A poética nos estudos da linguagem: a busca pelo desconhecido

June 3, 2017 | Autor: Daiane Neumann | Categoria: Henri Meschonnic, Emile Benveniste, Poética
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A poética nos estudos da linguagem: a busca pelo desconhecido[1]

Daiane Neumann[2]




La théorie est critique. C'est son
aventure. La théorie du langage est une
aventure de l'anthropologie. Elle ne
peut pas ne pas se hasarder comme
théorie du sens, mettre à l'épreuve sa
propre historicité, et celle du langage.
D'où à la fois elle est particulière, et
déborde ses limites. [3]




Resumo: A poética proposta por Henri Meschonnic se constrói a partir da
epistemologia do domínio dos estudos da linguagem, especificamente a partir
da linguística de Ferdinand de Saussure e de Émile Benveniste. A noção de
sistema de Saussure e a discussão sobre a noção de ritmo, a subjetividade
na linguagem, o semântico sem semiótico em Benveniste fornecem as bases
sobre as quais se desenvolve esta teoria. Considerando tal historicidade,
este artigo se propõe a debater algumas questões que podem ser postas pela
poética à linguística da enunciação e do discurso. É o discurso que prima
para a poética, o que a leva a uma reaproximação dos estudos da linguagem e
da literatura, portanto a uma modificação do ponto de vista e do objeto de
estudo. Refletir sobre essa mudança de ponto de vista e sobre os novos
objetos que podem ser construídos é o que nos propomos a fazer.


Introdução

Henri Meschonnic desenvolve a sua poética do ritmo a partir dos
trabalhos de Ferdinand de Saussure e de Émile Benveniste[4]. O autor busca
pensar uma teoria da linguagem que se apresente como uma continuidade do
pensamento desses dois grandes linguistas, não apenas no que tange à
fidelidade às ideias e conceitos que perpassam a obra destes, mas também no
que tange ao fato de não ter negligenciado a reflexão que envolve a relação
da linguagem com o homem, com o pensamento, com a sociedade, com a
literatura, com a cultura, com outros sistemas de significação, como a
música, as artes.
No texto "L'avenir est au sens du langage", publicado em uma
compilação denominada « Dans le bois de la langue », Henri Meschonnic
afirma que Benveniste inventou um « nouveau concept, celui de discours,
dans un vieux mot »[5] (MESCHONNIC, 2008a, p. 189), para o teórico da
linguagem, esta é a « seule invention majeure »[6] (ibid.) no pensamento da
linguagem no século XX, depois daquela de sistema em Saussure.
A partir da noção de discurso em Émile Benveniste, da discussão sobre
a subjetividade na linguagem, sobre o semântico sem semiótico e da
reconstrução semântica operada pelo linguista da palavra "ritmo", Henri
Meschonnic desenvolve a sua poética do ritmo. Ou seja, a poética de
Meschonnic se constrói a partir da continuidade com a obra de Émile
Benveniste e da noção de sistema de Ferdinand de Saussure.
Tal poética constitui um novo paradigma dos estudos da linguagem que
não apenas prioriza os estudos do discurso, que não apenas observa os
estudos da linguagem a partir da perspectiva do discurso, e não do sistema
da língua, mas que acaba por alterar uma lógica de cientificidade que busca
reconstruir o domínio semiótico da língua, através da descrição, da
classificação, da elaboração de regras, e que se insere no domínio da
metafísica.
Observando a linguagem a partir da ordem do discurso, dos sistemas de
discurso, para utilizar os termos de Meschonnic, o que se percebe é o
funcionamento de um contínuo, que mascara o signo. Ou seja, ao observar a
linguagem a partir do discurso, não apenas se altera um paradigma
científico, como se é levado a alterar o ponto de vista, portanto, o objeto
sobre o qual o estudioso da linguagem se debruça.
Proponho-me neste texto a pensar e discutir sobre algumas questões que
a poética de Meschonnic suscita aos estudos da linguagem, principalmente
àqueles que se propõem a pensar o discurso, que se situam no campo
denominado linguística da enunciação. Proponho-me a pensar como tal poética
que parte de uma epistemologia situada no campo dos estudos linguísticos
pode ser posta em debate para que sejam repensadas algumas questões de
pesquisa dentro de tal domínio.
Para desenvolver tal reflexão, discutirei sobre a poética de
Meschonnic, sobretudo acerca das ideias que se encontram na obra Critique
du rythme, buscando pensar a sua historicidade, para então tecer algumas
considerações e reflexões que são suscitadas por essa poética para repensar
e recolocar em questão algumas ideias e concepções que perpassam os estudos
da linguagem.


1. A historicidade da poética de Henri Meschonnic

Meschonnic, no desenvolvimento de sua poética do ritmo, parte da
problematização de que o ritmo, tal como é em geral concebido, não é uma
noção semântica, mas sim uma estrutura, um nível. Dessa forma, a distinção
que se faz entre a forma e o sentido, o ritmo e o sentido, seria homóloga
às distinções de categoria na gramática entre léxico, sintaxe e morfologia.

No entanto, Benveniste acaba por desestabilizar essa noção corrente,
colocando a noção de ritmo em grande desordem, ao tirá-la da teoria do
signo e relegá-la ao discurso com seu artigo "O 'ritmo' em sua expressão
linguística", publicado em Problemas de linguística geral I. Embora
Benveniste não tenha desenvolvido a poética do ritmo, ele figura para
Meschonnic, como o único a tê-la tornado possível.
Émile Benveniste no texto supracitado afirma que o verbo tropos era
empregado pelos pré-socráticos para designar o vai e vem das águas no
Clepsidro e que o referido termo não permite que se dissocie a ideia de
fluxo daquela de periodicidade.
Segundo o linguista, Rhuthmos é glosado como "caractere, disposição" e
tropos "hábitos". Se algum verbo deve, portanto, comportar a ideia de
recorrência, este seria tropos. O termo kuma vem realizar a metáfora das
ondas que a atitude platonizante quer imprimir no ritmo como era na origem.
Benveniste mostra, dessa forma, que já havia o mensurável, a regularidade,
antes de Platão. No entanto, essa ideia de regularidade está presente em
kuma, mas não em rhutmos.
Rhutmos significaria então organização formal. O trabalho desenvolvido
pelo linguista revela um sentido adormecido da palavra e mostra que ele
era, segundo Mallarmé apud Meschonnic (2008b, p. 376), um "nó rítmico" pela
relação reencontrada entre a linguagem e o tempo, a linguagem e o
movimento.
Para Meschonnic no texto "Crise de signe", em Dans le bois de la
langue, Platão transformou a noção de ritmo, ou seja, é Platão quem inventa
a noção corrente de ritmo, que é tomada por natural. Dessa forma, Platão
transformaria, no ritmo, o contínuo em descontínuo. O mesmo descontínuo que
hoje reina nas representações da linguagem com as noções de signo
(forma/conteúdo) – palavra, frase, subdivisões tradicionais (léxico,
morfologia, sintaxe) – e do ritmo no sentido clássico, que apresenta a
oposição entre verso e prosa. Essa ideia de descontínuo impede que se pense
o contínuo.
Pensar o contínuo na linguagem é, em Meschonnic, pensar o efeito e o
conceito de forma conjunta e não separada, pensar a relação entre corpo e
linguagem, entre língua e pensamento. Há para o autor, sobre o modelo do
paradigma linguístico, o paradigma antropológico, filosófico, teológico,
social, político. São todos eles juntos que constituem o signo. Partindo do
ritmo como organização do movimento da fala na linguagem, veremos que um
outro sistema aparece.
Se o ritmo é uma organização do movimento da fala, esta organização é
uma atividade e um produto, e é necessariamente uma atividade do sujeito.
Nas palavras de Meschonnic, "o ritmo não é mais a alternância de um tempo
forte e um tempo fraco, sobre o plano fônico; o ritmo é a organização do
movimento da fala por um sujeito"[7](MESCHONNIC, 2008d, p. 59).
Através da recuperação desse sentido adormecido de tal palavra, o
teórico da linguagem desenvolve a teoria do ritmo. Para o autor, o ritmo
organiza o movimento da fala na escritura e na oralidade, não mais como
oposição dual do oral e do escrito no signo, mas como primado do ritmo e da
prosódia no modo de significar.
No desenvolvimento da poética do ritmo, é possível observar ainda que
Benveniste não serve de apoio somente para pensar uma concepção de ritmo
que deixe o primado do signo para entrar no discurso, mas também para
discutir sobre a noção de sujeito, de subjetividade na linguagem.
No texto "Da subjetividade da linguagem", publicado em Problemas de
linguística geral I, a linguagem é apresentada, por Benveniste, como
constitutiva do homem, na medida em que para o linguista, referir-se à
língua como instrumento é opor o homem à natureza. A linguagem não é,
portanto, fabricada pelo homem, mas está na natureza do homem, que não pode
ser atingido separado dela. Na esteira do autor, nunca encontramos no mundo
o homem separado da linguagem, inventando-a, é um homem falando que
encontramos, pois a linguagem ensina a definição de homem.
Para o linguista sírio, é na linguagem e pela linguagem que o homem se
constitui como sujeito. Essa subjetividade tratada pelo autor está ligada à
capacidade do locutor de se propor como sujeito. É a emergência no ser de
uma propriedade fundamental da linguagem. "É 'ego' quem[8] diz ego"
(BENVENISTE, 2005, p. 286).
A partir de tal questão levantada por Benveniste, Meschonnic
desenvolve uma antropologia histórica da linguagem em sua poética do ritmo.
Para o autor, o sentido é uma atividade do sujeito, o ritmo é uma
organização do sentido no discurso, consequentemente o ritmo é
necessariamente uma organização ou configuração do sujeito no seu discurso.
Uma teoria do ritmo no discurso seria, portanto, uma teoria do sujeito na
linguagem, o sujeito seria para o autor (2009, p. 71), "comparável à origem
da linguagem" [9].
O ritmo é o elemento antropológico capital na linguagem, pois ele
força a teoria do signo e a conduz a uma teoria do discurso. A unidade do
ritmo, sua única unidade, é um discurso como inscrição de um sujeito.
A subjetividade de um texto é o resultado da transformação dos
sentidos ou valores na língua em valores no discurso e somente no discurso,
em qualquer nível linguístico. A subjetividade seria, assim, toda
diferencial, toda sistemática. O ritmo é sistema[10].
Essa subjetividade em Meschonnic, pelo fato de que a escrita produz
uma retomada talvez indefinida de leitura, se torna uma intersubjetividade,
uma transsubjetividade, mas não uma intrassubjetividade. Tal escritura
seria uma enunciação que não resultaria somente de um enunciado, mas que
faria parte de uma cadeia de re-enunciações.
O ritmo como sentido do sujeito coloca a poesia na aventura histórica
dos sujeitos e neutraliza a oposição do sujeito e do objeto pela
criatividade do eu generalizado. Dessa forma, a crítica do ritmo impõe uma
outra ética, aquela do sentido, cujo quadro é a historicidade dos valores e
do estatuto do sentido.
O sujeito da enunciação em Critique du rythme, sujeito pelo seu
discurso, é solidário do "radicalmente arbitrário" de Saussure. A
problemática do ritmo é a teoria e a prática do sistema contra a redução à
palavra, ao nome. O arbitrário e o ritmo são ligados pela mesma
problemática, na medida em que seus valores e sentidos são construídos
dentro de um sistema, no interior de suas relações.
Meschonnic desvencilha-se, assim como Benveniste, de uma leitura
estruturalista do Curso. Para o teórico da linguagem, o radicalmente
arbitrário do signo é condição de historicidade radical da linguagem e do
discurso, o pensamento do funcionamento se opõe à origem e às subdivisões
tradicionais (léxico, morfologia e sintaxe), o valor se opõe à noção de
sentido, e o sistema, à noção de historicismo, nomenclatura e também
estrutura.
Para Dessons (2006), pensar o ritmo é indissociável de um pensamento
da linguagem como radicalmente histórica, então o ritmo constitui a
linguagem não como língua, mas como discurso; não como signo, mas como
significância; não nas subdivisões tradicionais criticadas por Saussure
(léxico, morfologia, sintaxe), mas como sistema; não como sentido, mas como
valor, não como origem, mas como funcionamento, não na polaridade entre
convenção e natureza, mas no radicalmente arbitrário concebido como
histórico.
O inconsciente da linguagem funciona conjuntamente com o inconsciente
dos sujeitos e o ritmo força no poema o inconsciente linguístico a seu
valor de sistema, de figura, a sua desnudação como meio. É, segundo
Meschonnic (2009), a organização de um sentido do sujeito que neutraliza a
oposição entre o consciente e o inconsciente na medida em que ele
neutraliza o querer dizer pela significância, portanto, o texto porta
significância, não a intenção.
O ritmo no sentido, no sujeito; e o sujeito, o sentido, no ritmo,
fariam do ritmo uma configuração da enunciação tanto quanto do enunciado. O
ritmo faria, dessa forma, uma antissemiótica, na medida em que ele mostra
que o poema não é feito de signos, embora linguisticamente seja composto de
signos.
A anterioridade do ritmo no discurso é a prioridade de um elemento do
discurso sobre outro, que são as palavras, seus sentidos. Tal prioridade do
ritmo sobre o sentido das palavras seria, no entanto, indissociável dessas
palavras, mesmo que o ritmo estabeleça um sentido outro, parcialmente.
"Prioridade sobre o pensamento, anterioridade cronológica do metro, o ritmo
é também primeiramente uma anterioridade antropológica, uma pré-história em
nós" (2009, p. 100). [11]
Os ritmos seriam, pois, as partes mais arcaicas na linguagem. Eles
seriam no discurso um modo linguístico pré-individual, inconsciente como
todo funcionamento da linguagem. Eles apresentariam no discurso um elemento
da história individual, dessa forma, o ritmo figuraria como a organização
do sentido, o sentido de um sujeito, de um inconsciente no discurso. Não
haveria nele, portanto, dupla articulação.
Benveniste apresenta um grande problema ao afirmar que as obras de
arte particulares possuem o semântico sem semiótico, enquanto a língua
configura-se como o único sistema que possui o semântico e o semiótico[12].
Esse esboço feito por Benveniste em "Semiologia da língua" coloca, segundo
Meschonnic, a teoria da linguagem em crise, na medida em que teríamos um
conflito gerado pelo fato de que um sistema que possui ao mesmo tempo
semiótico e semântico, no caso a língua, seria o interpretante de sistemas
que possuem apenas o semântico. Ou seja, essa relação de interpretância se
daria por relações semióticas. Nelas haveria sempre um resto, indefinido e
infinito, que escaparia à interpretação e que define um vir a ser
irredutível do valor e do sentido. É em busca desse vir a ser irredutível,
desse desconhecido que escapa à dualidade do signo, do sistema semiótico,
que a poética se lança.
Há, para Meschonnic, um conflito entre o falar-de, que é uma função do
signo, que supõe um primado da identidade, os mesmos valores de referência,
e o dizer, que é o infinito do sentido e o valor próprio da obra, sempre
suscetível de uma leitura nova. Deste conflito surge o questionamento do
autor: "como a relação entre um semântico sem semiótico e a língua como um
sistema semiótico-semântico pode ser ela mesma semiótica?"[13] (MESCHONNIC,
2008c, p. 410).
Para o autor, esta ideia está proposta em Benveniste mesmo para a
análise do discurso quando este afirma "não é uma adição de signos que
produz o sentido, é ao contrário o sentido (o 'intenté'), concebido
globalmente, que se realiza e se divide em 'signos' particulares, que são
as PALAVRAS"[14] (BENVENISTE apud MESCHONNIC, 2008c, p. 412). Essa
elaboração do discurso por Benveniste faz dele um caminho inevitável para
Meschonnic pensar o contínuo na linguagem.
Figurando como representante do incompreensível, o ritmo seria a
matéria privilegiada da aventura antropológica. As visões, as metáforas, se
fazem nele, na medida em que ele é o laboratório dos sentidos novos. Dessa
forma, o ritmo seria uma forma interior do sentido, como a gramática, que
figura como forma interior das línguas. No entanto, é somente em um
discurso-sistema que o ritmo pode figurar como esse sistema. Por isso,
Meschonnic (2009) busca fazer uma distinção entre o que se entende por
ritmo na linguagem e fora da linguagem, por exemplo, na música e na dança,
o que lhe permite mostrar que a especificidade do ritmo na linguagem está
no discurso.




Eu defino o ritmo na linguagem como a organização das
marcas pelas quais os significantes, linguísticos e
extralinguísticos (no caso da comunicação oral sobretudo)
produzem uma semântica específica, distinta do sentido
lexical, a que eu chamo significância: ou seja, os valores
próprios a um discurso e a um só. Estas marcas podem se
situar em todos os "níveis" da linguagem: acentuais,
prosódicas, lexicais, sintáticas. Elas constituem juntas
uma paradigmática e uma sintagmática que neutralizam
precisamente a noção de nível. Contra a redução corrente
do "sentido" ao léxico, a significância é todo o discurso,
ela está em cada consoante, em cada vogal que, tanto no
paradigma quanto no sintagma, emite as séries. Assim os
significantes são tanto sintáticos quanto prosódicos.
[...] E o sentido sendo a atividade do sujeito da
enunciação, o ritmo é a organização do sujeito como
discurso no e pelo seu discurso. (MESCHONNIC, 2009,
p.217)[15]





O que é interessante, nessa abordagem meschonniquiana, é que o ritmo,
enquanto dizer, não é conhecido do sujeito da escritura, ou seja, do
sujeito da enunciação. Este não é o dono do seu dizer, pois a construção do
ritmo é concomitante à construção do sujeito da escritura, do sujeito da
enunciação. Dentro dessa perspectiva, o que está em questão na poesia não é
mais a eufonia, a beleza, o ornamento, a expressividade, mas sim um modo de
viver-escrever, um modo de significar. A estética se torna para a poesia e
para a teoria da linguagem um fóssil teórico, pois "a poesia não refere uma
experiência, ela a cria" [16][17] (ibid., p. 62).
O diálogo que propus até o momento entre o pensamento de Henri
Meschonnic e de Ferdinand de Saussure e Émile Benveniste buscou apresentar
de forma geral a poética do ritmo, trazendo em seu bojo elementos de sua
historicidade que dialogam com o pensamento de dois grandes linguistas. Tal
percurso teve dois grandes objetivos: dar a conhecer a proposta da poética
do ritmo e mostrar que ela só se constrói devido a um pensamento que não
cinde língua e literatura, que de certa forma recupera o projeto de Roman
Jakobson apresentado na conferência "Closing statements: Linguistics and
Poetics" [18].
Tal contextualização é relevante para a reflexão que proponho a
seguir. Busco na próxima seção discutir sobre a mudança do paradigma de
cientificidade que tal poética suscita, bem como sobre algumas questões que
podem ser postas aos estudos linguísticos a partir do trabalho de Henri
Meschonnic, por exemplo, quais são os objetos que se constroem a partir da
mudança do ponto de vista, ou seja, quando se pensa a linguagem a partir do
discurso; por que esse trabalho que se baseia no estudo do discurso pode
aproximar mais os estudos linguísticos e literários.


2. Os efeitos da poética sobre os estudos da linguagem


O primeiro efeito da poética é de recolocar em questão o paradigma de
cientificidade dentro dos estudos da linguagem. Conforme consta na epígrafe
deste artigo, para Meschonnic (2009, p. 15), "A teoria é crítica. É sua
aventura. A teoria da linguagem é uma aventura da antropologia. Ela não
pode não se aventurar como teoria do sentido, não colocar à prova sua
própria historicidade e a da linguagem. Donde ao mesmo tempo ela é
particular e ultrapassa seus limites[19]".
A teoria parte da implicação recíproca entre a linguagem e a
literatura, dessa forma, o trabalho teórico se descobre ao mesmo tempo como
um trabalho ético e político, a aventura teórica e a aventura poética se
tornam inseparáveis. A teoria configura-se sempre como uma pesquisa, e não
uma manutenção da ordem, ela deve ser, pois, negativa. Não se assegura pelo
que diz, mas pelo que avança.




A teoria não é aqui o absoluto etimológico em que
Aristóteles via uma contemplação da verdade, independente
de toda prática, de toda poética (...) Mas a teoria da
linguagem, do ritmo, é teoria de, no sentido aristotélico
também, de investigação. (MESCHONNIC, 2009, p.17) [20][21]

É importante que não se confunda, dessa forma, teoria e ciência, pelo
menos não dentro dos estudos da linguagem e da literatura, para que se
possam rejeitar os esquemas já construídos e pensar a busca pelo
desconhecido, pelo novo a ser pensado.
A concepção de linguagem que perpassa o desenvolvimento do trabalho
sobre o ritmo na linguagem, cujas bases encontram-se na obra de Émile
Benveniste, quando este propõe que o discurso apresenta um caráter
singular, único do uso da língua, é transposto por Meschonnic para pensar a
teoria da linguagem, o fazer teórico.
A poética do discurso, portanto, é uma incompletude teórica, no
sentido que é incapaz de dar conta do todo, o que a torna solidária de uma
linguística do discurso. Ela não pode ser representada no nível do signo,
já que postula que a comunicação e o poema, conforme todo discurso, acabam
por extrapolar o próprio discurso.
Em "Benveniste: sémantique sans sémiotique", Meschonnic afirma que é
sobre a análise translinguística dos textos, das obras, através da
elaboração de uma metassemântica que se constituiria sobre a semântica da
enunciação, onde se situa o desenvolvimento de sua poética do ritmo.
No texto "Seul comme Benveniste", o autor propõe que a poética ausente
em Benveniste seria essa poética da metassemântica, que se constituiria a
partir da semântica da enunciação. Para o autor, talvez a crítica do
discurso pela poética seria do sujeito como subjetivação, a reposição da
noção de significância por uma significância da prosódia e do ritmo como
semântica do contínuo.




A poética, ausente em Benveniste, poderia ser esta
« metassemântica » (Plg. II, 66) que ele via como um
futuro do semântico. A crítica do discurso pela poética
seria talvez a retomada do sujeito como subjetivação, a
retomada de sua noção de significância ("propriedade de
significar", Plg. II, 51) por uma significância da
prosódia e do ritmo como semântica do contínuo.[22]
(MESCHONNIC, 2008b, p. 389)




Temos hoje, de acordo com o autor, uma reflexão sobre a linguagem,
sobre suas representações que tem pelo menos dois mil e quinhentos anos, e
que discute essencialmente o dualismo do signo, esta dupla abstração que
toma a linguagem como a aliança de dois elementos radicalmente heterogêneos
um ao outro, o som e o sentido, a forma e o conteúdo. A poética do ritmo
trabalha para mostrar que há o descontínuo do signo, das palavras, das
línguas, que são conhecidos, mas também um contínuo que a concepção mais
tradicional impede de perceber.
Conforme nos ensina o mestre Saussure, "bem longe de dizer que o
objeto precede o ponto de vista, diríamos que é o ponto de vista que cria o
objeto; aliás, nada nos diz de antemão que uma dessas maneiras de
considerar o fato em questão seja anterior ou superior às outras" (2004,
p.15). O que faz a poética é alterar o ponto de vista, é buscar observar a
linguagem a partir do discurso, o que nos obriga a deixar o dualismo do
signo e buscar novos objetos.
Para a poética, observar o discurso não significa partir do ponto de
vista do domínio semiótico, não significa observar o funcionamento de
categorias de língua no discurso, o que em geral faz a denominada
linguística da enunciação. O flagrante nos estudos da linguagem é que
apesar de Benveniste ter inventado a noção de discurso, para utilizar os
termos de Dessons (2006), em meados do século XX, não houve verdadeiramente
uma busca para refletir sobre a constituição mesma do discurso, dos
discursos particulares, sobre o seu funcionamento no que tange àqueles
elementos que fogem às categorias de língua, que não podem ser reduzidos ao
domínio semiótico e que têm sido historicamente negligenciados pelos
estudos linguísticos.
Quando se trabalha com a análise de discurso, partindo de categorias
pré-estabelecidas, de categorias do domínio semiótico, acaba-se por reduzir
o discurso às categorias de língua e, consequentemente, fecha-se os olhos
para pensar como um discurso particular se articula, como ele produz
sentido, o que ele faz. Impede-se, assim, que o texto, a obra, interrogue o
analista, para que este possa buscar o desconhecido na linguagem. Se
concordarmos com Benveniste quando apresenta a distinção entre o domínio
semiótico e o domínio semântico (ver nota 9) e ao discutir sobre este
último diz que:




a mensagem não se reduz a uma sucessão de unidades que
devem ser identificadas separadamente; não é uma adição de
signos que produz o sentido, é, ao contrário, o sentido (o
"intencionado"), concebido globalmente, que se realiza e
se divide em "signos" particulares, que são as PALAVRAS.
(BENVENISTE, 2006, p. 64 65)

Percebemos imediatamente que o domínio de análise de discurso requer
outro olhar, outra abordagem. Se é a totalidade que define as unidades,
então a análise dos textos, das obras, deve ser construída de acordo com a
especificidade de cada um dos objetos analisados, levando em consideração o
fato de que estas são constituídas por um sujeito singular, histórico que
faz de sua enunciação um ato de linguagem único, específico.
Para a poética, os textos, as obras constituem sistemas de valores,
que produzem uma semântica específica, distinta do sentido lexical.
Observar como se organiza uma produção de linguagem significa levar em
conta as marcas linguísticas e extralinguísticas[23]. Tais marcas podem se
situar em todos os níveis da linguagem, acentuais, prosódicos, lexicais,
sintáticos, que juntos constituem um paradigma e um sintagma que
neutralizam precisamente a noção de nível.
Ao deixarmos os textos, as obras, nos interrogarem enquanto objetos
singulares e únicos, que devem ser abordados a partir daquilo que fazem
enquanto discurso, somos levados a alterar o ponto de vista diante dos
estudos da linguagem e, consequentemente, a constituir outros objetos. O
que nos leva a atribuir uma importância maior a aspectos historicamente
negligenciados pelos estudos da linguagem, como os acentuais e prosódicos,
e a observar nos textos e nas obras o ritmo, as rimas, os ecos prosódicos,
a voz, o silêncio.
Tal investigação, tal busca se torna mais profícua e rica quando o
estudioso da linguagem se debruça sobre o texto literário, pois conforme
Dessons (2011, p. 40), "o 'poema' se apresenta como um discurso em que o
sujeito se engaja – ao máximo – na busca do que faz dele um ser de
significação" [24]. Poderia acrescentar aqui que o texto literário em geral
se apresenta como um lugar em que o sujeito se engaja ao máximo, na medida
em que extrapola, subverte as convenções da língua em todos os níveis. Como
bem nos lembra Meschonnic,


a literatura é um desafio ao linguista que tem medo da
literatura. O discurso é um desafio que a linguagem lança
à palavra. O texto é o desafio que a literatura lança ao
discurso. A obra é o desafio que o sentido que é aí
construído e se manifesta no seu todo lança ao texto. O
desafio não é a exceção. Ele está presente em cada
momento. (MESCHONNIC, 1995, p. 88). [25]




Para o autor, a teoria da linguagem não é a linguística, mas antes uma
reflexão sobre os problemas de linguística e, particularmente, uma reflexão
sobre as contradições entre linguística e literatura. A teoria da linguagem
é uma crítica a qualquer tentativa de anular tal tensão, como das escolas
linguísticas que esquecem as questões de literatura e das tradições de
história literária que dão as costas aos problemas de linguagem.




Considerações finais


A reflexão e as considerações que aqui apresentei buscaram discutir
como a poética que se constitui a partir de um quadro epistemológico dos
estudos linguísticos, mais especificamente a partir do trabalho de
Ferdinand de Saussure e Émile Benveniste, pode nos auxiliar para recolocar
em questão o domínio dos estudos da linguagem, principalmente dos estudos
da enunciação e do discurso.
Tal postura se torna essencial, na medida em que a poética concebe a
teoria como crítica, negativa, ou seja, a teoria deve ser pensada sempre
como uma pesquisa, não uma manutenção da ordem, deve, pois, avançar. Dessa
forma, deve buscar o desconhecido na linguagem, abrir espaço para que os
desafios da literatura interroguem o estudioso da linguagem, para que este
possa se lançar diante do desconhecido.
Para que o estudioso se deixe interrogar pela linguagem, para que
possa buscar o desconhecido, é importante que este analise os textos, as
obras a partir do discurso, que não se restrinja à observação do
funcionamento das categorias de língua no discurso, mas que se lance à
observação dos elementos que não se reduzem ao domínio semiótico da língua.
Dessa forma, os aspectos acentuais e prosódicos, negligenciados pelos
estudos linguísticos, se tornam constitutivos da significância da obra, e
novos objetos de estudo podem ser construídos e pensados.



Referências bibliográficas


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Cultrix, 2004.
TRABANT, Jürgen. Le Humboldt d' Henri Meschonnic. In: DESSONS, Gérard;
MARTIN, Serge; PASCAL, Michon. Henri Meschonnic, la pensée et le poème. In
Press Edition: Paris, 2005.
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[1] Este texto é uma tradução do artigo "La poétique et les études du
langage: vers l'inconnu", originalmente publicado na Revista de Estudos da
Linguagem, volume 23, número 1, Belo Horizonte, 2015, p. 289-303.
[2] Doutoranda no Programa de pós-graudação em letras da UFRGS, na linha de
"Teorias do texto e do discurso". Bolsista CAPES/REUNI.
[email protected]
[3] Meschonnic (2009, p. 15).
[4] De acordo com Jürgend Trabant (2005), as três grandes referências do
trabalho e da obra de Meschonnic são Wilhelm von Humboldt, Ferdinand de
Saussure e Émile Benveniste. Não entrarei aqui na discussão sobre a
influência de Humboldt no pensamento de Meschonnic, pelo fato de que meu
objetivo é refletir sobre os efeitos que a poética traz aos estudos
linguísticos ocidentais, que se constituem principalmente a partir da
publicação do Curso de linguística geral, seja para negar ou corroborar as
ideias aí postas, e que mais tarde, em alguns casos, estabelecem relações
com o trabalho de Benveniste.
[5] Tradução minha: « um novo conceito, o de discurso, para uma palavra
antiga ».
[6] Tradução minha: « a única invenção maior »
[7] Tradução minha. No original, lê-se: "le rythme n'est plus l'alternance
d'un temps fort et d'un temps faible, sur le plan phonique ; le rythme est
l'organisation du mouvement de la parole par un sujet ».
[8] Na tradução de tal obra, encontra-se que, no entanto optei pelo uso de
quem, já que é mais condizente com o original em que consta o pronome
francês qui e não que.
[9] Tradução minha. No original lê-se: "comparable à l'origine du langage".
[10] Para Meschonnic (2009), o ritmo é o sentido, a imprevisibilidade, é a
inscrição de um sujeito em sua história. O ritmo é o discurso como sistema,
seus sentidos são construídos a partir da unidade e da historicidade de uma
determinada obra.
[11] Tradução minha. No original lê-se:"Priorité sur la pensée, antériorité
chronologique du mètre, le rythme est aussi, d'abord une antériorité
anthropologique, une préhistoire en nous".
[12] No texto Semiologia da língua, Benveniste define o domínio semiótico
como "aquele que designa o modo de significação que é próprio do SIGNO
lingüístico e que o constitui como unidade. Pode-se, para efeito de
análise, considerar separadamente as duas faces do signo, mas sob a relação
de significância, ele é uma unidade, e se conserva como unidade". Já com o
domínio semântico "entramos no modo específico da significância que é
engendrado pelo DISCURSO.[...]Ora, a mensagem não se reduz a uma sucessão
de unidades que devem ser identificadas separadamente; não é uma adição de
signos que produz o sentido, é, ao contrário, o sentido (o "intencionado"),
concebido globalmente, que se realiza e se divide em "signos" particulares,
que são as PALAVRAS." (p. 64-65)
[13] Tradução minha. No original, lê-se: "Comment la relation entre une
sémantique sans sémiotique et la langue comme système sémiotique-sémantique
peut-elle être elle-même sémiotique ? »
[14] Tradução minha. Lê-se no original: « Ce n'est pas une addition des
signes qui produit le sens, c'est au contraire le sens (l'« intenté »),
conçu globalement, qui se réalise et se divise en « signes » particuliers,
qui sont les MOTS ».
[15] Tradução minha. No original lê-se: "Je définis le rythme dans le
langage comme l'organisation des marques par lesquelles les signifiants,
linguistiques et extralinguistiques (dans le cas de la communication orale
surtout) produisent une sémantique, spécifique, distincte du sens lexical,
et que j'appelle la signifiance : c'est-à-dire les valeurs, propres à un
discours et à un seul. Ces marques peuvent se situer à tous les « niveaux »
du langage : accentuelles, prosodiques, lexicales, syntaxiques. Elles
constituent ensemble une paradigmatique et une syntagmatique qui
neutralisent précisément la notion de niveau. Contre la réduction courante
du « sens » au lexical, la signifiance est de tout le discours, elle est
dans chaque consonne, dans chaque voyelle qui, en tant que paradigme et que
syntagmatique, dégage des séries. Ainsi les signifiants sont autant
syntaxiques que prosodiques. [...] Et le sens étant l'activité du sujet de
l'énonciation, le rythme est l'organisation du sujet comme discours dans et
par son discours ».
[16] Tradução minha. No original lê-se: "La poésie ne renvoie pas à une
expérience. Elle la fait.".
[17] Grifos do autor.
[18] JAKOBSON, Roman. Linguistique et poétique. In : Essais de linguistique
générale. França : Éditions de Minut, 1963/2003.
[19] Tradução minha. No original lê-se : « La théorie est critique. C'est
son aventure. La théorie du langage est une aventure de l'anthropologie.
Elle ne peut pas ne pas se hasarder comme théorie du sens, mettre à
l'épreuve sa propre historicité, et celle du langage. D'où à la fois elle
est particulière, et déborde ses limites. »
[20] Tradução minha. No original lê-se: « La théorie n'est pas ici l'absolu
étymologique où Aristote voyait une contemplation de la vérité,
indépendante de toute pratique, de toute poétique (...) Mais la théorie du
langage, du rythme, est théorie de, au sens, aristotélicien aussi,
d'investigation".
[21] Grifos do autor.
[22] Tradução minha: No original, lê-se: « La poétique, absente, chez
Benveniste, pourrait être cette "métasémantique" (Plg. II, 66) qu'il voyait
comme un avenir du sémantique. Peut-être la critique du discours par la
poétique serait la reprise du sujet comme subjetivation, la reprise de sa
notion de significance ("propriété de signifier", Plg. II, 51) par une
signifiance de la prosodie et du rythme comme sémantique du continu. »
[23]Aqui o extralinguístico está ligado a gestos, postura corporal, não a
uma realidade sócio-histórica.
[24]Tradução minha. No original lê-se: « le 'poème' se présent[e] comme un
discours où le sujet s'engage – au maximum – dans la recherche de ce qui
fait de lui un être de signification ». É importante ressaltar que para
Dessons (2011), o poema não deve ser necessariamente escrito em verso, pois
mesmo que o verso tenha sido historicamente a forma do poema, durante
muitos séculos, ele não o é mais desde que a ideia de poesia foi alterada
no século XVII, quando houve a versificação da prosa, o que resultou no
século XIX no poema em prosa.
[25]Tradução minha. No original lê-se: « La littérature est un défi au
linguiste qui a peur de la littérature. Le discours est un défi que le
langage lance au mot. Le texte est le défi que la littérature lance au
discours. L'œuvre est le défi que le long terme du sens lance au texte. Le
défi n'est pas l'exception. Il est de chaque moment ».
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