A poesia que devora

October 3, 2017 | Autor: Célia Musilli | Categoria: Literatura brasileira, Poesía
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A POESIA QUE DEVORA




'Os dentes da memória' percorre a história de quatro poetas
paulistanos movidos pela contracultura




Célia Musilli




Livros recebem atenção especial no seu lançamento. A novidade impele a
mídia a divulgá-los no momento da publicação, mas há livros tão vivos que
saltam das estantes, das livrarias, dos sebos e voltam a nos provocar a
cada vez que são lidos.

"Os Dentes da Memória", de Camila Hungria e Renata D'Elia, é um
desses livros que subvertem a ordem do lançamento, como um ruído que vem da
poesia insone, de uma geração em estado permanente de vigília. Com primeira
edição quase esgotada, é provável que tenha uma nova publicação, motivo a
mais para resgatá-lo das estantes e debruçar-se sobre a razão de ter
despertado tanto interesse.

Lançada pela Azougue Editorial em 2011, a obra transborda o tempo, ao
revelar as memórias de quatro poetas: Roberto Piva, Claudio Willer,
Fernando de Franceschi e Roberto Bicelli que nos dão a impressão de estarem
ali mesmo, sentados no sofá a conversar com a gente, como protagonistas de
histórias cheias de caminhos e descaminhos, como deve ser toda história
rebelde, transgressiva, destas que nos fazem pensar que hoje foi ontem e
que, de alguma forma, chegamos atrasados para assinar algum manifesto.

As autoras articulam o livro com a mesma inquietude dos biografados,
percorrendo cinco décadas de atividade poética e amizade. Escrito em forma
de entrevista, montada a partir de eixos temáticos, Os Dentes da Memória
tem velocidade, instigando a leitura num só fôlego. A dinâmica da escrita
tem muita ver com toda uma época de transformações – a partir dos anos 60
– conduzindo a trajetória dos poetas por uma São Paulo fantástica, em sua
forma cosmopolita de absorver e devorar a cultura de outros pontos do
planeta, com a ressonância de uma cidade guiada por satélites.

Os satélites, no caso, são os poetas que dão voz à contracultura nos
anos de chumbo, trafegando numa avenida paralela que não é a da direita
estrábica nem a da esquerda traumatizada. Em anos em que tudo converge para
manifestações ideológicas, sua apologia é poética, sob o prisma de uma
liberdade individual que também se manifesta em grupo e movimento culturais
que traduzem as insatisfações e o desejo de mudar a realidade.

Os ecos da contracultura atravessam o oceano e ganham ares
tropicalistas em São Paulo, temperados por climas políticos e ventos nada
hospitaleiros que clamam por uma rebeldia que desemperre as engrenagens do
poder: o poder da família, das instituições, das escolas, da sociedade e,
sobretudo, do Estado ditatorial. É contra todos estes poderes que investem
os quatro cavaleiros, poetas de um quase Apocalipse.

É com a ânsia do desmantelamento que ainda lemos os textos de Roberto
Piva – cuja vida e obra estão entre os principais temas do livro - e seus
poemas às vezes sarcásticos, às vezes ritmados por tambores que clamam por
uma alma nacional xamânica, uma voz de rio e de floresta que reivindica
revoluções. Esta mesma voz fala com as autoras desmitificando as melhores
intenções de uma sociedade que, nos anos 60, prima pela moralidade gasta.
Ele diz: "Eu era professor de Estudos Sociais, mas dava poesia, dava o que
quisesse. Era um curso incrível, maravilhoso, uma viagem estratosférica em
cima do livro que é o grande clássico da pornografia sociológica no Brasil:
Casa Grande & Senzala, do Gilberto Freyre. É um portento. Ele foi a única
pessoa que fez essa relação de comida, de erotismo, tudo isso, com a etnia
brasileira."

Já Claudio Willer traz a sofisticação da poesia e das ideias plasmadas
por um conhecimento de intelectual imantado ao seu tempo, conectando ações
que o mantém há décadas como um dos porta-vozes da cultura brasileira a
partir de uma tomada universalista, um zoom completo sobre as vanguardas
europeias e norte-americanas, onde ele bebe seu gole beat-surrealista de
uísque e champanhe.

Nesta geração que se concedia a loucura e o devaneio místico-
filosófico, Willer projeta-se como a pessoa preocupada com conceitos que
constroem e extrapolam as performances, indo ancorar numa cultura
abrangente o pensamento que revelaria a sina de uma geração de poetas
marginais que iluminaram a literatura nacional com um archote que vai além
da racionalidade da poesia concreta, feita de cérebro e tijolos. Os beats
paulistanos desafiam esta lógica propondo uma ruptura anticerebral, quase
delinquente, de uma delinquência que rejuvenesce a poesia solta como eles
mesmos: passageiros de viagens de jipe às praias paulistanas, mistura de
acampamentos e happenings literários, oficinas de comportamentos e vidas
de manifestos.

Os poetas paulistanos formavam a antítese do comportamento padrão,
colocando em jogo vozes dissonantes, provocando com um comportamento
híbrido a modernidade envelhecida. No livro, Willer constata: "É
impressionante, e pego como exemplo de caretice, que quando líamos aqueles
impropérios de Artaud contra os psiquiatras, ou os trechos anti-
psiquiátricos de Nadja do Breton, sabíamos muito bem do que estávamos
falando. É estarrecedor que um sujeito formado em medicina, que fez
juramento ético, permita este tipo de coisa. Parece século XIX. Mesmo a
psicanálise freudiana que se praticava na época era uma coisa subversiva,
quanto mais a reicheana. E a gente lia Wilhelm Reich, era leitura
corrente."

Antonio Fernando de Franceschi desponta na geração com sua "poesia
refinada", segundo a avaliação de Willer, e uma voz que prima pela
sensatez, embora inserido de corpo e alma naquele carnaval de ideias e
euforias. Com passagens em órgãos da imprensa e instituições importantes,
onde trabalhou com arte e cultura, de Franceschi é autor de poemas
sofisticados e cheios de referências como "Fragmento", no qual entabula um
diálogo entre Fausto e Mefisto. O poeta destoava de sua geração num
quesito, não gostava de apresentações e justifica: "Pois é, eu não
participei das leituras. Não gosto de ler poesia porque sou tímido e acho
que leio mal. Agora, a poesia do Bicelli tem que ser recitada por ele
próprio. Ele é um ótimo leitor de Bicelli, porque não é qualquer um que lê
aquilo com graça. Tem que ter sal. Quem põe o sal é ele, ele é quem
consegue temperar. O Bicelli tem essa coisa do personagem rigorosamente
auto-construído, que é ele próprio, e é muito fiel a isso."

No livro, são do "personagem" Bicelli as frases divertidas, o sarro
latente sobre as aventuras e comportamentos de quatro escritores
inseparáveis, se não na vida, nesta "mitologia contemporânea" de ícones dos
anos 60/70, frequentemente resgatados como aconteceu recentemente, no
lançamento do filme "Na Estrada", de Walter Salles, sobre a geração beat,
quando eles foram chamados a tecer comentários para vários veículos da
imprensa.

Suas vozes são evocadas na mídia como protagonistas das transformações
embaladas por poesia, música, cinema, artes plásticas, bebedeiras e a mais
pura contestação da juventude de ponta dos meados do século XX, cuja
inquietude ainda repercute com força na produção atual, como se observa nas
redes sociais e na blogosfera pela atuação de poetas jovens ligados à
chamada "Geração de 60."

Bicelli é o protagonista de passagens hilárias de "Os Dentes da
Memória" como a do momento em que transa com uma namorada na pia do
banheiro, leva choques, e supõe que a corrente elétrica deva-se ao frisson
do momento erótico. É dele a "profecia" que encerra as entrevistas do
livro, falando sobre a sua produção poética e a de seus pares: " "Sabe o
que vai acontecer? O interesse das pessoas vai crescer sempre e sempre e
cada vez mais na obra desta turma. Eu acredito nisso. Primeiro pela posição
existencial e segundo pela eficácia dessa poesia."

A eficácia que Bicelli evoca é, por exemplo, a de "Paranoia" - livro
que traz dezenove poemas de Roberto Piva, lançado em 1963, com ilustrações
de Wesley Duke Lee – representativo de uma das mais importantes parcerias
artísticas do período. Ou ainda "Anotações para um Apocalipse" (1964) e
"Jardins da Provocação" (1981), obras fundamentais da produção poética de
Claudio Willer, publicadas por Massao Ohno, editor emblemático – falecido
em 2010 - que também tem grande participação no livro de Camila Hungria e
Renata D'Ellia, resgatando páginas de literatura e vida cultural.

"Os Dentes da Memória" tem título inspirado num poema de Roberto Piva
- "Rangem os dentes da memória/ segredos públicos pulverizam-se em algum
ponto da América/ peixes entravados se sentam conta a noite" – e demandou
mais de cem horas de entrevistas para ser escrito, entrevistas feitas com
cerca de 40 pessoas, entre as quais os quatro protagonistas que formam
aquela que é considerada a última geração importante de poetas
paulistanos, cuja produção influencia gerações emergentes.

O livro traz em sua parte final uma seção de poemas selecionados de
Roberto Piva, Claudio Willer, Roberto Bicelli e Antonio Fernando de
Franceschi. Antes, um capítulo descreve a doença e a morte de Roberto Piva
(1937/2010). Nestas páginas, o relato sobre seus últimos dias soma-se a uma
dose inevitável de poesia na descrição de seu sepultamento. É neste último
momento que um apelo xamânico fecha a cena de sua vida quando as autoras
descrevem:

"Às 11 da manhã, o cortejo cruzou a cidade rumo à zona leste.

Ao meio-dia, um imenso gavião carregou um pássaro morto no bico e sobrevoou
o crematório da Vila Alpina.

Não houve música durante os 10 minutos da cerimônia de corpo presente.
Claudio Willer despediu-se do amigo ressaltando seu imenso legado de
amizade, poesia e vitalidade.

24 pessoas se despediram de Roberto Piva com uma salva de palmas, às 14h30
do dia 4 de julho de 2010."

O apelo xamânico do "imenso gavião" que cruzou o céu de São Paulo no
sepultamento de Piva, evoca a vibração primitiva de seus poemas, com a
transposição ilimitada do imaginário para a literatura e da literatura para
a vida. Peculiaridades de poeta, de xamã que compunha com os amigos uma
constelação criativa que não separava existência e obra. O desfecho do
livro é assim um voo para outra iniciação ainda imantada pela matéria-prima
chamada poesia, esta pulsão que não cessa, não morre e ainda chove sobre
novas gerações.



OS DENTES DA MEMÓRIA – Camila Hungria e Renata D'Elia, Azougue Editorial,
Rio de Janeiro/ 2011, 255 páginas.
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