A poética da imagem de Jean Dubuffet

August 1, 2017 | Autor: Flavia Pircher | Categoria: Arte, Fotografia
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A POÉTICA DA IMAGEM DE JEAN DUBUFFET


Fig 1. JEAN DUBUFFET, L ' Arbre de fluides, 1950, Óleo em tela, 1161 x 890
mm, Tate Gallery


A obra escolhida para análise é intitulada L'Arbre de
Fluides (Árvore dos Fluídos) feita por Jean Dubufet, em 1950 quando morava
em Paris.
Esta obra faz parte de uma série produzida pelo pintor
francês, intitulada "Corpos de Damas". Nela podemos apreciar a distorção
dos corpos femininos que aparecem como se tivessem sido achatados por um
rolo compressor e com as partes sexuais desnudadas porque são representadas
externamente aos corpos.
Observamos que esta mulher apresenta-se de maneira
despreocupada, seus lábios esboçam um sorriso e sua postura corporal é
suave e receptiva. O corpo denso e grande, receptivo e descomplicado além
do paralelo dessa representação com a paisagem local nos remetem à uma
associação do corpo feminino à questão da fertilidade feminina. A forma e a
rica textura do corpo feminino representado nesta pintura denota a
vigorosidade do artista.
O escritor francês Georges Limbour, que também era amigo
pessoal de Dubufet, escreveu no catálogo de sua exibição da série que:

Os famosos Corps de Dames pareciam monstruosos
para aqueles que tentavam reduzir o corpo feminino
simplesmente à pedaços de uma mulher. A textura desses
corpos mostra claramente que eles não são simples pedaços
de carne, mas sim compostos de um lodo terrestre, de uma
substância proveniente das montanhas e dos pântanos. [1]


Além da forma grandiosa de traços finos que compõem um
desenho que toma conta de quase todo o espaço da tela, demonstrando quão
espaçoso e amplo pode ser o corpo feminino que recebe e guarda, que ampara
e aconchega, que é ninho e fonte de alimento. Podemos também perceber que
as cores utilizadas são suaves mas ao mesmo tempo intensas. Elas intrigam o
olhar mais atento porque deixam transparecer elementos que se encontram em
camadas inferiores. No entanto não são transparentes, elas são visíveis e
presentes.
Dubuffet desenvolveu uma mistura de pigmentos, tintas,
areia, alcatrão, por vezes até mesmo pedras, vidro e corda. Essa pasta
conferiu à suas obras uma característica marcante e peculiar de seu
trabalho.
O próprio pintor comentou sobre o efeito imprevisível e
fantástico que ocorreu quando foi utilizado óxido de zinco na produção
desta tela. A partir desse material ele desenvolveu um tipo de pasta para
pintura que tinha como característica repelir o óleo e uma vez aplicada
sobre a tela, esse esmalte revelava reações enigmáticas e imprevisíveis de
vários tipos. Conforme secavam, as cores iam gradualmente esmaecendo
resultando numa reorganização dos quadros e num resultado bastante
diferenciado.


Este comportamento muda a cada 15 minutos....
essa ramificação de resultados, correndo por árvores, pelo
qual eu vi minhas figuras iluminadas, me transportou para
um mundo invisível de fluídos circulando dentro dos corpos
e também ao redor deles, e me revelou uma ativa
apresentação dos fatos que ocorrem, tenho certeza disso,
em alguns aspectos da vida. (Tradução minha). [2]







Fig 2. DUBUFFET, Chateau d' Étoupe, 1950, óleo sobre tela, 114 x 87 cm

Para o pintor francês os corpos femininos são comumente
retratados de maneira miserável e depressiva porque a noção de beleza
plástica que temos é cultivada no mundo ocidental desde os tempos gregos e
está associada à aspectos estéticos e superficiais.
Ao apresentar corpos deformados e tortos percebemos que
Dubuffet questiona a excessiva valorização da beleza estética e nos
apresenta outros fatores que devem ser considerados na apreciação do que é
belo. Ele realça a topografia voluptuosa do corpo da mulher e ressalta a
maternidade como um aspecto muito mais importante do que a beleza canônica
comumente valorizada.
Ao trazer para fora do corpo órgãos internos ele nos
mostra que nem sempre o belo está na superficialidade. É como se cada uma
de suas obras de arte fosse uma proposta de reflexão e um convite para
recuperarmos os valores atualmente desprezados. Coloca-se desta maneira
numa posição de anti cultura predominante.
A produção de Dubuffet é considerada " arte bruta" pois o
próprio artista repelia a ideia de que a arte visual deveria ser
visualmente agradável ou meramente representativa do mundo circundante.
Essa visão tem como consequência um traço fino e seco, que deixa
transparecer a dureza e lentidão do processo criativo. Contrário aos seus
contemporâneos, sua produção não era impulsiva, no entanto apresentava-se
como um processo que desvelava aspectos primitivos e brutos, recheados de
elementos representativos de vitalidade e carregados de energia.
A arte bruta é a forma de expressão de pessoas que por uma
razão qualquer escaparam do condicionamento cultural e do conformismo
social.
Na verdade a primeira vez que se tem notícia do interesse
pela produção artística de outros povos tidos como "primitivos" foi antes
da primeira Guerra Mundial, quando Pablo Picasso e Paul Klee trouxeram ao
cenário europeu peças produzidas na África e Ásia, tomando-as como formas
de expressão artísticas e utilizando-as como amuletos que resgatavam a
inocência há muito perdida, mesmo em dissonância com os preceitos
acadêmicos da época.
Em paralelo à esta "descoberta" e aceitação, foram também
considerados como forma de expressão artística as artes tribais, as
populares, e até mesmo trabalhos infantis, considerados como formas
espontâneas de expressão e de criatividade pura, executadas por "artistas"
sem treinamento nem conhecimento de regras acadêmicas.
Atualmente sabe-se que desde a mais tenra idade, o ser
humano já desenha, seja no ar, no chão de areia ou na superfície de papel,
numa tentativa inconsciente de nos relacionarmos com o mundo além das
questões práticas de satisfação das necessidades de ordem bio e
fisiológica. Ao longo do desenvolvimento individual de cada um, apenas
alguns se tornam artistas formais, os demais continuam deixando suas
marcas, criativas e interessantes, mas não necessariamente consideradas
arte no termo exato da palavra. Essas pessoas que produzem objetos
calcados de suas impressões, que se tornam verdadeiras expressões de seu
modo de ver e de se relacionar com o mundo, passaram então a fazer parte de
um grupo de indivíduos que produzem um certo tipo de arte que difere
daquela que encontramos no circuito formal das galerias e museus. Seria a
Arte Bruta (termo cunhado por Dubuffet em meados da década de 40) ou então
Outsider Art (termo inglês, criado por Roger Cardinal, no intuito de ser um
equivalente do francês Art Brut).[3]
Considerados disfuncionais no tocante ao parâmetro de
normalidade, os artistas desse grupo apresentam-se fora do padrão (seja
devido à sexualidade, aparência, desenvolvimento mental inferior ao
mediano, identidade cultural ou religiosa, ou até mesmo por implicações
psiquiátricas).
É curioso perceber que as características dos indivíduos
que compõem esse grupo outsider artists estreitam a conexão entre arte e
loucura tão explorado na Europa do século XIX.
Ao final da segunda Guerra Mundial, Dubuffet emergiu como
um dos mais importantes entusiastas da arte produzida fora dos preceitos
usuais acadêmicos, fomentando a aceitação e reconhecimento dessa produção
como sendo artística.
Inicialmente Dubuffet interessou-se pela arte infantil. No
entanto deve ser dito que ele não foi o pioneiro. O interesse artístico na
pintura infantil data do século XIX e a sua influência é percebida na arte
fauvista francesa e expressionista alemã. Especificamente nos trabalhos de
Kandinsky (Der Blauer Reiter) encontramos um precursor do que poderia ser
visto vinte e cinco anos depois nos trabalhos de Dubuffet. Ele organizou
uma impressionante coleção de desenhos infantis e desenvolveu uma série de
trabalhos artísticos carregados de expressão e buscando similitudes entre
a sua produção e a arte infantil como uma forma de questionamento mais
profundo acerca da natureza humana e da maneira como o artista lida com a
sua forma de expressão.
Influenciado pelos pensamentos de Jean Jacques Rousseau de
que as crianças não são adultos em miniatura, mas sim pessoas em
desenvolvimento e de que o ser humano é corrompido pelo meio. Passou-se
então a acreditar na pureza e inocência infantil acima de todas as coisas.
Perseguindo a idéia de um trabalho artístico executado por pessoas não
"contaminadas" pela cultura artística, Dubuffet buscou na arte infantil
elementos que conferissem à sua própria produção a almejada pureza e
naturalidade.
Ele acreditava que a autenticidade de uma obra era
conseguida através da manifestação do mais profundo inconsciente, e que
isso só ocorreria em uma mente cujo pensamento era inoperante no modo
convencional.
Desta maneira sua pesquisa no âmbito da arte infantil
focou especificamente a experiência resultante da relação do indivíduo com
determinado objeto e os elementos subjetivos envolvidos na representação
desse objeto. A criança interage com o mundo através dos sentidos: ela
toca, cheira, vê, e sente o que lhe circunda. Sua produção está intimamente
relacionada à questões sensoriais e empíricas. O ponto central dos estudos
de Dubuffet não são a transcrição ideal de um objeto pelo artista infantil.
Pelo contrário, o ponto de interesse é descobrir por qual método a criança
percebe o objeto, como este é percebido e qual a relação estabelecida entre
os dois sujeitos da ação criadora, ou seja, é todo um conjunto de elementos
envolvidos no ato criador, pois para o artista francês estava cônscio de
que a criança não faz uma cópia fiel ou imitação exata do objeto real, mas
sim uma representação baseada na sua memória e em impressões pessoais que
muitas vezes não condizem com a realidade, mas que delatam a maneira como
enxerga o mundo.
A arte era por ele vista como uma linguagem e um
instrumento de aprendizagem e de comunicação. Por isso sua produção deixa
transparecer seus estudos e se deixa influenciar pela arte infantil. Isso é
bastante perceptível em Blissful Countryside:







Fig 3. Children drawing, May 1939. From the collection of Jean Dubuffet

No desenho infantil da figura 3, podemos visualizar uma
rua vermelha, representada como se estivesse sendo vista de cima, e que
circunda um conjunto de árvores na parte superior do desenho, sendo que a
própria rua tem o formato de uma árvore. Na parte esquerda da tela há uma
repetição de elementos amarelos que preenchem toda lateral.



Fig 4. DUBUFFET, Blissful Countryside, 1944, Óleo em tela





Aqui na figura 4 a rua não é centralizada como no desenho
anterior mas o artista explora o conceito infantil de perspectiva aérea na
representação de planos e ruas, bem como se utiliza da repetição de
elementos para preencher parte da tela, exatamente como faz uma criança.
O pintor consegue captar a essência da característica
infantil de se projetar na pintura e executar a representação bidimensional
de elementos tridimensionais.
A partir de 1944 os trabalhos produzidos por Dubuffet
explicitam deliberadamente uma gestualidade e escolha de materiais típicas
dos desenhos infantis.










Fig 5. DUBUFFET, Monsieur Plume plis au pantalon, 1947, óleo sobre tela,
130 x 95 cm




Na série de retratos em preto e branco o observador chega
a acreditar que os trabalhos poderiam ter sido produzidos por crianças em
idade escolar, numa proposta de atividade de desenho com giz sobre quadro
negro. O artista apresenta um conjunto de trabalhos gravados em branco numa
superfície negra cuja influência infantil aparece de forma direta e
indiscutível. As transparências – tão características da arte da criança -
fazem-se presentes.





Fig 6. Orquestra – desenho feito por crianças de 5/6 anos, menina,
japonesa.
Giz de cera sobre papel. Coleção de Rudolf Arheim


No desenho da orquestra realizado por uma menina japonesa,
percebemos que o espaço (que deve ser o palco) está quase totalmente tomado
pelos músicos que se encontram por vezes uns na frente dos outros, numa
posição que indica tenacidade, retratando uma realidade barulhenta e
movimentada.
Em comparação ao desenho abaixo, feito por Dubuffet,
podemos ver nitidamente a diferença da orquestra, aqui representada de
forma austera, cujos componentes do grupo são reduzidos a formas
geométricas padronizadas e encontram-se dispostos ao lado uns dos outros,
como se fizessem parte da linha de produção de uma fábrica. A composição
está organizada de forma simétrica.[4]
Em ambas pinturas a redução das formas está presente, mas
enquanto na primeira nota-se inocência na maneira de expressar a realidade,
percebemos a diferença no tocante à intencionalidade do artista. Enquanto
para a criança a utilização de poucos traços é algo natural e inato, para o
artista é uma escolha consciente e parcimoniosa que revela sua intenção
retornar ao momento anterior da complexidade e sofisticação característicos
de sua época.



Fig 7. DUBUFFET, Jazz, 1944, litorafia sobre papel, 27 x
214


Ele passa a trabalhar com Assemblages e desse modo os
retalhos de papel passam a fazer parte da obra. Mais do que materiais
componentes, eles ganham maior proeminência sobre os objetos representados
e passam a submergi-los.[5] O objeto é dissolvido e a textura ganha maior e
mais imediata importância do que o referente propriamente dito. O artista
procura com isso afirmar sua idéia de que a pintura é um signo concreto e
direto, diferentemente das palavras que são abstratas. Por isso a
importância da materialidade da produção artística tornando-a verdadeira
experiência corpórea.
A mente infantil funciona de modo bem particular, o
pensamento sincrético faz com que a criança organize mentalmente uma teia
de pensamentos ligados uns aos outros que providenciam uma explicação para
questões reais com base em verdades conhecidas e crenças isoladas. De certo
modo é uma colagem de idéias, muito bem representadas pela colagem e
sobreposição da assemblagem.





Fig 8. DUBUFFET, Les Vicissitudes 1977

Jean Dubuffet conseguiu enxergar nos desenhos e pinturas
das crianças uma expressão do inconsciente que revelava valores
"primitivos" aculturados, despidos de hierarquia ou de valores inerentes de
uma ordem social estabelecida e corrompida.


No espaço mental livre da mente infantil as
reações afetivas que unem cada indivíduo às coisas que o
cercam, são mais acessíveis. Por isso através da arte
infantil visualizamos, rapidamente, o verdadeiro modo com
funcionam nossas próprias mentes . (Tradução minha).[6]



Posteriormente o artista redirecionou seu interesse pois
os desenhos infantis passaram a se considerados rudimentares demais e
inclinou-se para o estudo do que era feito por pacientes psiquiátricos e
alguns mediúnicos. Entendendo que a produção desses internos foi ignorada
por muitos anos, Dubuffet resolveu trazer à cena a única forma de expressão
permitida àqueles que encontravam-se no silêncio escuro e secreto do mundo
surreal dos hospitais psiquiátricos. A cidade suíça de Lausanne foi
escolhida por Dubuffet para sediar seus estudos e aproximações com a arte
produzida pelos detidos em manicômios porque o pintor mantinha amizade com
psiquiatras naquela região e também porque os médicos germânicos,
austríacos e suíços, influenciados pela ideologia do Expressionismo alemão,
foram os pioneiros em adotar a arte como parte do trabalho a ser
desenvolvido junto aos pacientes psiquiátricos. Desta época datam os
trabalhos de Adolf Wölfi (1864 – 1930), provavelmente o paciente
psiquiátricos cujas produções se tornaram as mais conhecidas da Arte Bruta.
Conforme supra mencionado, o artista não valorizava a
beleza artística acima de todas as coisas, pelo contrário . Não é o aspecto
estético que mais impressiona nas obras de arte bruta. Elas exercem uma
atração sobre os observadores por motivos, a priori, desconhecidos. Na
verdade são mesmo por vezes desagradáveis à fruição estética, mas
apresentam uma linguagem primordial acessível de forma inconsciente que
causa invariavelmente reações diversas que não passam desapercebidas e que
impossibilitam uma observação passiva e distante e com isso entram em
contato verdadeiro com quem as olha.
A arte tradicionalmente aceita é aquela que encontramos em
museus e que é produzida por artistas que passaram pelos "bancos" das
academias e que estão carregadas de tradição e história. Tudo que era
produzido fora desse contexto foi caracterizado como uma arte primitiva.
Seria algo tido como uma produção realizada por povos exóticos, por
crianças, por mulheres, por loucos, ou seja, por todos aqueles que não
foram iniciados nos códigos do mundo artístico acadêmico.
A denominação escolhida por Dubuffet deriva da ideia de
que é uma arte produzida fora das amarras das convenções acadêmicas e fora
das imposições do mercado. Devido mesmo ao fato de estarem à margem desse "
universo artístico" são portanto destituídas do necessário refinamento
(estético ou intelectual) para que possam ser caracterizadas como arte
visual. E ainda, são realizadas por pessoas que encontram-se despidas de
motivação outra que não a produção da arte pela arte e que não se ocupam da
tarefa de justificar sua obra em função do que o observador irá julgar
interessante e atrativo.
Utilizando materiais pouco convencionais e até mesmo
improváveis para uma obra artística, a arte bruta revela sua origem em
estados mentais extremos e até mesmo alienados ao mundo onde vivemos. É a
prova concreta de que nós, seres humanos, somos capazes de coabitar
fisicamente um mesmo espaço numa mesma época, mas de efetivamente viver em
universos distintos e paralelos (entenda-se paralelo no sentido literal de
que nunca terão uma intersecção e por isso nunca saberemos realmente o que
e como é o mundo daquele que está concretamente ao nosso lado mas
intelectualmente à anos luz de distância num mundo completamente
desconhecido por nós).
O termo "Art Brut" é de difícil tradução porque quer seja
palavras em português, ou tampouco em inglês, elas não conseguem
representar o mesmo que o termo francês quer dizer. Para tanto faz-se
necessário conhecer um pouco da biografia de Jean Dubuffet para entender o
exato sentido do termo Brut.

Nasceu em 1901 em Le Havre (França) e morreu em Paris
(1985), aos 84 anos. Durante sua vida alternou durante muitos anos entre
pintar e trabalhar na vinícola da família. A vida passada na França e o
negócio herdado lhe proporcionaram uma familiaridade com o mundo dos
fermentados de uva que lhe renderam conhecimentos químicos (utilizados para
desenvolver a pasta que usava na série "Corpos de Damas" (mencionadas no
início deste artigo) e também de onde adveio o termo Art Brut. Nomeado como
os melhores champanhes, o termo brut significa não adulterado, no puro
estado original. Assim deveria ser o termo bruto entendido, tal como é
encontrado na natureza, sem intervenção de qualquer espécie.

Comumente o termo é entendido como algo grosseiro e
tosco. Aqueles que assim o fazem incorrem em um erro grotesco, pois
Dubuffet buscou com esse ele uma conotação de simplicidade e naturalidade.
Uma arte despida de convenções sociais. Para ele a arte bruta era aquela
feita por pessoas cujas escolhas (de material, tema, linguagem, estilos e
expressões) vinham de um único lugar: de seu EU interior e profundo. Sem
convenções, técnicas ou tendências fashion do que o mercado aceitaria. A
arte seria então o resultado dos impulsos naturais e inconscientes.

Dubuffet tinha consciência da contribuição das peças
"primitivas" (produzidas por tribos da África, Oceania e da América do
Norte) no desenvolvimento da arte europeia no início do século XX quando
houve uma apologia da importância e beleza desse material por famosos
europeus, como já dito anteriormente (dentre outros Picasso, Klee e
Kandinsky). No entanto o interesse de Jean nessa arte produzida fora dos
preceitos acadêmicos ia além das questões estéticas. Na verdade o
questionamento deste pintor francês era mais profundo pois colocava em
xeque não somente elementos objetivos relacionados às obras (como técnicas,
materiais e linguagens) mas como também trazia a tona uma questão bem mais
profunda: a da própria superioridade cultural e tecnológica apregoada pelos
artistas ocidentais (mais especificamente os europeus) sobre os primitivos
outsider artists.

O primitivismo era visto como tudo que orbitasse à margem
da sociedade vigente. As sociedades consideradas primitivas tinham um modo
particular de pensar e de agir; seus valores eram baseados no instinto, em
paixões, na violência e na loucura, conferindo características de
simplicidade e por consequente consideradas mesmo inferiores do modo de ser
e viver dos grupos civilizados. Por outro lado, essa civilidade ocidental
era complexa e superior. No entendimento de Dubuffet: tão sofisticada que
na verdade constitui-se de uma série de máscaras que escondem as verdades e
impede o acesso ao que é simples e essencial ao ser humano. Daí decorre a
posição anticultural do pintor francês, que criticou a visão de
superioridade da sociedade ocidental e afirmou acreditar serem mais
inteligentes as soluções e pensamentos simples dos primitivos.

É preciso considerar o contexto em que esse pensamento foi
formulado, pois em meados dos anos 40 uma nova antropologia estava
emergindo no cenário das ciências humanas e com isso a consideração com
viés totalmente diferente do até então se viu sobre as questões
relacionadas a tudo que se relacionava com cultura tribal e primitiva.
Enquanto isso os estudos freudianos que revelaram a possibilidade de
existência de diferentes estados mentais e embasavam os surrealistas em
aventuras psico-artísticas.

A idéia de anti cultura, instituída por Jean Dubuffet
caracterizou-se mais como um ideal a ser alcançado do que propriamente como
algo existente e realizado. Ao longo do tempo suas pesquisas acabaram por
criar uma polarização entre Arte Bruta e Arte Cultural, e posteriormente
inclusive uma nova categoria denominada Neuve Invention (invenção nova),
que servia para caracterizar as produções artísticas que não se
classificavam nem em um nem em outro pólo e que mantinham-se no limite
fronteiriço entre os lados opostos.

Nas palavras do próprio Dubuffet:


Inicialmente trata-se de uma intuição um tanto
obscura, que aos poucos se solidifica em um rigoroso
conjunto de critérios antes de finalmente se tornar um
padrão mais flexível e agradável. (Tradução minha).[7]

Com isso, o pintor francês caiu numa aparente contradição
pois uma arte que originalmente surgiu do desejo de escapar das amarras
sociais e classificatórias do mercado de arte, ironicamente se tornou uma
alternativa ortodoxa e inflexível, cujo árbitro era o próprio Dubuffet, que
classificava as obras incluindo-as ou não no roll de Arte Bruta. Pode-se
observar tal situação de maneira mais veemente quando da construção do
museu de Arte Bruta, na cidade de Lausanne, Suíça / 1975. Foi então que o
pintor tomou certos "cuidados para proteger" os trabalhos verdadeiros de
arte bruta da contaminação ou confusão com outros que não apresentavam a
pureza e desprendimento característicos da anti cultura.
Infelizmente esse foi um dos "efeitos colaterais" do
pensamento anti-burguês do pintor francês, pois ele mostrava-se irredutível
em sua posição contra a cultura dominante e contra a aceitação dos produtos
oriundos dessa dita cultura. Seu objetivo era oferecer a todos a
oportunidade de conhecer uma arte verdadeira, produzida nos lugares mais
inusitados e inesperados, e não somente nos ateliês e escolas de arte. Para
Dubuffet a produção fora da corrente normal de expressão artística era
cheia de vida e pureza:


A arte na sua essência é aquela do novo [...]
espera-se da arte que ela nos arranque pela raíz do estado
de normalidade[...] Quando as pomposas bases da Cultura
são edificadas, e os louros chovem em nós, então fuja o
mais rápido que puder, pois só assim haverá uma nesga de
esperança para a arte. Se algum dia existiu arte aqui, ela
agora já se foi em busca de mudança de ares. Uma vez que a
arte verdadeira é alérgica à aprovação coletiva. (Tradução
minha).[8]

No entanto, nem mesmo essa pequena contradição poderá
depor contra o legado de Dubuffet, que revelou ao mundo uma arte até então
desconhecida e produzidas por pessoas que orbitavam à margem da sociedade.
Ignorantes da tradição, indiferentes às críticas, únicos
destinatários das próprias obras, os criadores de Arte Bruta agem por
instinto e por isso conseguem produzir algo puro, merecedor de nossa
admiração e respeito.


Fig 9. DUBUFFET, Fern in Hat, 1953, litorafia sobre papel, 527 x 400 cm


REFERÊNCIAS




DUBUFFET, J. Paintings 1943-1957, catálogo da exibição, Arthur Tooth and
Sons, Londres 1958, sem página

ECO, U. (1977) Como se faz uma tese. Trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza.
São Paulo: Editora Perspectiva, 2010.


FINEBERG, J. The Innocent Eye – Children's Art and the Modern Artist.
Princeton: Princeton University Press, 1997.


FINEBERG, J. When we were young – new perspectives on the art of the
child. Princeton: Princeton University Press, 1997.

MUNDY, J. DUBUFFET. Disponível em
http://www.tate.org.uk/art/artworks/dubuffet-the-tree-of-fluids-t0711.
Acesso em 17 de ago de 2013.


RHODES, C.. Outsider Art – Spontaneuos Alternatives , New York: Thames &
Hudson world of art, 2000.


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[1] Jean Dubuffet. Paintings 1943-1957, catálogo da exibição, Arthur
Tooth and Sons, Londres 1958, sem página

[2] Jennifer Mundy, DUBUFFET. Disponível em
http://www.tate.org.uk/art/artworks/dubuffet-the-tree-of-fluids-t0711.
Acesso em 17 de ago.2013. Its behaviour changes every fifteen minutes …
These branched facts, running trees, by which I saw my figures illuminated,
have transported me into an invisible world of fluids circulating in the
bodies and around them, and have revealed to me a whole active theatre of
facts, which perform, I am certain, at some level of life

[3] Colin Rhodes. Outsider Art – Spontaneuos Alternatives , New York,
2000, p.7.

[4] Jonathan Fineberg, When we were young – new perspectives on the art of
the child. Princeton: Princeton University Press, 1997.
[5] Jonathan Fineberg, The Innocent Eye – Children's Art and the Modern
Artist. Princeton: Princeton University Press, 1997, p. 30.
[6] idem, p. 23
[7] idem, p. 23
[8] idem, p. 23
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