«A poesia é um baptismo atónito: a poesia e o sagrado n’Os Selos de Herberto Helder», in C. Dumas, D. Rodrigues & I. Santos (eds.). Herberto Helder: Se eu quisesse enlouquecia. Oficina Raquel, Rio de Janeiro, 2015, pp. 84-93.

May 24, 2017 | Autor: Martinho Soares | Categoria: Sacred (Religion), Contemporary Poetry, Herberto Helder
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A poesia é um baptismo atónito: A poesia e o sagrado n’Os Selos de Herberto Helder

Martinho Soares/Maria Helena Jesus (in C. Dumas, D. Rodrigues & I. Santos (eds.). Herberto Helder: Se eu quisesse enlouquecia. Oficina Raquel, Rio de Janeiro, 2015, pp. 84-93).

A missão do crítico literário, leitor da poesia de Herberto Helder, parece condenada, à partida, ao fracasso e à blasfémia. Tentar tornar inteligível uma poesia propositadamente urdida de ininteligibilidade, tentar trazer luz a um texto que se rodeia intencionalmente na obscuridade, significa, antes de mais, desrespeitar, se não mesmo profanar, a intencionalidade artística do seu autor e a sacralidade do objeto. Todavia, a necessidade de celebrar o génio e a sua obra, leva-nos a devorar partes escolhidas do seu corpo e a abusar dele para ilusória satisfação da nossa estranha compreensão. Não se confunda nunca a nossa aparente facilidade com a facilidade do texto. Toda a suficiência é falsa e dramática. É fútil escrever: ilegível – e construir uma teoria lógica da ilegibilidade, uma tradição também, memória, «contexto», como eles designam, e decorre tudo isso de ilegível equívoco das transposições: transpor do instável e incontrolável para o estatuto controlável; com o pouco das cabeças quer entender-se a sensível cadeia das coisas que transitam, representadas, traduzidas, apresentadas, das correntes da terra para as correntes do poema (Herberto Helder, «Por exemplo», in A Phala, nº 69, Abril de 1999, p. 90).

Feita esta declaração de princípios, que consubstanciam o reconhecimento prévio da nossa impotência e a possível traição a um poeta cioso da sua obra, preocupado em defender a sua joia das mãos rudes e das sensibilidades embotadas, apresentamos, não em modo de transposição, antes de aproximação, não em modo de explicação, antes de subjetiva refiguração, uma leitura livre de alguns retalhos do tecido poético de Herberto Helder. Uma leitura livre que se assume necessariamente condicionada do ponto de vista da exocronia e da exotopia. A decomposição do tema inicialmente proposto, “A poesia é um baptismo atónito: a língua, os elementos e a magia dos nomes na Poética de Herberto Helder”, daria só por si para alimentar um 1

congresso e para traçar um arco hermenêutico que abraçasse toda a produção herbertiana. Por conseguinte, optámos por reduzir o campo das isotopias ao binómio a poesia e o sagrado no cotexto da obra “Os Selos”, de 1989, donde extraímos o selo da nossa comunicação. Mesmo assim, dada a complexa e fecunda interpenetração de temas e imagens que se disseminam por esta obra poética, apenas teremos tempo para alguns breves e esparsos lampejos. Tomemos como ponto de partida a citação de base. Diz o sujeito poético, na página 565 d’ Os selos:

A poesia é um baptismo atónito, sim uma palavra surpreendida para cada coisa: nobreza, um supremo etc. das vozes –

A metáfora une com uma cópula a poesia e o baptismo, reenviando de imediato o leitor ao campo do religioso. Depreende-se a dimensão sagrada, lustral e sacramental da poesia, enquanto expressão visível de uma realidade secreta, invisível. O poeta assume-se como demiurgo, investido de ofício divino, capaz de instaurar novas realidades semânticas pelo esvaziamento, transmutação e recriação da polpa dos significantes. Ademais, “baptismo atónito”, pela capacidade de reinventar ou “surpreender uma palavra para cada coisa”. É missão do poeta surpreender novos nomes para o real. A sua palavra herdou a eficácia do sacramento, imprime caráter, e a eficácia ilocutória do logos divino, cuja elocução produz ação.

---------------- Falava-se com Deus porque Deus era potência, Deus era unidade rítmica, a mão sobre as coisas com vida sua, com essa mão reunir as coisas, refazer as coisas – cada coisa tem a sua aura, cada animal tem a sua aura, como se pastoreiam as auras! em transe: eu sou a coisa. Acabou.

Por outro lado, dentro do cotexto da obra, a poesia simboliza o renascimento para uma vida nova, para uma biografia rítmica selada na poesia, depois do caos e da destruição apocalíptica decretada por Deus. 2

«Tornei mortal o cantor na sua cana cantora Deus olha-o na cara, e ele sonha-me; Deus enlaça-o, rutila; Deus E os seus mamíferos, em mim, canto, Biografia rítmica. Mestres».

A aproximação simbólica da linguagem e do ofício poético ao mundo do sagrado é uma das tónicas dominantes desta obra de Herberto Helder. Tal acontece por meio da intertextualidade, processo frequente e bastante significativo na poesia deste autor. Desde logo o título “Os selos” remete-nos para o imaginário bíblico, mais concretamente para o Apocalipse de S. João. Numa importante monografia dedicada à exegese literária desta obra herbertiana, João Amadeu Oliveira Carvalho da Silva pôs a descoberto essa relação intertextual, feita de paródia, de alusões e mesmo de iconoclastia. Afirma este estudioso da poética herbertiana que o intertexto bíblico é um “pretexto que se conjuga com a sensibilidade” de Herberto Helder (p. 20). De facto, a natureza profundamente simbólica da sua poesia encontrou no último livro da Bíblia um campo fértil de símbolos criativos, violentos e bizarros, que lhe permitiram adotar “o idioma demoníaco”, quebrar os selos e soltar os prodígios. Quebram-se os selos, instaura-se o caos semântico e sintático, pois, afirma o sujeito poético: “O caos nunca impediu nada, foi sempre um alimento inebriante”. Sem caos não há criação. Da morte surge uma nova vida, do caos uma nova ordem semântica, morte e vida simbolizadas nas isotopias dos mortos e da criança. Do caos o poeta fará brotar a força pura das coisas, a energia, o fogo inebriante. Trata-se de destruir o mundo para o recriar. A grande diferença é que no Apocalipse os artistas são lançados no abismo juntamente com Babilónia, o que leva o poeta a abrir o seu livro com a seguinte pergunta: “Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?” Mais à frente, diz-se:

Deus não se debruça na canção; destroça a cadência – o demoníaco. Já não se vê um degrau arrancar de outro degrau pelas lentas escadarias de mármore ao fundo. A canção abandonou o seu espaço contínuo.

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Deus é descrito como um demónio que quebrou a arte dos artistas, a sua “música” e “cantaria”, feita de unidade rítmica, o que leva o poeta a interrogar-se sobre a capacidade de Deus de entender a arte dos artesãos. Por conseguinte, o poeta empenhar-se-á em demonstrar como são homólogos os ofícios de Deus e do poeta, ambos capazes de destruir e reconstruir o mundo, ambos capazes de desselar e selar o livro da vida. O poeta é alguém capaz de meter a mão no fogo:

Se afinal a substância de alguém que pôs a mão no fogo é igual à substância do fogo enquanto grita. A substância de um homem e de uma estrela; a mesma. O poder de criar a canção, isso. Bato na rosácea com o martelo o rosto onde bate a rosácea roda voltado para cima –

Ou então de descer aos infernos, qual Orfeu, para resgatar a poesia-Eurídice exterminada com a Babilónia:

-------------------------- magia é um arrepio canibal, um canto. E o canto doma os animais, acorda Eurídice pelo coração. Amor, abre-me os feixes na testa com as unhas rútilas, esse equipamento feroz; munificia-me: eu sei eu perdi-me entre a realeza dos mortos eu sei que levaram o, diz-se quotidiano até ao extraordinário: madres e cordões irrigando os sacos.

Note-se a construção simbólica do amor simultaneamente como salvação e como eleição poética, um amor que salva, e investe o poeta do seu múnus cantante. A alusão intertextual recupera a imagem apocalíptica dos resgatados, daqueles que foram poupados à destruição, marcados na testa com o nome de Deus e do Cordeiro. Mas abre também para a imagem matricial da poesia, e para o renascimento batismal que esta permite. Veja-se a recorrente antinomia morte-nascimento aqui entre “os mortos” e “as madres e cordões irrigando os sacos”, numa clara alusão ao ventre materno. O movimento poético fecha-se em círculo, o poeta termina selando o seu próprio livro por palavras entre o caos e a arte, para que os “mestres” o não possam desselar. 4

Atente-se no plausível sarcasmo com que o sujeito poético caracteriza os críticos literários, aqueles que procuram violar o selo do seu livro:

Doces criaturas de mãos levantadas, ferozes cabeleiras, centrífugas pelos olhos para se deslumbrarem com a iluminação, entretecidas, membros com membros, nos confins. Se lhes dão voz, se uma fala nos círculos. «Mestres,».

Daí, o sentimento de culpa que demonstrávamos no início desta exposição, o sentimento de estar a violar algo que se queria inviolável e indecifrável, e, por isso, em contínua transformação.

----------------- Mas pode alguém ser mestre aqui, de onde se ofuscam, cândidos animais transmudando-se? «Eu sou o manancial nos hortos inocentes.» Nenhum mestre, porque se eles se tocam – um ao outro desabrocham.

A poesia herbertiana é corrida de um movimento biográfico, de uma força vital que se transmuda em palavras. As imagens do passado, guardadas na memória do poeta, são transformadas em “pedraria vibrante”, com que o sujeito lírico se sela “nas palavras com veias”.

«Mas eu não me conheço sem a força que me passa, toda em imagem destravada ao jubileu das memórias; […] ------ Tranca-me numa pedraria vibrante. Para que eu me revele em mim. E me sele nas palavras com veias. 5

As ressonâncias apocalípticas disseminam-se e transmudam-se ao longo do texto, tornadas percetíveis em lexemas como água, fogo, leão, leopardo, lua, morte, noite, nome, olhos, ouro, porta, prodígios, sangue, selos, vestidos, cavaleiro, cavalo, anjos, etc. No entanto, Herberto Helder não é um fiel depositário, ele utiliza os símbolos bíblicos livremente, sem a preocupação de preservar o seu contexto histórico ou exegético, de uma perspetiva parodística, pervertendo-lhes amiúde o sentido original. Foi-se ver no livro: de um certo ponto de vista de: terror sentido beleza acontecera sempre o mesmo – quebram-se os selos aparecem os prodígios a puta escarlate ao meio dos cornos da besta máquinas fatais, abismos, multiplicação de luas – o inferno! alguém disse: afastem de mim a inocência eu falo o idioma demoníaco. há imagens que se percebem: a do leão às escuras bebendo água […] ------------------ Há quem pinte cavaleiros luminosos montados em cavalos azuis. Vão para a guerra, vão matar, roubar, violar, Deus olha. sangue. Quais os problemas? Vermelho e azul, distribuição das formas, a beleza e os seus segredos – o número, a razão do número que tudo seja perfeito em coral e cobalto.

Nenhum dos quatro cavalos referidos no Apocalipse é azul, as cores são o branco, vermelho, negro, esverdeado. A prostituta que aparece mencionada no capítulo 17 está sentada sobre a Besta escarlate, e não, como diz a adaptação poética, “ao meio dos cornos da besta”. O leão é um elemento importante do Apocalipse, mas a circunstância em que o coloca o poeta, “às escuras bebendo água / gelada” é criação sua e remete já para o cenário mítico africano que enforma grande parte dos poemas deste livro. Percebe-se algum sentido crítico na forma como se dispõe Deus, no papel de espetador vingativo da matança. Nos versos “distribuição de formas, a beleza / e os seus segredos – o número, a razão do número” pode ler-se uma alusão à profusa utilização 6

dos números e das suas secretas combinações simbólicas no Apocalipse: como seja o 7, o 12 e o 666. Este último, de acordo com o texto bíblico, é o número da Besta. Referese ainda, a propósito, “o nome da Besta ou o número do seu nome” (Ap 13, 17). A exegese bíblica explica que em grego e em hebraico cada letra tinha um valor numérico segundo o lugar no alfabeto. O número de um nome é o total das suas letras. O mais significativo ato subversivo está na adoção declarada do idioma demoníaco, o poeta é um ser infernal, no fogo encontra o poder de se destruir e de se recriar em formas artísticas, que lembram o poder mítico do fogo prometeico: Ele pinta as chamas atadas umas às outras no retrato. «A criança falou da personagem laranja fogo através do campo». […] «É a mim que desfazem se desatam as chamas».

O sofrimento causado pelo labor poético ou instigador do labor poético justificase pela natureza flamejante da poesia, uma força absoluta, na qual vale a pena pôr a mão e gritar: A imagem de uma pessoa com a mão gloriosa nas chamas Não pára de gritar mas não tira a mão do fogo Compreende-se? Como se compreende! É uma espécie de força absoluta.

Na mesma ígnea linha, acentua-se a construção poética como um doloroso ofício realizado dentro do forno, até ficar calcinado, negro com boca de ouro, o ouro da poesia. A ligação entre ouro e fogo lembra a imagem bíblica do fogo purificador, onde se testa a qualidade do ouro. Trabalho no forno até ficar calcinado louco soberano como um negro com boca de ouro, rodeado por uma tribo de anjos com boca de ouro.

A tribo de anjos cruza a sequência isotópica africana com a apocalíptica. O autor está no inferno rodeado de anjos que como ele têm boca de ouro. Aí, criam Deus. Deus no inferno. Deus criado do fogo. Deus, invenção poética, mas também inspiração. 7

Às vezes basta uma palavra: Deus. E ouço a música, pinto o inferno. É uma espécie de inocência ardente, um modo de ir para longe. Sou elementar, anjos são os primeiros nomes. Vim para debaixo dos holofotes, queria fulgurar da cabeça aos pés.

O poeta é o novo deus, compositor do universo religioso, debaixo da aura dos holofotes. Vingança poética contra quem condenou os artistas ao extermínio. Os Selos de Herberto Helder constituem-se assim como a inversão do Apocalipse.

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