado, tradição e memória, segundo Benjamin, se configuram como uma forma de continuidade e preservação da História e do modo de vida da comunidade, em que a natureza da verdadeira narrativa

tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa forma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. (BENJAMIN, 1994, p. 2000)

Desta feita, considera que as duas figuras matriciais de narradores, o marinheiro e o camponês sedentário, narravam para viver ou para ajudar a viver,

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porque contavam histórias de experiências – referentes às vivências da aldeia ou de lugares estrangeiros - que eram uma espécie de conselho, considerado prova de sabedoria, uma vez que advinha da substância da existência. Entretanto, tradição e memória não são mais vistas assim, embora sejam revisitadas pelos autores contemporâneos de forma crítica em estruturas textuais que superam aspectos formais, temporais, reais e imaginários. Nas Memórias póstumas de Brás Cubas (1997) temos um romance que ultrapassa os limites da estética realista, e compõe uma obra difusa, escrita por um defunto autor que narra suas memórias como um trôpego, sem qualquer linearidade, colocando em questão o próprio fazer literário. Diferindo nisso da visão benjaminiana citada, não a negando, mas a reconfigurando por meio de procedimentos aparentemente desleixados, conferindo à narrativa um tom egoísta e despreocupado, em nada importando se o que narra acarretará alguma serventia. Observamos ainda no texto das Memórias póstumas que o narrador opera um diálogo entre épocas e estilos, porém não de maneira convencional. Brás Cubas não escreve os acontecimentos de sua vida para tentar restaurar seu autoconhecimento unindo a adolescência à fase a adulta, como o faz Bentinho em Dom Casmurro. Ele não tem projeto, nem objetivo de vida, nem intencionalidade literária, ele apenas deixa correr a pena ao sabor do riso. É um brincalhão, irresponsável que escreve as memórias com a ―pena da galhofa‖ (1997, p.16), para usar suas palavras. Com isso, ele vai de encontro às concepções de Benjamin quanto ao narrador ideal – que comunica experiências oriundas da tradição oral –

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, asseverando as afirmações do ensaísta sobre a natureza do romance e sua distinção da narrativa (baseada na tradição oral).

O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fadas, lendas e mesmo novelas – é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas às experiências dos seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. (BENJAMIN, 1994, p.201)

Além disso, Brás não quer compreender o que o levou à ruína sentimental e existencial, como ressaltaria Walter Benjamin ―um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois‖ (BENJAMIN, 1994, p. 37). Mas, ao contrário, brinca de fazer memórias – uma atividade, como ele mesmo diz, para passar o tempo lá na eternidade - onde o tempo nunca passa. Assim, tradição e memória apontam, nesse caso, para o aspecto provisório e fragmentário da contemporaneidade, sentido este que Brás desenvolve sem nenhum sentimento de culpa: ―Não tinha remorsos‖ (1997, p. 153). Machado de Assis construiu um narrador que narra livre da brevidade do século, isto é, livre de qualquer compromisso com o mundo dos vivos, leve e solto. Tornando o

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romance um eterno presente que se constrói a cada leitura. Ao fazer isso, Brás desconstrói a estrutura narrativa habitual, para Benjamin ele desauratiza a obra. Isto é, a obra não é o que diz ser, um livro de memórias, mas usa esse artifício para ludibriar o leitor e para conferir a narrativa o tom irônico, o jogo metalinguístico, e o caráter híbrido, ao fundir romance e metarromance. Dessa forma, coloca também como uma questão central a noção de homem como ser de memória. Como a memória não é linear, a forma fragmentada e desordenada do texto mimetiza o seu percurso cambaleante, feito de lembranças e de esquecimentos. Nesse momento, podemos questionar se essa quebra de linearidade não é efeito de uma oralidade dominante no romance, que parecendo ser só escrito, pode levantar a hipótese de que o discurso seja oral. Partindo da ideia de que a palavra escrita segrega, impõe um distanciamento entre o enunciador e o receptor, a falta de uma ordenação linear nas Memórias póstumas pode ser vista como a tentativa de instaurar a naturalidade da comunicação oral, como artifício para resgatar a experiência comunitária entre os homens – tão valorizada por Benjamin. Pode-se perceber isso no texto de Brás Cubas em trechos do tipo: ―Digo essas coisas por alto, segundo as ouvi narrar anos depois‖ (p. 35); ―Ouço daqui uma objeção do leitor‖ (p.93). Além disso, o narrador dirige-se diretamente ao leitor, como se estivesse face a face com o interlocutor no ato de enunciação. Para isso, faz uso de dêiticos: ―E vejam agora com que destreza, com que arte faço eu a maior transição deste livro [livro que foi escrito pelo narrador e que está diante

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do leitor]‖ (p.34); ―Não, não hei de contá-lo nesta página‖ (p. 155). E também faz uso da linguagem coloquial: ―Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção pausada do leitor: nada‖ (p. 34); ―Vim... Mas não; não alonguemos o capìtulo‖ (p. 61). O caráter cambaleante e fragmentário das memórias avulta na forma como o narrador conduz a escrita da narrativa, como um ébrio, oscilante, desorientado, sem linhas retas. ―Com efeito, tudo nestas memórias é extravagante, e os caprichos do narrador volta e meia desrespeitam as convenções de que depende o senso realista da verossimilhança.‖ (SCHWARZ 1987, p.118). Pois, Brás sem nenhuma preocupação com ordem cronológica, sequência de capítulos, linearidade textual, convida o leitor a seguir uma leitura que melhor lhe convenha. Ele diz ―Unamos agora os pés e demos um salto por cima da escola...‖ (cap. XIII, p. 38). E ainda: ―Que me conste, ainda ninguém relatou seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direito à narração.‖ (cap. VII, p. 25). Assim, pode tratar da temática realista, contudo diferir no espaço estético; ou, pensar sobre o gênero romanesco, brincando de fazer um romance autobiográfico. Nesse ponto, Machado vai além de seu tempo e lança

questões que somente podemos levantar em sua leitura a partir das

concepções hoje discutidas. Embora seja possível, mediante embasamento metodológico, afirmar a representação da oralidade nesse romance, não será possível, no entanto afirmar

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que isto seja realmente a intencionalidade de Brás, porque conforme já observamos, ele é um narrador brincalhão, que não possui nenhum objetivo definido, portanto finge escrever sobre sua vida e suas experiências, do mesmo modo que finge o diálogo solto e descontraído, em aproximação com o leitor, quando sua atividade de fato é escrita e não oral. Diante disso, podemos afirmar ainda que, assim como a memória é um apanhado de histórias ―do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição‖ (BENJAMIN, 1994, p. 202), o texto contemporâneo (e o de Brás Cubas) apanha essas histórias não mais de um conjunto transmitido oralmente, mas de um emaranhado de intertextos e citações de textos do passado e do presente, próximos e distantes do autor que confluem para a construção de um novo texto. E se, pela memória, buscamos nos reconciliar com o passado ou restaurar alguma coisa em nosso presente, pelo texto contemporâneo busca-se a interação, e ainda mais, a incorporação de textos de várias épocas e estilos diferentes para refletir sobre si mesmo, não com vistas a uma retomada do passado, mas a fim de rever a própria noção de passado, de escrita, de memória. A narrativa de Brás, sob esse ponto de vista, é enviesada e constitui um emaranhado linguístico em que se encontram aspectos modernos e pósmodernos, mesmo utilizando recursos da época, e até de momentos anteriores. Desse modo, avançamos um pouco na análise e percebemos que na produção do romance o narrador desenvolve na tessitura do texto mais do que o desenrolar da história (personagens, espaço, tempo), mas também os bastidores, quando reflete

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sobre o seu processo narrativo - ao falar de como o método é importante para o texto e de como permite que ele seja manuseado de diferentes maneiras. Essa postura do narrador corresponde à releitura que faz das relações entre literatura e memória no próprio texto.

De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto de método, sendo como é, uma coisa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor do quarteirão. (ASSIS, 1997, p.30)

E se pensarmos, como Benjamin, que o narrador é aquele que compartilha histórias longínquas no tempo (camponês sedentário) ou no espaço (marinheiro), será possível perceber o narrador das Memórias póstumas como um narrador que consegue dialogar com outras instâncias estilísticas e com outros momentos da história literária, contando histórias que despregadas das amarras de espaço/tempo se contam e recontam a cada possível leitura feita. O fato de Brás Cubas dar mais importância ao ato de narrar em si do que ao ato de contar suas aventuras e experiências de vida faz supor que o diálogo entre textos – dele como narrador e de outros narradores, dele com ele próprio, em estilos diversos – é realmente preponderante, fazendo a existência funcionar como um dado menor em relação à própria construção intertextual de que se vale com exagero até. Desse modo, o texto substitui a vida; a escrita substitui a oralidade. Isso ocorre porque o lado estético da criação literária supera a ordenação das obras de acordo

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com tendências gerais, que ora acompanham a sequência cronológica da obra, ora acompanham a sequência da cronologia biográfica, como afirma Jauss (1994) a qualidade, e a categoria de uma obra literária não resultam nem das condições históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão-somente de seu posicionamento no contexto sucessório no desenvolvimento de um gênero, mas sim, dos critérios da recepção, do efeito produzido pela obra e de sua fama junto à posteridade (JAUSS, 1994, p. 8).

No decorrer de seu ensaio, Benjamim destaca que ―Por mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais.‖ (BENJAMIM, 1986, p. 197). Esse distanciamento valoriza, na concepção de Benjamin, os traços que marcam o bom narrador, aquele que conta uma experiência que pode ser percebida pelo observador que está a ―uma distância apropriada e num ângulo favorável‖. Num texto de memórias, o distanciamento se evidencia no resgate da experiência vivida no passado, sobre a qual se pode lançar um olhar em busca de aprendizados e da constante rememoração dela para que permaneça no conhecimento e no convívio da coletividade. No caso de Brás Cubas, o que ocorre é uma simulação desse distanciamento, por ser ele – o narrador – um defunto que, ao trazer à memória fatos da sua vida, traz também os costumes e o cotidiano da sociedade da época. E ao escrever do outro lado da vida, nele se perde a noção de tempo, pois escreve um livro ―com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século‖ (ASSIS, 1997, p. 21). Contudo, não se

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podem mesmo levar a sério umas memórias escritas por um narrador defunto, brincalhão, fragmentário e ébrio. Além de escrever em tom zombeteiro, ele tematiza a ―representação‖ por meio da representação. Com isso, Brás não segue o modelo de Benjamin assumindo o distanciamento nem objetivando a preservação de suas memórias, antes transporta o observador para dentro do texto e quebra a distância entre a história e o leitor (para Benjamim, o ouvinte) que passa a participar do processo de construção das memórias. Por isso é que se diz que ele simula o distanciamento - apontado por Benjamim – e passa a traçar as linhas literatura e memória por meio do simulacro. Para fundamentar essa questão do simulacro na narrativa de Brás Cubas, apresentamos muito rapidamente uma referência de Gilles Deleuze que discorre com propriedade sobre esse assunto. Em ―Platão e o simulacro‖, Deleuze ―caracteriza a modernidade como o momento da deposição do platonismo pela valorização do simulacro‖ (apud PERRONE-MOISÉS, 1978, p. 18). O filósofo mostra a impossibilidade, hoje, de aproveitar a teoria de Platão, como tal, num esquema binário entre o simulacro – abafado e condenado por ele – e a Ideia. De modo que a modernidade fez liberar o simulacro, pondo-o em sintonia com a nova realidade que se fez nos desdobramentos da modernidade, passando a ter vulto, assumindo um poder de autonomia. A contemporaneidade inverte a relação e faz do simulacro a nova palavra de ordem da compreensão do real. Com isso, Deleuze acaba por reverter todo o platonismo. Ele afirma que a dicotomia entre essência e aparência, fundamento da dialética platônica, seguida da

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concepção de simulacro como cópia degradada do objeto real do mundo das ideias, é o cerne do pensamento metafísico. É o caso de Brás Cubas, que conta suas memórias do outro lado da vida, nele a noção de tempo se perde. A história que conta sai aos saltos, sem nenhuma ordem preestabelecida, sem objetividade, caminha para o nada. Porquanto, Brás escreve um livro ―com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem regela, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado.‖(cap. IV, p. 21) Além disso, Deleuze reabilita a noção de simulacro numa relação entre corpo e linguagem. A linguagem, de forma específica, é ilustrada pelo solecismo – erro, falha, engano. Em Platão, o simulacro é o solecismo mesmo, erros, confusões, cópias ruins da mìmesis. Em Deleuze, o solecismo é um corpo ―capaz de gestos que dão a entender o contrário daquilo que indicam‖ (DELEUZE, 1998, p. 293). Assim, um dos aspectos do simulacro é o de permitir a inclusão do corpo do observador na sua observação. Desse posicionamento, simulacro como certo uso de linguagem, Deleuze mostra o que posteriormente chamará de dupla articulação – o surgimento de formas consistentes e assim identificáveis numa atualidade, partindo da fonte sem limites, o caosmo, das formas heterogêneas mas potenciais, ou virtuais. Em termos deleuzianos, a simulação – que Brás Cubas opera como procedimento narrativo ao quebrar o distanciamento entre narrador e leitor na narração das Memórias póstumas.

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Brás Cubas melhor do que ninguém é ―capaz de gestos que dão a entender o contrário daquilo que indicam‖. Seus disfarces discursivos estão baseados em ironia e metalinguagem. Nesse sentido simula a vida, a morte, a sociedade, até a si mesmo, rompendo as fronteiras entre rememorar e inventar. Somos incapazes de identificá-lo pontualmente. Enfim, o homem se dissolve nas letras, no próprio texto. O que fica é linguagem. A contemporaneidade pulveriza tempo-espaçoidentidade, e depois recapitula tudo por meio da linguagem. Brás levou sua vida ao cabo sem nada construir nem deixar por herança ou legado, depois retomou os fatos da vida nas Memórias póstumas onde reduz novamente tudo ao nada. Apenas linguagem. Tudo é discurso e o discurso é vazio, ―coisa que não edifica nem regela‖. Essa leitura do romance pulveriza também qualquer resquìcio auditivo, oral que possa conformar o narrador Brás Cubas ao narrador de Benjamin. Para Deleuze, a noção de representação já não é um valor, pois a mobilidade dos seres e dos conceitos impede a fixação desse modelo aristotélico. Brás Cubas vive a voragem da velocidade, do sim e do não, tudo ao mesmo tempo. Mistura tom grave e solene à zombaria – escreve de forma ―agora austera, logo brincalhona‖ -, sem que fique, dele, ao final, um retrato definitivo. Nisso ele é também pós-moderno: escapa a uma classificação tranquila, excede e exorbita das áreas comuns de classificação. Isso porque o pós-moderno é fragmentário, efêmero, caótico, uma tendência que não se encaixa em lugar nenhum, apesar de ser encontrada em todos os lugares. Portanto, nem ele nem o livro que escreve – entretecido entre ―mais do que passatempo e menos do que apostolado‖ têm

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determinação exata. Nem se empenham em preservar os acontecimentos narrados a fim de que sejam contados em gerações seguintes, nem tampouco há o interesse em fixar o momento histórico em que ocorreram. Portanto, como Brás é o homem que busca a fama, deseja ver seu nome nos vidrinhos de remédio, acarretando o fim de todas as coisas em linguagem, não há mais o homem, mas o simulacro do homem, pois Brás Cubas constrói na sua própria singularidade – defunto autor – uma simulação que causa no leitor a impressão de que a sua morte e a escrita das memórias do além-túmulo, são fatos da realidade. Em outras palavras, Brás simula tudo e nada ao mesmo tempo: diz que escreve memórias, mas antes escreve sobre a produção do gênero memórias, ou, podemos também pensar, escreve sobre os modos de definir e narrar o que denominamos memórias. Aparentemente vê-se um distanciamento entre o narrador e os relatos por ele narrados, mas através de leitura mais acurada percebe-se que não há distanciamento algum, uma vez que narrativa e autor vão sendo elaborados no tecido do texto. Podemos afirmar que a literatura de Machado transcende cronologia e estilo semelhantemente à obra de Brás Cubas, colocando em questão não somente uma experiência vivida, mas também a experiência de criação do texto literário e a experiência de leitura. Enfim, não escrever as memórias, mas sobre o gênero memórias, explicita novamente o primado do texto sobre a vida, algo que os pós-modernos vão enfatizar. A partir dessas considerações, pode-se, ao analisar o texto das Memórias póstumas, encontrar vários intertextos e uma mistura de estilos e de tom que

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conferem a obra o caráter contemporâneo, por conseguinte observar como a memória é tratada no tecido da narrativa. O que mais chama a atenção, nesse caso, é o aspecto, já comentado, de que Brás não escreve com um objetivo, nem de lembrar nem de esquecer como no trabalho de Penélope, mas sim por um simples ato de brincadeira, ele brinca de fazer memória. Entretanto, ao brincar, ele de certo modo rememora seu passado, contudo não como o narrador em Benjamin. Com esse breve estudo, fica apenas aguçada uma possível discussão sobre esses textos e as relações permitidas ou não por ambos. Enfim, o imbricamento literatura e memória na narrativa cambaleante de Brás Cubas é sem dúvida uma característica presente, embora posta sob uma perspectiva diferente da preferida e discutida por Benjamin.

REFERÊNCIAS ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. Editora Ática: São Paulo, 1997. BENJAMIN, Walter. O Narrador. In:________. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre a literatura e a história da cultura. 2ª. ed. São Paulo. Editora Brasiliense, 1986. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. PERRONE-MOISÉ, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978.

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SCHWARZ, Roberto. Que horas são?: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. BAKHTIN, Mikail. Epos e romance. In: Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora UNESP, 1998.

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NOÇÕES DE LEITURA QUE SE ENTRELAÇAM AO ENSINO DA LITERATURA Priscila Vila Flori

Não temos nenhuma pretensão em estabelecer novos critérios conceituais de leitura. Nosso intento é tão somente estimular o debate ao propor uma reflexão acerca do modo como os manuais de literatura participam da escolarização da leitura literária no Ensino Médio; além de pretender estimular o educador a reelaborar a prática pedagógica de fomento à leitura ao pensar/reconhecer a existência das micro relações e micro distâncias do universo das plurissignificações do texto literário. Partindo deste princípio é que articularemos neste artigo um espaço de reflexão que esvazia o centro fixo e propicia a mobilidade do olhar do profissional envolvido na veiculação da leitura literária escolarizada, ao tempo que delineia que o pensar literário não pode ser pura abstração e sugere que ele deve ser uma instância de diálogo. Talvez, esta fala venha a rasurar roteiros de leitura e interpretação de textos estabelecidos nos manuais didáticos -tratados como cânone literário no processo de escolarização- por expressar uma ideia preenchida de significado que neste contexto inevitavelmente é repetida como identidade e construída como diferença. Deste modo, firmaremos discussões que recorre ao projeto de pesquisa

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Modos de ler no ensino de literatura: utopia ou possibilidades?ii que nasce, por sua vez, do interesse em analisar o entendimento de leitura que se faz presente nas propostas de ensino de literatura no nível médio da Educação Básica. Essa preocupação decorre da constatação de que há muitas décadas se fala da crise da leitura na escola, questão que se torna mais gritante quando se destaca a crise da leitura de obras literárias pelos estudantes. Apontado o problema, o certo é que não se chegou a um consenso sobre como ensinar literatura nem tampouco se encontrou caminhos possíveis para se enfrentar um cotidiano escolar cujos estudantes revelam uma resistência em aceitar o ensino de literatura tal como vem sendo desenvolvido. Se para Michel de Certeau o cotidiano é o lugar do enfrentamento, das fulgurações de sentido, (re)inventividade, astúcia e (re)criação, se estamos cientes de que a literatura ―toma‖ a história para revisá-la, para fazer-nos deslocar o nosso olhar, se admitimos o discurso literário como um modo peculiar de representação de realidade, nos inquietamos para entender o lugar da leitura no ambiente escolar. Tal inquietação nos provoca a ponto de questionar o motivo pelo qual o modelo de leitura promovido pela escola – legítima instituição mestra em formar o ―Brasil um paìs de leitores‖ – inibe os diferentes modos de ler. Segundo Stella Maris Bortoni-Ricardo, ―o caminho para uma democracia é a distribuição justa de bens culturais, entre os quais a língua é a mais importante‖ (BORTONI-Ricardo, 1991, p.15). Magda Soares, por sua vez, enfatiza que ―(...) não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do

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escrever, saber responder às exigências de leitura e escrita que a sociedade faz continuamente‖ (SOARES, 2001, p. 20). Para tanto, é necessário investigar o processo de seleção de textos literários na escola, bem como a sua recepção pelos estudantes leitores, no sentido de verificar se as leituras propostas nos livros didáticos são condizentes com o seu meio cotidiano e com todas as diferenças existentes. Para Paulo Freire, ―A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daì que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele‖; ―A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto‖ (FREIRE,1982, p.11-12). Essa compreensão favorecerá o respeito ao educando, que muitas vezes se rebela e resiste a receber conteúdos aplicados em sala de aula por não ver sentido em suas vivências cotidianas. Resta saber se a escola, espaço em que a leitura inevitavelmente está escolarizada, está aberta aos diferentes modos de ler. Importa ainda considerar a possibilidade de viabilizar distintos modos de ler, considerando que a leitura é uma atividade interpretativa. As práticas da leitura na escola devem ser propostas criativas, que contemplem a dimensão do prazer e da alegria, e não algo obrigatório, repleto de conteúdos frios e distantes do contexto do educando e, por vezes, até do educador. A ação e a inserção das comunidades com a perspectiva de uma prática de leitura são muito mais do que proporcionar aulas. Ao contrário, deve-se considerar um trabalho que favoreça a criatividade e inteligência dos leitores.

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O interesse em analisar o entendimento de leitura que se faz presente nas propostas de ensino de literatura visa avaliar a razão pela qual a rejeição dos estudantes, em relação ao ensino de literatura, persiste. Por isso, considero de extrema relevância analisar as propostas de leitura veiculadas nos livros didáticos, instrumento que ainda goza de um prestígio no sistema escolar, particularmente no ensino público do país. Daí que apresento como recorte desse objeto de estudo os livros didáticos mais adotados pelas escolas públicas, levando em consideração o Guia de Avaliação dos Livros Didáticos elaborados pelo Ministério de Educação,iii tanto o publicado no ano de 2008 quanto o recentemente publicado neste início de 2011, o qual se propõe a orientar os professores na escolha dos livros didáticos. Ainda que o Guia esteja voltado para os manuais didáticos da Língua Portuguesa, é importante, para este estudo, ter conhecimento dessas diretrizes, com o intuito de verificar se estes se fazem presentes nos livros destinados ao Ensino Médio. Na base da pesquisa em andamento, encontram-se os seguintes questionamentos: Como se apresentam as práticas de leitura de textos literários inseridos nos livros didáticos de literatura para o Ensino Médio? Que noção de leitura de textos literários veiculadas nos livros didáticos destinados ao Ensino Médio está sendo elaborada? Que concepção de leitura emerge desses manuais? Que lugar se atribui aos leitores nesse processo de escolarização da literatura? A partir dessas inquietações, delineia-se a necessidade de prosseguir investigações de ordem teórica e prática para a elucidação dessas relevantes

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questões. Portanto, o nosso empenho em busca dessas respostas a fim de verificar o modo como os manuais de literatura participam do realizar pedagógico e de que maneira contribui nos processos sociais da contemporaneidade nos permitirá analisar as propostas de leitura de textos literários veiculadas nos livros didáticos destinados ao Ensino Médio, visando entender o lugar do leitor nesse processo de escolarização da literatura. Consideramos que o ato de ler, e seus diferentes modos, vêm a ser um processo interpretativo por parte dos leitores, que atribuem sentidos aos textos lidos, o que se confirma na citação de Coulon (1995, p.17), ao tratar do processo de construção do conhecimento, que consiste ―na busca empìrica dos métodos que os indivíduos utilizam para dar sentido e, ao mesmo tempo, construir suas ações cotidianas: comunicar, tomar decisões, raciocinar‖. Por esta razão é que afirmamos que, provando uma infinidade de possibilidades nas obras que serão vistas e analisadas nas futuras leituras em salas de aula, o trabalho proposto irá acolher a dimensão transgressora da literatura e indicar pistas para o desenvolvimento e geração de novos sentidos para a leitura dos manuais didáticos que a partir daí inevitavelmente irá provocar reconstituição do universo simbólico tanto dos educandos quanto dos educadores. Adotar como cerne de investigação as noções de leitura que se entrelaçam ao ensino de literatura significa dizer que ao assumirmos a leitura como prática cultural, elegemos as noções de leitura, apropriação e prática cultural. Nesse

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sentido, são valiosas as contribuições de Paulo Freire, por conceber ato pedagógico como um ato dialógico em que educadores e educandos participam da escolha dos conteúdos e da construção do currículo. Assim, tem-se uma noção de leitura fundamental em nosso trabalho, já que pretendemos trabalhar com os sujeitos, mas não como se fossem tabulas rasas e sim como seres de história e identidade a ser respeitada. Além disso, esse educador não se limita a analisar como é a educação existente, mas como deveria ser. Outro autor que traz grande colaboração para este entendimento é Tomaz Tadeu da Silva por tratar da questão do currículo em seu livro Documentos de identidade. Para esse estudioso, ―não existe sujeito a não ser como simples e puro resultado de um processo cultural e social‖ (p. 20). O autor apresenta um panorama das teorias do currículo, a partir de vários estudos e autores que abordam a origem do campo do currículo, passando pelas teorias tradicionais, críticas e pós-críticas e trata de modo abrangente cada uma dessas perspectivas, assim como apresenta os principais conceitos e definições por elas enfatizados. Tal abordagem facilita o nosso estudo sobre currículo, apontando-o como sendo ―uma questão de saber, poder e identidade‖ (p. 148), fazendo-nos ver que ainda há uma relação entre as teorias críticas e pós-críticas do currículo: as teorias pós-críticas podem nos ter ensinado que o poder está em toda parte e que é multiforme. As teorias críticas não nos deixam esquecer, entretanto, que algumas formas de poder são visivelmente mais perigosas e ameaçadoras do que outras (p. 147). Na visão do autor, depois de conhecer as teorias críticas e pós-críticas, torna-

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se impossível conceber o currículo de forma ingênua e desvinculado de relações sociais de poder. Para as teorias críticas, isso significa nunca esquecer, por exemplo, a determinação econômica e a busca de liberdade e emancipação; e para as pós-críticas, significa questionar e/ou ampliar muito daquilo que a modernidade nos legou. Contamos também com as contribuições de teóricos da Sociologia da Leitura, a exemplo de Roger Chartier, segundo o qual ―o ato da leitura, [...] supõe uma relação ìntima entre o leitor e um livro‖. (p. 90). Essa perspectiva irá colaborar para pensarmos acerca da leitura imposta na escola, uma prática que contrasta com as diferentes práticas e modos de leituras exercitadas pelos estudantes/leitores. Isso nos leva imediatamente a relacionar o ponto de vista de Hans Robert Jauss, que, ao propor uma estética da recepção, aponta o caráter emancipatório da leitura e as possibilidades e consequências vividas por estes estudantes/leitores ao lidarem com o texto literário escolarizado, vindo a valorizar o papel do leitor na ativação dos sentidos dos textos. Tal valoração provoca o leitor a assumir um papel ativo na construção da ficção. Afirma Wolfang Iser:

As perspectivas do texto visam certamente a um ponto comum de referências e assumem assim o caráter de instruções; o ponto comum de referências, no entanto, não é dado enquanto tal e deve ser por isso imaginado. É nesse ponto que o papel do leitor, delineado na estrutura do texto, ganha seu caráter efetivo. Esse papel ativa atos de imaginação que de certa maneira

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despertam a diversidade referencial das perspectivas da representação e a reúnem no horizonte de sentido (1996, p. 75).

A partir dessa assertiva, o autor afirma que a relação entre texto e leitor se atualiza porque o leitor insere no processo da leitura as informações sobre os efeitos nele provocados. Em conseqüência, essa relação se desenvolve como um processo constante de realizações (ISER, 1996, p.127), tornando então necessário que o professor de literatura não negligencie a sua tarefa de mostrar as possibilidades do texto literário em oferecer um destino que nos conduz a lugares diferentes e inesperados, para além dos condicionamentos da realidade que nos imobiliza. Para tanto, o professor não pode perder de vista a qualidade fundamental da literatura de favorecer o diálogo com os conflitos humanos, percebendo o texto literário como uma estrutura organizada e coerente, capaz de ativar as faculdades sensórias, emotivas e cognitivas do leitor (ISER, 1996, p. 332). Não há dúvidas de que a leitura tem uma repercussão que excede os limites do texto, desencadeando um processo de (trans)formação na subjetividade dos leitores conforme explicita Regina Zilberman:

Caracterizando a experiência estética, Jauss explica por que é lícito pensá-la como propiciadora da emancipação do sujeito: em primeiro lugar, liberta o ser humano dos constrangimentos e da rotina cotidiana; estabelece uma distância entre ele e a realidade convertida em espetáculo; pode preceder a experiência, implicando então a incorporação de novas normas, fundamentais para a atuação na e compreensão da vida prática; e, enfim, é concomitantemente antecipação utópica, quando

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projeta vivências futuras, e reconhecimento retrospectivo, ao preservar o passado e permitir a redescoberta de acontecimentos enterrados (Zilberman, 1989, p. 54).

Prosseguimos nossa investigação buscando discutir as implicações da leitura no ensino da literatura e contamos com as contribuições de Tzvetan Todorov, com a publicação de A literatura em perigo, para justificar a preocupação com o modo pelo qual a literatura tem sido tratada na escola. Ainda nesse contexto, afirma Silva (2003b: 103):

O ensino de leitura sempre pressupõe três fatores: as finalidades, os conteúdos (textos) e as pessoas envolvidas no processo, ou seja, as características dos alunos e da turma a ser trabalhada. Sem a presença desses três fatores, o trabalho com a leitura / literatura corre o risco de se tornar vazio ou um ―receituário‖ em que se repetem esquemas já prontos.

Para compreender as propostas de leitura dos manuais didáticos, fomos ao encontro de Alberto Manguel, o qual declara a forma como se tornou um apaixonado pela leitura e descobrimos o evidente: ―em cada caso é o leitor que lê o sentido, é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifrá-lo‖ (MANGUEL, 1997, p. 19). Continua: ―Envolve não apenas a visão e percepção, mas inferência, julgamento, memória, reconhecimento, conhecimento, experiência e prática‖. ―[...] Ler, então, não é um processo automático de capturar um texto como um papel fotossensível

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captura a luz, mas um processo de reconstrução desconcertante, labiríntico, comum e, contudo, pessoal‖ (MANGUEL, 1997, p. 49: 54). Segundo esse autor, suas ―leituras adolescentes não comportavam tamanha veneração nem rituais tão minuciosos, mas possuíam uma certa solenidade e uma importância secretas que não irei negar agora‖. (MANGUEL, 1997, p. 28.) Abordar o tema leitura, analisando a sua articulação com o ensino da literatura, possibilita uma leitura para além da teoria lingüística e literária; rapidamente concatenamos as idéias apresentadas nesta abordagem também às de Regina Zilberman, Magda Soares, Lígia Chiappini Leite. Não restam dúvidas de que o que temos são vias, diferentes possibilidades de compreensão para posterior ação frente um problema. O que significa que não há um roteiro a ser seguido, um plano de trabalho, mas sim possíveis caminhos teóricos que respondem e co-respondem em parte às necessidades de reflexão que se apresentam na prática pedagógica de cada profissional envolvido com o processo do ensino, que tem como objetivo fomentar o gosto pela leitura nas aulas de literatura. Assim, fica certo para nós, educadores, que é dado o momento de reconhecer que ―a lìngua conecta com o social sendo o domìnio primário da ideologia e sendo tanto o interesse principal de como o lugar em que têm lugar as lutas de poder‖(FAIRCLOUGH: 1989, 15) e agir socialmente em favor das suas possíveis ressignificações.

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REFERÊNCIAS BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. CHARTIER, Roger. (org). Práticas da leitura. Tradução Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. COULON, Alain. Etnometodologia e educação. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1995. DE CERTEAU, M. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1996. FAIRCLOUGHT, Norman. 1989. Language and Power. Harlow: Longman Group UK Limited. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. SP: Cortez, 1982 FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Docente. 24. ed. São Paulo, Paz e Terra,1996. Guia de livros didáticos : PNLD 2009 : Língua Portuguesa. – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2008. Guia de livros didáticos : PNLD 2012 : Língua Portuguesa. – Brasília : Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2011. ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo, Ed.34, 1996. 191 p. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ativa, 1994. LEITE, Chiappini Lígia. Reinvenção da catedral. São Paulo, Cortez, 2005. MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

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SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. 156 p. SILVA, Ezequiel T. da. Leitura na escola e na biblioteca. São Paulo: Papirus, 2003b. SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. São Paulo: Contexto, 2001. TODOROV, Tzvetan. A literatura em perigo. Trad. Caio Meira. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo, Ática, 1989. 124 p. ZILBERMAN, Regina. Leitura e o ensino da literatura. 1ª. ed. São Paulo, Contexto, 1991. 124 p.

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Mestranda em Estudo de Linguagens, bolsista da FAPESB no Programa de Pós Graduação em Estudo de Linguagens na Universidade do Estado da Bahia - Campus I, vinculada ao Diretório dos Grupos de Pesquisa/CNPq por ser pesquisadora do Grupo de Pesquisa Leitura e ensino: tecedo leituras, imprimindo identidades, Especialista em Estudos Linguísticos e Literários pela Faculdade Santíssimo Sacramento (2010) e Graduada em Letras- Licenciatura Plena, Habilitação em Português e Literaturas de Língua Portuguesa- na Universidade do estado da Bahia, Campus II (2008). Endereço para acessar currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/5507164367027032 E-mail [email protected]

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O referido projeto de pesquisa, intitulado Modos de ler no ensino de literatura: utopia ou possibilidades?, ora em andamento, vem sendo desenvolvido por mim na condição de discente bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia no Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens na Universidade do Estado da Bahia. 3

Na seleção dos livros didáticos a serem adotados pelas escolas públicas, do Programa Nacional de Livros Didáticos/PNDL, a Secretaria de Educação Básica do MEC contou com a participação de ―universidades públicas de notório saber na análise de livros didáticos, em cada área do conhecimento‖, cabendo-lhes formar equipes de pareceristas, com ―docentes da educação básica, com qualificação mínima de mestrado, e pesquisadores e professores universitários, com comprovada experiência acadêmica, didática e pedagógica‖. Cada área estabeleceu critérios específicos de avaliação, e o MEC definiu critérios comuns de exclusão: ―correção de conceitos, informações e procedimentos propostos como objetos de ensino e aprendizagem;

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coerência e adequação da abordagem teórico-metodológica assumida pela coleção, no que diz respeito à proposta didático-pedagógica explicitada; adequação da estrutura editorial e do projeto gráfico aos objetivos didático-pedagógicos da coleção; observância das características e finalidades específicas do manual do professor; respeito a preceitos legais e jurídicos, bem como a princípios éticos necessários à construção da cidadania‖. Além desses critérios comuns de exclusão, é ―fator determinante para eliminação de uma determinada obra ou coleção aquela que, nos termos do Edital: veicular preconceitos de condição social, regional, étnico-racial, de gênero, de orientação sexual ou de linguagem, assim como qualquer outra forma de discriminação ou de violação de direitos; fazer doutrinação religiosa ou política, desrespeitando o caráter laico e autônomo do ensino público; utilizar o material escolar como veículo de publicidade ou de difusão de marcas, produtos ou serviços comerciais‖. Cf. www.mec.gov.br, acesso em 14/03/2011.

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A REPRESENTAÇÃO DA CARNAVALIZAÇÃO EM CALABAR Rafael Torres Correia Lima (UFPB) Domingos Fernando Calabar é um personagem muito controverso da nossa história. No século XVII, ele era aliado de Portugal nas conquistas de terras no Brasil, porém mudou de lado, passando a lutar com os holandeses, ou seja, tornou-se aliado do seu antigo inimigo. Por isso, hoje, Calabar é conhecido, para muitos, como sinônimo de traição, enquanto outros acreditam que Calabar não traiu, mas construiu outra aliança em virtude de algumas vantagens, ou comodidade, ou mesmo por ideologia. No início da década de 1970, Chico Buarque e Ruy Guerra decidem tratar desse personagem no teatro, oferecendo, contudo, uma diferente visão tanto para a imagem de Calabar, quanto para o termo ―traição‖. Porém, durante a elaboração da peça, o Brasil passava por um momento político que não era favorável a muitas manifestações artísticas, até porque vários artistas escreviam como meio de protesto contra o regime político imposto no país. E para a peça de Chico e Ruy, chamada Calabar, a censura não abrandou e determinou que a mesma não poderia ser apresentada no início da década de 1970. Somente em 1979 foi que os autores conseguiram a liberação para exibir o espetáculo. No decorrer dessa década, houve mudanças no contexto do país e no teatro. Devido a

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essas mudanças, os autores confessam que também promoveram alterações na história da peça para que não adquirisse um estilo anacrônico. Para esse artigo, temos como objeto de estudo a referida peça teatral. Como objetivo, traçamos dois momentosi. No primeiro, evidenciaremos o modo como a peça foi constituída. No segundo momento, mostraremos como o contexto ditatorial brasileiro está presente em Calabar. Para isso, utilizaremos, como teoria determinante, as categorias expostas por Mikhail Bakhtin sobre a cultura cômica popular, com o propósito de examinar como a carnavalização empregada no texto tem seu lugar e sua função cultural. Bakhtin escreveu uma tese sobre Rabelais que foi publicada em 1965. Nessa tese, o estudioso apresenta informações acerca do contexto cultural vivido por Rabelais, para que possa entender o estilo e a função da obra deste. Para Bakhtin, é fundamental compreender a cultura popular na Idade Média e no Renascimento para interpretar a obra de Rabelais. Caso não fosse realizada essa pesquisa, não seria possível perceber as suas sutilezas populares. Então, ele trabalhou com diversas categorias que se achavam fortemente ligadas a cultura popular da época, como: a história do riso; o vocabulário; as imagens grotescas; o banquete; etc. Porém, o que é de nosso interesse são as três categorias traçadas para interpretar a cultura cômica popular e, a partir disso, entender como essas categorias também estão presentes na obra Calabar, de forma que compreenderemos a função exercida em seu contextoii. As categorias são: as

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formas dos ritos e espetáculos; as obras cômicas verbais; e as diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro. A primeira categoria evidencia o carnaval como a festividade da cultura cômica popular e, juntamente a essa festividade, o riso, que era o modo de negar a cultura oficial (enunciada como ―séria‖). Essas duas denominações formavam o ―riso carnavalesco‖. Segundo Bakhtin (2008, p.8), ―a festa convertia-se na forma de que se revestia a segunda vida do povo, o qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância‖. Não havia, durante o carnaval, hierarquias e pobrezas. Todos eram tratados de maneira igualitária. Esse ―reino‖ tinha como caracterìstica principal o riso. Só estavam envolvidos nas festividades quem risse. Essa festividade carnavalesca pode ser encontrada na obra Calabar. Uma das cenas em que ocorre esse fato é quando o personagem Nassau desembarca no Brasil e é recebido em meio a um carnaval, onde está tocando um frevo chamado Não existe pecado ao sul do Equador, puxado pela personagem Anna em meio ao povo. Nesse momento, o governador Nassau pede para que todo o povo presente se manifeste. Visto que tudo é festa, alguns senhores de engenho perguntam o que o governador poderia fazer em relação a suas produções, pois estavam destruídas, sem máquinas e mão-de-obra.

―SENHOR DE ENGENHO. Muitos de nós, senhores de engenho, tivemos as nossas máquinas destruídas... NASSAU. Reconstituiremos tudo. SENHOR. Não temos dinherio.

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NASSAU. Financiaremos.‖ (BUARQUE; GUERRA, 2009, p. 89)

Mas quando é o povo que pergunta, percebemos uma relação de igualdade junto ao governador, não havendo, durante esse festejo, nenhuma divisão social entre eles, marcado pela informalidade.

―MORADOR. O que o prìncipe achou do Brasil? NASSAU. Un des plus beaux pays du monde! (…) MORADORES. E a mulher brasileira? E a nossa música? E as nossas praias? NASSAU. Foi para retratar tanta beleza que eu trouxe comigo pintores. E arquitetos para construir palácios. E astrônomos para contar as estrelas. E botânicos para cheirar as matas. E naturalistas para estudar as aves...‖ (BUARQUE; GUERRA, 2009, p. 73-74).

Por isso, foi feita uma afirmação que gerou o riso e ao mesmo tempo apresentou a ironia do povo, não levando a sério o governador Nassau. Ao contrário do governador, que aparentava bastante interessado em construir uma ponte para mostrar toda uma grandeza que não passava de ilusão: ―MORADOR. Alteza, há um problema angustiante por aqui: a falta de mulheres... (Risos) Sim, Alteza, e as poucas de que dispomos já pegaram a doença do país... (Mais risos)‖ (BUARQUE; GUERRA, 2009, p. 76) Curioso lembrar que, em nosso contexto, estávamos em meio a uma ditadura, mas especificamente na década do ―milagre econômico brasileiro‖. Durante esse período, o governo de Médici e a ditadura brasileira atingiram seu

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mais alto grau, pois foram alcançados os mais elevados índices de desenvolvimento econômico, mas esse fato não fez crescer socialmente a população nacional, apenas o produto interno bruto (PIB) que, sob uma intensa propaganda política baseada no domínio de toda a imprensa, foi divulgada à população que o Brasil estava crescendo e que o país iria melhorar em todos os setores. Feito essa observação, podemos retomar o texto e perceber um riso carnavalesco mais amplo na cena mencionada. Esse riso, textual e contextual, é escarnecedoriii. Em outra cena, Nassau invade a missa do Frei Manoel e fala novamente na sua ponte, da seguinte forma: ―prometo nestes dias de festa inaugurar a tão ansiada ponte que unirá o Recife a Cidade Maurìcia‖ (BUARQUE; GUERRA, 2009, p.89). Então, o povo desencadeia em uma imensa ―algazarra‖ e ―gargalhadas‖, duvidando da referida ponte, ou seja, o riso é do povo. Em seguida, Nassau sai da missa e fala com o seu engenheiro, este, por sua vez, diz que a ponte está provisoriamente pronta e que já pode ser atravessada. Nesse momento, há um riso universal, onde todos riem. O outro riso, o ambivalente, pode ser compreendido como um riso mais sutil, quando Nassau se refere à ponte dizendo, ―já representas a imagem do Brasil no exterior‖ (BUARQUE; GUERRA, 2009, p.91), pois temos conhecimento da burla presente no enunciado. Bakhtin afirma que é um riso que ataca toda a superioridade. Essa superioridade é entendida como sendo o governo; é um riso de toda a população para a ditadura que pensava estar iludindo os brasileiros com o crescimento econômico.

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Com isso podemos perceber que

O riso carnavalesco é em primeiro lugar do povo; (...) todos riem, o riso é ‗geral‘; em segundo lugar, é universal, atinge a todas as coisas e pessoas, (...) o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo; por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente. (BAKHTIN, 2008, p.10).

Essas três etapas estão ligadas entre si, completando-as, não são etapas distintas. Continuando com Bakhtin (2008, p.11), ―o riso popular ambivalente expressa uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual estão incluìdos os que riem‖. Essas festividades não surgem sem motivo, elas sempre têm uma função e aparecem em momentos específicos. Uma das características das festividades é que

em todas as suas fases históricas, ligaram-se a períodos de crises, de transtorno, na vida da natureza, da sociedade e do homem. A morte e a ressurreição, a alternância e a renovação constituíram sempre os aspectos marcantes da festa. (BAKHTIN, 2008, p.8).

Na obra Calabar, a morte do personagem, que leva o mesmo nome da obra, faz (re)surgir uma questão. O que é traição? Existem níveis de traição? Fazemos essas perguntas para tentar ter uma ideia do significado, na obra, do que foi a

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traição de Calabar. Ele é um personagem que não tem voz, não há defesa, e termina enforcado, a mando de Mathias e acusado de traição pelo motivo que já foi dito no início do artigo. Na obra, não é explicado o porquê da mudança de lado (Portugal → Holanda), mas quando ele está no lado holandês, Mathias (português) diz: ―Eu lhe ofereci o meu perdão / Em ouro, engenho e patente / Se quisesse voltar.‖ (BUARQUE; GUERRA, 2009, p.31). Apesar de toda essa fingida regalia oferecida a Calabar, Mathias apenas teve a rejeição como resposta. Daí pode-se pensar que Calabar era esperto suficiente para saber que voltando ao lado português seria morto, ou que estava muito melhor no lado holandês, ou tinha uma ideologia que estava de acordo com o seu aliado holandês. No final, Calabar termina morto por traição, o que reproduz uma grande ironia, pois a maioria dos personagens (senão todos) trai. Então, surge a voz de Bárbara dizendo a Anna que

é até bom eles pensarem que mataram Calabar. Esquartejaram Calabar e espalharam por aí os seus pedaços. Mas Calabar não é um monte de sebo, não. Eu sei que Calabar deixou uma ideia derramada na terra. A gente da terra sabe dessa ideia, colhe essa ideia e gosta dela, mesmo que ande com ela escondida, bem guardada, feito um mingau esquentando por dentro. A ideia é dessa gente. Os que não gostam da ideia, esses vão se coçar, vão fazer pouco dela, vão achar que é um bicho-do-pé. Depois essa ideia maldita vai começar a aperrear e aperrear o pensamento desses senhores, vai acordar esses senhores no meio da noite. Eles vão dizer: que porra de ideia é essa? Eles então vão querer matar a ideia a pau. Vão amarrar a ideia num poste, vão querer partir a espinha dessa ideia. Mas nem adianta esquartejar a ideia

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e espalhar seus pedaços por aí, porque ela é feito cobra-devidro. E povo sabe e jura que cobra-de-vidro é uma espécie de lagarto, que quando se corta em dois, três, mil pedaços, facilmente se refaz. (BUARQUE; GUERRA, 2009, p.68)

Após essa longa citação, podemos perceber que o discurso é focado na palavra ―ideia‖. Essa ideia pode ser a da ―traição‖ ou um signo ideológico maior, de uma ideia/concepção que possa arruinar o governo, mas ela não fica clara no texto. Pensamos, então, no contexto brasileiro da década de 1970, quando o povo sofria violências, como: perseguições, autoritarismo, repressões, torturas, etc. E poucos sabiam que lado escolhia e de que lado estava os outros, pois, por exemplo, o seu companheiro de luta contra o regime político poderia ser um agente do governo infiltrado para prender os ―traidores‖. Daì surge a ideia de traição que é abordado na obra. A traição tem um sentido dependendo do lado em que você esteja. Calabar traiu os portugueses, mas ele era considerado um heroi para os holandeses. Porém, o importante é que mesmo com a morte de Calabar, a ideia permaneceu, pois a ideia está ―derramada na terra‖. Do mesmo modo persistiu a ideia dos protestantes contra o regime ditatorial brasileiro, muitas pessoas tinham a ideia de desfazê-lo e, embora muitos tenham sido mortos, a sua ideia permaneceu e alcançou outras pessoas que adotaram essa mesma ideia. E por mais que tentassem destruir essa ideia, matando e torturando pessoas, essa ideia crescia e se espalhava como ―cobra-de-vidro‖. Retomemos a categoria que estávamos abordando e observemos o modo como os autores de Calabar utilizaram os risos carnavalescos para tratarem de

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temáticas de grandes dimensões. Produzimos toda essa ―teia‖ entre texto e contexto porque

não basta mais descrever as relações dos textos (ou mesmo dos espetáculos), entender o seu funcionamento interno; é preciso da mesma forma, e acima de tudo, compreender a sua inserção nos contextos e culturas, bem como analisar a produção cultural que resulta desses deslocamentos imprevistos (PAVIS, 2008, p.2).

Passemos, agora, a analisar a próxima categoria. A segunda categoria é aplicada a obras cômicas verbais em latim ou língua vulgar, podendo ser oral ou escrita. Apropriando-se das observações de Bakhtin feitas para o contexto da Idade Média e do Renascimento, podemos empregá-las na obra Calabar examinando a linguagem vulgar utilizada e a sua função no contexto. Conforme Bakhtin (2008, p.12), o carnaval determina os homens ―a renegar de certo modo a sua condição social (como monge, clérigo ou erudito) e a contemplar o mundo de uma perspectiva cômica e carnavalesca.‖ Repetimos: as divisões de classes, no mundo carnavalesco, extinguem-se, tornando-se todos iguais. Um dos meios de demonstrar esse mundo carnavalesco é parodiando ―todos os elementos do culto e do dogma religioso‖ (BAKHTIN, 2008, p.12). Na obra de Buarque e Guerra, a paródia a essa cerimônia ocorre em diversos momentos, vejamos alguns. O primeiro ato da obra inicia com uma missa

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celebrada pelo frei Manoel. Nessa missa há jogo de luz e de som interessantes, utilizados para enfatizar caracterìsticas incompatìveis. ―Luz em crescendo sobre MATHIAS DE ALBUQUERQUE, que se barbeia. Um ESCRIVÃO a seus pés. Um vulto num instrumento de tortura. Gemidos e coro de moradores, no escuro, sublinham o sermão do FREI.‖ (BUARQUE; GUERRA, 2009, p. 29). No jogo de luz, a missa acontece em plena escuridão, enquanto a luz foca Mathias de Albuquerque se barbeando e falando para o escrivão escrever uma carta dirigida a Calabar, ao mesmo tempo em que se questiona o porquê de Calabar ter mudado de lado. Sabendo que a luz dá destaque a ação, a cena de Mathias falando da traição de Calabar e escrevendo uma carta, ao mesmo, tem mais importância do que uma missa. No jogo de som, percebemos que se passam várias cenas simultaneamente, sucedendo, nesse manejo, a paródia sacra, pois, enquanto o frei realiza um sermão perante os moradores, sermão este que não tem nada de religioso e sim político, há, em outra cena, a fala de Mathias e, em outra, a morte de um prisioneiro, por dois soldados, acompanhada por gemidos e, ao mesmo tempo, o coro dos moradores. Ou seja, a missa está acontecendo no mesmo instante em que o prisioneiro está sendo morto. A ironia dá-se porque a missa é celebrada através de um sermão político e não religioso. Quando analisamos a fala do frei, compreendemos que o mesmo defende o lado português, julgando os holandeses de pecadores e Calabar de traidor. Interessante notar que, em meio à música religiosa, quando o frei começa a falar

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de Calabar, ela é interrompida e a luz foca a ―silhueta de uma mulher, cujos gestos simulam o ato de amor‖ (BUARQUE; GUERRA, 2009, p.32, grifos dos autores). Essa missa inicial sugere, quando conduzimos para o contexto, a época em que a ditadura censura todos os meios de imprensa, visto que havia agentes de propaganda para enaltecer o governo. O papel do frei, ao celebrar a missa, era semelhante à desses agentes, elogiar os portugueses (atual governo) e difamar os holandeses e Calabar. Na época em que se passa o enredo do espetáculo, a missa era o mais eficaz meio de comunicação e atingia o maior número de pessoas, por isso era usada como artifício político. Na ditadura, os meios de comunicação que imprimiam maior força eram os jornais, rádio e televisão, por isso foram censurados e utilizados pelo governo para enaltecê-lo. Além disso, as igrejas, assim como alguns empresários, apoiavam a ditadura e faziam das missas, palanques. Outra paródia, empregada na obra, encontra-se, ainda durante a cerimônia, após a fala do frei, em que entra em cena a festividade carnavalesca, no momento que ―explode um barulho bacanalesco, no qual se sobressai uma estridente gargalhada de ANNA DE AMSTERDÃ. Na cabeceira da mesa desponta a figura do chefe holandês.‖ (BUARQUE; GUERRA, 2009, p.33, grifos dos autores). A fala do chefe holandês e de Anna junto ao coro é organizada como soleniza uma missa, como se fosse a realização de um ―Salmo Responsorial‖, onde os versìculos do Salmo são ditos por um representante e acompanhado pelo povo por refrões. A missa, no texto, é em meio a um banquete que, antes da fala do chefe holandês, estava

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acontecendo uma orgia. Essa cena revela o riso presente na obra, insinuando um escárnio a toda a forma de poder e opressão exercida pelo governo. Outro ponto que Bakhtin (2008, p.13) enfatiza nessa segunda categoria são ―os diferentes gêneros da retórica cômica [como os] ‗debates‘ carnavalescos, disputas, diálogos, ‗elogios‘ cômicos, etc.‖. Todas essas caracterìsticas citadas por Bakhtin podem ser encontradas em uma cena do texto dramático em que ocorre o conflito entre Mathias e o holandês. Esse embate é gerado após o português armar uma emboscada para o holandês e a cena se passa no instante em que este se rende da luta, havendo um diálogo que podemos adjetivar de carnavalesco, por empregar a comicidade. O diálogo é sobre os dejetos expelidos pelos dois; há, também, o elogio, de ambas as partes, das fezes um do outro.

―HOLANDÊS. (...) (Começa a se contorcer) Falou no bicho? (Caga). MATHIAS (Olhando no vaso do outro). Das boas... HOLANDÊS (Conferindo). Costuma ser mais amarelada... MATHIAS. Tem vários matizes. A minha é um arco-ìris.‖ (BUARQUE; GUERRA, 2009, p. 42).

Após esse diálogo, eles voltam a debater, porém não é um debate armado, mas por palavras que podem ser consideradas grosseiras (para não dizer grotescas), que causam o riso. Por exemplo, eles debatem como se prepara ―uma ratazana à brasileira‖ e depois o holandês tenta negociar ―algumas ações da Companhia [das Índias Orientais]‖. A disputa continua quando eles começam a falar das doenças dos próprios países como forma de se auto-engrandecer.

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Trazendo para o contexto da década de 1970, essa cena pode insinuar que os

governantes

não estavam

preocupados em

discutir

interesses

que

favorecessem ao povo, mas em debater asneiras que apenas importavam a eles mesmos. E os autores da obra se utilizaram desse procedimento carnavalesco para burlar os próprios governantes militares. À última categoria, Bakhtin destina ao vocabulário grosseiro, como os insultos e as blasfêmias. Para ele,

durante o carnaval nas praças públicas a abolição provisória das diferenças e barreiras hierárquicas entre as pessoas e a eliminação de certas regras e tabus vigentes na vida cotidiana criavam um tipo especial de comunicação ao mesmo tempo ideal e real entre as pessoas, impossível de estabelecer na vida ordinária. (BAKHTIN, 2008, p.14).

Essa comunicação ―ideal e real entre as pessoas‖ pode ser constatada em Calabar ao vermos festas promovidas por chefes governantes, como o holandês, em que há a presença de Anna de Amsterdã (uma prostituta). Outro fato que nos remete ao carnaval como eliminação das diferenças hierárquicas, pode ser encontrado no momento da chegada de Nassau, no qual existe um diálogo com o povoiv. Em relação aos vocábulos, Bakhtin (2008, p.15) diz que ―as grosserias blasfematórias [eram] dirigidas às divindades e que constituíam um elemento necessário dos cultos cômicos mais antigos‖. Esse tipo de grosseria pode ser encontrado, na obra, na fala do holandês ao se referir tanto ao soldado Sebastião

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Souto quanto ao frei Manoel. O holandês insulta o soldado por ser um traidor, por levá-lo a uma emboscada portuguesa. Ele fala que Sebastião é um ―filho da puta‖. Já para o frei (representante do divino), o holandês diz que o ―padreco‖ é um ―bom filho duma égua! Canalhas! Corja de traidores!‖ (BUARQUE; GUERRA, 2009, p.43). Esses palavrões, que citamos, servem, no texto, como um modo de revelação, no sentido de questionar o significado de ―traição‖, visto que o único ―traidor‖ julgado foi Calabar. Outras referências aos vocabulários/gestos grosseiros são atribuídas aos mais variados personagens, como quando Mathias, indignado com Calabar, fala que só ―faltou lamber o saco daquele mulato‖, ou mesmo quando o holandês abandona a disputa contra Mathias e ―levanta-se, faz uma banana para o frei e sai‖, ou ainda quando Anna descreve de forma grotesca a morte de Calabar da seguinte maneira: ―Ele morreu de morte matada, estrebuchou e tudo, as vísceras saindo pela boca (...) e quando o nó fechou, o pau ficou duro‖ (BUARQUE; GUERRA, 2009, p.67). Em outro momento, o consultor de Nassau inferioriza o ―nascimento‖ dos portugueses perante o frei, que pelo que tudo indica é português, dizendo que ―o português nasceu da ventosidade de um judeu‖ (BUARQUE; GUERRA, 2009, p.92). Entretanto, todas essas ofensas não tinham o objetivo apenas de rebaixar, mas também de renovar. Pegaremos a última cena citada para exemplificar. Os portugueses achavam que eram grandes, como exploradores marítimos e territoriais, e a fala do holandês surge exatamente para diminuir o patamar em que eles pensavam estar e igualá-los aos outros povos. Assim, quando o

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holandês, no primeiro ato, perde a batalha e chama todos de ―corja de traidores‖, renovamos, a partir da degradação, o significado de ―traidor‖ e somos obrigados a refletir o que significa a palavra ―traidor‖ em meio a tantos traidores. Com isso, tentamos demonstrar como a carnavalização, exposta por Bakhtin para analisar a obra de Rabelais, está presente na arte do século XX para, de certa forma, revelar, através do riso, o contexto político, social e cultural ao qual atravessava o Brasil na década de 1970. A partir da ironia que circula em todos os momentos do texto, percebemos que o signo da traição exerce uma funcionalidade dependendo da perspectiva de quem julga. E através do escárnio carnavalesco foi possível detectar caminhos traçados pela nossa colonização e pela ditadura que se regeu no país. Enfim, a ficção continua demonstrando que o fenômeno artístico não se restringe apenas ao texto, mas, também, ao nível do contexto.

REFERÊNCIAS 1.

Bibliográficas:

BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Calabar. 34. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. BAKHTIN, Mikhail Mikhaliovitch. A cultura cômica popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais. 6. ed. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.

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PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. Tradução de Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2008.

2.

Eletrônicas:

Disponível em . Acesso em: 01/02/2010. i

Apesar de, aparentemente, os momentos serem divididos, procuraremos trabalhá-los juntos para dar uma visão mais precisa da união entre texto e contexto. ii

Importante destacar que essas categorias traçadas por Bakhtin são referentes à cultura da Idade Média e do Renascimento, e dessa forma será explicada. Porém, trabalharemos para entender uma obra do século XX e seu contexto, portanto poderá haver algumas modificações na explicação das categorias, mas nenhuma que altere a sua essência. iii

Explicaremos mais a frente o motivo.

iv

Esse diálogo foi visto mais acima.

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PATRIARCALISMO: O DISRCURSO DO EXCLUÍDO EM VLADIMIR SOUZA CARVALHO Rafaela Felex Diniz Gomes Monteiro de Fariasi

Vladimir Souza Carvalho, autor sergipano, nascido na cidade de Itabaiana está inserido na temática de romances regionalistas. Esse romancista itabaianense tem um estilo singular de escrita, pois consegue abordar em suas obras o real e o fantástico sem perder de vista a crítica histórica, cultural e social do homem do interior sergipano em especial da cidade de Itabaianaii- SE. Carvalho (2007) possui um gosto por trabalhar conflitos humanos sempre tendo em cena um personagem excluído. Os dramas de seus personagens geralmente estão ligados a determinadas problemáticas das instituições sociais. Seus contos muitas vezes abordam as crises de identidade, assim como, a busca frequente do eu no locus social. Geralmente em suas obras a escritor focaliza um momento particular de seus personagens, a partir de uma dramática percepção distorcida da realidade ou densas revelações subjetivas focalizadas de forma irônica, impondo uma ruptura brusca entre a lucidez e os devaneios

O estilo de escrita de Carvalho (2007) é preciso e conciso, marcado pelos períodos curtos e pela eficiência narrativa. O autor consegue uma amplitude temática na qual consegue diferenciados pontos de abordagem,

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principalmente no que diz respeito ao processo psicológico que é facilitado pela narração em primeira pessoa. Em muitas vezes aposta em uma distância somítica de comentários, de modo a se apropriar do melhor modo possível do drama humano que registra, recriando-o em alguns momentos com assumida mediação do real e do subjetivo, o fantástico e o fantasioso. A obra Água de Cabaçaiii possui trinta e um contos, sendo divididos em dois eixos temáticos que são: o fantástico e o memorialista. A Praça, que é o conto em análise insere-se nos contos de memória. Nesse conto o autor consegue registrar a cultura local e o poder patriarcal da região. E é a partir da análise deste conto que centraremos o nosso trabalho. A Praça apresenta a história de Marivalda uma mulher do interior nordestino que sempre foi prisioneira na sua própria casa. O pai, símbolo da repressão e autoritarismo, censurava-a e a mantinha encarcerada em seu próprio lar. Sem nunca sair de casa a personagem viveu sem ir à escola, proibida de amizades e principalmente de ir à Praça, local que representava a sua tão sonhada liberdade. Devido a sua prisão domiciliar, o corpo de Marivalda engordou demais devido à vida sedentária. Não casou algo incomum para muitas mulheres daquela região, não teve contato mais íntimo com homens, sofre de alucinações (sonhava com um cachorro copulando em uma cadela), seu corpo pedia sexo, mas criada com tanta repressão, não soube direito o que sentia ao certo. Chegou a

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andar nua pela sala,seu corpo ardia, suava, grunhia feito animal em cio, desesperado. Com a morte de sua mãe, Marivalda, viu o movimento em casa algo que raramente acontecia. Estranhamente gostou do velório: viu gente. O pai agora sozinho e sem ajuda de sua esposa sofreria com os delírios da filha, chamado-a safada, amaldiçoa a vida e deseja a morte. Tanto deseja que o destino de todos os homens lhe vem ao encontro (a morte). A personagem neste conto é a representação da disciplina e invisibilidade dos corpos. O corpo invisível é o mais submisso da narrativa de Carvalho (2007). De acordo com Elódia Xavier, esse corpo é totalmente excluído, não sente, não pensa, não questiona, é totalmente apagado do lócus social. ―É a inexistência da mulher como sujeito do próprio destino‖ (XAVIER, 2007, p. 34), nesse caso o pai de Marivalda é senhor dos destinos de todos os membros da família.

A disciplina e invisibilidade do corpo feminino é um princípio de controle da produção do discurso. Eles fixam os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma re- atualização permanente das regras. O discurso moral fixa limites muitas vezes por períodos indeterminados. Essas adequações corporais instituem ao sujeito um tipo de prática que determina o que falam , pensam e como agem ao mesmo tempo em que estabelece papéis singulares e propriedades preestabelecidas no contexto histórico-social no qual estão inseridas.

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Para a rigidez e controle de Marivalda, tudo que é produzido pelo meio externo é considerado foco de imoralidade, por isso, para o pai, toda influência externa deve ser combatida para não afetar os indivíduos de boa moral como ele mesmo identifica-se. Dessa forma a personagem concebe que a sociedade é um veículo formador de opinião que deturpa os valores familiares até então atribuídos. Esse olhar do personagem é parte de um universo cultural no qual, ―os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem‖ (FOUCAULT, 2006, p. 52-3). Para combater o que chama de promiscuidade, o Pai, critica as influências externas que conspurcam os cidadãos de boa conduta, sendo as maiores vítimas as mulheres pertencentes ao núcleo familiar que sofrem com as repressões e anulações impostas pelo homem. A família do interior nordestino é forjada a partir do modelo patriarcal, como foi exposto anteriormente, o padrão marital burguês é baseado em ideias tradicionais do homem protetor como afirma Xavier (2006), essa característica do homem protetor é também abordada na obra de Michel Foucault, que segundo o autor desde a Antiguidade o homem é tido como o provedor e senhor da família nuclear. Essas atribuições do homem como chefe do lar aos poucos foi ganhando força e alimentando o sentimento de autoritarismo exercido pelo pai. O homem é

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o agente excludente dos outros membros familiares, pois ironicamente é dado, ao chefe dá família o poder de controle e manutenção do núcleo familiar. A família representada no conto é composta por um núcleo repressor que condiciona o ser de acordo com sua realidade tornando assim suas ações muitas vezes conflitantes e repressoras. No conto, a mulher é uma dos focos principais dessa opressão, geralmente a problemática feminina é bastante abordada em vários textos de autoria modernista regionalista. Em nosso caso, o personagem em conflito é Marivalda, que representa o discurso demagogo, irônico e excludente de seu pai.

A família tradicional nordestina baseada no patriarcalismo tem sido alvo da crítica dessa narrativa regionalista. Os conflitos familiares geralmente causam traumas psicológicos difíceis de serem sanados, deixando marcas pela vida inteira, excluindo aquilo que o indivíduo tem de precioso, o seu eu-sexual ,assim como também, o seu eu- social. Há algumas abordagens desses conflitos, na obra de Carvalho, principalmente porque por meio do seu conto ―A Praça‖, conseguimos tornar externos os efeitos de repressão sofridos pelas mulheres ao longo dos anos. Como foi dito anteriormente, a família torna-se o núcleo dos conflitos vividos pelos seus personagens nesse conto, pois, Marivalda, uma mulher absorvida pela vida, está condenada a viver o resto dos seus dias policiando todos os seus atos e desejos mais íntimos, havendo uma inadaptação da

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personagem em relação às mudanças que estão ocorrendo com seu corpo, principalmente no aflorar de sua sexualidade. A personagem está em constante vigilância, não pode baixar a guarda, precisa a todo custo deter as más influências, o sexo, está em todos os lugares é preciso manter o corpo vigiado, o muro está próximo, o sexo está por perto. De acordo com Hall (1999), as sociedades que tiveram uma modernidade tardia, assim como o Brasil, são caracterizadas pelas "diferenças", que são associadas por divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes "posições de sujeito" - isto é, identidades - para os indivíduos. Se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos

e

identidades

podem

sob

certas

circunstâncias

ser

conjuntamente articulados. Mas essa articulação é sempre parcial, pois a estrutura da identidade permanece aberta, que Hall (1999) classifica de pós-moderna. Esta é uma concepção de identidade muito diferente e muito mais perturbadora e provisória do que as duas anteriores. Marivalda posiciona toda a narrativa em oposição a esse estado provisório da identidade colocando-se como um ser, dominado por um dono de uma verdade e de

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uma forma ideal de controlar o mundo, que segundo Hall (1999) é denominada de identidade iluminista. Entretanto, isso não deveria desencorajar Marivalda, já que o deslocamento tem características positivas. Hall desarticula as identidades estáveis do passado, mas também abre a possibilidade de novas articulações, pois sugere a criação de novas identidades, isto é, a produção de novos sujeitos. Talvez, nesse sentido, podemos entender o ponto vista irônico do pai que se constrói como um absurdo. Essa crítica aos desejos que impõe padrões disciplinantes é pertinente, mas o lugar que ele elege para construir sua argumentação é autoritarista, por isso, também vergonhosa. Para concluir essa relação entre identidade e gênero, podemos partir das reflexões de Homi Bhabha (1998), que enfatiza a ideia de nação como um dos elementos responsáveis pela formação da identificação cultural de um povo. Para ele, a nação passa a ser o local da cultura, que impõe ao sujeito uma forma de vida mais complexa e mais simbólica. Por mais que a identidade do indivíduo seja construída por hibridismos culturais, há aqueles que ainda não se adequam as mudanças ocorridas na sociedade moderna. Segundo

Bhabha

(1998),

as

identificações

culturais

são

diversificadas, formadas por estratégias complexas e interpelações

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discursivas que interagem, ou em nome do povo, ou da nação, tornando-os assim, sujeitos sociais propícios a serem objetos de uma vasta série de narrativas sociais e por fim literárias. Se a nação é medida da modernidade cultural, e que o sujeito social é alegoria nacional de uma coletividade, então podemos afirmar que, se o indivíduo é parte do coletivo, a partir do momento em que se coloca fora desse senso comum, torna-se quase que obrigatoriamente um estranho para o seu próprio meio, língua, sexo e identidade. Portanto, sem perceber esse sujeito social é sombra da nação que se projeta sobre ele a condição de exílio. Esses indivíduos como Marivalda que vivem à margem do seu contexto cultural, vivem uma duplicidade metafórica, que se movem através de uma temporalidade cheias de representações, significados culturais e sociais sem uma lógica causal centrada. Esse tipo de sujeito que faz parte do discurso cultural emergente que está separado do que os teóricos culturais chamam de ambivalência entre o pedagógico e o performativo. Essas pessoas possuem práticas residuais que estão às margens das experiências contemporâneas da sociedade, pois ―sua emergência depende de um tipo de elipse social; seu poder de transformação depende do fato de estarem deslocados historicamente‖ (BHABHA, 1998, p. 210).

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Em casos como os de Marivalda, o sujeito é obrigado a esquecer o passado e adequar-se ao presente, que não é contínuo, mas uma sucessão de sincronia deve tentar desapegar-se da tradição e tentar esquecer questões problemáticas, que são estranhas ao ambiente em que vive o sujeito, dessa forma é obrigado a negar um passado histórico cuja tradição discursiva não se adequa mais, criando uma unidade fantasmagórica de uma temporalidade de duplicação na construção do presente cultural. Essa dupla temporalidade é vista como negativa, por construir no indivíduo uma ―identidade parcial‖, não deixando o mesmo usufruir, ou compreender a mudanças que estão ocorrendo no meio em vive, portanto, o ser alienante torna-se um sujeito contraditório e ironizado. A diferença cultural não é simplesmente uma questão de oposição ou de tradições distintas, porque essa distinção social deve ser negociada ao invés de negada, e essa diferença cultural é propicia a um cenário de articulação e multiplicidades. O processo de leitura do conto é uma experiência que pode atualizar a posição de Marivalda, pois o sujeito do discurso é construído pelo processo de substituição, deslocamento e projeção. Em oposição a ponto de vista de Marivalda, cabe ao leitor manter-se aberto a espaços que suplementem seus saberes já estabelecidos e canonizados, devemos nos manter abertos ao lugar do hibridismo e dos deslocamentos histórico-culturais, para convivermos com as várias perplexidades do nosso tempo sem maiores crises e deslocamentos.

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Percebemos na obra de Carvalho (2007) que a literatura é construída com a prerrogativa de tornar válido a analise social de forma muitas vezes transgressora ao construir seus personagens de maneira irônica e com engajamento político e social da realidade nordestina. Finalmente trabalhar a sexualidade, a família, assim como as obras de autoria de Carvalho (2007), foram de grande importância para entender a cultura patriarcal nordestina, já que descobrir construção dos corpos e da identidade feminina é de extrema importância social, cultural e histórica. E Carvalho (2007) por meio da sua narrativa subjetiva e transgressora consegue passar ao leitor um prazer significativo, angustiante e complexo da construção do corpo da mulher nordestina.

REFERÊNCIAS BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In LOURO, Guaraci Lopes. O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. _______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. _______. Variações sobre sexo e gênero: Beauvoir, Witting e Foucault. In: Benhabid (org). Feminismo como crítica da Modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1988. CARROZZA, Elza. Esse incrível jogo do amor. São Paulo: Hucitec, 1992.

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COELHO, Nelly Novaes. “As horas nuas‟: a falência da razão ordenadora”. In: A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi.Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam ávila, Eliane Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves.Belo Horizonte: UFMG, 1998. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kuhner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987.

FOUCAULT, Michel. A mulher e os rapazes da história da sexualidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. ______. A ordem do discurso. 14 ed. São Paulo: Loyola, 2006. ______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J.A Guilhon Albuquerque.Rio de Janeiro: Graal, 1998. ______.Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 3ª ed. Rio de Janeiro: DP&A.1999 ________, Stuart. Quem precisa da identidade? In SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença. Petrópolis: Vozes. 2000

PAES, Maria Helena Simões. A década de 60: rebeldia, contestação e repressão política. 4 ed.São Paulo:Ática, 2004.

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XAVIER, Elódia. A família no banco dos réus. In: Revista Eletrônica Interdisciplinar, Itabaiana: EdNUL, 2006. Acessada em julho de 2007. Endereço eletrônico: http://www.posgrap.ufs.br/periodicos/links/edic_interdisc.htm i

Rafaela Felex D.G. M de Farias é aluna regular do mestrado em Letras pela Universidade Federal de Sergipe

ii

Itabaiana-SE, cidade pertence ao agreste sergipano.

iii

Água de Cabaça – livro de contos , possui trinta e contos.Muitos de seus contos retratam a história local do Estado de Sergipe.

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JEHOVÁ DE CARVALHO: LITERATURA, CIDADE E BOEMIA Raimundo Dalvo Costa (UNEB)

Jehová de Carvalho nasceu em Santa Maria da Vitória, Bahia, na década de 30 do século passado, e recebeu uma formação religiosa presbiteriana. Aos quatorze anos, chegou a Salvador e, mais tarde, tornou-se jornalista, pertencendo à redação de alguns jornais da Capital. O primeiro foi A Crítica, que, segundo Jehová, era um jornal combativo e político e de apoio às atividades populares, além de ser contra o governo de Régis Pacheco. No ano de 1954, Jorge Calmon convida o jovem jornalista para trabalhar no Jornal A Tarde, o mais importante do Norte e Nordeste do Brasil, desenvolvendo atividades de revisor, redator, repórter especial para assuntos da cidade, logo surgindo a oportunidade para cobrir reportagens de cunho policial. No Diário de Noticias, desenvolve a função de chefe de reportagem. Em ambos (A Tarde e Diário de Notícias), assinou as colunas ―A cidade que não dorme‖, ―Foro‖ e ―Velha e Nova Bahia‖, além da folclórica ―Bahia, beco e boteco‖. A ―Foro‖ cuidava de assuntos forenses e tecia comentários sobre fatos momentosos ocorrentes no universo do Judiciário. Quanto às outras colunas, traziam crônicas, poesias e histórias da cidade boêmia vivenciada pelo jornalista, intelectuais e pessoas do povo. Em 1957, foi integrante da primeira redação do Jornal da Bahia e, em seguida, foi convidado para o Jornal Tribuna da Bahia. Na imprensa nacional, trabalhou na famosa Revista O Cruzeiro,

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na sucursal do Estado da Bahia, ressaltando-se a edição sobre a Bahia, no ano de 1971. Na década de 70, concluiu o curso de Direito. Jehová, em razão de ter uma ligação com os mais humildes e trabalhar em causas populares, passou a ser conhecido como o ―pai dos pobres‖. Transitava no meio de intelectuais brasileiros e, em muitos momentos, conviveu com Grande Othelo, Mário Lago e com o amigo Jorge Amado, tendo sido personagem de algumas obras deste. A sua paixão pela literatura o fez escrever alguns livros, como citados a seguir: Um passo na noite, com prefácio de Jorge Amado. Alguns poemas presentes nesse livro foram considerados na época, 1964, estranhos e desafiadores à ditadura militar; A cidade que não dorme: crônicas noturnas de São Salvador da Bahia: como bem disse Carlos Drummond de Andrade (Carvalho,1994, p.18), na abertura desse livro, ―[...] é a Bahia em toda a sua beleza luso-africana. A crônica ‗Do carroceiro Diodé no Largo do Ouro‘ traz a leveza da prosa de Rubem Braga. Apenas os elementos ambientais são marcados pela cor do dendê e pelos mistérios dos orixás‖. Nessa obra, a cidade e a cultura popular surgem na voz do poeta de forma dinâmica, destacando elementos da história e da cultura da Bahia de então; A Reinvenção do Reino dos Voduns trata sobre a conciliação linguística e semântica entre as remanescências jeje-nagôs e a língua portuguesa, em sua expressão baiana e brasileira, sendo, na verdade, uma coletânea de poemas; e, por último, o livro Memória da Cantina da Lua, que são lembranças e momentos vividos por Jehová de Carvalho ao lado de boêmios e intelectuais da Cidade da

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Bahia, como dizia Jorge Amado. O escritor também fez um pequeno glossário de gírias baianas, que pode ser encontrado em anexo no livro Um passo na noite. Observamos, na história de Jehová de Carvalho, questões intrigantes para esclarecer particularidades da sua vida, que não deixam de estar ligadas diretamente às mudanças da história de Salvador naquele período. Sendo um homem popular, ele tinha a preocupação de vivenciar a cidade, guardando em sua memória e nos seus trabalhos literários momentos significativos de sua vida e da mudança urbana e cultural da cidade. Viveu em uma época em que quase todas as grandes capitais do Brasil passavam por mudanças significativas como o surgimento da indústria, o crescimento populacional, o aumento da classe média e do consumo e a saída de muitos trabalhadores do campo para a cidade. Correlacionados a tudo isso, estavam os conflitos e os problemas sociais. Salvador não foi diferente nesse período. Já apresentava sinais de mudanças desde o início do século XX, passando a se intensificar entre as décadas de 40 e 70 um momento de afirmação e ―modernidade‖ nas grandes capitais. A política desenvolvimentista de JK exaltava o progresso em detrimento do atraso nacional. Apesar de todo esse movimento em prol do avanço do País, Salvador tinha seu ritmo próprio de crescimento, lento e gradual. Nos períodos de 40 e 50, não podemos falar em industrialização em Salvador, mas de uma economia agrária que dava funcionalidade ao comércio com o apoio dos bancos, tão

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presentes na vida dos negócios. Desse modo, o ritmo é provinciano, marcado por uma cultura ainda com fortes traços rurais. Jehová de Carvalho percebia uma Salvador, como ele mesmo disse, ―remansosa, onde se podia andar altas horas da noite sem muita preocupação... o cardápio se chamava menu‖. A palavra francesa menu já fazia parte do imaginário social dos mais abastados que, utilizando este termo, mostravam o novo modelo urbano de cidade, mesmo que este fosse importado. A influência estrangeira, tìpica da época ―modernista‖ que atingia as grandes capitais do Brasil, não conseguia esconder a desigualdade social em Salvador e, por mais que ditasse modos de comportamento, parecia existir, na Capital baiana, uma identidade cultural enraizada no povo, independente da classe social e que resistia aos modelos culturais importados. A crônica de ―De que é feita esta cidade?‖ confirma essa afirmação: De que é feita esta cidade, senhorita? Responde a poetisa Lina Gadelha: – De dendê, se realmente o senhor quer saber. A resposta alcança a dimensão exata da natureza da Cidade de São Salvador da Bahia de todos os Santos, enganchada nos altiplanos e pendurada nas encostas, povo espantado entre o desenvolvimento que chega e a tradição que lhe caracteriza, mais que outros elementos, uma cultura que veio a influir, ao menos em certos momentos de sua história, no comportamento brasileiro. O escritor Carlos Torres, como todos os baianos, mesmo os que se ilustram e vivem em outros centros – e não são poucos – é, em plena Rua Chile, uma projeção do nosso azeite, na fala mansa, nas frases de espírito dos bate-papos da esquina do

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Palácio. Aí onde até cartas já recebeu pelo Correio, ele vê os jovens duas gerações além da sua e aponta: – É o neto do comendador Pedreira. Deve ter chegado da Europa para uns dias aqui. Não nega o jeitão baiano: olhe o andar dele e ouça como o Rê que pronuncia parece trazer a garganta para a língua! Carlos Torres faz parte de um grupo de aposentados do serviço público que, nessa mesma esquina, se reúne, às cinco horas da tarde, quando a Bahia é todo um espectro de luz, portanto uma profusão de cores que, dos sapatos das mulatas safra 72, sobem aos cintos dos comerciários e se perdem na gravata dos moços que já estão colocando seus vinte e cinco, trinta e cinco anos, à disposição da direção dos institutos de ciências nas universidades, das gerencias de empresas[...] das entidades que operam em mercado de capital. Depois do chope, em casas com feição do Caxixi – lanchonetes adaptadas ao gosto baiano –, onde o mulato Manoel repete a postura dos outros colegas de ramo, contando estórias e anedotas, dobrado sobre a registradora, toda essa gente nova entra nos automóveis de luxo, exibindo prosperidade pela Avenida Sete de Setembro, Rua Carlos Gomes, Campo Grande, Barra Avenida, já invadidas pelo crepúsculo que vem dos lados do Forte de São Marcelo, Forte Lagartixa, Forte da Barra. Os moços que subiam os andaimes, equilibrando-se no ar, com o privilégio apenas de ver, sobre aqueles outros, os primeiros instantes da manhã e a última nesga do sol, encompridam-se nas filas do Terminais para a viagem penosa dos ônibus, parando em cada curva em busca dos Bairros de São Caetano, Uruguai, Retiro, Stiep, Boca do Rio, Cabula, aqui onde as laranjas pareciam nascer das colméias que proliferam, entre os Dois Leões e o Beiru, ao longo da bacia do Camurugipe. Mas se opta o operário por uma pausa em que é necessária a comunicação da alegria, pelo fim de um dia de trabalho duro, nas oficinas mecânicas, na construção civil, nas estucarias – que na Bahia ainda se lapidam mármore e a cruz das sepulturas –, é só descer a Baixa dos Sapateiros, onde um palhaço de pernas de

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pau ainda faz reclames das padronagens das lojas antigas[... ] (CARVALHO, 1994, p.23 )

O olhar do cronista identifica que nem todos são filhos de comendador. Os territórios da cidade estão bem delimitados. As transformações da cidade, com o surgimento de novos bairros, passam a ser excludentes, cabendo aos grupos sociais mais humildes os ambientes mais simples para o lazer e moradia. Podemos afirmar que Salvador, no final da década de 40 e início dos anos 50, passava por uma transformação econômica, social e cultural importante.

A Bahia destaca-se no cenário nacional como um dos estados com história mais marcante no planejamento. Para que se tenha a dimensão deste fato já nos anos 1930 são criados pelo governo estadual o Instituto de Cacau da Bahia e o Instituto Baiano do Fumo com a precípua intenção de melhor organizar dois dos principais produtos da sua economia agro-exportadora. Mas é em meados dos anos 1950, como Governo Balbino, que a idéia do planejamento para o desenvolvimento ganha espaço entre os políticos, intelectuais e empresários da época. (MENDES,2006, p.137).

Milton Santos percebe que o grande crescimento da cidade começa de fato em 1940: [...] influindo naturalmente sobre o centro. Na Cidade Baixa os enormes vazios começam a ser preenchidos por uma nova geração de casas com vários andares, arranha-céus cujo estilo é sensivelmente diferente do que caracterizara o período precedente; e largas avenidas são abertas. As casas mais antigas

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das ruas Portugal e Cons. Dantas são jogadas abaixo. Reconstrói-se por toda parte [...] ( SANTOS1959, p. 108)

As ruas Chile, Misericórdia e Ajuda e a Avenida Sete de Setembro, como também as ruas Portugal e Conselheiro Dantas, na Cidade Baixa, vivem mudanças significativas e passam a conviver com diferenças sociais mais acentuadas. Jehová recorda esse momento, parecendo não concordar com essas alterações consideradas pelo poeta como desumanas: [...] a cidade cresceu. A calma da Praça Deodoro foi acabando. O tráfego intenso, pesado e louco, afastou para os bairros a carroça tradicional. Foi sumindo a figura do carroceiro, com seu bornal de couro, chicote na mão e o ―ôba‖ na boca e – no entendimento do burro – entre os trilhos dos bondes abertos. Sobre eles, sobre essa categoria de trabalhadores anônimos da cidade, alijados de sua paisagem pelo progresso, vieram os motoristas dos caminhões, veículos capacitados a conduzir, com mais pressa, o açúcar que as velhas e lentas carroças transportavam. Mas São Cristóvão ficou, sem que os motoristas pudessem entender sua presença na centenária árvore da Deodoro. Agora, a praça vai perder seu arvoredo, a única concentração de verde que a Bahia contava em sua já desumana armação de metal e concreto... (CARVALHO, 1994, p. 150).

Ele acredita que a cidade, no auge da busca do novo, do moderno, tornase excludente, tirando o sustendo dos mais pobres e, até certo ponto, mantinha uma relação mais social com a cidade e seus habitantes. Não só diferenças sociais e econômicas marcavam a cidade, mas também contradições na arquitetura.

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Construções modernas surgem, diferenciando-se naturalmente dos casarões coloniais e escrevendo no espaço da cidade histórias diferentes. Alteração do espaço, mudanças econômicas e culturais, entre outras, colaboram para os novos olhares e percepções que a sociedade passa a ter de si, do mundo do seu lugar e da sua cultura, ou seja, a realidade imaginada sofre mudanças. Estórias que povoam os modos de vida de uma sociedade ou grupo social parecem escapar para dar lugar ao mundo objetivo em detrimento do imaginário social. Jehová, com uma visão critica de sua cidade, percebe que Salvador na muda apenas materialmente, mas a sua forma de pensar e representar a sua cultura.

Meia-noite. Não é necessário mais ter-se medo deste momento algo antigamente misterioso e fantasmagórico. Os duendes, as almas sofridas e penitentes já não têm mais ambiência para surpreender os vivos descerem da falha de uma telha para a escrivaninha onde o poeta esteja a entregar-se aos insondáveis reinos das musas situados entre as sílabas das palavras buscadas. Não há mais nem o silêncio para estimulá-los em suas recreativas aparições. As almofadas sobre os assentos das cadeiras postas em frente aos nichos dos quartos de alcova já não trazem as marcas dos joelhos que se dobram diante dos santos, à hora em que os carrilhões principais dão sinais do início da madrugada. As velhas gameleiras do fetichismo negro – às arvores do Loôco não despertam mais temor a quem passa nas ruas antigas sob suas copas frondosas. Para o cientista César Lattes, uma das grandes contribuições do desenvolvimento às regiões miseráveis foi a de pôr termo ao medo. O homem entregue ao abandono social sentia-se diminuído diante do

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Abstrato e o recriava em neuroses, imaginando-lhe figuras terrificantes em que se identificava a ordem social dominante. Nada sei disso tudo. È especulação para os doutos [...] Os namorados em seus automóveis espantaram os cavalos do mar e os pretos velhos que costumavam desembarcar das jangadas escuras na Praia de Armação, Ondina e Rio Vermelho. Tão familiar da geração a que pertenceu o poeta Élder Cardoso Costa. Atabaques já não batem mais em lugares onde, há séculos, foram sítios de escravos, porque sobre estes passam, agora, largas avenidas e os que restam fugiram do centro [...] Posso, sem me dar conta da impiedade do olhar alheio, descer a rua dos Verônicas e chegar ao Gravatá, embalado pelos galos do major Canabrava, os únicos na cidade que ainda anunciam a meia-noite. Odoé Passidó (CARVALHO, 1994, p.90).

O olhar do poeta permite perceber a sua cidade, a partir das suas vivências cotidianas, em diversos espaços por onde ele passava, fotografando e revelando realidades nos seus escritos literários, porque

[...] a literatura nas suas diversas expressões permite fazer uma leitura do mundo, da cidade e dos lugares através de suas lentes. Tem o poder de suscitar nos leitores sentimentos diferenciados e possibilidades de conhecer lugares e contextos diversos a partir de realidades individuais e/ou coletivas que expressam as vivências daqueles que transitam por seus espaços. (RUFFINI, 2009, p. 30).

Jehová foi um flâneur observador do seu tempo e das ruas nas quais buscava os acontecimentos para deflagrar, sob sua pena, a arte do viver urbano, fazendo poesias e crônicas com a alma das ruas. Desse modo, as poesias, crônicas e memórias desse poeta se cruzam e interligam-se com a cidade que, no seu

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crescimento desenfreado, altera, independente da classe social, os modos de vida da sociedade baiana, os quais contribuíram diretamente para a vida cultural e boêmia de Salvador.

Andei, ontem, pelo Mercado das Sete Portas. Não vi o alagoano Edésio Rodrigues de Melo, o dono da melhor dobradinha da cidade, nas madrugadas de sexta- feira. Lourival, o velho Louro da ―Catuaba‖, já não aparece mais por ali. Está quase cego, e a verde Quitanda da ala direita do entreposto já não reúne mais os motoristas que deixaram seus plantões ao fim das tardes [...] Só Zé de Bento, conhecido como ―Sergipe‖, é que repete os mesmos hábitos de quando veio de Boquim, não para a Bahia, mas para o Mercado de Sete Portas, porque ―a Feira é um espécie de capital de meu Estado‖, conforme dizia ele sorrindo e continuando: – Quando eu baixei aqui havia uma centena de verdureiros, como eu, que trazia para cá sua verduras, vindas das hortas da Estrada da Rainha, Cabula, Brongo de Brotas, Retiro, e até da Roça do Lobo, nos baixios do Dique do Tororó. Vendiam para muitos tabuleiros de outros que chegavam mais tarde. Quando havia infusão, corriam os bairros onde não existiam colegas com que pudessem concorrer. Eu, inclusive.[...] Na segunda-feira, a retomada do batente. O mercado cheio. A verdura cheirando na aurora. O mingau de Dona Salu às seis. As piadas sobre Sergipe, sempre. E as ruas. É as pessoas. E os verdureiros [...] Pois é. Agora, essa figura está tendente a desaparecer, de vez, da paisagem das manhãs da cidade. Os chamamentos do progresso o exigem. E de forma contundente. A ponto de, lhe retirando o tabuleiro da cabeça e transferindo as verduras para um lugar que ele nem sabe bem o que é (Central de Abastecimento da Bahia), ignorar os efeitos que tal transformação possa determinar a centenas de pessoas que dependem dele, o verdureiro [...] ( CARVALHO, 1994, p.126).

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Tudo se encontrava em mudança, e a noite faz parte desse momento, e ela pode ser um grande atrativo para se obter lucro com sua glamorização, trazendo ao mercado a ―indústria da noite‖ (cassinos, bares, restaurantes, cinemas, casas de prostituição sofisticadas, casas de espetáculos, teatros), que terminam por gerar empregos diretos e indiretos.

Até mesmo pelo anúncio publicado no Diário da Bahia, de 15 de fevereiro de 1930, sabia-se existência de ambientes para danças, pois em suas paginas estava anunciado o ―Cassino Antártica, localizado nos fundos do Teatro Guarani, com a presença do Jazz Catugy. Entrada franca para os que se apresentarem decentemente trajados. A única casa decente da Bahia‖. A Pensão Americana também fazia seus anúncios para as ―festas familiares‖, na Gameleira, 09. O Dancing Jardim, chamado ―Baile da Clélia‖, na Rua do Tijolo (28 de Setembro), fazendo esquina com a rua do Aljube, sempre aparecia nas manchetes dos jornais com relatos de brigas e confusões. Serviu de modelo para o ―Baile da Zazá‖, localizado nas ruas da Laranjeiras. Diversos Dancing iam surgindo e, para que não se ficasse sem saber dançar, ―o professor‖ Marcelino instalou a ―Academia de Danças Iara‖ localizada no Pelourinho... existiam tantos alunos que as ―academias funcionavam o ano inteiro[...] O Dancing Savoya, em 1940, ocupou o lugar do Tabaris[...] o local era adaptado para danças e jogos[...] Em 09 de maio de 1946, as noites de Salvador sofreram uma alteração com a inauguração do Rumba Dancing[...] Sandoval, desde os tempos da Estrada da Rainha, quase menino, demonstrava que seria ―O Rei da Noite‖[...] Nas décadas de 50, muitas casas de dança surgiram... Foram aparecendo as boites: Hotel da Bahia, Red Rose, Manhattan, Cerny, Thêmis, D. Quixote, Carijó, Cantina 292, Clock XK Bar, Oceania, Anjo Azul e outras[...] As baianas com panelas de feijoada, em frente ao Tabaris, também atendiam a grupos boêmios[ ...] (LEAL, 1996, p.109;110;111).

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Na noite se encontrava de tudo, até mesmo poetas soltando seus versos dos mais diferentes. Existiam pessoas nas ruas e bares que declamavam poesias, e ―[...] havia um poeta, conhecido por Murilo, que declamava versos de Florbela Espanca e Nuno Arantes, com sotaque de acento lisboeta, lembrando-lhes as serenatas de fado nas noites de Évora [...]‖. (CARVALHO, 1994, p.109). Viver na madrugada ou na boemia significava lazer, circulação de dinheiro, geração de emprego e não ser idêntico socialmente. Por outro lado, a representação que a sociedade fazia dos notívagos, fossem homens ou mulheres, não era positiva. A noite era vista por determinados grupos religiosos e conservadores como pecaminosa e repleta de luxurias. Na verdade, boêmia, numa determinada versão corrente, significa principalmente que se está

[...] ―desamarrado" dos vìnculos fundantes da sociedade: família, casamento, trabalho, obrigações sociais. Nessa construção idealizada, ser artista e boêmio significa viver diferentemente, estabelecer as regras do dia-a-dia de um modo diferente, ter uma vida de aventuras que escape à monotonia dos dias que seguem, daquilo que é previsível ao comum dos mortais. (LENHARO, 1995, p.25).

A madrugada é um tempo onde se vive tudo, do proibido ao absurdo, os conflitos existenciais e de classe, assim como a reflexão necessária para o poeta criar suas poesias e crônicas depois de momentos experimentados nos espaços

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mais escondidos de Salvador. Jehová, como artista da palavra, sente a alma da rua que para ele significava, em alguns momentos, válvula de escape. Eu vou dizer: vesti minha fantasia de alegria extrema e desci a Ladeira da Montanha. Para onde ir tão livre de mim mesmo, tão sem caminho traçado com o rigor dos compromissos sociais? Não me havia lugar próprio à alma em festa, vestida assim de Chacrinha com chifres dos lados ( inclusive os chifres que você pensou), folhas de pitanga nos ombros, abacate no pescoço, nos pés os sapatos tal como palhaços os calçam nos picadeiros. Na testa, uma lâmpada em acrìlico, dizendo: ―quem salvara o meu mundo em tensões particulares‖? Compreendam: se a alma é a minha, faço-a e sinto com o quiser e bem entender. Por isso, que, em certas ocasiões como essa, ela tem todos os atributos e formas do meu corpo. Apenas, sem vícios da alma e não do corpo. São vícios imponderáveis em sua mecânica. Pois é. Assim, tendo a alma vestida, entrei no casarão de número 63 [...] Na mesa do canto está a Nêga Tereza. Não sei onde estava. Mas tudo indica que está vindo de um grande cansaço [...] a Nêga me veio falar por alguns minutos, de que é sofrendo que se vai gozando [...] ( CARVALHO,1994, p.55).

Ele assume todos os vícios da carne sem remorsos, o que importa é a sua felicidade que duela com o sofrimento. A noite é real, com capacidade de existir dentro da história, misturando-se com os homens, sendo contextualizada pelo poeta Jehová de Carvalho. Ela não é pensada enquanto conflito entre o bem e o mal (noite x dia), não é maligna, sobrenatural, religiosa ou mágica; a noite é um tempo histórico, espaço humano, alegre, festiva, triste e com tensões sociais. A

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madrugada é de todos os vagabundos, malandros, escritores, ricos, pobres e de tantos outros segmentos sociais. Este poeta foi escritor de um tempo de esperança que acreditava em um país e, principalmente, uma Bahia melhor que em muitos dos seus versos e crônicas onde é vista como uma cidade da tristeza onde os que formam seu povo, sua gente, não são considerados como cidadãos, vivendo à margem da sociedade. A sua arte de escrever, clara, objetiva, com poesia no ―bico da pena‖, era capaz de reunir nos seus livros cantigas de uma cidade plural e suas contradições, que faziam mover a cidade dos homens, das letras, das ruas, da arquitetura barroca, com um sentimento regional e romântico em alguns momentos. Os seus poemas e crônicas apontam para locais por onde ele transitou e fez questão de guardar na sua memória para, mais tarde, registrar em versos a cultura popular, preservando a história dos ―coronéis‖, prostitutas, jogo de bicho, bares, festas de largo, do marginal. Podemos encontrar, na sua literatura, um diálogo constante com a cultura popular, que se entrecruza, em alguns momentos, com a cultura letrada. Ele foi um flâneur, vivia nas ruas, bares, prostíbulos, festas de largo colhendo informações do cotidiano para registrar em forma de poesia e crônicas. Como disse Baudelaire:

Para o perfeito Flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde de quer que se encontre; ver o

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mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto no mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais que linguagem não pode definir senão toscamente. O observador é um príncipe que frui por toda parte do fato de estar incógnito. O amador da vida faz do mundo a sua família, tal como o amador do belo sexo compõe sua família, com todas as belezas encontradas e encontráveis ou inencontráveis; tal como o amador de quadros vive numa sociedade encantada de sonhos pintados. Assim o apaixonado pela vida universal entra na multidão como se isso lhe aparecesse como um reservatório de eletricidade (BAUDELAIRE, 1988, p. 170-171).

Jehová entendia a cidade como ação dos homens em um mundo político e cultural em que as contradições de classe se manifestavam nos espaços urbanos, sendo a rua o palco principal dos acontecimentos, como João do Rio diria:

[...] A rua tem ainda um valor de sangue e de sofrimento: criou um símbolo universal. Há ainda uma rua, construída na imaginação e na dor, rua abjeta e má, detestável e detestada, cuja travessia se faz contra a nossa vontade, cujo trânsito é um doloroso arrastar pelo enxurro de uma cidade e de um povo [...]. (CALADO, 1997, p.10).

Era da cidade, da rua, do cotidiano, da noite, das contradições sociais, alegrias e tristezas que surgiam poesias e crônicas, retratando momentos históricos de Salvador específicos de uma época de transição de valores, costumes, modos de vida, que serviram de fonte de inspiração para muitos escritores baianos, assim como Jehová de Carvalho, que sabia misturar literatura e

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história para falar de uma cidade em transformação no seu aspecto urbano e cultural.

REFERÊNCIAS BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. In: A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.170-171. CALADO, Luciana. A Belle Époque nas crônicas de João do Rio: o olhar de um flâneur. 1997,p.10.Disponívelem:. ix

O excerto referenciado por Veiga é parcial. Para uma exposição completa da nota buscou-se o texto direto na tradução. x

O manuscrito da crítica da tradução de Odorico Mendes encontra-se disponível no arquivo Grão-Pará, no Museu Imperial de Petrópolis, RJ. O documento pertence à coleção particular dos herdeiros de D. Pedro Gastão de Orleans e Bragança, e foi acessado in-loco, em pesquisa realizada em 26 de abril de 2010. Veiga apresenta alguns excertos, pois também acessou tais registros. Outros excertos não puderam ser transcritos, pois as fotocópias não foram autorizadas. Tal fato inviabilizou o trabalho. xi

Caetano Alberto Soares, citado nessa nota, foi sacerdote católico e jurista, membro da comissão que analisou o esboço do Código Civil brasileiro. Informação consultada no artigo Ser advogado no Brasil Império: uniformização e disciplina no discurso jurídico de formação. Tuiutí (UTPR), Curitiba-PR, v. 23, p. 55-68, 2001. Disponível em: .

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A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM EM FOGO MORTO: O SILÊNCIO ELOQUENTE DE MARTA Raquel Lima (UFRN) Silvia Kern (UFRN)

1 O SISTEMA PATRIARCAL E A PERSONAGEM MARTA O romance ―Fogo Morto‖ de José Lins do Rego é uma obra de caráter regionalista, cuja temática, no entanto, transcende o regional e se projeta no universal, visto que as características psicossociológicas de seus personagens são exploradas com profundidade. Com efeito, podemos encontrar no romance tanto as relações dos indivíduos com a natureza, quanto com outras pessoas e consigo mesmos. Muitos são os enfoques sob que essa obra tem sido trabalhada, destacando, sobretudo, a figura do masculino ou seus personagens mais relevantes. Este trabalho se propõe a refletir sobre o papel da presença feminina no romance focalizando a personagem Marta, filha do Mestre José Amaro. Refletir sobre a mulher no contexto deste romance é refletir também sobre o regime patriarcalista a que as mulheres estavam submetidas e sobre a forma como elas, mesmo sob tanta repressão, conseguiam ocupar seu espaço e atuar dentro dele. Na verdade, a função, inerente à fêmea, de reprodutora da espécie

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favoreceu a subordinação da mulher ao homem, desde a mais remota antiguidade. A isto se acrescentou a ideia de fragilidade que a tornava incapaz de assumir a condução do grupo familiar. Por sua vez, ao homem foi associada a ideia de autoridade, em razão de sua força física, conferindo-lhe o poder de mando dentro da sociedade. Aí está a origem das sociedades patriarcais, assentadas no poder do macho da espécie, do chefe de família. A garantia da posse e da herança de bens para as gerações futuras estimula o interesse do homem pela paternidade. O papel da mulher e da sua sexualidade se submete cada vez mais aos interesses do homem, como forma de garantir a este a perpetuação através da descendência. Sendo o romance de caráter regionalista, reflete naturalmente as características culturais da região, principalmente as da época em que foi escrito. Desta forma, o foco nas personagens femininas nos leva ao ambiente doméstico, lugar específico da mulher, onde permanecia em total submissão ao homem exercendo a função de cuidar da casa e, ao mesmo tempo, preparando-se para o casamento. O matrimônio, por sua vez, era visto com um negócio cujo gerenciamento era atribuição do pai, a quem cabia providenciar um ―bom partido‖ para a filha (isto é, um rapaz ―de famìlia‖, bem situado socialmente, de posses, pertencente a uma família tradicional e de estrato social elevado) e repelir os candidatos inadequados para essa função. A filha não participava dessa escolha, aceitando, muitas vezes, sem questionamentos seu ―destino‖.

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No modelo de família patriarcal, o casamento como destino primeiro e fundamental da mulher faz dela basicamente uma reprodutora da força de trabalho, funcionando, na verdade, como mero instrumento de manutenção e perpetuação do sistema socioeconômico e político-cultural centrado no poder do macho.

1.1 Marta Marta é filha única do Mestre José Amaro e de Sinhá. Ela já tem trinta anos e não se casou. Como a escolha do marido era privilégio do pai, este deveria providenciar bem cedo ―um bom partido‖ para casar a filha. O mestre Amaro, entretanto, por ser muito orgulhoso, não procurou um marido para a sua filha, condenando-a a seu estado de solidão. Observamos que Marta difere da maioria das personagens femininas do romance tanto nas características psicológicas quanto nas características físicas. As moças da sua idade procuravam sempre se arrumar e andar bem vestidas. Ela, no entanto, procurava sempre se esconder. Detectamos esse seu comportamento na descrição feita pelo narrador, quando diz: ―...a moça baixou mais a cabeça. Era pálida, com os seus trinta anos, de pele escura, com os cabelos arregaçados para trás‖ (REGO, 2008, p. 51-52). Essa descrição enfatiza o seu retraimento, traduzido em sua atitude diante de outras pessoas – ―baixou mais a cabeça‖ -, na coloração da pele típica da pouca

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exposição à luz do sol – ―era pálida‖ – e na ausência de vaidade na forma de apresentar-se – ―tinha os cabelos arregaçados para trás‖. O que nos chama a atenção para Marta, em relação a outras mulheres nesse romance, é o fato de ela interagir pouco na narrativa, sendo mínima a sua fala em discurso direto. Na verdade, a maioria das falas em discurso direto dessa personagem acontecem quando ela tem seus surtos de loucura. Em seu ―estado de consciência‖, as falas, em sua maioria, são apenas reproduzidas pelo narrador. É por isso que ao tentarmos refletir sobre essa personagem somos forçados a recorrer, muitas vezes, à visão e às falas dos outros personagens a respeito dela. Marta, diferentemente de outras mulheres que figuram na obra, não participou ativamente em seu espaço. Ela se deixou levar pela repressão de seu pai, que depositou sobre ela todas as frustrações por não ter tido um filho homem que continuasse seu trabalho. Nos poucos momentos em que Marta toma iniciativas elas logo são bloqueadas pelo pai. Exemplo disso ocorre quando ela pede à mãe que compre linha para o bordado de Neném, filha do Lula de Holanda, e o mestre logo lhe proíbe de fazê-lo, reprimindo os poucos momentos de vida de sua filha por causa de um orgulho inexplicável de não trabalhar para o coronel.

Marta, vem ver o sortimento do seu Pascoal. A moça apareceu na janela, olhou com interesse para tudo: Minha mãe, compre a linha para o bordado de dona Neném. Bordado de quem? De dona Neném, do Santa Fé.

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Não admito. Filha minha não trabalha mais para aquela gente. Não faz bordado não. Marta abandonou a janela e dona Sinhá, como se não tivesse ouvido nada, foi fazendo as suas compras.(REGO, 2008, p. 103104)

Na fala do mestre Amaro e nas retomadas do narrador encontramos a forte presença desse discurso de insatisfação com Marta. Ele não podia entender por que sua filha chorava e nem muito menos por que ele não tivera um filho homem. No fragmento a seguir, podemos constatar o desgosto do mestre com sua filha:

(...) A filha continuava chorando como se fosse uma menina. O que era que tinha aquela moça de trinta anos? Por que chorava, sem que lhe batessem? Bem podia ter tido um filho macho, de sangue quente, de força no braço. Um filho do mestre José Amaro que não lhe desse o desgosto daquela filha. (REGO, 2008, p. 55)

A revolta do mestre Zé Amaro por a filha não haver casado o leva a pôr a culpa nela, por esta não haver demonstrado interesse, mas no fundo ele próprio se sente responsável por isso e sua revolta reflete também a consciência de sua própria incapacidade ou impotência de conseguir um ―bom partido‖ para a filha ou sequer um casamento decente, em virtude de sua condição econômica e social. Na verdade, ele pouco ou nada tem a oferecer como contrapartida para a aquisição de um bom partido. Acresce a isso a frustração de não ter um filho homem.

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O mestre José Amaro não consegue de forma alguma sentir qualquer afeto pela filha, e talvez por isso não deixe passar uma oportunidade de menosprezá-la e fazê-la sofrer, como se pode depreender por sua demonstração de falta de amor para com ela, expressa pelo narrador nestes termos:

Agora viu a filha sair de casa com uma panela na cabeça, caminhando para o chiqueiro dos porcos. Era de fato a sua filha, mas qualquer coisa havia nela que era contra ele. O mestre José Amaro viu-a no passo lerdo, no andar de pernas abertas e quis falar-lhe também, dizer qualquer coisa que lhe doesse. (REGO, 2008, p. 64)

Quando se fala em Marta, lamenta-se o fato de que ela, moça prendada, não tenha se casado, visto que era uma praxe da época as mulheres se casarem bem cedo. Na família de José Amaro não era diferente. Freyre (2003, p. 444), ao discorrer sobre esse tema, descreve a preocupação dos pais da moça, tão logo esta sai da infância e atinge a idade núbil, de conseguir lhe um bom casamento:

Com filha solteira de quinze anos dentro de casa já começavam os pais a se inquietar e a fazer promessa a Santo Antônio ou São João. Antes dos vinte anos, estava a moça solteirona. O que hoje é fruto verde, naqueles dias tinha-se medo que apodrecesse de maduro, sem ninguém o colher a tempo.

Marta foi educada para cuidar da casa e estava pronta para o casamento. Nas falas do mestre podemos perceber que ela já estava apta para a vida que

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devia ter, assim como sua mãe estava quando casou com Amaro: ―- Não se casa porque não quer. É de calibre como a mãe‖ (REGO, 2008, p. 52); ―tenho esta filha que não é um aleijão. Tenho esta filha, e não vivo oferecendo a ninguém‖ (REGO, 2008, p. 51). Da mesma forma que o pai, a mãe também enumerava as qualidades de Marta que a deixavam apta para o casamento. Assim descreve a narrativa as ponderações da mãe:

Botara na escola do Pilar, aprendeu a ler, tinha um bom talhe de letra, sabia fazer o seu bordado, tirar o seu molde, coser um vestido. E não havia rapaz que parasse para puxar uma conversa. Havia moças mais feias, mas sem jeito, casadas desde que se puseram em ponto de casamento.(REGO, 2008, p. 98)

Nessa época, o casamento das elites era um negócio feito entre famílias e envolvia tanto prestígio social quanto dinheiro. José Amaro, homem muito orgulhoso, não foi em busca de um casamento para a filha, condenando-a a vida de uma mulher solteira, uma manifestação de orgulho que constitui talvez a forma de compensar o sentimento de inferioridade por sua modesta condição de homem pobre sujeito a morar em terras alheias. O sentimento de impotência diante da opressão de que se vê objeto em seu meio faz com que Mestre Zé Amaro descarregue, muitas vezes, sobre a mulher e a filha a sua frustração de homem socialmente oprimido pelo poder a que está submisso, representado pelos grandes proprietários, como o Cel. Lula de

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Holanda, de quem é morador, Seu Augusto ―e a laia toda‖, como ele chega a dizer. Sendo oprimida pelo pai e por todo o sistema capitalista que a circunda, Marta é vista como doente pelos habitantes daquela redondeza. Essa doença é explicada como decorrência de nunca ter casado, fato que teria culminado na loucura. Tal percepção pode ser observada na fala de Sinhá quando afirma: ―Pobre da menina. Todo dia com aquela agonia até que deu nisto. Direitinho como a filha de Joca Marinho. É doença de moça. Eu sei como é isto‖ (REGO, 2008, p. 112-113). O mundo de Marta se reduzia praticamente a seu quarto, onde passava a maior parte do tempo trancada. Esse espaço servia de refúgio e consolo para suas frustrações, era lá que ela se isolava do mundo. Essa atitude e as ações que a acompanhavam refletiam seu estado de inferioridade, como se pode deduzir da descrição oferecida pelo narrador:

(...) A filha, no quarto, não dava sinal de vida. Era como se estivesse só no mundo, cercada pelo silêncio do mundo‖; (...) ―fez-se um grande silêncio. Parou tudo lá para dentro. Apenas um choro baixo se ouvia, chegando surdo, dos fundos da casa. (REGO, 2008, p. 165).

Por esse relato temos a ideia de como se dava seu isolamento. Em suas crises de desespero ela não gritava alto, como é característico das pessoas em

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desespero, ao contrário, sua expressão refletia sempre um sentimento de pequenez: ―Gemia baixo a filha‖ (REGO, 2008, p. 163). Marta se fecha no silêncio e se entrega à passividade, que é rompida apenas quando chora e nos surtos de loucura, ocasião em que levanta a voz e se insurge contra os seus pretensos opressores, ou ainda quando repele bruscamente qualquer manifestação afetiva da mãe, como se, também ela, quisesse exercer sua parcela de poder contra alguém em posição mais fraca.

1.2 O final para Marta Podemos pensar que os surtos de loucura da personagem são uma fuga deste mundo que tanto lhe oprime, pois é nesses momentos que é concedido, efetivamente, à personagem o discurso direto ―

Miseráveis, pensam que me

matam, pensam que mijam em cima de mim?‖ (REGO, 2008, p. 167) e é quando ela se sente livre para gritar. ―Marta gritava desesperadamente. E ria-se, ria-se às gargalhadas‖ (REGO, 2008, p. 173). Analisando a fala nas manifestações de loucuras de Marta podemos perceber que esses gritos revelam muito sobre seus sentimentos. Toda a amargura e tristeza que sente se esvai nesses gritos. ―Pensam que me matam / pensam que mijam em cima de mim‖ mostra a angústia e a revolta que sente, pois se sente diminuìda e ―oprimida‖ por tudo que fica ―em cima dela‖.

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Marta não teve problemas de insanidade durante a infância. O que o relato do texto nos permite vislumbrar é que era uma menina sempre introvertida e com mudanças de humor. Com o passar do tempo, porém, com as repressões e repreensões do pai, ela foi se tornando uma menina cada vez menos interativa. Seus pequenos ataques de loucura, pelas características que apresentam, fazem supor a existência de uma possível epilepsia, e nos induzem a pensar que sofria também dessa doença. Em vista do agravamento de seus surtos, Marta foi levada a Recife para tratamento médico em um manicômio, pois se era como doente mental que a viam, esse era o lugar adequado para um tratamento.

2 MARTA X OLÍVIA Olívia era uma das filhas do coronel Tomás e de dona Mariquinha. Como o pai não quisesse que nenhuma das filhas deixasse de estudar, mandou-as para o Recife estudar em um colégio de freiras. Amélia voltou primeiro à casa paterna deixando a irmã Olívia ainda envolvida com os estudos na capital. Mas um dia, quando esta já contava com dezessete anos, chegou ao engenho a noticia de que ela se encontrava muito doente. Essa doença persistiu durante meses, mas ao chegar ao colégio o que o coronel encontrava era a filha ―com uma preguiça em

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pé de pau, sem dar uma palavra, no silêncio de morta‖ (REGO, 2008, p.157). Começaria aí sua loucura? Depois da morte de seus pais, estando ela já em casa, a loucura de Olívia não tem nenhuma melhora, como expressa o narrador: ―Olìvia andava de um lado pro outro...‖ (REGO, 2008, p.180). Ao que parece a loucura agora já havia definitivamente tomado conta dela. O comportamento de Marta deve ser comparado com Olívia, pois a situação a que estão expostas é semelhante, no que diz em geral respeito à situação da mulher em idade de casar. Mesmo tendo condição socioeconômica distinta, a forma como elas reagem a essa situação é parecida. Na verdade, as semelhanças entre essas duas personagens são muitas. Elas nasceram de mulheres obedientes ao sistema patriarcal e também foram educadas para seguir esse padrão, embora a condição econômica das famílias tenha determinado diferenças na forma como cada uma foi educada. Marta é criada em casa, no interior dela, restrita a trabalhos domésticos com a mãe. Olívia, por sua vez, foi educada na capital. Não obstante, apesar dessa educação diferente, o fim delas é bem parecido: não se casam e enloquecem ainda em idade núbil. No entanto, assim como a educação, o tratamento de saúde de cada uma é diferente: Marta vai para uma casa de saúde enquanto Olívia permanece em casa. À semelhança do que ocorre com Marta, Olívia pouco aparece na narrativa e muito menos fala. Logo no início do romance, ela é caracterizada como louca e suas falas mostram seu estado avançado de loucura. São mulheres

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de faixa etária distintas assim como distinta é a sua forma de educação e o contexto social a que pertencem, estão, porém, imersas na mesma cultura.

3 AS PRÁTICAS DE PODER O poder e tudo o que circunda suas práticas é algo por vezes incompreensível. O indivíduo, para se manter no poder ou mesmo para adquirilo, não mede esforços para conseguir seus objetivos. Somos conhecedores de fatos brutais em diferentes sociedades que comprovam o que o homem pode fazer para a manutenção do seu poderio. Assim sendo, o que se percebe é que o poder é essencialmente repressivo. E isso não é para nós algo desconhecido, posto que, desde cedo, convivemos e somos envolvidos por essas relações de poder. Quando ele é exercido de forma negativa, oprime, sufoca, reduz, reprime, e pode levar à loucura, aniquilando o ser sobre o qual incide e ocasionando o pior tipo de morte, a morte ainda em vida. É o que podemos ver claramente que ocorre com a personagem Marta de José Lins do Rego. Segundo Foucault

―onde há poder, ele se exerce. Ninguém é,

propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros de outro; não se sabe ao certo quem o detém, mas se sabe quem não o possui‖. (Microfìsica do Poder, 2007, p.44).

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Esse não parece ser o caso do poder exercido dentro da casa do mestre José Amaro, o pai de Marta, uma vez que é notório que tanto dona Sinhá, a esposa, quanto a filha, Marta, não têm vez, nem voz. Mas no que refere a quem o detém fica patente nas falas que ali a palavra do mestre é lei e que ninguém ousa enfrentá-lo, como no momento em que ele sentencia: ―Nesta casa mando eu. Quem bate sola o dia inteiro, quem está amarelo de cheirar sola, de amassar couro cru? Falo o que quero, seu Laurentino. Isto aqui não é casa de Vitorino PapaRabo. Isto é casa de homem‖ (REGO, 2008, p. 52). O poder observado em toda a obra é um poder exercido de cima para baixo que, oprimindo cada vez mais suas ―vìtimas‖, obriga-as a imergir num mar de repressão que as leva, muitas vezes, à loucura como forma de escapismo. Até muda de mãos quando muda o cenário, ou seja, o lugar onde se desenrolam os acontecimentos, mas nunca dentro do mesmo espaço. Assim sendo, comandante (Zé Amaro) e comandados (Sinhá e Marta), seguem desempenhando seus papéis como se isso fora apenas um jogo de cartas marcadas. Olhado sob essa perspectiva, o poder não é estacionável. Ele perpassa todos os níveis de nossa vida, ora como dominados, ora como dominantes. Essa relação de dominação é, assim, relativa, pois aquele que é dominado em uma escala da sociedade, é dominador em outra, como na própria casa, por exemplo. Essas relações estão de tal forma entranhadas em nossa realidade que na maioria das vezes delas não nos damos conta nem questionamos, enxergando-as como algo natural e inerente às relações humanas.

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4 OPRESSÃO E LOUCURA O conceito de loucura depende do ponto de vista que se escolhe. Um dos sintomas mais frequentes que chama a atenção em um indivíduo considerado louco é o seu discurso quando este foge dos padrões considerados ―normais‖ por uma determinada sociedade. Essa fuga dos padrões pode acarretar problemas que não raro levam à exclusão pura e simples ou pelo internamento em um hospício, fato que observamos em Fogo Morto com as personagens Olívia e Marta respectivamente. A forma como a sociedade encarava e, de certo modo, encara ainda hoje, as mulheres em idade núbil exigindo que levem a bom termo a missão de casar-se e tornar-se uma mãe parideira e submissa ao marido, causa uma pressão psicológica de tal monta que as conduz a um estado de ansiedade e de angústia que, não raro, desemboca num processo de alienação ou na loucura pura e simples. No caso de Marta, uma hipótese para explicar o surto de loucura é a frustração e a pressão, por estar à margem do cumprimento das obrigações que lhe são impostas pelo contexto socio-histórico em que está inserida; outra hipótese seria a rejeição do pai para com ela e a falta de afeto reinante nessa família. Já Olívia, filha do coronel Tomás, entra em crise ainda em Recife,

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enquanto estudava em uma escola de freiras, tendo à época apenas 17 anos. Aparentemente pode se achar que a sua doença não está relacionada às mesmas causas que a de Marta, que padece sob a opressão de um sistema patriarcal, todavia o fato de ela estar afastada de sua família e estar sendo condicionada pelo sistema religioso da época para ser uma esposa perfeita pode causar-lhe pressão psicológica suficiente para desencadear seu processo de loucura. A observação do destino encontrado por essas personagens femininas do romance de Lins do Rego nos leva à conclusão que as mulheres que não se casaram são punidas pela própria natureza sendo como que empurradas para a loucura. Efetivamente, Marta, aos trinta, está louca e epiléptica; Olívia, louca e na solidão de sua casa e Neném, filha do Cel. Lula de Holanda, alienada, cuida de um jardim, e seu comportamento nos permite prever o destino que a espera: a loucura.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Marta não teve grandes falas e nem muitas participações, porém o seu comportamento, o seu silêncio, e principalmente, os seus pequenos surtos de voz nos permitem perceber o grau de opressão exercido por um regime patriarcalista e dominador. A obra de José Lins do Rego nos oferece o ensejo de uma minuciosa e sutil análise de personagens que representavam a vida na sociedade rural

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naquela época. Uma vida que oscila entre o tradicional e o novo, atingida pelas modificações do progresso que contrapõem o engenho à usina, entre o apego ao tradicionalismo e o desejo de fuga de personagens que sofriam todo um condicionamento do espaço e principalmente da cultura que estavam inseridos. Marta e sua mãe são vítimas de um poder que não emana diretamente de uma autoridade político-administrativa constituída ou mesmo de um coronel. Elas são atingidas por um poder que está mais próximo representado pelo patriarca, cuja autoridade absoluta está assentada na tradição cultural que lhe confere essa posição. Embora submetido à autoridade dos que estão socialmente acima dele, Zé Amaro é a autoridade maior em sua casa e reproduz aí a estrutura de poder mais ampla que permeia a sociedade, alimentando assim essa relação assimétrica que está na base da sociedade patriarcal. A condição a que são submetidas às mulheres da casa revela uma profunda assimetria entre os sexos e evidenciam as relações de poder que permeiam a vida social, de forma difusa, tal como a interpreta Foucault (2007). O poder não é algo concreto que se possa ter, o que percebemos são as manifestações desse poder que podem ser de um individuo para outro ou de uma coletividade. Na família do mestre Amaro, o poder era exercido por ele em relação a sua esposa e filha, por estarem em uma posição inferior à dele, da mesma forma que ele era subjugado pelo coronel Lula, dono das terras em que habitava. Continuando o ciclo, Sinhá também detinha, aparentemente, seu quinhão de poder, que é exercido sobre sua filha. Por sua vez, Marta não exercia

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o poder sobre os seus parentes, nem mesmo com as galinhas da sua casa pois ―as galinhas fugiam, não davam atenção ao piado de Marta. Corria ela de um lado para o outro, e a criação cada vez mais se espantava‖ (REGO, 2008, p. 93). Percebemos, no entanto, uma tentativa de manifestá-lo de algum modo na relação com as pessoas por meio da forma como ela reage aos que tentavam invadir seu espaço ou lhe causar incômodo, como fez com o negro José Passarinho enquanto ele cantava. Marta pede para parar a cantoria, visto que, anteriormente o mestre proibira a filha de cantarolar as músicas religiosas alegando que não gostava de cantorias. Na verdade, José Amaro apreciava a músicas, o que ele não gostava era de ouvir a sua filha cantarolando benditos. Ao pedir que José Passarinho parasse de cantar, percebe-se que Marta tinha a intenção de ofender seu pai, ensaiando, ainda que por meio da ironia, um certo exercício de poder.

A mulher já estava tangendo as galinhas para o poleiro. Marta falou bem alto para que ele ouvisse: Seu José, papai não gosta de cantoria. Era para que o ofendesse, era para que doesse na sua carne aquela história de que não gostava de cantoria. E ele gostava. Cantasse aquele canário o dia inteiro que lhe agradava aos ouvidos. Não gostava era dos cantos da igreja, dos benditos que Marta sabia. (REGO, 2008, p. 126-127)

Desse modo, apesar de um sistema patriarcal forte que oprime as mulheres, não permitindo que elas consigam sua autonomia, nos deparamos com mulheres como nossa personagem Marta que, mesmo aparentando fraqueza

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diante do sistema vigente, encontram alguma forma de fugir dele, de afrontá-lo mesmo que o preço a pagar seja a loucura. Nos seus surtos de loucura, precedidos por anos de silêncio, Marta consegue incomodar seu ambiente familiar, o único que frequenta, mesmo se utilizando desse silêncio. Um silêncio que, muito eloquente, fala alto ao nosso sistema e deixa claro para a opressão masculina que ela não apagará a presença feminina em nossa sociedade. Marta simboliza dentro do romance a luta constante, mesmo que despercebida e aparentemente fraca, da mulher para se libertar do sistema que a sufoca.

6 REFERÊNCIAS FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 23. ed.São Paulo: Gral, 2007. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala, São Paulo: Global, 2003 REGO, José Lins do. Fogo Morto. 67. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.

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ANJO DAS ONDAS: UMA AVENTURA EM BUSCA DA IDENTIDADE Ricardo Araujo Almeida Santana (FINOM)

1- INTRODUÇÃO No mundo contemporâneo mais do que nunca o homem se debruça sobre o tema Identidade, em todas as áreas do conhecimento ele se mostra rico em estudos, são várias as teorias e estudiosos que tentam abarcar esse tema deveras instigante e tão desafiador, e complexo em sua própria conceituação. Como nos diz Stuart Hall,

as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada ―crise de identidade‖ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 2006, p. 7)

Se na história da humanidade a busca por uma identidade concreta e plena foi um grande desafio, e em muitos momentos acreditou-se nesse modelo de um indivíduo completo e pleno de si mesmo, hoje não se crer mais em um ser integrado, o ―sujeito cartesiano‖ pensado por Descartes no século XVII. Temos

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atualmente um homem dividido, entre os vários caminhos da sociedade pósmoderna, tentando se encontrar nas diversas possibilidades de um mundo imerso em contradições culturais, sociais, sexuais, religiosas e econômicas, ―no admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rìgidas e inegociáveis simplesmente não funcionam‖ (BAUMAN, 2005, p. 33). Quando imaginamos esse homem fragmentado, buscando encontrar seu paradeiro, refletiremos sobre a fase na qual tal fato parecerá ainda mais perturbador e abastado de conflitos, a adolescência. Período de transformações físicas e emocionais, de momentos decisivos na vida de um jovem, em qualquer parte do mundo, em nossa sociedade atual ―a adolescência vem se tornando um perìodo cada vez mais longo e mais complexo‖ (BECKER, 1985, p. 12), implicando em um processo desencadeador de novos conflitos. João Gilberto Noll trará em seu Anjo das ondas o jovem Gustavo, garoto de 15 anos, filho de pais separados, vivendo dividido entre duas cidades, Londres e Rio de Janeiro. Também repartido entre duas idades, a infância e a vida adulta, no momento de volta a sua cidade natal, o Rio de Janeiro, reencontrando-se com as recordações da puerícia e seguindo em sua busca ao encontro de si mesmo. Noll mais uma vez nos transportará numa viagem ao encontro de nós mesmos, ou do outro, algo que nos atormenta, o qual nos fascina e impulsiona a vivermos tudo com intensidade, desta vez nas mãos de um menino, com tantas sensações ainda novas e desafiadoras.

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2- ADOLESCER: “DÚVIDAS INTENSAS E CERTEZAS ABSOLUTAS” O termo adolescente, tão comum em nossos dias de mundo globalizado, é eventualmente recente, no século XVIII teremos os primeiros estudos sobre essa categoria, ―mas é somente no século XX que vimos nascer o adolescente moderno típico exprimindo uma pureza provisória, força física, espontaneidade e alegria de viver‖ (LEPRE, 2011, p. 1). Como nos diz BECKER (1985), as mudanças fìsicas que ocorrem nessa fase da vida sempre existiram e são comuns a todos os povos, porém em nível psicológico os padrões mudam de sociedade para sociedade, levando em conta o ambiente cultual, social, ambiental, entre outros. A adolescência terá características similares para todos os garotos e garotas, e tensões particulares, escolhas e caminhos individualizantes, chegando mais cedo para uns e mais tarde para outros, à medida que ―os progressos tecnológicos ampliam cada vez mais o intervalo de tempo entre o começo da vida escolar e o acesso final do jovem ao trabalho especializado, a fase da adolescência torna-se um perìodo ainda mais acentuado e consciente‖ (ERICKSON, 1987, p. 128). Criar um conceito único para adolescência nos dias de hoje torna-se um tanto intricado, mesmo a definição do ―ser adulto‖ fica cada vez mais fragmentada e abstrusa.

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Os ―rituais‖ fìsicos permeiam todo adolescente, as formas do corpo mudam, surgem os pelos, o desejo sexual aparece de forma mais intensa e confusa, tudo antes tão distante parece surgir completamente de uma só vez. Como nos descreve o narrador de Anjo das ondas, ―o corpo do nosso herói serve de mundo à população miniatural a habitar sua mente. O guri de fato parecia uma baleia abrigando no interior essas figuras buliçosas, embora imateriais.‖ (NOLL, 2010, p. 16), realmente uma analogia interessante para destacar o turbilhão de processos físicos e emocionais que se espalham no corpo dos jovens. Segundo Erik Erikson, nessa época vivemos a fase dos vários ―eus‖, que formará nosso Eu-Mesmo combinado, algo provavelmente mais estável, mas que nesse momento vive ―chocantes transições estre seus eus; considere-se, por exemplo, o eu corpo nu no escuro ou subitamente exposto à luz; o eu vestido entre amigos ou na companhia de gente superior ou inferior; o eu que acaba de acordar...‖ (ERIKSON, 1987, p. 218). São as dúvidas e as certezas que movem os adolescentes, os novos desafios que aparecem em seu caminho, algo que é intensamente vivido como em nenhum momento da vida humana, um simples beijo torna-se algo revelador e desconcertante.

Que o mundo lá fora continuasse em sua rotina, com as rodas rodando, o chiclete de bola se projetando para fora da boca da criança, os mendigos jogando com uma bola de plástico arrebentada, não importa o que mais, o certo é que naquele beijo havia um não sei quê de eternidade, e que era para isso que a

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gente tinha vindo ao mundo, para o regalo de um beijo como aquele, um simples beijo, mas com o calor da linhagem humana aspirando à permanência do deleite, sim, e ao assombro diante de tanta inserção de um no coração do outro. (NOLL, 2010, p. 23)

A dualidade caminha junto com Gustavo, protagonista da história, como em qualquer outro jovem de quinze anos, repartido entre o mundo da infância e dos adultos, ouvindo afirmações do tipo ―você é grande demais para isso‖, ou ―você é pequeno demais para aquilo‖. ―Eu era uma criança no corpo já maduro para o sexo. (...) Sentia-me viril e do meu peito nasciam os pelos com que sempre sonhei, para, quem sabe, arranhar um bocadinho o peito da parceira, fazendo-a suspirar de lascìvia...‖ (NOLL, 2010, p. 59), um ser hibrido, negando e afirmando a todo momento sua nova situação diante do mundo. O protagonista de Anjo das ondas, além das transformações comuns a qualquer jovem adolescente, está em um processo de transição para uma nova vida junto ao pai, tendo que deixar a casa materna em Londres, cidade onde residia. Esse afastamento físico poderemos situá-lo como uma forma simbólica de separação da figura materna, ritual compartilhado por todo jovem, para ―a criança, a mãe torna-se, nessa transição, um poder negativo do qual o Ego precisa se libertar‖ (MUSKAT, 1986, p. 38), fato explicitado pelo personagem claramente em uma passagem do texto:

Minha mãe sentou como sempre diante de mim e eu não tinha mais nada a olhar que não fosse ela, ainda bonita, com sardas

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em volta do nariz. Às vezes tinha vontade de que ela sumisse da minha vida e que eu fosse um menino abandonado, afundando minhas mãos no barro, revolvendo a pocilga. E que eu me sujasse inteiro e que ao barro me juntasse e me fundisse em uma só verdade crua. (NOLL, 2010, p. 35)

Os desejos e inquietações sentidas por Gustavo são comuns à maioria dos adolescentes, um misto de identificação, idealização e ao mesmo tempo de rejeição aos pais. Mãe e pai que até o momento pareciam sagrados em seus respectivos lugares, tornam-se seres estranhos e contraditórios, sua ―autoimagem se modifica e o adolescente procura conforto em sua roda de companheiros, padronizando suas ideias‖ (BECKER, 1985, p. 43), a formação de grupos padronizados de jovens é comum nesta fase.

3. A AVENTURA IDENTITÁRIA O adolescente procura no encontro com os iguais sua própria diferença, a busca do outro na tentativa de encontrar sua própria identidade, é o que o psicanalista Erick Erikson chamou de ―crise de identidade‖, ―em termos psicológicos, a formação da identidade emprega um processo de reflexão e observação simultâneas, um processo que ocorre em todos os níveis do funcionamento mental‖ (ERIKSON, 1987, p. 21) a construção da identidade passará por um processo pessoal e também social. Muskat (1986) conceituará

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identidade como ―uma experiência emocional que permite a cada Ser perceber-se como entidade única e separada do Outro, que é ao mesmo tempo seu semelhante, e como entidade única apesar de suas contìnuas transformações‖. Encontrar-se consigo mesmo, conflito que perpassa para a idade adulta, floresce na adolescência, transição entre o mundo da meninice e das responsabilidades dos adultos, ocasionando muitas vezes um ponto de fuga, para dentro de si mesmo, ou como no caso de Gustavo, a mudança de cidade, a volta para casa do pai no Brasil, era mais que um simples desejo, era algo que o inquietava.

Ele não queria nada, nem mesmo a namorada: queria partir para o Polo Norte, África, Uganda, talvez, quem sabe depois as estepes geladas, voltar dessa aventura como um pequeno herói a desbravar agora seu próprio coração, sentindo falta do que ficara de si mesmo em algum lugar impenetrável, no meio da floresta – o corpo em febre bebendo o caldo cálido da planta que pode ser balsâmica ou venenosa, ele verá... (NOLL, 2010, p. 38)

E ele parte a procura de resgatar parte de sua infância, ou simplesmente construir em um novo lugar sua nova vida, formar-se a partir de pedaços de seu passado infantil. Porém se deparará com um pai absorto em seu mundo, dedicado exclusivamente ao trabalho, tornando-se um objeto estanho, não identificado. Sendo justamente nesta época da vida, pela qual passa Gustavo, que as pessoas precisam de identificações, ―a identidade, será, então a mera soma de identificações

anteriores,

ou

meramente

um

conjunto

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identificações?‖ (ERIKSON, 1987, p. 158), os adolescentes buscam espelhos para compartilharem seus sentimentos e inquietações, projetar-se em um ídolo da música, do cinema ou da literatura, é comum a qualquer adolescente. Mesmo havendo o já citado processo de rejeição dos país, estes são de certa forma o alguém mais próximo, para essa identificação, no caso de nosso protagonista isso não ocorre, o mesmo lamenta-se a certa altura ―os meus adultos mais próximos, tanto o pai quando a mãe, pareciam ter se refugiado em um arremedo de bem-estar que só dizia respeito a eles próprios‖ (NOLL, 2010, p. 92), resta-lhe sair a procura de alguém para repartir suas angústias. No mundo contemporâneo muitas famílias não sabem lidar com os filhos adolescentes, segundo Rosely Sayão, psicóloga especialista em adolescência, a impotência dos pais diante dos filhos adolescentes parece uma epidemia, dificultando a construção de uma identidade. Com o isolamento dos pais o protagonista de Anjo das ondas acaba encontrando um antigo colega de escola, que também se chama Gustavo, encontro que vai tirá-lo do tédio que se encontrava desde sua chegada ao Brasil. Segundo Erikson (1987), o jovem ao sair da infância precisa desse processo de identificação, de um convìvio social e mesmo de competitividade ―com (e entre) os companheiros de sua idade‖. O próprio personagem antes mesmo de encontrar o novo parceiro, pensa que tudo seria mais fácil se tivéssemos sempre alguém para compartilharmos nossos momentos, ―comecei a pensar que a vida pudesse ser reconsiderada a partir de duplas. Tudo tinha o seu igual. Às vezes,

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rival. E isso ia nos proporcionando um conforto ilusório, em face da velha solidão...‖ (NOLL, 2010, p. 73) Seu reencontro com esse ―outro‖ Gustavo proporcionaria um certo equilíbrio, ou talvez um deslocamento ainda maior? Esse outro adolescente, só um pouco mais velho, parecia tornar-se a figura de identificação que faltava no seu mundo, o adulto que fora-lhe negado e sua casa londrina e carioca.

Ele estampava ser bem mais forte, já tinha o físico de um homem de verdadeiro. Temi que estivesse pensando que, infelizmente, eu ainda era o mesmo das fuzarcas em recreios escolares. Infelizmente para quem?, me perguntei. Pra mim ou pra ele? (...) Reparei que sua face já se apresentava escanhoada, os pelos dando a ideia de já exigirem um barbeador diário. Aquele cara poderia ser o meu defensor, se eu precisasse? E eu tinha pique para defendê-lo na paz ou na guerra? (NOLL, 2010, p. 98)

O novo amigo vai apresentar-lhe seu mundo, sua casa, transbordando identificações ou desejos inconscientes de ter aquela vida, a certa altura as descrições do personagem nos trazem dúvidas sobre a existência desse outro, ele realmente existe ou é fruto de seus desejos, de ser aquele outro, apenas um reflexo do seu ―eu‖ conflituado. Mais uma vez a mão dinâmica de João Gilberto Noll, que trabalha com esse jogo do ―eu‖, do ―outro‖, coloca-nos diante de um personagem inquietante.

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Tinha receio de entrar no cômodo e constatar que o adensamento oleoso da superfície dele, o compacto carnal que lhe proporcionava uma presença, que toda essa cápsula de artérias e veias pudesse estar se exaurindo, tal o desperdício de matéria humana no resguardo do ócio regular daquele meu recentíssimo e já melhor amigo. Tinha receio de ver Gustavo se esfarinhando... Só me restaria passar a língua em sua dissolução e ver que bicho dava. (...) Ele teria nascido de alguma falha em minhas lembranças do passado escolar? (...) Toquei no meu peito para verificar se eu mesmo não era um engano. (NOLL, 2010, p. 112-113)

O fascínio pela vida do outro, que vista de perto, parece ser tão comum e igual a nossa, faz percebermos nosso próprio estado das coisas, e cada pedaço que nos constitui e também constitui o outro, assim Gustavo entende parte de si mesmo, ao contrapor-se a esse outro. ―Olhando minhas unhas por cortar, um tanto sujas nas bordas, percebi que eu era eu e mais ninguém e que estava na hora de partir para longe dali.‖ (NOLL, 2010, p. 115)

4- CONSIDERAÇÕES FINAIS Como os vários autores estudados reafirmam, o ser uno, pleno de sua identidade não faz parte do mundo pós-moderno, somos seres híbridos e fragmentados, os quais buscam essa unidade, tentando adaptar-se a uma sociedade ainda rica em conceitos cristalizados e que tentam enquadramentos

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fixos. Temos, porém, que diante das contradições da contemporaneidade, convivermos com nossas várias possibilidades de identidade. O presente artigo tentou esboçar, através da obra Anjo das ondas de João Gilberto Noll, alguns conceitos e ideias a respeito do tema identidade, sua fragmentação e deslocamento, construção e desconstrução, enfocando o período da adolescência fase de exacerbada angústia para todo ser humano, de mudanças físicas e emocionais que refletirão na constituição do indivíduo adulto. Verificamos que mesmo ao trabalhar um tema deveras complexo, cheio de meandros e possibilidades novas, o autor consegue trazer, através de seu narrador e seu protagonista, problemáticas comuns a todos os jovens que passam pelo turbulento período da adolescência. Mesmo para quem já passou por tal período, se identificará com a vida de Gustavo, trará na memória os questionamentos e descobertas do fim da infância. Ao final da obra o personagem questiona-se sobre seu verdadeiro lugar, se está no lugar certo, o perceber-se no mundo é apenas o começo de tudo para ele, é o início do caminho de qualquer jovem, o tentar encontrar-se, pelo menos uma parte, para poder discernir entre os vários caminhos que se abrem. O reflexo do outro, do seu encontro não só com uma pessoa física, mas com um pedaço de sua infância, ajudou-o a recompor seus outros pedaços, seus outros ―eus‖, assim é nossa identidade, ela é ―realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na

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consciência no momento do nascimento‖ (HALL, 2006, p.38), algo que construiremos e reconstruiremos ao longo da vida.

REFERENCIAS BAUMAN, Zygmunt. Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BECKER, Daniel. O que é adolescência. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. ERIKSON, Erik H. Identidade juventude e crise. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10 ed. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. LEPRE, Rita Melissa. Adolescência e construção da identidade. Disponível em: < http://www.psicopedagogia.com.br/artigos/artigo.asp?entrID=395>. Acesso em: 20 de março de 2011. MUSKAT, Malvina. Consciência e identidade. São Paulo: Ática, 1986. NOLL, João Gilberto. Anjos das ondas. São Paulo: Scipione, 2010. SAYÃO, Rosely. Adolescência e Identidade. Disponível em: < http://www.udemo.org.br/Leituras_380.htm>. Acesso em: 10 de abril de 2011.

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O MITO COMO PROJETO POÉTICO EM PURIFICAÇÃO OU O SINAL DE TALIÃO, DE MYRIAM FRAGA Ricardo Nonato Almeida de Abreu Silva (UNEB)

Em Purificações ou o Sinal de Talião, Myriam Fraga trabalha os mitos ―iniciais‖ acompanhando-os como se, através deles, pesquisasse a história interior do homem, assumindo ressonâncias proféticas, incorporando o papel primitivo do poeta, revelador das verdades primeiras e intangíveis. Para o crítico Fernando Py (1982:1), os versos dos poemas de Myriam Fraga nesse livro,

respiram um clima de recriação no caos e na agonia (...). Há todo um sentido submerso de ‗purificação‘ e de ‗catarse‘ (ou melhor, purificação pela catarse) aliada a uma constante idéia de ‗regresso‘ de volta às origens através da morte, numa ida e volta pendular que inicia fim e começo.

Segundo o autor, a ideia de regresso vai-se ampliando de significados, mas basicamente indica a preocupação com o tema do regressus ad infinitum. O mito surge, então, como força capaz de trazer das origens remotas o que a poeta reconhece em si mesma em seu longo e sofrido périplo por uma geografia inventada. Esse périplo é anunciado na sua ―Explicação (quase) desnecessária‖, que abre o livro.

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Conforme observa Evelina Hoisel (2008), no prefácio de Poesia Reunida intitulado ―Poesia e memória‖, nessa ―Explicação‖ a poeta baiana define os fios com que tece sua poesia, funcionando ―como uma espécie de arte poética, isto é, um projeto que define os rumos – o mapa – da sua travessia literária no que diz respeito ao conjunto dos textos que compõem este livro de 1981‖ (p. 15). Para Hoisel, a leitura dessa ―Explicação‖, mais do que sinalizar o roteiro de Purificações ou o Sinal de Talião, pode ser expandida para a leitura e compreensão da obra poética de Myriam Fraga. Na sua ―Explicação (quase) desnecessária‖, a escritora esclarece que algo parece-lhe escapar enquanto indivíduo, pois, como poeta, se preocupa com aquilo que está além da sua existência pessoal. Myriam Fraga recorre ao mito, que surge como força capaz de trazer não só um passado anterior à sua existência, mas experiências vividas por várias ancestralidades, considerando que ―cada indivíduo é o repositório de vivências antiquíssimas e, ao mesmo tempo, um espelho a refletir o futuro‖ (FRAGA, 2008, p. 217). Situada entre a razão e o mito, a poeta encontra-se inserida no ―circuito imaginário‖ de uma história que está sempre a repetir-se a partir do que ela mesma nos apresenta como sendo um lugar primordial onde tudo é gerado. Seu projeto poético se estabelece como uma tarefa da qual ela não pode escapar: a de lembrar aos homens o seu passado. Agenciada pela força mítica de Mnemosine – a própria personificação da memória, responsável por revelar ao poeta os segredos do passado e introduzi-lo

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nos mistérios do além – a poeta sabe que o passado revelado seria mais que um antecedente do presente, ele seria sua própria fonte. Ao remontar ao tempo passado, a rememoração procura não situar os eventos num quadro temporal, mas tingir as profundezas do ser, descobrir o original, a realidade primordial da qual proveio o cosmo, e que permite compreender o devir. Quando possuído pelas musas, a poeta sorve diretamente de Mnemosine, sendo então uma mulher possuída pela memória. E, como destaca Myriam Fraga, ―nem é preciso lembrar que a função poética era, a princìpio, fundamentalmente memória‖ (FRAGA, 2008, p. 218). A autora reconhece que a tarefa do poeta é recordar para conhecer e ao mesmo tempo salvar-se. ―Regressar no tempo através da Poesia, que é conhecimento, mas é, também, purificação e ascese, pois talvez o regressar nos devolva o vácuo inicial, a grande mãe, o abismo‖ (FRAGA, 2008, p. 218). Segundo Mircea Eliade (1991), na medida em que o passado é esquecido, seja o histórico ou o primordial, homologa-se a morte que remonta ao Letes, o rio do esquecimento – na concepção grega –, pois esquecer é uma forma de se morrer. Quem entra no Letes esquece de todo o seu passado. A imagem desse rio do Hades apresenta-se no poema ―Espelhos‖, de Myriam Fraga. Nesse poema, o eu-lírico se lança nas intemporais águas da memória:

O Rio do Esquecimento É um Rio de Morte. Na solidão navego

Conhecimento é a água Deste rio.

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Neste ritmo De remos que se afundam Na fronteira Exata de água e sonhos

Navego no precário, No infinito Caminho do preciso

Assim regresso à origem, Ao meu limite,

Meu limite É o espaço Onde me agito.

À Mãe dos Animais, À Grande Besta, Procriando no escuro.

Um eixo de metal, Um velocípede Dando voltas no escuro. (...)

(FRAGA, 2008, p. 270)

A estrutura espelhada do poema evidencia a dupla jornada empreendida pela voz poética. Com suas duas colunas de versos, diferenciadas pelo itálico da segunda coluna pode ser lido, também, como dois poemas distintos, mas trata de um mesmo deslocamento pelas águas da memória até a origem de tudo para encontrar a Grande Mãe, figura geradora do mundo e de tudo que nele há. A imagem da Grande Mãe pode ser vista, também, no poema ―Rotação‖, cujo verso em destaque está presente na ―Explicação (quase) desnecessária‖ que abre Purificações ou o Sinal de Talião:

A terra de ninguém é um útero de vidro. Talvez regressar nos devolva o previsto, o vácuo inicial, a Grande Mãe, o abismo. Um caminho às avessas, dos sapos aos girinos, ao escuro ventre vazio primordial e infinito,

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Somos todos destroços. Salvados de antigos crimes. (FRAGA, 2008, p. 224. Grifo meu).

O retorno à Grande Mãe, simbolizando a matriz, a umidade onde tudo é gerado está diretamente relacionado ao mar, na medida em que são, ambos, receptáculos e matrizes da vida. Encontrar a Grande Mãe, na poesia de Myriam Fraga, é, desse modo, voltar ao momento anterior ao nascimento e encontrar a origem das coisas. No entanto, esse mergulho através das eras não implica em chegar ao ponto onde se tem todas as respostas, mas no conhecimento apreendido ao próprio ato de deslocar-se a procura que é sempre infinita. De acordo com Jean-Pierre Vernant, a inspiração do aedo – poeta – pode ser comparada à evocação de um morto do mundo infernal ou um ―descensus ad ínferos empreendido por um vivo a fim de aprender o que ele quer conhecer‖ (VERNAT Apud, ELIADE, 1991, p. 108). Para Vernant, Mnemosine confere ao aedo o privilégio de um contato com o outro mundo e, nisso, a possibilidade de entrar e sair livremente, pois ela lhe concede a chave da porta dos tempos. Em poemas como ―Linhagem‖, ―Arqueologia‖ e ―Astrologia‖, Myriam Fraga traça seu mergulho em direção à rememoração do passado, entendido como um rio. No poema ―Linhagem‖, o eu-lírico nos apresenta o passado como um rio onde afunda a ―barca escura / dos homens‖ (p. 248). Porém, nesse mesmo poema, o eu-lìrico também deixa claro ter ―a chave do tempo‖, que lhe permitiria abrir caminho pelas épocas guiando a si próprio. Como os adivinhos Anfireau e

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Tirésias, capazes de predizer o futuro e com profundo conhecimento do passado – da memória dos tempos – o eu-lírico se apresenta amadurecendo de maneira ―intemporal e eterna‖. Em ―Arqueologia‖, a rememoração inicia-se pelo passado histórico, ―na sala dos museus‖ (p. 228), onde se vêem as imagens montadas do homem ―primitivo‖, nossos ancestrais ―entre lascas de sìlex‖, ―no orgulho das grutas‖ e se expande além das fronteiras do tempo, esgarçando-se no passado mítico bíblico que é profanado pelo homem do tempo presente, reconhecido como filho de Caim, parte da ―Estirpe de lobos / Sem perdão‖. Em ―Astrologia‖, o eu-lírico aparece como um viajante capaz de ver e saber das coisas do mundo através dos tempos. Ele é o Oráculo a decifrar suas próprias perguntas, como uma ―esfinge‖, mas ―De respostas inventadas, / Desiguais‖ (p. 249). O poeta torna-se devorador da própria carne porque o ―signo inquieto‖ do horóscopo que ele conhece acaba por mostrar-lhe a si próprio, revelando o caráter demoníaco do conhecer que o leva a afirmação no último verso: ―sou meu súcubo‖. Nas quatro partes de Purificações ou o Sinal de Talião – ―O talhe das Pedras‖, ―O Vaso Ritual‖, ―O Sinal de Talião‖ e ―A Anunciação do Silêncio‖ –, aparecem poemas lastreados pela mitologia bíblica, na maioria das vezes, imbricada com a grega, mas também, com a de raiz africana, persa, babilônica. Estas mitologias aparecem profundamente marcadas por um imaginário religioso bíblico que as atravessa desde o título do livro, até os poemas nos quais o tema do

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mito se alarga e se bifurca construindo um modo de expressar o mundo, estabelecendo uma verdadeira cosmogonia poética. Os poemas de cada parte não se fecham em si mesmos, eles se comunicam com poemas das outras partes, e até com outros livros da autora, como os poemas do capìtulo ―Inéditos esparsos‖ de sua Poesia Reunida, pois constituem parte de um mesmo roteiro, ou seja, o do homem em sua viagem pela memória. Na primeira parte de Purificações ou o Sinal de Talião, intitulada ―O Talhe das Pedras‖, o mito da criação do mundo, do homem e de tudo que existe é tratado como um percurso tortuoso. No poema em prosa ―As purificações‖, a ideia da purificação pelo retorno ao início primordial, metaforizado na imagem de uma ―Úmida sensação de começo, de esperma‖ (p. 221), liga-se ao princípio das águas de uma memória-oceano, ―um rio oceano circular e infinito‖ (p. 221), onde todos os acontecimentos são uma eterna repetição. A última parte do poema deixa claro que esse regresso é feito dentro do próprio sujeito, pela rememoração: ―E meu sangue é memória regressando no caos, reinventando a si mesma em cada sujo enigma, uma esfinge sem cabeça e sem resposta alguma‖ (p. 221). Ao se deslocar em busca das suas origens, o eu-lírico encontra-se perdido nas águas da memória e sem as respostas para as suas perguntas. Esse retorno circular no ―mar de memórias‖ (p. 222) repete-se em ―Vórtice‖, poema seguinte a ―Purificações‖ que incide sobre a rememoração a partir de um ―caminho circunflexo‖ (p. 222), que une as pontas de uma vida em suas várias existências ―no centro do precipìcio‖ (p.222), prefaciando o ―regresso ao mofo do limbo‖ (p.

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222). Essa mesma ideia de regresso perfaz o caminho de outros poemas a exemplo de ―Rotação‖. No poema ―Teogonia‖, o mito da origem do mundo, e do nascimento do homem é reescrito:

No principio era o Caos. Riso enorme na boca (só gengivas) Babando astros confusos, Emprenhado-se, Girândola a girar, facas no açoite. Degolados os nexos e os sexos Devorados os filhos, A Beleza Pariu-se, fria e azul, Entre esponjas-espuma. Coágulos para a sede, Sal nos olhos, Foi de barro e saliva Feito o homem. --- Ah, este selo na carne Este alfinete Como abutre no fígado Foi de cuspe e de lama Fabricado, Manipanso no espelho, Imagem e desconcerto.

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Um parafuso solto Nos avessos Da cabeça de Deus. (FRAGA, 2008, p. 225)

A imagem do Chaos, das Metamorfoses de Ovídio em seus primeiros versos pode ser percebida no poema, mas, com certeza, não é a mesma. Na ―Teogonia‖ de Myriam Fraga, vê-se instalado o tempo do Chaos na imagem de um ser confuso que baba astros emprenhando-se a cada giro no vazio. Depois, há, na segunda estrofe, uma clara referência a Cronos – Urano entre os romanos –, um dos Titãs, deus que comia os próprios filhos temendo ser destronado por um deles. Na terceira estrofe, o mito da criação do mundo, segundo a concepção grega, cede lugar ao mundo bíblico, quando aparece referenciada a criação do homem, feito de ―barro e saliva‖ (p. 225). Essa imagem é conspurcada pelo duplo que é seu reflexo no espelho: um manipanso, imagem que remete a outro universo, pois manipanso é um ídolo africano, geralmente feito de barro que no poema aparece fabricado de ―cuspe e de lama‖ (p. 225). Instaura-se, então, ―o desconcerto‖ do homem e do mundo que é finalizado na última estrofe, com a imagem de ―Um parafuso solto / Nos avessos / Da cabeça de Deus‖ (p. 225). A procura do homem pelo seu passado mais antigo, em uma espécie de arqueologia, é delineada em ―Vórtice II‖, como, também, em ―Arqueologia‖ e ―Sabat I‖. Em ―Sabat I‖ – há uma clara referência, já no título, ao dia que se seguiu após a criação cristã do mundo, quando Deus, após ver tudo que havia feito,

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descansou de sua obra. O primeiro verso do poema chama a atenção para a necessidade de se procurar juntar os pedaços desse passado: ―É preciso procurar, sem dúvida. E reunir os grafitos‖ (p. 229). A purificação pelo retorno a um tempo anterior a tudo se estabelece como um ritual onde se inscreve o mito, conforme se pode perceber no poema ―Litúrgico‖, onde o eu-lìrico ressalta que é atravessando ―a porta sobre o acaso‖ (p. 231) que se tem a ―Textura de pedra / Onde inscrever o mito‖ (p. 231). ―Litúrgico‖ estabelece o ritual como forma de se purificar, por isso, a evocação dos tambores da terra a fim de ―tingir de sangue a lua / No altar dos sacrifìcios‖ (p. 231). Esse retorno sofrido, estabelecido entre o dia e a noite na construção de um mundo anterior a descoberta de que somos homens, deuses e bestas ocorre no poema ―Imaginária‖, encerrando uma etapa dessa viagem pela memória que traz a tona o reconhecimento do que somos e do que fizemos:

Entre fezes vômitos entre silêncios desesperados sangrando sílabas impossíveis corroendo a garganta entre o visto e o nomeado construímos o mundo (FRAGA, 2008, p. 233).

A partir do capítulo dois de Purificações ou o Sinal de Talião, a viagem pelos mares da memória dá lugar à aventura de personagens gregas, como no poema ―Os Argonautas‖, em cujos versos um ―eu‖ plural fala em nome de várias fiandeiras, da necessidade de partir e da dificuldade de se lançar em uma

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aventura rumo ao desconhecido, contrapondo-se a viagem empreendida pelos Argonautas. O poema se estabelece a partir do binômio partir/ficar. É essa a tensão evidenciada pela voz de Penélope na metade do poema, em sua reflexão diante do tear, mas sabemos que só em Os Deuses Lares (1991), Penélope se lança para uma viagem interior, nos limites do seu corpo, um mar oceano. Em ―Os Argonautas‖, temos apenas a tensão em torno do partir e do ficar e os questionamentos de Penélope, problematizando o heroísmo de Ulisses em detrimento de seu solitário ato de tecer/destecer. E, no poema ―Penélope‖, na terceira parte de Purificações ou o Sinal de Talião, a rainha de Ítaca encerra sua viagem interior ao destecer o último ponto do bordado. O poema ―Os Argonautas‖ pode ser visto como um dos momentos do deslocamento empreendido por Penélope na sua busca por respostas, esboçando bem a indeterminação do mapa cartografado no imprevisto do partir e do ficar. Cabe lembrar que o caminho desta viagem é circular e se constitui como um aprendizado. O mapa, cuja função é localizar e possibilitar traçar um roteiro para se chegar a algum lugar, ganha outro sentido na poesia de Myriam Fraga. O mapa proposto em Purificações ou o Sinal de Talião não dá nenhuma certeza da localização das coisas, tampouco permite traçar o roteiro de viagem pelo tempo, conforme pode ser percebido no poema ―Mapa‖:

Viajante do caos, (Aeronauta?)

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Onde encontrar o nó dos pesadelos? O nódulo, a espiral Onde nascem os ciclones? O tempo é a substância única Em que navego. Bússola solta ao acaso, Aeronave, Geografia inventada, precipício De símbolos, de sargaços. Há um Adamastor plantado Em cada traço Deste sujo papel, Deste papiro ingrato Que se enrola e me esconde A outra face. (p. 243)

A viagem no Caos de que trata o poema ―Mapa‖, no qual o sujeito poético segue enfrentando o questionamento em torno do nascimento das coisas, transcorre no espaço de ―uma geografia inventada‖, ―precipìcio de sìmbolos‖ por onde navega o eu-lírico que reconhece em cada traço do mapa que tem nas mãos a dificuldade de sua viagem, metaforizada na imagem do gigante Adamastor. O mapa, nesse poema, seria então uma espécie de ―redistribuição de impasses e aberturas, de limiares e clausuras‖ (DELEUZE, 1997, p. 75). O trajeto percorrido pelo eu-lìrico, a partir do mapa que tem nas mãos, o ―sujo papel‖, ―papiro ingrato‖, segundo Deleuze, ―se confunde não só com a subjetividade dos que

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percorrem um meio, mas com a subjetividade do próprio meio, uma vez que este se reflete naqueles que o percorrem‖ (p. 73). Sem bússola para guiar seu caminho, o eu-lírico, que perpassa boa parte dos poemas de Purificações ou o Sinal de Talião, enfrenta as intempéries de sua viagem na linha do tempo. Assim, o astrolábio – instrumento naval antigo usado para medir a altura dos astros acima do horizonte que os navegantes observavam para se orientar no mar durante as noites – mostra-se ineficaz em ―Desalento‖, incapaz de indicar a direção a seguir por um mar que ―não tem fim‖:

Pelo girar das estrelas, Pelos Astrolábios que crescem No jardim, Pelas agulhas cruéis, Rodopiantes, Sei que não há norte Nem principio. Este navio existe, Mas o porto É uma pedra no fundo Do impossível. Velas turvas do acaso, Que intranquilo É este mar que devoro E não tem fim. (FRAGA, 2008, p. 247)

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Se em ―Desalento‖ o navio, no qual navega o eu-lírico, não encontra porto, pois este ―É uma pedra no fundo / Do impossìvel‖, o absurdo paìs do poema ―Geografia‖, em sua cartografia imprecisa ―De fronteiras levantadas / Contra o vento / E caminhos que / Levam / A nunca mais‖ (p. 266), é um paìs sem territorialidade, um ―espaço / perdido para o uso, / Risco inconcluso / No ar‖ (p. 266) sempre por se fazer. A viagem empreendida nos versos dos poemas de Purificações ou o Sinal de Talião, e em outros poemas de outros livros onde o mito é motivo poético, implica em uma completa ―desterritorialização‖, seja dos mitos bìblicos ou os grecoromanos que passam a ser agenciados no tecido poético da autora pelo deslocamento que é feito de seus lugares primeiros. Em Purificações ou o Sinal de Talião o percurso delineado desde a origem do mundo, dos deuses e do homem, até o périplo de personagens emblemáticos da mitologia grega como os Argonautas, Ulisses e Penélope, se esvai, restando o presente histórico (ou o passado reinterpretado) e mitificado, cujo ponto alto encontra-se no último poema do livro intitulado ―Antielegia para Jonh Lennon‖. Nele, a poeta debruça-se sobre um mito moderno, e dá por encerrado seu périplo, o seu movimento pendular e cìclico‖, caracterìstico da mitologia. Sobre esse tipo de personagem, Nicole Ferrier-Caveriviére (1997), no verbete ―Figuras históricas e figuras mìticas‖ do Dicionário de Mitos Literários, organizado por Pierre Brunel, argumenta que muitas vezes a propaganda, responsável pela propagação da imagem desses personagens, torna-se decisiva

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para dar o impulso inicial, intervindo ainda para sustentá-los e alimentá-los, fazendo de tempos em tempos conjugar-se com impulsos novos que muitas vezes, parte ao mesmo tempo de um fenômeno artístico sofisticado e de um fenômeno popular, sendo consagrado na memória coletiva como grandes ícones. Pode-se citar, na obra poética de Myriam Fraga, alguns poemas em que personagens desse tipo figuram suas ações: ―Antielegia para Jonh Lenon‖, publicado em Purificações ou o Sinal de Talião e ―Maria Bonita‖, ―A pequena notável‖ e ―Joana‖, dentre outros, que se encontram em Femina. Em ―Antielegia para Jonh Lennon‖, poema longo, dividido em dez partes, a poeta evoca a saudade como um canto de amor à canção de um artista que conquistou o mundo e virou ídolo aclamado pelas multidões que o eternizaram. Porém, esse personagem mitificado tem sua sobrevivência condicionada. Sem a mídia que o glorifica e, vez ou outra, faz retornar seu nome, pondo em circulação e acendendo sua lembrança nas gerações seguintes, ele tende a morrer. No poema que pode ser entendido desde o título como um canto contra a tristeza sobre o vazio coletivo, mobiliza um sentimento contrário ao silêncio que é instaurado pela morte, essa ―sombra do vazio‖ (FRAGA, 2008, p. 277). Apesar do sentimento da perda de um sonho que acabou (um mundo mais justo), e da revolta de uma ―fala assassinada‖ (p. 277), presentes na primeira parte do poema, algo parece restar: o próprio canto do cantor, pois ―O que já finda / Não se exaure‖ (p. 277), ou como nos seguintes versos:

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Há de ficar o gosto, As cordas da guitarra, Com que viraste o mundo Pelo avesso. (p. 277)

De certa forma, a postura adotada por Myriam Fraga no trabalho com os mitos na atualidade coaduna-se com a do mitólogo Mircea Eliade, para quem ―(...) compreender a estrutura e função dos mitos nas sociedades tradicionais não significa apenas elucidar uma etapa na história do pensamento humano, mas também compreender melhor uma categoria dos nossos contemporâneos‖ (ELIADE, 1991, p. 8), pois a realidade complexa do mito pode ser vista de diversas

perspectivas que

se

abrem

para

inúmeras

possibilidades

de

interpretação. Ao se utilizar da mitologia, trazendo para seu tecido poético não só uma série de eventos anteriores ao homem, mas também inúmeros personagens mitológicos, a poeta ressacraliza a memória mais profunda de uma coletividade, mediante o conhecimento de uma série de existências pessoais anteriores. Ao mesmo tempo, atravessada pelo presente, a poeta incorpora símbolos, imagens que parecem escapar da determinação histórica e por isso estão plantadas na memória das pessoas que fazem com que elas permaneçam sempre vivas, como é o caso de Jonh Lennon. É em torno desse duplo movimento que Myriam Fraga tece suas Purificações ou o Sinal de Talião, estabelecendo as bases de um projeto poético que irá estar presente de forma disseminada ao longo de sua obra.

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REFERÊNCIAS FERRIER-CAVERIVIÉRE, Nicole. ―Figuras históricas e figuras mìticas‖. In: ―BRUNEL, Pierre (org). Dicionário de Mitos Literários. Tradução de Carlos Sussenkind [et al]. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. DELEUZE, Gilles. Critica e clínica. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 2007. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Perspectiva: São Paulo, 1991. FRAGA, Myriam. Purificações ou o sinal de talião. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. FRAGA, Myriam. Poesia reunida. Salvador: Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2008. HOISEL, Evelina. ―Poesia e memória‖. In: FRAGA, Myriam. Poesia reunida. Salvador: Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2008. PY, Fernando. ―A poesia feita por artesãos. Em bom estilo‖. Jornal da tarde, São Paulo, p. 1, 30 de jan. de 1982. Caderno de Programas e Leituras.

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INTERPRETAÇÃO DA ORALIDADE EM LÍNGUA INGLESA: A REVELAÇÃO DO “MILAGRE DAS LÍNGUAS” Roberto Carlos Bastos da Paixão (Faculdade Atlântico) Gilvânia Alves Matos (Faculdade Atlântico) A comunicação entre os diversos grupos humanos é, em muitas ocasiões, promovida pela ação daquele que procura passar para o outro a mensagem dita em uma língua que este outro não domina, não lê, não escreve e, muito menos, fala. Esta ponte é feita pelo profissional intérprete, tanto em ocasiões informais quanto nas formais, a exemplo de encontros de chefes de Estado, transmissão de conferências, simpósios, festividades e até em guerras. "Dou graças ao meu Deus, porque falo mais línguas do que vós todos." (I Coríntios 14:18). Desde os tempos mais remotos que o ser humano tenta satisfazer sua maior necessidade, a de comunicar-se com o seu semelhante. Assim começa a atividade do intérprete, repassando entre as partes interessadas os significados das mensagens expressas. Trata-se de uma atividade complexa e que exige muito mais do que se pode imaginar daquele que a desenvolve. Muito tempo passou até que novos caminhos fossem sendo delineados no campo da interpretação oral da língua inglesa e, pari passu, foi aumentado a necessidade de profissionais qualificados. Foi assim que nasceu a preocupação da formação acadêmica diferenciada e não tradicionalmente oferecida pelos cursos de Letras/Inglês, cujo objetivo primeiro é, historicamente, o de formar o

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estudante para o ofício do magistério dessa língua estrangeira. Amplia-se o mercado, e como consequencia a oferta de qualificação profissional se faz premente. Daí, as universidades começaram a se movimentar nesse sentido e criaram cursos especializados, tanto na formação de tradutores como na de intérpretes, já existindo até cursos de Letras que adaptam sua grade curricular para atender essa demanda. Com o avanço da globalização, a aproximação das fronteiras e o progresso tecnológico aumentaram as ofertas no mercado da interpretação. O intérprete da oralidade em língua inglesa tem um amplo leque de possibilidades de empregos bem remunerados em quase todos os países do mundo que têm essa língua como idioma oficial.

BREVE HISTÓRICO DA INTERPRETAÇÃO ORAL EM LÍNGUA INGLESA Importante estudo é o produzido por Serra (2007), que, entre diversos aspectos da maior importância, ressalta as diferentes teorias e concepções modernas da comunicação. Baseado em Luhmann (1992), o estudioso assevera que:

A generalidade das teorias da comunicação – muitas das quais se limitam, aliás, a entender a comunicação como a transmissão de uma mensagem de um emissor a um receptor – dá a comunicação como um facto garantido e não problemático. Ora,

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um dos aspectos mais originais da visão de Niklas Luhmann consiste em, pelo contrário, afirmar que a comunicação é uma realidade não só problemática como ―improvável‖ – o que não deixa de ser paradoxal se considerarmos, como o faz o próprio Luhmann logo no início do ensaio em que se refere, especificamente, à ―improbabilidade da comunicação‖, que ―sem comunicação não existem relações humanas nem vida propriamente dita‖ (SERRA, op. Cit., p. 88).

Em detrimento de opiniões conflitantes, a realidade mais palpável é a de que, sem esta comunicação, mesmo que imperfeita, problemática e até improvável, pouco teria avançado a civilização em sua busca contínua de entendimento entre povos e culturas distintas. Quanto às características de uma e outra forma da linguagem (escrita e oral), Andrade (1998, p. 1) admite que:

Uma consulta à literatura lingüística a respeito das diferenças entre fala e escrita, trará como resultado a constatação de que há especificidades de um tipo de texto em comparação a outro e não propriamente diferenças entre as duas modalidades. Biber, na obra Variation across speech and writing, publicada em 1988, afirma que essas diferenças se acentuam dentro de um continuum tipológico. Quanto ao aspecto lingüístico, o autor revela que a diferença é mais marcada.

As semelhanças básicas entre a tradução (escrita) e a interpretação (oral) são examinadas por Pagura (2003), que aponta como objetivo primordial das duas atividades o transporte de uma mensagem expressa em um idioma para outro. Arrojo (1986, p.80), cita a etimologia da palavra "tradução" e explica sua posição:

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"de acordo com a etimologia, tradução (do latim traductione) significa 'ato de conduzir além, de transferir' (...) Como tentamos demonstrar, traduzir, mais do que transferir, é transformar: 'transformar uma língua em outra, e um texto em outro‘ (Jacques Derrida)." Pode-se dizer que o tradutor e o intérprete são profissionais que permitem que uma mensagem cruze a chamada "barreira linguística" entre duas comunidades, sendo comum usar a metáfora "ponte" para designar esses profissionais. Tal imagem é mesmo utilizada no título de conhecida obra escrita pelo tradutor e ensaísta brasileiro falecido, José Paulo Paes, que a intitulou "Tradução: A Ponte Necessária – Aspectos e Problemas da Arte de Traduzir" (Paes, 1990 apud PAGURA, 2003). Melhor explicado, para os fins específicos desta pesquisa, fica o binômio tradução/interpretação na ótica de Lage (2007, p. 13)

Apesar dos termos ―tradução‖ e ―interpretação‖ serem aplicados aleatoriamente no dia-a-dia para descrever a ação de transferir significados de uma língua para outra, suas atividades são totalmente distintas. Tradução refere-se à transferência de significados de texto para texto, normalmente escritos, gravados ou em linguagem de sinais. Nela existe tempo suficiente para consultar dicionários, glossários e outras fontes, portanto, seu grau de precisão é muito maior. Já a interpretação acontece in loco. Por lidar com linguagem oral, existe muito pouco tempo para assimilar a informação transmitida, traduzir para a língua de chegada, doravante LC, e reorganizá-la de modo que o discurso seja coerente. Além disso, a pressão é muito maior, já que todos os conferencistas e clientes encontram-se presentes.

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Com a intenção de clarear o panorama relativo aos princípios dos estudos da história da oralidade, Pagura (2010) ajunta autores do porte de Lang, Meihy, Ferreira, Joutard, Corrêa, Ritchie, Yow, Weber, Thomson e outros para, a partir do cotejamento de suas afirmações, declarar identificar-se com todas as questões levantadas por oskinen e Gile. De Koskinen apud Pagura, o conceito criado por Daniel Gile – através do qual descreve praticantes de interpretação interessados em teorização - pode ter também Contribuído para a ênfase crescente na orientação para a prática nos estudos da interpretação, enquanto que os estudos da tradução são mais propensos à ―teorização de poltrona‖. Tanto a tradução (em sua especificidade textual escrita) quanto a interpretação do texto oral são pensadas e praticadas desde eras remotas. Essa lógica é tocada por Atkinson (2006). Para esclarecer a argumentação, a autora toma a palavra de Pöchhacker (2004a). Essa estudiosa refere-se à figura do intérprete representada no túmulo do General Harembab de Mênfis, de 1546 a. C.; aos intérpretes bem remunerados e atuantes na época do Império Romano e às leis sancionadas pelo trono espanhol durante o século XVI visando à regulamentação das atividades de interpretação nas suas colônias. Além de outros aspectos, Atkinson (2006, p. 21) discorre sobre as traduções bíblicas durante a Reforma e as Conquistas do Novo Mundo e frisa que, durante o perìodo em foco, ―a barreira lingüìstica se rompia com a ajuda dos intérpretes, cujas habilidades eram instrumentais no sucesso ou fracasso dessas

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incursões territoriais com seus múltiplos objetivos‖. Com duas páginas de argumentos,

Schleiermacher

elimina

sumariamente

a

interpretação

das

teorizações:

Esse tipo de desprezo pela interpretação, nada incomum entre os grandes pensadores do passado, que enfatizavam textos sagrados ou literários, retardou o processo de amadurecimento da interpretação, tanto no sentido atual da palavra (uma modalidade da tradução oral), como no sentido dado por Schleiermacher, de tradução que hoje seria dita como ―técnica‖ Atkinson (2006, p. 23).

Nas referências consultadas para a elaboração deste artigo não foi possível notar, entre os textos que se referem à tradução escrita de obras importantes (como aconteceu durante a Renascença, ou em países que se notabilizaram no empenho em traduzir importantes compêndios, como foi o caso da Índia e da Espanha via Escola de Toledo), menção alguma que esclareça se, entre os grandes tradutores da palavra escrita algum deles também tenha exercido a função de intérprete da oralidade. Entretanto, a movimentação e a presença de missionários - na Escandinávia, por exemplo - apontam para a necessidade premente de comunicação oral desses missionários com a população nativa. Daì surgiu ―uma tradução norueguesa da Bìblia, durante o reinado de Haakon V. Magnusson‖, no século XIII (Delisle; Woodsworth, 1998). Acerca das mais antigas informações sobre a atividade da interpretação oral, Pagura (2003) elucida que essa atividade provém, talvés de:

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um hieróglifo egípcio do terceiro milênio antes de Cristo. Há registros de intérpretes na antiga Grécia e no Império Romano. Na Bíblia, o apóstolo Paulo faz a seguinte admoestação em sua Epístola aos Coríntios: "E se alguém falar em língua desconhecida,faça-se isso por dois, ou quando muito três, e por sua vez, e haja intérprete" (I Coríntios 14:28). A atuação de intérpretes também está documentada na Idade Média, seja nas Cruzadas ou em encontros diplomáticos. No Novo Mundo, sabe-se que Colombo trouxe intérpretes em sua expedição, ainda que das línguas erradas: hebraico, caldeu e árabe. Mais conhecido e mais bem documentado é o caso de Doña Marina, famosa intérprete de Cortez em sua conquista do México (cf.: Hogg 1997) (Pagura, 2003, p. 5).

As origens da profissão de tradutor e intérprete comercial, na qualidade de profissionais, no Brasil, estão relacionadas à chegada da família real portuguesa a este país. Muitas eram as mudanças na Europa, pois Napoleão Bonaparte havia invadido Portugal, e intenso era também o movimento no contexto brasileiro que se ensaiava em direção à sua consolidação. Durante o período colonial brasileiro, a língua ministrada nas escolas militares era a francesa, e após a chegada da família real, tanto a língua francesa quanto a língua inglesa, entraram para o currículo escolar, oficialmente. É importante frisar que todo o período da reforma pombalina esteve diretamente ligado ao processo de enraizamento do ensino da íngua inglesa, e com finalidades práticas, como ressaltam Teles e Santos (2009, p. 6), quanto ao papel desse idioma na formação do perfeito comerciante, tendo em vista que ―a

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maior representação das aulas de Inglês para fins específicos se manifestou através das Aulas de Comércio‖. Oliveira (2006, p.31) esclarece que a expressão ―finalidade prática‖ tem relação direta com o ―desenvolvimento das habilidades orais e auriculares dos alunos‖.

FORMAÇÃO ACADÊMICA E PROFISSIONAL DO INTÉRPRETE ORAL EM LÍNGUA INGLESA: UMA NECESSIDADE GLOBAL Muitos são os que praticam a profissão de intérprete: professores licenciados em Letras/Inglês e outros apreciadores que dominam o idioma por uma questão de atração, gosto e dedicação. Da mesma forma vem caminhando há décadas a tradução, realizada precariamente, pois cursos de Letras preparam para o magistério e a especialização acadêmica em tradução e interpretação. Há pouco é que essa profissão começou a despontar como uma necessidade irrecorrível.

Os primeiros intérpretes atuantes em Nuremberg, na ONU e na CECAi foram formados na prática. Nos meios profissionais, dizse que esses intérpretes foram "formados" pelo método "sink or swim", expressão em inglês que significa literalmente "afogue-se ou nade", e que se refere ao fato de que os intérpretes simultâneos eram colocados na cabine para interpretar sem que recebessem previamente qualquer treinamento formal Pöchhacker (1992, p. 212), apud Pagura (2003). No Brasil, os pioneiros no desenvolvimento de um programa dedicado à formação de intérpretes foram a PUC do Rio de

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Janeiro e a Associação Alumni, em São Paulo. Posteriormente, foram criados programas que combinam a formação de tradutores e intérpretes ao mesmo tempo, como o da Faculdade Ibero-Americana, atualmente Unibero. E em 1999, foi criado o Curso de Formação de Intérpretes de Conferência de Língua Inglesa da PUC São Paulo (Pagura, 2003, p. 5).

A formação do intérprete envolve estudos relativos aos aspectos cognitivos, behaviorista, linguísticos, treinamento específico, qualidade em audição e pronúncia; tipos especiais de interpretação, a exemplo de treinamento para interpretar surdos e cegos, etc.

No Brasil, a primeira instituição a se interessar pela formação de intérpretes foi a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. A formação de intérpretes na PUC - Rio refletiu, durante quase toda a sua existência, a prática brasileira, que é a de associar a formação de tradutores e de intérpretes à formação de professores nos cursos de letras, que é, de fato, a mesma situação das outras instituições brasileiras que oferecem tal formação (...) até mesmo por condicionamento da própria legislação. (Pagura, 2010, p.165).Também vale lembrar que, assim como qualquer outro profissional, o intérprete deve obter treinamento específico para a realização de sua função, como uma formação universitária ou o equivalente, pois um certificado de conclusão de curso de línguas não oferece preparo suficiente para as exigências da profissão (Lage, 2007, p.44-45).

INTÉRPRETE

DA

ORALIDADE:

MERCADO DE TRABALHO

PROFISSÃO

EM

DESTAQUE

NO

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Apesar de ser antiga e mesmo uma necessidade humana, a comunicação entre indivíduos de povos de idiomas diversos, e mesmo em detrimento de todo o esforço que vem sendo realizado em torno de se conseguir esse entendimento, há ainda muitas lacunas, e tantas são as oportunidades nas quais se torna complexo providenciar para que isso se concretize, tanto em situações de tradução de textos escritos quanto ainda mais em interpretação da oralidade, sobretudo nesta última. Ainda são encontrados muitos empecilhos quando se quer contratar serviços especializados em tradução ou interpretação da oralidade, especialmente em algumas regiões do Brasil, a exemplo das regiões Norte e Nordeste. Estas dificuldade fazem com que indivíduos se desloquem para outras praças mais desenvolvidas como as do Sul e do Sudeste. Pessoas graduadas em cursos de letras com ênfase no magistério têm desempenhado as funções de tradutor e intérprete, mesmo que essas formações não as habilitem para tal fim:

A fatia mais organizada do mercado de tradução técnica é a das chamadas «traduções juramentadas». No Brasil, as traduções de documentos oficiais devem ser feitas pelos denominados «Tradutores Públicos e Intérpretes Comerciais», cujo trabalho tem fé pública (ou seja, suas traduções são aceitas como documentos oficiais em todas as instâncias legais). São os mais antigos profissionais em exercício na área no país e os únicos cuja profissão é regulamentada, o que ocorreu através de um Decreto Real em 1851, regulamentado pelo Decreto n.º 13.609, de 21 de outubro de 1943, já na República (Barbosa, 2011, p. 6).

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A situação em países mais avançados é diametralmente oposta, e tanto tradutores quanto intérpretes têm oportunidades de realização pessoal e profissional nessas atividades, além de serem rigorosamente preparados para exercer tal ofício dentro do rigor acadêmico.

Employment change. Employment of interpreters and translators is projected to increase 24 percent over the 2006-16 decade, much faster than the average for all occupations (…) Salaried interpreters and translators had median hourly earnings of $17.10 in May 2006. The middle 50 percent earned between $12.94 and $22.60. The lowest 10 percent earned less than $9.88, and the highest 10 percent earned more than $30.91. Earnings depend on language, subject matter, skill, experience, education, certification, and type of employer, and salaries of interpreters and translators can vary widely. Interpreters and translators who know languages for which there is a greater demand, or which relatively few people can translate, often have higher earnings as do those with specialized expertise, such as those working in software localization. Individuals classified as language specialists for the Federal Government earned an average of $76,287 annually in 2007. Limited information suggests that some highly skilled interpreters and translators—for example, high-level conference interpreters— working full time can earn more than $100,000 annually (…) (U.S DEPARTMENT OF LABOR, 2008, p. 331)ii.

A seguir, foi transcrito um trecho de um extenso e explicativo documento do governo norte-americano que apresenta diversos aspectos da maior relevância quanto às áreas que envolvem as traduções de textos escritos e a interpretação de

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situações da oralidade, de forma inclusiva e cidadã, o qual se refere ao intérprete de LIBRAS:

Interpreters and translators facilitate the cross-cultural communication necessary in today's society by converting one language into another. However, these language specialists do more than simply translate words—they relay concepts and ideas between languages. They must thoroughly understand the subject matter in which they work in order to accurately convey information from one language into another. In addition, they must be sensitive to the cultures associated with their languages of expertise. (U.S BUREAU, 2010, p. 1)iii. Work environment. Interpreters work in a wide variety of settings, such as schools, hospitals, courtrooms, and conference centers. Translators usually work alone, and they must frequently perform under pressure of deadlines and tight schedules. Technology allows translators to work from almost anywhere, and many choose to work from home. (U.S BUREAU, p. 1)iv.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ainda é um campo aberto o dos estudos acadêmicos sobre a tradução escrita e, mais ainda, a interpretação oral em língua inglesa. A sociedade sempre se utilizou dos serviços de abnegados profissionais, e somente agora, a partir das movimentações promovidas em todo o mundo civilizado/globalizado, é que novos horizontes se ampliam, cursos são criados e grades curriculares de cursos de Letras - a rigor os de formação para o magistério - têm passado por

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modernização em função da especialização, inclusive no Brasil, privilegiando a formação acadêmica voltada para os aqueles estudos acerca da tradução escrita e interpretação oral. As formações acadêmica e profissional, tanto de tradutores da língua escrita quanto de intérpretes orais em língua inglesa exigem uma preparação especializada que auxilie os profissionais a desempenharem bem essas funções. Outros países, a exemplo dos Estados Unidos e outros da Europa, já estão definidos nesse setor, e o Brasil também caminha para a específica formação de profissionais tradutores/intérpretes. Cada uma dessas atividades depende não apenas do dom natural, mas principalmente de treino direcionado por serem habilidades distintas. Pode ocorrer de um indivíduo desenvolver naturalmente as duas habilidades e funções; entretanto, em geral, quem se dedica à tradução não se torna um intérprete da oralidade. As atividades de interpretação oral de uma língua estão direcionadas ao mesmo tipo de exercício com relação à língua de sinais para as pessoas com deficiência oral/auditiva, nascidas e vivendo em países falantes e escreventes de determinado idioma. Cresce diariamente a demanda por profissionais tanto da tradução escrita quanto da interpretação oral, atividades que apresentam um leque de opções muito amplo. Em geral, as ofertas de trabalho oferecem salários altamente significativos.

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Tendo em vista essas razões apresentadas, consideramos da maior importância a pesquisa e o aprimoramento dos estudos referentes à tradução escrita e à interpretação oral, sendo esta a meta prioritária do presente artigo.

REFERÊNCIAS ATKINSON, Rebecca Frances. O intérprete em seu meio profissional. Por uma voz mais alta. Rio de Janeiro, 2006. Disponível em htttp://www2.dbd.pucrio.br/pergamum/teses abertas/0410526_06_pretextual.pdf. Acesso em: 17.mar.2011. ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução: a teoria na prática. São Paulo: Ática 4° edição 1986. ANDRADE, M. L. da C. V. de Oliveira. Língua Falada e Língua Escrita: Como se Processa a Construção Textual. Natal: 1998. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv lport/pdf/maluv013.pdf. acesso em: 16.mar.2011. BARBOSA, Heloisa Gonçalves. Tradução, Mercado e Profissão no Brasil. Rio de Janeiro. 2011. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/31543474/TraducaoMercado-e-Profissao-no-Brasil. Acesso em: 16.maio.2011. DELISLE, J.: WOODSWORTH, J. (Org.) Os tradutores na história. Trad. Sérgio Bath. São Paulo: Ática, 1998. LAGE, Débora de Mendonça. As dificuldades enfrentadas pelo intérprete simultâneo: Uma análise de casos e uma proposta de estudo. Santos. 2007. Disponível em: http//www.scribd.com/doc/14897239/TCC-Debora-deMendonça-Lage. Acesso em: 17.mar.2011. OLIVEIRA, Luiz Eduardo Menezes de. (2006). A instituição do ensino das Línguas Vivas no Brasil: o caso da Língua Inglesa (1809-1890). Tese de

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Doutorado, Programa de Estudos Pós-Graduados Tese de Doutorado, Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Disponível em: http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2255.Tde_ busca/arquivo.php?codArquivo=2255. Acesso em: 28.nov.2010. PAGURA, Reynaldo. A interpretação de conferências: interfaces com a tradução escrita e implicações para a formação de intérpretes e tradutores. DELTA, São Paulo, v. 19, n°. special 2003. Disponível em:. Acesso em: 01 maio 2010.

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Mestranda do Programa de Pós-Graduação Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Licenciada em Letras – Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). E-mail: [email protected] – Autora. ii

Professora Associada no Departamento de Fundamentos para o Estudo das Letras do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected] – Orientadora. iii Tradução nossa: ―como produtos de uma determinada configuração cultural, que é interessante conhecer também para a própria crítica textual‖. iv

O autor Antonio Cerqueira teve, durante o período da Ditadura Militar, dois textos vetados em menos de um ano: Baioneta Sangrenta (1984) e Blecaute no Araguaia (1983). Os dois textos foram vetados sob a justificativa de incitamento contra o regime militar e ofensa à dignidade ou ao interesse nacional v

Tradução nossa: ―O retorno da Filologia, como atividade fundamental, no Humanismo [...] está fundamentado na leitura e interpretação de textos [...] e no conhecimento de mundo que havia nesses textos‖.

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DE MEMÓRIAS E IDENTIDADES: A CONSTRUÇÃO DO ROMANCE DOIS IRMÃOS, DE MILTON HATOUM Wilton Mota de Miranda Junior (UEFS)

Toda narrativa evoca um determinado contexto, que não se explica nem se esgota na narração; não dá conta da intencionalidade daquele que narra nem explica a totalidade histórica na qual aquela narrativa esteve envolvida e se nutriu. A condição de narrar não demite o contexto nem é apenas pura vontade estrutural. [...] Todo discurso traz em si a marca de sua estruturação; tudo se dá por meio da estrutura, mas a estrutura ausente a toda essa ideia formalizante está a acenar para o pensamento: ela é a possibilidade de criação de mundos, de reflexão acerca dos movimentos históricos e da massa, do indivíduo e da coletividade, que faz do material literário um campo de possibilidades tão mais fértil do que qualquer outra área do saber. (OLIVEIRA, 2008, p.70)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Filho de imigrantes libaneses, Milton Hatoum (1952 - ) figura como destaque dentre os escritores brasileiros contemporâneos, haja vista, os prêmios concedidos à sua obra e o fato de seus romances estarem sendo traduzidos em

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diversas línguas. Foi professor de literatura na Universidade Federal do Amazonas e na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Sua obra publicada, ainda pequena, é formada por cinco títulos, o primeiro Relato de um Certo Oriente, publicado em 1989; Dois irmãos, 2000; Cinzas do Norte, 2005; Órfãos do Eldorado (novela), 2008 e o mais recente A cidade ilhada (contos), 2009. A ficção desse escritor privilegia assuntos voltados à hibridização cultural, sendo muito pertinente aos atuais questionamentos pós-modernos. Nesse sentido, os materiais produzidos por ele têm interessado aos estudos literários e culturais, sobretudo nas pesquisas que tratam de memória, ficção, identidade e história. Além de Hatoum, vários escritores contemporâneos têm uma forma diferenciada de produzir suas histórias, em tal perspectiva é possível notar uma escrita que se lança sobre o terreno movediço da memória, assim como a questão da reconstrução das identidades presente nas narrativas, dando privilégio às discussões do esvaziamento do sujeito. Várias vozes, várias focalizações. Podemos citar, a exemplo, as atuais produções literárias de Chico Buarque de Holanda (1944 - ), com o romance Leite Derramado (2009); do português José Saramago (1922 - 2010), com o seu Ensaio Sobre a Cegueira (2001) e Zulmira Ribeiro Tavares (1930 - ) com suas Jóias de Família (2007). O romance Dois Irmãos, publicado em 2000, rescindiu um silêncio de 11 anos, nos quais Milton Hatoum se calou enquanto romancista, desde a publicação do aplaudido Relato de um Certo Oriente, seu romance de estreia em 1989. Em

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entrevista, ele declarou que cada livro o ensina a escrever, (SCRAMIM, 2006, p 05). Então, Dois Irmãos lhe ensinou e muito. Nessa obra, ele demonstra grande domínio da técnica da ficção, como afirmou a crítica especializada quando do seu lançamento (MACHADO, 2000, p. 04), num estilo mais enxuto que o da primeira obra e, ao mesmo tempo, repleto de nuances e astúcia. O fio da trama está alicerçado em torno da tumultuada relação entre dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, em uma família de origem libanesa que vive em Manaus. Nesse sentido, não podemos nos esquecer desse duelo universal dos irmãos gêmeos que se odeiam. Como não fazer referência à história bíblica de Esaú e Jacó e ao romance de Machado de Assis (1839 - 1908) intitulado com esse mesmo nome (ASSIS, 2002). A narrativa apresenta avanços e recuos no tempo, não há uma cronologia linear. Os problemas vão sendo revelados ao leitor aos poucos, conforme o narrador rememora fatos esclarecedores e os encadeia para solucionar (ou deixar em dúvidas) os enigmas da história. Recorremos a diversos estudos que problematizam a identidade e a memória nas discussões atuais. Entre os diversos aportes acerca da identidade, vale destacar as contribuições de Stuart Hall (2001) e Néstor Garcia Canclini (1997); Quanto à memória, fez-se uso dos estudos de Walter Benjamim (1987 e 1994). Para melhor êxito desta pesquisa, optamos por dividir o artigo em duas partes. A primeira, que recebe o título de Memória, Identidade e Ficção, busca

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explicitar aspectos teóricos relativos a memória, a identidade e a literatura, articulando os conceitos de diversos estudiosos, com o objetivo de colocar em diálogo variadas fontes do conhecimento, o que ao nosso ver possibilita uma construção discursiva polifônica capaz de nos levar a refletir sobre tais categorias, numa perspectiva mais contemporânea. Já no segundo momento, dissertaremos sobre A Memória como fio Construtivo da História de Dois Irmãos, onde haverá uma discussão pautada nos conceitos elencados anteriormente na leitura do corpus em estudo.

1. MEMÓRIA, IDENTIDADE E FICÇÃO A questão da identidade não pode ficar indiferente ao problema da memória: se numa concepção ―clássica‖ o patrimônio mnemônico define a identidade, à medida que permite ao sujeito reconhecer o seu próprio permanecer no tempo, já numa visão ―crìtica‖ como a contemporânea, essa identidade transforma-se em mera etiqueta externa para o reconhecimento de um grupo, que se define com base nas relações com o mundo exterior e por conseguinte com base na própria diferença. (COLOMBO, 1991, p. 118) Segundo Colombo (1991) a identidade e a memória andam juntas, numa relação de interdependência, seja na visão clássica, ou na visão mais contemporânea, como é afirmado na citação acima.

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Os sistemas de representação também são dependentes das questões mnemônicas e identitárias, como afirmam Wellek e Warren (1962), por exemplo, ao apresentar a literatura não como reprodução ou mera mimetização dos fenômenos sociais, políticos, econômicos, religiosos, rejeitando a ideia de que o texto literário representa fielmente a ―situação social corrente‖, mas sim que ―a literatura descreve alguns aspectos da realidade social‖. Concluindo que ―um escritor não pode deixar de exprimir a sua experiência e a sua concepção total de vida; mas seria manifestamente falso dizer que ele exprime a vida total – ou até mesmo a vida total de uma certa época‖ (WELLEK; WARREN, 1962, p. 114). Sendo assim, a escrita de um autor qualquer traz consigo a leitura individual de mundo dissipada em linguagem, trazendo senhas de identidade e de sua própria memória. Corroborando com esse pensamento acerca da linguagem enquanto representação, Perrone-Moisés (1990, p. 105) acrescenta que ―a linguagem não pode substituir o mundo, nem ao menos representá-lo fielmente. Pode apenas evocá-lo, aludir a ele através de um pacto que implica a perda do real concreto‖. A linguagem, nesse viés, pode ser compreendida como um empreendimento de dizer o mundo e as coisas e não de ser o mundo e as coisas. Por meio da linguagem é que a memória consegue registrar imagens e presentificar essa imagens do passado redimensionadas no presente por meio do discurso, a memória desempenha um papel subjetivo de entrecruzar as

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percepções imediatas às lembranças, gerando uma relação enorme de vários momentos, (VIEIRA, 2007, p. 27 – 28). Por seu turno, Milton Hatoum declarou que:

A memória mais fértil para a literatura é a cena que vem à mente de um modo subido e impreciso, que nem uma faísca. Não é a memória vigiada, da lembrança refletida e consciente da inteligência. Beckett, num ensaio sobre Proust, chamou a memória involuntária de explosiva, uma espécie de mágico rebelde que extrai o útil e o previsível da lembrança pontual. (MARCELO, 2005 p. 03)

Ao pensarmos em memória como matéria de produção literária, devemos pensar que ela traz muito mais incertezas do que convicções, uma vez que, a memória se trata de um movimento fragmentado de montagem, logo existe sempre o risco das incertezas plantadas pela imaginação e recriação. Para Benjamim (1994, p. 37), a ação de rememorar sempre está ligada com a vazão dada à imaginação, logo, a invenção é a dominante, afinal, ―um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois‖. A utilização da escrita por meio da memória pode ser traduzida como uma escolha que nos remete aos próprios sujeitos da narrativa, enquanto fragmentados, assim como a própria memória também se caracteriza. Benjamim (1994), propõe uma concepção de tempo que não seja tido e elaborado como o

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tempo vazio e homogêneo do materialismo histórico, propõe um tempo ―saturado de ‗agoras‘‖ (p. 229), que não pode ser tido como cronológico, muito menos linear, antes, um tempo não-cronológico e não-linear, um tempo aberto e capaz de se projetar em todas as direções, como apresentados na ficção do amazonense, em que cada história é uma oportunidade para uma nova narrativa, que deságua (desencadeia) numa outra, que traz consigo outra e, desta forma, incessantemente,

reproduzindo

a

―dinâmica

ilimitada

da

memória‖,

(GAGNEBIN, 1994, p. 13; idem, 1999, p. 48 – 51). Essa dinâmica da memória fragmentada, inventada e traduzida dá vazão aos questionamentos relacionados à identidade e toda a sua problemática, pois os sujeitos buscam na memória a construção de sua própria identidade, seja a partir da memória extremamente individual ou por meio da memória coletiva, do seu grupo social. Para Hall (2001), as identidades pós-modernas passam por um momento de fragmentação, o que leva ao surgimento de novas identidades, sujeitas ao plano da história, da política, da representação e, principalmente, da diferença. Essa fragmentação, para o estudioso, é causada pelo descentramento dos quadros de referências que ligavam o indivíduo ao seu mundo social e cultural. O principal fator para esse descentramento é a globalização. Para ele, ela altera as noções de tempo e espaço, fazendo com que as estruturas e os sistemas fixos de significações sejam desestruturados, dando vazão ao surgimento de uma pluralidade de novas identidades.

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Num mundo que se vê afundado em seus questionamentos, um mundo extremamente diferente, dito pós-moderno, não podemos pensar em ―uma identidade fechada e essencializada‖ (CHIARELLI, 2007, p. 26). Ao falar da ficção de Milton Hatoum, como não citar a experiência do imigrante e dos indivíduos que saem do seu lugar de origem, tão freqüentemente, sejam para buscar novas possibilidades, ou até mesmo motivado a conhecer novas culturas. Neste sentido, podemos evocar as considerações de Todorov (1999) sobre o fenômeno que denomina de transculturação. Para o estudioso, o sujeito desenraizado sofre em um primeiro momento com a saída de seu lugar, mas que aprende e muito no novo lugar. Notamos, em nosso momento histórico, intensas trocas culturais travadas por diversas motivações e várias circunstâncias. Disso trata Canclini (1997), ao estudar a hibridação cultural dos países latino-americanos. Para o antropólogo, há em nossa contemporaneidade a existência mútua entre as tradições culturais e os projetos de modernização, bem como o diálogo possível entre as culturas erudita, popular e de massas. Logo, não há possibilidade de se conceber uma cultura pura, a cultura é heterogênea, assim como a própria história também é. Milton Hatoum se coloca como um proliferador de uma literatura que privilegia assuntos pertinentes à pós-modernidade. O autor privilegia as relações culturais existentes em nossa sociedade, a questão da diferença e diversidade. A nação brasileira se constitui nessa diversidade cultural gerada pelos processos da

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imigração e pelos próprios processos internos, já que vivemos em um país de grandes proporções territoriais e é exatamente nesses aspectos que se firma a literatura hatouniana. O trabalho com a memória desfocada, as representações de identidades hibridizadas, as relações interculturais, as trocas culturais, tudo isso evidenciado numa escrita cheia de emoção, regada numa busca incessante pelas identidades perdidas.

2. A Memória como Fio Construtivo da História de Dois Irmãos As memórias se desentendem, diz um personagem de Rosa. Quando um narrador ou personagem se lembra de tudo, então o passado vira um inferno, ele vive o tempo todo em vigília, vive o pesadelo da insônia [...] Talvez para um ficcionista a memória seja sinônimo de imaginação. Você falou de um jogo com o tempo e o fatos; acho que são jogos do tempo com as vozes do passado, as muitas versões. (SCRAMIN, 2000, p. 06) A questão da memória é algo patente no romance em estudo, como percebemos na citação acima, onde Milton Hatoum, em entrevista, fala sobre a presença das várias memórias e das várias focalizações dadas pelos personagens e pelo próprio narrador da história, para os acontecimentos.

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Percebemos a presença dessa memória já ao abrir o romance Dois Irmãos, nas primeiras páginas nos deparamos com uma epígrafe que traz o seguinte poema de Calos Drummond de Andrade:

A casa foi vendida com todas as lembranças todos os móveis todos os pesadelos todos os pecados cometidos ou em vias de cometer a casa foi vendida com seu bater de portas com seu vento encanado sua vista do mundo seus imponderáveis [...]

No romance, assim como a casa apresentada pelo poeta, a memória também é configurada enquanto ruínas. Esta memória em ruínas demonstra que o narrador, Nael, filho da empregada da casa, com um dos gêmeos, é uma testemunha que, a partir da descontinuidade da casa e da destruição familiar, nos conta a história de Manaus, do povo em geral e a dos imigrantes, mesclada à sua experiência identitária individual. Logo, essas ruínas registram a imagem desse passado ausente, dessa falta de origem, e dá possibilidades para que ele, Nael, escreva um presente distinto e apresente uma história envolta na diversidade cultural, graças ao entrecruzamento e ao relacionamento entre diferentes grupos étnicos, que possuem tradições e linguagens diferentes. Nael é, portanto, o único que testemunhou e que guarda a memória desses grupos e do passado coletivo que reconstrói na e pela narrativa.

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Nael, em seu duplo posicionamento, o de observador (HATOUM, 2000, p. 29) e o de sujeito participante da história (idem, p. 200), rememora os fatos dos quais participou e tenta, ao dissipar esses acontecimentos em linguagem reconstruir além da história daquela família, a sua própria identidade, fazendo com que nós, leitores, nos atentemos às culturas distintas que ele apresenta e que estão ligadas à formação cultural do Brasil e também a sua própria identidade, como observa Oliveira (2008, p. 72): A questão da identidade forma uma espécie de zona de fronteira, que nos leva, em Milton Hatoum, a pensar a idéia de nação e nacionalidade como algo imaginado nas frestas, em entre-lugares. O poder, ou os poderes da ficção, nesse caso específico, caso quase único na prosa brasileira atual, estão a nos representar o mundo não mais pelos caminhos apontados a partir de 1922, mas no embate com as formas complexas de organização identitária, sejam elas locais ou universais, nacionais ou planetárias, individuais ou de massa. Assim, o narrador de Dois Irmãos se encontra no meio dessas culturas e tenta articular, utilizando a sua memória para dissipar essas experiências, não só as dele, como a de sua família e de toda uma sociedade formada em Manaus, em que o estar entre culturas faz com que as identidades passem por espécies de reconstruções ou, ainda, pelos processos do aceitar as diferenças e do viver imerso na diversidade.

Aquilo que alguém viveu é, no melhor dos casos, comparável à bela figura à qual, em transportes, foram quebrados todos os

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membros, e que agora nada mais oferece a não ser o bloco precioso a partir do qual ele tem de esculpir a imagem de seu futuro. (BENJAMIM, 1987, p. 41 – 42)

Essa fala de Walter Benjamim representa muito bem a narrativa identitária construída pelo narrador de Dois Irmãos, que vê nos fragmentos de vida, que sobraram da casa da infância, pedaços de memória, dos quais procura recuperar uma suposta inteireza do passado. Para buscar essa inteireza no passado, duas vozes são cruciais para o desenrolar da narrativa. Nael conta com a memória, os relatos e as confissões de dois outros personagens que são dos mais importantes para a construção discursiva, são eles Halim, seu avô e Domingas, sua mãe. Com as contribuições orais desses dois personagens, Nael tece a narrativa a partir de sua memória, onde recupera e dissipa em escrita essas contribuições. O próprio Hatoum nos chama a atenção para esses dois personagens ao dizer em entrevista que Domingas e Halim são os que contam as histórias, eles dois possuem as vozes que contam mais, sem dizer tudo, ou toda a verdade, além de afirmar que esses dois se ligam mais intimamente a Nael, pois sabem mais sobre o passado do narrador (SCRAMIN, 2000, p. 06). O próprio narrador nos diz que a história contada por ele depende de Domingas, (HATOUM, 2000, p. 25). Bem como reconhece a importância da voz e das conversas que teve com seu avô Halim, (idem, p. 265).

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Nos momentos em que o narrador, ao tecer a narrativa, utiliza os relatos de Halim e Domingas, ele se vê diante de uma fonte ambígua, não confiável, em que os lapsos da memória abrem um jogo com a invenção e a omissão dessas personagens:

Talvez por esquecimento, ele omitiu algumas cenas esquisitas, mas a memória inventa, mesmo quando quer ser fiel ao passado. [...] Desta vez Halim parecia baqueado. Não bebeu, não queria falar. Contava esse e aquele caso, dos gêmeos, de sua vida, de Zana, e eu juntava os cacos dispersos, tentando recompor a tela do passado. ―Certas coisas a gente não deve contar a ninguém‖, disse ele, mirando nos meus olhos. (HATOUM, 2000, p. 90 - 134)

Essa citação vem somar ao que falávamos na seção anterior ao citar as idéias de Walter Benjamim, como bem esclarece Francisco (2007):

O romance moderno, de modo geral, e o romance hatouniano, em particular, expõem em sua forma narrativa o fato de que o tempo, a história e, portanto, a consciência humana não existem enquanto sucessão ordenada de momentos neutros, em que cada momento se inicia no ponto onde o outro termina, mas que, antes, cada momento contém todos os momentos anteriores, como nos lembra Walter Benjamin quando fala de um tempo repleto de ―agoras‖ [...] O filósofo alemão postula a existência de uma temporalidade não-linear, não-cronológica, um tempo aberto e capaz de se projetar em todas as direções. (p. 55)

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O que há no romance, e que o próprio Nael nos conta, é um jogo prazeroso que move a narrativa e que oscila entre o lembrar e o esquecer (HATOUM, 2000, p. 265), mantendo o suspense em relação à origem do narrador, e que também nos deixa perplexos ante a sua construção identitária, que é o segredo guardado naquela família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Como conclui Vieira (2007, p. 7), ―Assim, a busca de si é sempre um percurso, nunca uma chegada definitiva‖. E notamos isso no fim do romance, instante no qual a impossibilidade da descoberta de quem era seu pai acontece: a morte de Halim, a morte de Zana, a morte de Domingas, personagens que sabiam toda a verdade...

A casa foi se esvaziando e em pouco tempo envelheceu. (...) Hoje, penso: sou e não sou filho de Yakub, e talvez ele tenha compartilhado comigo essa dúvida. O que Halim havia desejado com tanto ardor, os dois irmãos realizaram: nenhum teve filhos. Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos. (HATOUM, 2000, p. 184 - 196)

Ao fim do romance, a dúvida persiste. As identidades ficam em suspensão. O que se tem no romance de Hatoum é um entrelaçamento de

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histórias do passado em relação dialógica com o presente. Existe um embate entre o tempo e a memória, o que acaba por desencadear enigmas insolúveis. Logo, há um campo fértil para a ficção, para o trabalho da imaginação. A família de Halim e de Zana se decompõe. O espaço de vivências deixa de existir, a memória do narrador é a única ponte que nos leva a pensar as questões daquela família. O romance Dois Irmãos é escrito mediante a possibilidade da rememoração, que por sua vez trabalha com o jogo da invenção. Existem dois tempos distintos: o momento dos acontecimentos no plano real, e o momento em que eles foram recriados pela memória do narrador e também das personagens. Portanto, as experiências do passado remodeladas pelo presente lançam o indivíduo diante de um quadro de indefinição e angústia, alocando o sujeito em um espaço e um tempo, moldados por uma tensão entre sua identidade individual e a identidade coletiva. As relações familiares, a casa dos imigrantes libaneses, apresentada pelo narrador pode ser entendida não apenas como um cenário de desavenças, das paixões, das concórdias e discórdias entre seus membros, mas também como um local do diálogo de várias culturas. É neste ambiente familiar que há os entreolhares das diferenças, o que pode significar ainda o ponto de partida e de chegada do narrador em busca da sua identidade, tentando, em vão, como foi percebido, reconstruí-la em sua plenitude. Buscamos nesse breve artigo tratar da fragmentação da memória e dos sujeitos (identidades) nas narrativas atuais, delimitando o estudo na obra de um

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autor que vem contribuindo nas discussões culturais contemporâneas, sobretudo, porque nos faz pensar a nacionalidade brasileira como uma construção identitária plural, instável, uma construção imersa na diversidade cultural. Essas discussões atuais de memória e identidade, bem como o estudo de sua representação literária propiciam a discussão de algumas questões que dizem respeito à identidade subjetiva e cultural (CANCLINI, 1997) e à crise e à instabilidade do sujeito contemporâneo (HALL, 2001). Colocados e evidenciados esses processos, vale lembrar que no romance Dois irmãos, a narrativa é construída por um discurso fragmentado, carregado de lacunas, interditos, segredos, esquecimento e nas instabilidades tanto do sujeito, sua memória e sua identidade, como do seu meio social. Assim sendo, este estudo procurou mostrar como Milton Hatoum, no romance Dois Irmãos, discute e utiliza dos meandros da memória como um veículo de representação de identidades, e como diversas culturas e tradições podem ser aproximadas por meio do emprego dessa memória. Verificou-se, nas histórias narradas por Nael, durante o seu empreendimento em descobrir a sua origem e com isso estabelecer-se enquanto sujeito de uma cultura, a voz de uma coletividade, demonstrando a grande necessidade do outro na construção da identidade e da memória individual. A memória do narrador é embaralhada por vários fragmentos e pelo resgate dessas múltiplas vozes que possibilitaram, na medida do possível, a reconstrução da sua identidade, enquanto sujeito plural.

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