A poética do drama na prosa de Dostoiévski

June 22, 2017 | Autor: Elena Vassina | Categoria: Teoría Literaria, Dostoievski
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A POÉTICA DO DRAMA NA PROSA DE DOSTOIÉVSKI.


Elena Vassina


"Apesar de Dostoiévski não ter escrito
uma página sequer em forma dramática, no
fundo,
em seus romances, ele se revela
um grande autor trágico."
Serguei Bulgákov





Graças à extrema difusão das idéias de Mikhail Bakhtin em relação à
obra de Fiódor Dostoiévski no Brasil, tornou-se uma espécie de "lugar
comum" todo tipo de referência às afirmações bakhtinianas sobre a
composição polifônica dos romances do escritor russo.[1] Mas, ao mesmo
tempo, entre os pesquisadores brasileiros[2] ainda não foi dada a devida
atenção a uma outra particularidade, não menos importante e essencial ao
método artístico de Dostoiévski, que é o fato de o drama,[3] ou o que se
pode chamar de "consciência dramática", entrar em sua prosa como um
elemento estrutural básico, definindo alguns traços característicos da sua
poética. (A maioria das teorias literárias é categórica na definição das
características genéricas do drama: a ação é dada independentemente do
autor, se passa num espaço concreto e está ao máximo aproximada da
atualidade, se desenvolve por meio do diálogo e a conduta dos protagonistas
é separada da atitude direta do autor).[4]


Como se sabe, o final do século XIX e início do XX foi um período de
grandes modificações na história do gênero dramático. É exatamente nesse
período que na obra de H. Ibsen, M. Maeterlinck, G. Hauptmann e A. Tchékhov
começa a se constituir a linguagem do "novo drama", bem diferente das
formas que existiam antes, um processo que leva à mudança do próprio
paradigma dramático. Como tudo o que é novo e vanguardista, as "ousadias"
dos jovens autores são com freqüencia recebidas pelo público com bastante
hostilidade. (Vale lembrar o espetacular fracasso do primeiro "novo drama",
A Gaivota, de A. Tchékhov, no palco do teatro Aleksandrínski, em 1896.) O
jeito de ser da estética do novo drama em formação diferia completamente
daquele tipo de peça que o público se acostumara a assistir, como se na
criação dos jovens autores faltassem as qualidades dramáticas e reinasse
uma estranha confusão de gêneros. Os dramas líricos de Tchékhov, por
exemplo, passam a se aproximar da forma da narrativa épica, a do
romance.[5] E, nesse sentido, Tchékhov talvez seja, segundo a precisa
observação de A. Rosenfeld, "o exemplo mais perfeito de um dramaturgo cujas
peças, embora conservem a estrutura da Dramática, contêm, todavia, forte
teor de traços estilísticos lírico-épicos".[6] E, como bem se sabe, este
processo de fortalecimento do elemento épico no seio da forma dramática
seria uma das linhas predominantes em toda a evolução teatral do século
XX.[7]
Mas não somente o gênero dramático se aproxima do épico e se mistura
com ele. Podemos observar, ao mesmo tempo, por parte do romance, uma
reciprocidade desse movimento sendo realizada na obra de F. Dostoiévski. Em
seus últimos grandes romances[8], ao se aproximar da poética do drama, o
escritor já consegue prenunciar também as novas formas do teatro épico do
século XX. E, com certeza, não é por acaso que o clássico russo, que nunca
em sua vida escreveu uma linha sequer para o teatro, se tornou um dos
autores mais encenados tanto nos palcos russos como do mundo inteiro. Este
interesse especial do teatro em relação à obra de Dostoiévski não pode ser
explicado apenas por sua intensidade psicológica e filosófica. A enorme
força de atração que a criação do escritor russo exerce sobre as artes
cênicas reside em uma das características essenciais de seu método
artístico, que poderia ser definida como uma predominância dramática
específica na narrativa épica.


É verdade que Dostoiévski, em sua juventude, sentiu-se especialmente
atraído pelas grandes personagens trágicas da dramaturgia clássica. Desde o
princípio, quando esboçou as idéias dos dramas Boris Godunov e Maria
Stuart, sempre sonhou escrever para o teatro, mas, durante toda a sua vida,
nunca chegou a realizar este desejo.[9] Como bem apontou o escritor
Vladímir Nabókov em suas palestras sobre literatura russa: "Era como se o
próprio destino tivesse preparado tudo para que Dostoiévski se tornasse o
maior autor dramático russo, mas ele não encontrou seu caminho e se tornou
um romancista".[10] Mas o palco russo apropriou-se da prosa de Dostoiévski.
Assim, no limite e na interação de dois mundos artísticos – o literário e o
teatral –, formou-se o novo fenômeno estético que poderia ser denominado O
teatro de Dostoiévski.
Na Rússia existe uma longa (mais do que secular) e fecunda tradição de
encenação de Dostoiévski. Foi o jovem K. Stanislávski, ainda ator amador,
que, em 1891, abriu o caminho do palco para as obras do escritor. Ao fazer
a adaptação cênica da novela A aldeia de Stepántchikovo e seus habitantes,
Stanislávski ficou entusiasmado com um depoimento da viúva do escritor,
Anna Grigoriévna, que, falando a respeito desta obra, contou-lhe que a
princípio Dostoiévski pensara em escrever uma peça, e não a novela.[11] E é
absolutamente impossível falar sobre a evolução artística do teatro russo
moderno sem fazer referências obrigatórias às inúmeras montagens de
romances e novelas de Dostoiévski. Para o diretor teatral, é como se a
montagem da obra de Dostoiévski representasse uma prova de fogo de sua
própria maturidade artística, que o obriga a mergulhar nas profundezas da
"vida do espírito humano", cumprindo assim aquele superobjetivo que K.
Stanislávski considerava essencial na arte teatral.
Já a "histórica" montagem de Os irmãos Karamázov, realizada por
Vladímir Nemiróvitch-Dântchenko no palco do Teatro de Arte de Moscou, em
1910, revelou as fascinantes qualidades cênicas contidas na narrativa
prosaica do escritor e definiu novas formas de interligação entre a arte
dramática e a literatura. Numa das entrevistas, o diretor destacou a
particularidade dos traços dramáticos do método de Dostoiévski:
"Dostoiévski escreveu como romancista, mas sentiu como autor dramático.
Suas imagens e palavras são cênicas. Muito, em seus romances, parece que
aspira ao teatro, ao palco, e corresponde fácil e naturalmente às suas
regras e condições específicas. Seus capítulos inteiros são verdadeiras e
maravilhosas passagens de drama". [12]
Nemiróvitch-Dântchenko lembrava-se de que os atores do Teatro de Arte
de Moscou, "ao começar a trabalhar, logo perceberam que Dostoiévski, no
fundo, era um grande autor dramático, embora nunca tivesse escrito para o
palco. Como um brilhante psicólogo, ele se aproxima profunda e
organicamente da criação do ator. Ele desnuda as paixões humanas, e isto
torna suas obras muito cênicas. Como grande mestre da intriga, ele é
infinitivamente teatral."[13] A irresistível atração que a arte cênica
sente pelos livros do escritor se deve, antes de mais nada, a uma
particular interligação, ou melhor, fusão, dos elementos épicos e
dramáticos na estrutura artística de sua obra.
A montagem de Os irmãos Karamázov por V. Nemiróvitch-Dântchenko
revelou-se um acontecimento inédito. Pela primeira vez, na história do
teatro, um espetáculo era dividido em partes separadas (como os volumes do
romance) e durava duas noites seguidas. O diretor, que era também autor do
texto da versão cênica do romance, nem pensou em transformá-lo numa
estrutura dramática tradicional. Ao contrário, ele procurou preservar a
estrutura épica da obra de Dostoiévski, criando uma personagem – Recitador
(Tchtiéts), que, assim como o romancista, era o narrador da história. De
vez em quando o Recitador interrompia a ação, fazia seus comentários e
expressava seu ponto de vista em relação às personagens. Este procedimento,
ao sublinhar a origem romanesca do espetáculo e estabelecer um tipo de
diálogo entre palco e literatura, inaugurou um novo gênero, que poderia ser
chamado de teatro de prosa.[14] Assim, a montagem de Os irmãos Karamázov,
ao revelar características importantíssimas da poética do drama na prosa de
Dostoiévski, apresentou um fato que se revelou essencial para a grande
reforma das artes cênicas do início do século XX e, em certo sentido,
"profetizou" uma das tendências magistrais do teatro moderno: desde então,
o palco jamais ficaria naquela dependência do próprio gênero dramático – do
drama – como acontecia antes.


O escritor e filósofo russo Dmítri Merejkóvski foi um dos primeiros a
usar a definição "tragédias" em relação aos principais romances de
Dostoiévski. Em seu importante ensaio, "Dostoiévski e Tolstói" (1901),
Merejkóvski afirma que nos romances de Dostoiévski a parte narrativa "é
sempre feita às pressas", representando "comentários ao drama que explicam
o lugar e o tempo da ação, os acontecimentos precedentes, o ambiente e a
aparência das personagens; um tipo de criação destinado ao palco; o drama
começa apenas a partir do momento em que as personagens saem e falam. Toda
a força da representação artística está concentrada nos diálogos de
Dostoiévski; é neles que tudo se enlaça e se resolve".[15]
Este conceito de Merejkóvski foi compartilhado e desenvolvido tanto
pelo filósofo Seguei Bulgákov, em seu ensaio "A Tragédia Russa", como por
um outro poeta, o dramaturgo e teórico russo Viatcheslav Ivánov, em seu
conhecido ensaio "Dostoiévski e o romance-tragédia", publicado pela
primeira vez em 1914, na revista "Rússkaia misl". V.Ivánov considera que na
obra de Dostoiévski se constitui uma nova modificação do gênero romanesco,
que ele define como "romance-tragédia". Segundo o raciocínio de Ivánov, o
"romance-tragédia" não pode ser interpretado como uma deturpação do gênero
épico, ao contrário, na nova etapa de evolução se apresenta seu indubitável
enriquecimento. O teórico detecta, nos romances do escritor, uma série de
procedimentos típicos da composição dramática: a contraposição de
personagens e situações num mesmo lugar e tempo; suas colisões
premeditadas; a construção de diálogos mais apropriados para o palco; o
desdobramento psicológico das personagens realiza-se por meio de ações
catastróficas; várias cenas de seus romances terminam com verdadeiros
"coups de théâtre". Todos estes procedimentos são usados por Dostoiévski
para a realização de um dos objetivos essenciais de seu método artístico, a
fim de que tudo o que se passasse no plano interior (ou seja, psicológico)
fosse evidenciado no plano exterior da narrativa, o das ações ou dos
acontecimentos.[16]
É preciso assinalar que o termo "romance tragédia" surgiu na fronteira
entre a estética (isto é, o conhecimento filosófico) e a teoria da
literatura e, sem dúvida, sob a impressão imediata e viva dos espetáculos
realizados por Nemiróvitch-Dántchenko – Os Irmãos Karamázov e Nikolai
Stavróguin, a montagem deste último, baseada em Os Demônios, estreou em
fins de 1913.
Mas, nos anos 20, os teóricos da literatura passam a prestar grande
atenção na questão do caráter dramatúrgico da obra de Dostoiévski, que a
partir de então se torna um dos problemas centrais na análise da poética da
obra do escritor. Assim, em 1921, B.Griftsov afirma: "Hoje, a idéia de que
Dostoiévski, mesmo contra a sua vontade estética, tornou-se um profundo
dramaturgo, dificilmente pode parecer a alguém nova e ousada. (...) A
concentração da ação a ponto de formar quase uma unidade clássica de tempo
e local, ininterrupta durante toda a luta dos protagonistas entre si e
contra o destino que os espreita a todos ronda, a abundância de encontros
inesperados, que são mais verossímeis no palco do que na leitura, e,
finalmente, a concentração da ação em poucos centros, pontos de catástrofe,
a reviravolta – tudo isso faz do conto O Jogador e dos romances O Idiota e
Os Demônios obras muitíssimo mais teatrais do que as peças indolentes e
ponderadas que são encenadas com mais freqüência nos teatros europeus".[17]
Profundo estudioso da obra de Dostoiévski, L.Grossman, que compartilha
da idéia da "teatralização do romance" nas criações do escritor, voltou a
atenção para as importantes formas de discurso dramático utilizadas por
ele: a ação dramática dupla ou múltipla em seus romances, onde cada
narrativa está organicamente ligada a outra e completa-a por contraste; uma
predominância de diálogos com formas típicas do drama.[18] A ação, ao
definir os conflitos e as características das personagens, domina a
estrutura narrativa na obra de Dostoiévski. Pode-se notar que, na base da
composição de seus romances e novelas, está sempre presente a conseqüência
dos acontecimentos – interiores ou exteriores – que compõem a linha da ação
ininterrupta (ou contínua) de sua narrativa, atribuindo-lhe uma
dramaticidade específica.
Assim, depois de passado já quase meio século da morte de
Dostoiévski, parecia haver uma concordância entre os estudiosos acerca da
predominância de estruturas dramáticas na poética da sua obra. Porém, em
1929, essa unanimidade é abalada por M. Bakhtin, que em seu bem conhecido
estudo Problemas da obra de Dostoiévski (em 1963 este livro foi refundido e
publicado com o título Problemas da poética de Dostoiévski) contestou a
concepção da confluência do gênero épico com o dramático na criação
dostoievskiana, contrapondo a estrutura polifônica da linguagem dos
romances do escritor russo à "moldura monológica" do drama. Bakhtin afirma:
"A concepção da ação dramática que soluciona todas as oposições dialógicas
é puramente monológica. A verdadeira multiplanaridade destruiria o drama,
pois a ação dramática não dá sustentáculo a semelhante unidade. Por isso,
no romance polifônico de Dostoiévski, o diálogo autenticamente dramático
pode desempenhar apenas papel bastante secundário".[19] E mais adiante
continua afirmando: "Em primeiro lugar, o drama é por natureza estranho à
autêntica polifonia; o drama pode ter uma multiplicidade de planos, mas não
pode ter multiplicidade de mundos, admite apenas um e não vários sistemas
de referência."[20]
Mas, ao mesmo tempo, ao fazer uma análise detalhada da poética da
obra de Dostoiévski, M. Bakhtin não consegue fugir das definições que, no
final das contas, mostram uma óbvia proximidade do método do escritor com a
poética do drama. Destacando o inacabamento orgânico da narrativa
dostoievskiana, Bakhtin aponta que a visão artística de Dostoiévski se
forma de coexistência e interação e, em conseqüência disso, o escritor,
antes de tudo, vê suas personagens no espaço, e não no tempo. Com esta
afirmação, Bakhtin já não tem como negar que há, em Dostoiévski, uma
"profunda atração pela forma dramática".[21]
Apesar da grande influência que a análise bakhtiana exerceu nos estudos
da obra de Dostoiévski, não dá para tirar a razão de outro importante
teórico russo da literatura, Vladimir Dniepróv, quando afirma, em sua
brilhante polêmica com Bakhtin, que "o papel especial que o princípio
dramático desempenha nos romances de Dostoiévski é evidente mesmo para
leitores inexperientes. Os pesquisadores que negam este papel especial têm
uma tarefa difícil e ingrata: vencer essa evidência estética".[22] Mas, com
certeza, não podemos esquecer que o romance de Dostoiévski é uma estrutura
sintética inédita por sua complexidade. "Todavia, apesar de sua
complexidade e riqueza, tem uma única base poética – a estrutura dramática.
Todos os elementos do romance, ao conservar sua essência poética peculiar,
estão impregnados e tomados pela dramaticidade". [23]


A análise comparativa da estrutura da composição da prosa de
Dostoiévski nos leva à definição dos principais traços da poética do drama
em sua obra.
Em primeiro lugar vem o papel extraordinariamente importante das
cenas de ação, das narrações dramáticas detalhadas, com muitas personagens
e cheias de peripécias críticas baseadas nas situações de conflito, ou
seja, exatamente aquilo que aproxima a obra dostoievskiana da estrutura do
drama, fundamentada na ação e no conflito. E não há como não concordar com
Tatiana Ródina, que faz uma afirmação precisa em seu livro Dostoiévski.
Narrativa e drama: "A ação é a forma básica do desenvolvimento do conteúdo,
o caminho principal para a realização da idéia do autor na obras de
Dostoiévski. Dostoiévski entende o mundo como dinâmico, contraditório, com
conflitos e catástrofes, como um estado de crise e de desenvolvimento.
A ação atravessa a vida de ponta a ponta nas obras de Dostoiévski,
dinamiza a narração de dentro, assume as mais importantes funções na
organização da construção da obra, na elaboração de seu enredo e da
eloqüência de linguagem".[24]
Em segundo lugar, deve ser ressaltada a própria peculiaridade mais
característica da visão artística de Dostoiévski e de seu método de
representar a realidade, que consiste no fato de o escritor descobrir
contradições em todo o "material da vida", que, realizando-se em conflitos
e atos, são formas de constante desenvolvimento do enredo. Também aqui
parece bem óbvia a aproximação da narrativa épica dostoievskiana com a ação
dramática, ligada ao surgimento e à resolução das contradições e conflitos,
ou seja, à dinâmica incessante que cria o movimento do enredo.
Uma atenção especial deve ser dada aos diálogos, que ocupam enorme
lugar na composição dos romances de Dostoiévski. Tal como é próprio do
"diálogo dramático", os discursos das personagens do escritor não apenas
movem a ação como se tornam um meio essencial para a criação de caracteres
como que "livres" do escritor, enquanto a palavra da narração do autor
adquire com freqüência o papel de notas do dramaturgo ou do encenador.
Neste contexto, torna-se muito valiosa a observação precisa de Dmítri
Likhatchov, um dos maiores historiadores e teóricos da literatura russa:
"Os narradores dos romances de Dostoiévski são freqüentemente
convencionais, de certo modo devemos nos esquecer deles. É quase como no
teatro de marionetes japonês, onde os atores vestidos de preto conduzem os
bonecos pelo palco à vista da platéia, mas os espectadores não devem notá-
los e não os notam. Quem atua são os bonecos. E aqueles que os deslocam não
devem ser tomados por personagens. O autor e os narradores de Dostoiévski
são serventes do proscênio, que ajudam o leitor a ver tudo o que acontece
pelo melhor ângulo em cada caso. E é por isso que eles se agitam
tanto".[25]
Mais um fator interessante, que está diretamente relacionado com a base
ativa das obras de Dostoiévski e determina a proximidade de sua prosa com o
drama, é o conceito específico de tempo, que é mais característico para o
teatro do que para uma narrativa do tipo épico. Em Os irmãos Karamázov, por
exemplo, os acontecimentos e as atitudes ocorrem "de repente",[26]
teatralmente, violando o curso do tempo e dando-lhe um caráter
"catastrófico". Os leitores do romance, tal como os espectadores no teatro,
passam a ser testemunhas das constantes peripécias de conflito do enredo,
indo de catástrofe a catástrofe. O romance começa com um escândalo num
convento e termina com o escândalo num Tribunal. O restante – segundo a
correta observação de B. Zinguerman – "é compreendido como a exposição e o
epílogo de um ato trágico."[27]
Outra característica importante da dramaticidade da poética de
Dostoiévski é a absoluta predominância do momento presente. (É curioso
observar que várias palavras do vocabulário teatral – representar,
apresentar, apresentação do espetáculo – contêm, em sua etimologia, uma
forte noção do tempo presente). A visão artística do escritor, antes de
mais nada, é sincrônica, pois ele "procura captar as etapas propriamente
ditas em sua simultaneidade, confrontá-las e contrapô-las dramaticamente e
não estendê-las numa série em formação".[28] A ação nas obras de
Dostoiévski sempre se desenvolve com uma velocidade impressionante, como se
o escritor sentisse a obrigação de permanecer nos limites do tempo
dramático.
Dessa forma é construída a composição do romance O Idiota, considerado
uma das obras mais teatrais de Dostoiévski. Ele começa com uma cena num
vagão de trem em que o narrador, descrevendo detalhadamente a aparência de
seus heróis, apresenta o príncipe Míchkin e Rogójin, aos quais, como que
inesperadamente, junta-se uma terceira personagem, Liébediev. Adiante, nos
diálogos, outras personagens são apresentadas e é exposta a situação,
importante para o futuro desenvolvimento do enredo, que chega à sua
culminação dramática na sala de Gânia Ívolguin, onde pela primeira vez se
encontra a maioria das personagens do romance. E aí ocorre uma das cenas
tensas e dramáticas de O Idiota: "de repente" aparece Rogójin e começa a
"comprar" Nastácia Filíppovna, prometendo dar por ela cem mil. No episódio
dramático seguinte, a ação alcança nova tensão com a volta de Rogójin com o
dinheiro. "Eis o desfecho!" – exclama Nastássia Filípovna no início da
cena, antecipando a virada do enredo que se torna, na verdade, um desfecho
inesperado para todas as personagens: após tirar de Gânia a esperança de
contrair um matrimônio vantajoso e recusar o pedido de casamento do
príncipe Míchkin, a heroína parte com Rogójin...
Poderíamos ainda acrescentar que o escritor com freqüência cria
várias cenas (seja a acima citada, na sala da família Ívolguin, seja a da
casa de Rogójin ou a do quartinho de Raskólnikov,) num tipo de espaço que
se assemelha ao espaço cênico.
Tudo isso prova que Thomas Mann estava certo ao comparar os romances
de Dostoiévski a "grandiosos dramas, construídos segundo as regras do
palco".[29]



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[1] Sobre este conceito bakhtiano foi publicado um ensaio muito consistente
de Cristovão Tezza, "Polifonia e ética", na Revista Cult, N 59, 2002, pp.
60-63.
[2] É bastante significativo o fato de que o melhor estudo sobre a
linguagem do grande escritor russo realizado no Brasil, por Boris
Schnaiderman, tenha como título Dostoiévski: Prosa Poesia (1982). O
profundo conhecedor e brilhante tradutor de Dostoiévski destaca, como um
traço marcante de seu estilo, a soberania da linguagem poética na obra do
jovem escritor e o oscilar entre a prosa e a poesia que marcou seu estilo
mais maduro. Mas é obvio que as qualidades poéticas da narrativa de
Dostoiévski não entram em contradição com as peculiaridades de seus traços
dramáticos.
[3] Seguindo a tradição da teoria literária russa, usamos o termo "drama"
em seu sentido amplo, para designar tudo o que é escrito para o palco,
enquanto o adjetivo "dramático" foi utilizado em seu sentido literal. Ou
seja, "pertencente ao drama".
[4] Veja, por exemplo, a definição de drama dada pelo teórico teatral
alemão Peter Szondi em seu estudo Teoria do drama moderno: "O drama é
absoluto. Para ser relação pura, isto é, dramática, ele deve ser desligado
de tudo que lhe é externo. Ele não conhece nada além de si. O dramaturgo
está ausente no drama. Ele não fala; ele institui a conversação. (...) As
palavras pronunciadas no drama são todas elas decisões; são pronunciadas a
partir da situação e persistem nela; de forma alguma devem ser concebidas
como provenientes do autor" (P. Szondi. Teoria do drama moderno (1889-
1950). São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 30).

[5] B. Zinguerman. Sviazúiuchaia nit. Pissáiteli i regissióri. (O fio de
ligação. Escritores e diretores). Moscou: OGI, 2002, p. 81
[6] A. Rosenfeld. O Teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2006 – 4 ed, p.
93
[7] A. Rosenfeld (op.cit.) e Peter Szondi (op.cit.) elaboraram análises
profundas sobre este tema.
[8] Crime e castigo (1866), O Idiota (1868), Os Demônios (1871) e Os irmãos
Karamázov (1878).
[9] Apud M. Alekséiev. Sobre as experiências dramáticas de Dostoiévski (O
dramatítcheskih ópytakh Dostoiévskogo). In: A criação de Dostoiévski 1821-
1881-1921. (Tvortchestvo Dostoiévskogo). Odessa: 1921, pp. 41-62
[10] V. Nabókov. Conferências sobre literatura russa. (Liéktsi po rússkoi
literature). Moscou: 1998, p. 183.
[11] K. Stanislávski. Moia jisn v iskússtve (Minha vida na arte). Moscou:
Iskússtvo, 1983, p. 140.
[12] N. Efros. Teatro de Arte de Moscou:1898-1923. (Moskóvski
Khudójestvieni Teatr:1898-1923). Moscou – Petrogrado: Ed.GIZ, 1924, p. 367.
[13] V. Nemiróvitch-Dântchenko sobre a arte de ator (V. Nemiróvitch-
Dântchenko o tvórtchestve aktiora.) Moscou: Iskússtvo,1984, p. 81.
[14] Mas, certamente, não se deve esquecer que, cada vez que as obras de
Dostoiévski são interpretadas no palco, acontece a tradução da linguagem
literária para a linguagem cênica, porque, como anota Iu. Lotman, em seu
ensaio A linguagem do teatro, "o verbo escrito no papel é profundamente
inadequado ao verbo representado no palco. A encenação é um dos mais
difíceis tipos de tradução artística" (Iu.Lotman Iazyk Teatra (A linguagem
do teatro). In: Iu. M. Lotman ob iskústve (Iu.M. Lotman sobre a arte).
Sankt-Petersburgo: Iskússtvo – SPB,1998, p. 606).

[15] D. Merejkóvski. L. Tolstói e Dostoiévski. Moscou: Respública, 1995, p.
108.
[16] V. Ivánov. Dostoiévski i roman-traguédia (Dostoiévski e o romance-
tragedia). IN: Rodnóie i vseliénskoe. (Próximo e universal.) Moscou:
Respública, pp. 282-311.
[17] Apud B. Liubímov. Sobre a cenicidade das obras de Dostoiévski (O
stenítchnisti proisvedéni Dostoiévskogo). Moscou: GITIS, 1981, p. 47.
[18] L. Grossman. Dostoiévski Artista. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1967, p. 37-45.
[19] M. Bakhtin. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, 1997, p. 16
[20] Ibid, p. 34
[21] Ibid, p. 28
[22] V Dniepróv. Idei vriemeni i formi vriemeni. (Idéias de tempo e formas
de tempo). Leningrado: Soviétski pissátiel, 1980, p. 246.
[23] Ibid., p. 267
[24] T. Ródina. Dostoiévski. Narrativa e drama (Dostoiévski. Poviestvovanie
i drama). Moscou: Naúka, p. 156.
[25] D. Likhatchov. Poética Drievnerússkoi Literatúri. (A poética da
literatura russa antiga.) Leningrado: Naúka, 1967. p. 32
[26] Assim, V. Toporov, em seu interessantíssimo trabalho dedicado à
análise do romance Crime e Castigo, escreve que a tendência de Dostoiévski
é de minimizar o tempo de transição (Nesse instante... subitamente... de
repente... inesperadamente... etc.); o tempo recebe uma velocidade
extraordinária, é calculado por instantes, para depois desaparecer
totalmente, depositando-se nos vestígios do espaço do palco. O pesquisador
contou que nas 417 páginas de Crime e Castigo a palavra de repente aparece
560 vezes (V.Toporov. "O strukture romana Dostoiévskogo v sviazi s
arkhaitcheskimi skhemami miflologuitcheskogo michlienia (Prestupliénie i
nakazánie)" (Sobre a estrutura do romance de Dostoiévski relacionada aos
esquemas arcaicos do pensamento mitológico. (Crime e Castigo). In: Mif.
Ritual. Simvol. Obraz. (Mito. Ritual. Símbolo. Imagem.) Moscou:
Progress–Kultura, 1995, pp. 197-198).
[27] B. Zinguerman, op.cit., p. 90
[28] M. Bakhtin, op.cit., p. 28.
[29] T. Mann. Sobránie sotchiniéni v 10 tomakh. (Obras completas em 10
volumes). Moscou: Khudojestvénnaia literatura, 1961, p. 340.
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