A polêmica das cotas raciais nas universidades brasileiras

June 26, 2017 | Autor: Francielle Alves | Categoria: Análise do Discurso
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A polêmica dos discursos sobre cotas raciais nas universidades brasileiras

Francielle Alves Ribeiro (Universidade Federal do Triângulo Mineiro – Graduanda - Letras – Port./Inglês) Vanda Tomaz de Miranda Oliveira (Universidade Federal do Triângulo Mineiro – Graduanda - Letras – Port./Inglês)

Resumo

Visando aprofundar conhecimentos acerca dos discursos linguísticos, este estudo se propõe a analisar discursivamente a questão referente às cotas raciais de destaque no Brasil, a partir de textos veiculados na internet, cujo propósito de implantação funda-se em tentar amenizar desigualdades sociais, econômicas e educacionais entre raças, tão recorrentes em nosso país. É do conhecimento de todos, os embates que decorrem de tal tema, que entre posicionamentos favoráveis e contrários geram grande polêmica. Assim sendo, compilou-se um corpus formado por textos de diversificados gêneros que circulam desde a instituição das cotas até o presente momento, no qual serão analisados alguns recortes mais relevantes, buscando evidenciar, através de embasamento teóricometodológico proposto por Dominique Maingueneau, marcas de polemicidade, formação discursiva, interdiscurso, posicionamento pré-construído, heterogeneidades, simulacro, etc.

Palavras-chave:

Cotas

raciais;

relação

polêmica;

desigualdades;

discursos;

heterogeneidade.

Abstract Pretending go deeper in the the linguistic discourse knowledge, this study aims to discursively analyze the question relating to prominent racial quotas in Brazil, served from texts on the Internet, the purpose of deployment is based on trying to mitigate social, economic and educational inequalities between races, so recurrent in our country. It is known to all, the conflicts arising from such issue, which between pro and con positions generate great controversy. Therefore, compiled into a corpus made up of

diverse genres texts circulating since the imposition of quotas to date, in which some most relevant clippings will be analyzed in order to enhance, through theoretical and methodological basis proposed by Dominique Maingueneau, brands of polemicidade, discursive formation, interdiscourse, pre-built positioning, heterogeneities, simulation, etc.

Keywords: Racial quotas; polemic relation; inequalities; speeches; heterogeneity.

A relação polêmica.

De acordo com, LEI No 12.711, de 29 de agosto de 2012, publicada no Diário Oficial da União ―as vagas reservadas às cotas (50% do total de vagas da instituição) serão subdivididas — metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita e metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a um salário mínimo e meio. Em ambos os casos, também será levado em conta percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas no estado, de acordo com o último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)‖. Como é do conhecimento de todos, tal fato referente às cotas raciais gerou intensos debates, devido a opiniões contrárias à sua implantação, muitas vezes alegando ser desnecessário dividir brasileiros entre brancos e negros para promover justiça social. Suscitaram também, questionamentos sobre a qualidade educacional nas escolas, pois as cotas ocultariam a defasagem que deveria ser sanada na base e seus efeitos minimizariam desigualdades raciais no acesso ao ensino superior, estimulando dessa forma, mudanças sociais mais amplas. Alguns críticos enfatizam ainda que, ―os negros nunca foram impedidos de frequentar universidades brasileiras por uma questão racial, mas por motivos socioeconômicos. Por esta razão, as cotas deveriam privilegiar alunos pobres, sejam eles brancos, pardos ou negros. O critério de diferenciação seria a renda, não a raça‖. Além dessas discussões, há ainda o agravante de que as cotas raciais prejudicariam pessoas que perderiam vagas para concorrentes com menor pontuação ou qualificação. A polêmica estabeleceu-se devido a opiniões divergentes a respeito do assunto, já que é possível notar a aparição de duplas traduções em discursos que dizem respeito às cotas raciais. São relações que se desenvolvem mantendo uma constante controvérsia entre si.

Neste artigo analisaremos como se dá o posicionamento a respeito das cotas raciais por mídias de destaque no Brasil, a partir de seus textos veiculados na internet, verificando por meio do discurso marcas que possam caracteriza-lo contra ou a favor à política de cotas. Por se tratar de um assunto polêmico, na maioria das vezes o posicionamento da instituição o qual o texto é veiculado não aparece de forma nítida ao leitor. Diante desse cenário, a fundamentação teórica deste artigo, cujo objetivo principal é analisar as principais características que integram essa formação discursiva, estará alicerçada nas teorias do analista do discurso, Dominique Maingueneau, para proceder à devida análise discursiva deste tema, sobre o qual faremos uma cuidadosa investigação a fim de extrair marcas que comprovem posicionamentos a respeito do tema abordado.

Fundamentação teórica Partindo do conceito postulado por Pêcheux (2007), em que uma ―formação discursiva‖ é que determina ―o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada, numa conjuntura dada‖ (p. 27), e levando em consideração que o sentido das palavras só se produz em seu interior, ou seja, ―as palavras ‗mudam de sentido‘ ao passar de uma formação discursiva a outra‖, a análise se realizará com uma investigação dos discursos envoltos ao tema em questão: cotas raciais, pois de acordo com Pêcheux (apud Maingueneau 1997): A Análise de discurso não pretende se instituir como especialista da interpretação, dominando ‗o‘ sentido dos textos; apenas pretende construir procedimentos que exponham o olhar-leitor a níveis opacos à ação estratégica de um sujeito (...). O desafio crucial é o de construir interpretações, sem jamais neutralizá-las, seja através de uma minúcia qualquer de um discurso sobre o discurso, seja no espaço lógico estabilizado com pretensão universal. (Michel Pêcheux apud MAINGUENEAU, 1997, p. 11).

A citação evidencia que para a AD, essa interligação entre linguagem e ideologia proporciona a materialização da ideologia. A análise dessas posições ideológicas é possível graças à utilização das formações discursivas quando relacionadas a um ―outro‖, em relação de enfrentamento ou aliança. As formações discursivas, de acordo com Foucault, ―são um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica e geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa‖. (Foucault apud MAINGUENEAU, 1997, p. 14).

Assim sendo, Maingueneau esclarece que ―não se trata de examinar um corpus como se tivesse sido produzido por um determinado sujeito, mas de considerar sua enunciação como o correlato de uma certa posição sócio histórica na qual os enunciadores se revelam substituíveis‖. No presente artigo, estes tipos de relações serão enfatizadas como forma de mostrar o tipo de relação das políticas de cotas raciais com o discurso analisado, não nos detendo a classificações destas formações discursivas. Ainda pensando na questão do ―outro‖ e do embate entre formações discursivas, cabe salientar que estas não se constituem individualmente, ou independentemente umas das outras, ou seja, um discurso só se constrói em relação a outro. Segundo Maingueneau (1997), ―um discurso não nasce, como geralmente é pretendido, de algum retorno às próprias coisas, ao bom senso etc., mas de um trabalho sobre outros discursos‖. Deste modo, considera-se sempre, nas análises sobre o tema estudado, que, se há um posicionamento favorável a elas é porque existe outro contra, ou desfavorável. Desta forma, cria-se uma relação de polemicidade, mas é preciso ressaltar que, segundo Maingueneau, a controvérsia entre formações discursivas não se constitui na única característica de uma relação polêmica, cuja existência é verificada quando um discurso aborda o ―outro‖ de tal maneira que acaba gerando uma série de enunciações. Maingueneau afirma também que, para haver polêmica é preciso que ―haja relações explícitas entre duas formações discursivas‖. Ao analisar a pesquisa de Courtine e Marandim, o analista enfatiza que ―uma formação discursiva não deve ser concebida como um bloco compacto que se oporia a outros, mas como uma realidade ‗heterogênea por si mesma‘‖, que se define a partir de seu interdiscurso, como esclarecem também, Courtine e Marandim: ―O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é levada (...) a incorporar elementos preconstruídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de determinados elementos‖. (Courtine e Marandim apud

Maingueneau, 1997, p. 113). O trecho mostra o funcionamento do esquecimento na cadeia discursiva que atinge todos os elementos do discurso, inclusive o sujeito discursivo.

Assim, defende D. Maingueneau que, a análise do discurso prefere formular as instâncias de enunciação em termos de lugares, enfatizando a topografia social sobre os falantes, podendo estas instâncias constituírem o sujeito em sujeito de seu discurso ou assujeitá-lo (1997: p. 32). De acordo com Maingueneau (1997), sustentar que o espaço é da ordem interdiscursiva, consiste em propor ao analista o interdiscurso como objeto e fazê-lo apreender, não uma formação discursiva, mas a interação entre formações discursivas, construindo uma identidade discursiva na relação com o outro. Maingueneau diz ainda que ―um enunciado de uma formação discursiva pode ser lido em seu ‗direito‘ e em seu ‗avesso‘‖, o que significa que pertence a seu próprio discurso ou marca a distância constitutiva que o separa de um ou vários discursos. Nessa perspectiva, afirma que ―as polêmicas em que as formações discursivas estão envolvidas não surgem de forma contingente do exterior, mas são a atualização de um processo de delimitação recíproca localizado na própria raiz dos discursos considerados‖ (1997, p. 120). Em sua obra ―Doze conceitos em análise do discurso‖, no capítulo de número onze, Maingueneau trata do ―Registro‖ em um artigo intitulado ―As três facetas do polêmico‖, esclarecendo inicialmente que ―o termo ‗registro‘ pode a priori designar qualquer conjunto de traços linguísticos regularmente associados em um discurso, mas que não se caracterizam por ocorrerem em um único gênero‖ (2010: p.187). O autor esclarece que, recentemente, utilizou o termo ‗registro‘, sobre o qual distinguiu três tipos: linguísticos, funcionais e comunicacionais, ao realizar uma pesquisa sobre os tipos de unidade com que se trabalha em análise do discurso, para confrontar as unidades ‗territoriais‘ (gêneros e tipos de discursos) com as ‗unidades transversas‘, por estas não poder circunscrever em um gênero ou tipo de discurso (2010: p. 188). Segundo Maingueneau, os registros linguísticos e funcionais são mais consistentes. Os linguísticos porque se situam aquém do nível propriamente textual, os funcionais porque são muito abstratos e os comunicacionais, em contraposição, dada a diversidade de fatores envolvidos em uma atividade educacional, é extremamente difícil traçar linhas de divisão claras. O autor afirma ainda, que o polêmico, associado a um repertório de traços linguísticos característicos de certa violência verbal tem a ver com registros do tipo comunicacional, porém de um ponto de vista da análise do discurso é uma concepção vaga e insatisfatória do polêmico. Ele esclarece também que, o polêmico pode ser abordado de três dimensões diferentes: a ‗enunciativo-pragmática‘, a

‗sociogenérica‘ e a ‗semântica‘, mas enfatiza que o polêmico não diz respeito às atividades verbais, ele pertence aos gêneros instituídos e não à conversação (2010: p. 189). De acordo com Maingueneau, de um ponto de vista lexical, ‗polêmica ou polemizar‘ se empregam para conflitos nos quais as questões estão situadas além dos indivíduos que interagem. Assim sendo, discussões, bate bocas, disputas não se tratam de polêmicas. Esclarece também que, de um ponto de vista aspectual, uma ‗discussão‘ ou um ‗bate boca‘ podem ser pontuais, enquanto uma polêmica se estende no tempo, supõe uma sucessão de trocas (2010: p. 190). A dimensão enunciativo-pragmática do polêmico é descrita pelo analista como a mais imediata e que justifica a exploração didática de um ‗registro polêmico‘. Maingueneau afirma que essa dimensão ‗enunciativo-pragmática‘ permite ―indicar que se pode colocar ênfase não somente nas marcas enunciativas, mas também na força ilocucional da enunciação, no interior de certa encenação da atividade discursiva‖. Esclarece que ―a ‗violência verbal é de fato uma noção intuitiva que é muito difícil em termos linguísticos, tendo então como saída, o estudo do texto polêmico em seus múltiplos planos, atribuindo uma importância bem relativa aos traços linguísticos considerados característicos do polêmico‖ (2010: p. 191). De acordo com Maingueneau, ―deve-se, de qualquer forma, reconhecer a dimensão teatral da enunciação polêmica, que supõe a existência de um terceiro espectador, alguém que assume as normas subjacentes ao debate. Se os adversários pressupõem a existência de normas que se impõem a ambos e os valores que a fundam estão ameaçados, (o bom senso, os valores democráticos, o catolicismo, a defesa dos pobres etc.), eles podem polemizar‖. É inevitável, enfatiza o autor, ―que numa polêmica com alguma amplitude, os atores tendam a apelar para os fundamentos, indo além do objeto imediato que a desencadeou‖. Segundo o analista, assim como ―dinâmica das trocas é outro aspecto essencial do polêmico, já que, pode acontecer que um texto primeiro se posicione como indicador de uma polêmica e que ele provoque, de alguma forma, enunciados contrários; a enunciação polêmica é também ligada à oralidade, que coloca em cena uma confrontação direta com o adversário‖ (2010: p. 192). Na dimensão sociogenérica Maingueneau afirma que ―cada texto polêmico implica um quadro comunicacional, um gênero ligado a um suporte e a lugares de difusão, que lhe prescreve um modo de existência; ele se inscreve, além disso, em uma temporalidade

específica, constitui um acontecimento enunciativo que adquire sentido em relação a outros da mesma série‖, devendo considerar, portanto, as práticas discursivas efetivas por meio das quais, o polêmico se exerce (2010: p. 193). O autor informa também, que o polêmico desenha uma configuração característica para um espaço histórico, dado de acordo com, o que se polemiza, o estilo, quem polemiza, em quais suportes, circuitos, etc., enfatizando que existem momentos privilegiados para as polêmicas. Questiona ainda sobre os novos tipos de polêmica atualmente construídos pela mídia, principalmente a televisão, cuja mudança da dimensão das unidades, de textos inteiros para pequenas frases, que quando apresentadas por um jornalista, dirigida contra tal ou qual pessoa, alimenta as reações de outros atores do campo político midiático que, no entanto, não duram muito tempo, pois a atenção do espectador não pode ser indefinidamente mobilizada pelo mesmo assunto (2010: p. 194). Quanto à dimensão semântica, Maingueneau afirma que ―é a dimensão menos evidente, por exigir que se entre na construção da identidade semântica dos discursos engajados na polêmica, ligando a interação polêmica ao funcionamento do campo discursivo do qual participam os posicionamentos em conflito‖ (2010: p. 195). De acordo com o autor, o polêmico possui um estatuto entre os ‗registros‘ que o distancia de categorias como o trágico ou o lírico e implica uma ameaça à fronteira pela qual se define uma identidade discursiva. Assim, sendo a percepção de certos enunciados como intoleráveis pelos sujeitos, a condição necessária para que haja polêmica, a ponto de julgarem necessário entrar em conflito com a suposta fonte desses enunciados, o analista é levado a utilizar-se de hipóteses sobre a discursividade, o interdiscurso e a fronteira, para saber se a relação com o adversário é um acidente exterior ou se é constitutiva da identidade do posicionamento, pois se assim for as modalidades do polêmico variam em função dos posicionamentos concernidos. Segundo Maingueneau, ―na interação polêmica, esse adversário com o qual o discurso agente se confronta só é acessível sob a forma de um ‗simulacro‘, construído sob medida pelo discurso que o incorpora para desqualifica-lo‖ (2010: p. 196).

Análise: A polêmica dos discursos sobre cotas raciais Com o objetivo de analisar a polêmica presente nos discursos sobre as cotas raciais nas universidades brasileiras, através de um corpus composto de textos presentes

em notícias e jornais veiculados pela internet, serão investigadas marcas que indiciem os

diversos posicionamentos a respeito do tema abordado, pois sabe-se que todo discurso é constitutivamente heterogêneo, podendo ou não apresentar marcas aparentes dessa heterogeneidade. Portanto, baseado em Maingueneau que afirma que, ―toda unidade de sentido, qualquer que seja seu tipo, pode estar inscrita em uma relação essencial com uma outra, aquele do ou dos discursos em relação aos quais o discurso de que ela deriva define sua identidade‖ ( Maingueneau, 1997), proceder-se-a à análise:

Observem-se as ocorrências nos seguintes trechos sobre cotas raciais:

(1) "É preciso ter a honestidade intelectual em reconhecer que as decisões presidenciais sobre o assunto rompem com um longo passado de denegações e de indiferença sobre a situação racial no Brasil". ( Luiz Felipe de Alencastro – Professor e Historiador da Universidade de Paris/ Sorbonne. Reportagem – Revista Veja) (2) Realizado a partir dos dados do vestibular feito pela universidade em 2009, o levantamento comprova uma das mais cortantes críticas às cotas: criadas para supostamente corrigir injustiças, as cotas impedem a entrada no ensino superior de pessoas mais bem preparadas. É a confirmação do perigoso abandono do princípio do mérito. (Editorial O Globo) (3) Das 2.396 vagas abertas naquele vestibular para cotistas, apenas 1.384 foram preenchidas, pois os candidatos não conseguiram obter a nota mínima: 2. Mesmo que a relação entre candidatos cotistas e vagas fosse quase um para um, enquanto entre os não cotistas 11 disputaram cada vaga. Entenda-se: se não são exigidas maiores qualificações aos cotistas, muitos merecedores de entrar na universidade ficaram de fora. (Editorial O Globo) (4) Mas a abolição não significou a libertação dos negros de todos os preconceitos. O negro continuou marginalizado, sendo negado a ele acesso aos melhores postos de trabalho, sendo vítima do preconceito velado que a sociedade reserva aos afrodescendentes – que, até hoje, possuem indicadores sociais inferiores aos brancos. O raciocínio pró-cotas é o seguinte. Dada essa injustiça histórica, nada mais válido e justo do que haver uma reparação de tal situação, pois existe uma dívida com o negro desde a escravidão, e uma necessidade urgente de que ela seja paga. (Revista Amalgama) (5) Universidades públicas paulistas tentam contornar a mais grave das distorções das cotas raciais, que é subordinar à cor da pele a definição do futuro da criança pobre. Se ela nascer ―negra, parda ou indígena‖ terá facilitado o ingresso no ensino superior público. Em boa medida, a sua vida dependerá bem menos do esforço próprio do que de contingências de misturas de DNAs. Caso não tenha a sorte de ser ―negra, parda ou indígena‖, precisará contar com uma improvável

fonte de renda para financiar o estudo num estabelecimento escolar privado ou tirar a sorte grande de obter alguma bolsa. (Editorial o Globo)

Ducrot (apud Maingueneau, 1997), afirma que há polifonia quando é possível distinguir em uma enunciação dois tipos de personagens, os enunciadores e os locutores, entendendo-se por ‗locutor‘ o ser responsável pelo enunciado que, enquanto pessoa no mundo pode possuir propriedades além dessa, e os ‗enunciadores‘, os seres cujas vozes estão presentes na enunciação sem que lhes possa atribuir palavras precisas; efetivamente eles não falam, mas a enunciação permite expressar seu ponto de vista, ou seja, o ‗locutor‘ pode por em cena, em seu próprio enunciado, posições diversas da sua. (Ducrot apud Maingueneau, 1997, p. 76-77).

Em (1) é possível depreender que emerge do texto uma memória discursiva quando o enunciador faz uso de um discurso preexistente como forma de embasar seu próprio discurso e, assim, seu posicionamento em relação às cotas fazendo uso de dados históricos da situação racial no país até então. Analisando de uma forma mais restrita, e tendo em vista que os elementos pré-construídos incorpora-se de uma memória discursiva, podemos dizer que, pela perspectiva de Maingueneau, (1997), o préconstruído é um traço do interdiscurso no intradiscurso que, é uma ―dissimulação‖ do interdiscurso pelo discurso. Além disso, ao fazer uso da expressão ―honestidade intelectual‖, o locutor se coloca em um nível intelectual acima dos que não consideram as cotas raciais como um bem positivo, notando-se a heterogeneidade não mostrada e não marcada no discurso por meio da ironia, já que ironiza e põe em prova o caráter e a intelectualidade de quem venha a assumir um discurso adversário.

Em (2) podemos notar a presença de marcas de heterogeneidade mostrada e marcada quando, ao se referir às cotas faz uso da pontuação (dois pontos) sugerindo que o discurso a seguir servirá como uma explicação, ou esclarecimento do discurso anterior. Neste momento, há o uso da expressão ―supostamente corrigir injustiças‖, que nos permite perceber a posição ideológica do autor quanto ao assunto, além de ser uma marca de seu distanciamento a respeito da afirmativa, isto é, mostra-nos que não compartilha da mesma formação discursiva que acredita que as cotas corrijam injustiças. Essa heterogeneidade marcada mostra a presença do outro no discurso. Ao usar o princípio do mérito e dizer que é o abandono deste tipo de seleção, o sujeito

claramente se opõe ao sistema de cotas, deixando explícito o seu posicionamento e a formação discursiva do qual enuncia: contra cotas raciais.

No trecho (3) o locutor inicia fazendo uso de dados de forma, aparentemente, neutra e se posiciona apenas ao final. A marca no discurso que permite a compreensão de seu posicionamento em relação às cotas se dá com o uso da palavra ―merecedores‖, que segundo ele, deveriam entrar na universidade, mas ficaram de fora devido ao número de vagas destinadas aos cotistas. É criado aqui, então, um simulacro, já que estabelece uma relação de embate entre cotista e não cotistas ao longo do texto, e finaliza colocando os não cotistas como merecedores, o que faz com que os cotistas estejam em oposição, como foi feito em todo o discurso anterior, traduzindo o enunciado do ―outro‖ através de suas próprias categorias. Temos ainda a presença de uma glosa, marca de heterogeneidade marcada e mostrada, em que o enunciador faz uso de pontuação ( :) como forma de não deixar que o leitor compreenda que ele emite de uma formação discursiva contrária, é uma forma de não deixar que haja dúvidas a respeito de seu posicionamento em ―Entenda-se:‖. De acordo com Maingueneau (1997, p.94) ―cada glosa, apresenta-se, pois, como a exibição de um debate com as palavras, o qual se pretende exemplar; ela define para o co-enunciador o bom caminho através do rumor infinito dos signos da língua e do interdiscurso. O sujeito, cuja imagem é construída pelas glosas é um sujeito que domina um discurso e que oferece este domínio em espetáculo.‖

No trecho (4) há uma marca de heterogeneidade da negação quando se afirma que ―a abolição não significou a libertação dos negros de todos os preconceitos‖, pois o enunciado, como afirma Maingueneau, (1997, p. 80) põe em cena um ‗enunciador‘ que sustentaria o ponto de vista segundo o qual a abolição significou a libertação total dos negros de todos os preconceitos, enunciador construído pelo texto e ao qual o leitor supostamente se identifica. (Maingueneau, 1997, p. 80), percebemos, então, o embate entre dois posicionamentos diferentes em um mesmo discurso. O pré-construído é mais uma marca de heterogeneidade identificada no fragmento (4), pois ao enunciar: ―Dada essa injustiça histórica, nada mais válido e justo do que haver uma reparação de tal situação, pois existe uma dívida com o negro desde a escravidão, e uma necessidade urgente de que ela seja paga‖, o enunciador parte de um discurso anterior, já enunciado em algum momento da história de que há

uma injustiça histórica com os negros, que sempre foram vítimas de preconceitos e mal tratados por conta da cor de pele.

Na ocorrência (5) percebe-se a ironia em todo o discurso apresentado, pois como afirma Maingueneau (1997), o locutor coloca em cena um enunciador que adota uma posição absurda, fazendo ouvir uma voz diferente da do locutor, a voz de um enunciador que expressa um ponto de vista insustentável, principalmente em certas ocorrências como: “...contingências de misturas de DNAs” e “Caso não tenha a sorte de ser “negra, parda ou indígena”, precisará contar com uma improvável fonte de renda para financiar o estudo num estabelecimento escolar privado ou tirar a sorte grande de obter alguma bolsa”. Identifica-se também nesse discurso uma marca de heterogeneidade mostrada e marcada nas expressões entre aspas ―negra, parda ou indígena‖ em que notamos que ao aspear as palavras, o enunciador assinala o discurso do outro sem que o fio discursivo seja interrompido. A negação polêmica explicita-se neste discurso na palavra ―improvável‖, refutando a possibilidade de pessoas pobres e negras conseguirem estudar por conta própria devido à não possibilidade de se conseguir obter uma fonte de renda, traduzida como a incapacidade dos beneficiados com as cotas raciais de conseguir atingir seus objetivos através de seus próprios méritos.

(6) Cara sou negro também passei por muita dificuldade mais consegui passar em um vestibular e hoje curso engenharia deixa eu te explicar uma coisa isso é uma forma de ajudar pessoas que tem menos condições isso não é uma forma de descriminação é uma forma de dar uma chance aos negros que foram humilhados escravizados e não tiveram direito a indenização você não tem a absoluta noção do que é trabalhar, pegar conduçao lotada, sustentar família e ainda arranjar tempo pra estudar enquanto os riquinhos que andam no seu carro fazem seu pre vestibular e tomam a vaga do pobre tendo dinheiro pra pagar particular! (Comentário - Bruno Silva) (7) ―Professor do Departamento de Economia, Manoel Luiz Malaguti cravou que ―o nível da educação está tão baixo que o professor não precisa se qualificar mais para dar aula, já que a maioria dos cotistas são negros, pobres, sem cultura e sem leitura, são analfabetos funcionais‖. Ainda afirmou que ―detestaria ser atendido por um médico ou advogado negro‖. (akina.jusbrasil.com.br/noticia)

(8) Em entrevista ao portal Gazeta Online, ele se defendeu: ―No meio de uma discussão sobre cotas e o sistema educacional, eu coloquei que se eu tivesse que escolher entre dois médicos, um branco e um negro, com o mesmo currículo, eu escolheria o branco. Por que que eu escolheria o branco? Os negros, em média, vêm de sociedades, de comunidades menos privilegiadas, para a gente não usar um termo mais forte, e nesse sentido eles não têm uma socialização primária na família que os tornem receptivos aos trâmites da universidade, à forma de atuação da universidade, aos objetivos da universidade. Eles têm muito mais dificuldades para acompanhar determinadas exposições. Eu não acho que é uma visão preconceituosa, acho que é bastante realista‖, disse. (akina.jusbrasil.com.br/noticia) No trecho (6), o locutor enuncia de uma formação discursiva que vê a política de cotas raciais como algo positivo. Faz uso de um pré-construído, já que embasa seu discurso na informação já dita acerca do passado dos negros escravizados. Quando enuncia que ―não é uma forma de discriminação‖, temos a negação polêmica, já que este discurso vai de encontro à um discurso adversário que vê as políticas de cotas como uma descriminação. Por fim, temos um simulacro quando faz uso da palavra ―riquinhos‖ com o intuito de rebaixar os estudantes com alto poder aquisitivo que entram nas universidades federais, segundo ele ―tomando a vaga‖ de quem não tem dinheiro para estudar, é considerado um simulacro pois houve uma interpretação, ou tradução, do discurso adversário por meio de seus próprios princípios acarretando em um rebaixamento do outro. Nos trechos (7) e (8), notamos a posição ideológica do enunciador que se manifesta através de um discurso racista. A polêmica se torna mais evidente quando o locutor enuncia o baixo nível da educação relacionando-a com a presença de cotistas nas universidades. O trecho (8) evidencia que os negros vêm de comunidades menos privilegiadas não tem facilidade em se adequar às exigências de uma universidade, portanto se tivesse que escolher entre um médico negro e um branco, o enunciador afirma que escolheria o branco, materializando sua ideologia racista neste discurso. Há marcas de negação polêmica nos enunciados ―não têm uma socialização primária‖, pois trata-se de um verdadeiro ato de negação, de refutação de um enunciado positivo a respeito da socialização dos negros. Novamente, o discurso racista refletido por sua ideologia aparece, embasado pelo pré-construído quando parte de um discurso já dito em FDs anteriores, a respeito da dificuldade dos negros em ―acompanhar certas disposições‖

como recurso para concluir o seu posicionamento a respeito das cotas raciais, afirmando que não está sendo preconceituoso e sim, realista.

(9) Rosa Weber, ministra do STF - Votou a favor das cotas raciais "Se os negros não chegam à universidade por óbvio não compartilham com igualdade de condições das mesmas chances dos brancos. Se a quantidade de brancos e negros fosse equilibrada poderia se dizer que o fator cor não é relevante. Não parece razoável reduzir a desigualdade social brasileira ao critério econômico." (Supremo Tribunal Federal – Globo . com) (10) Foi vendo meninos e meninas negros, e negros e pobres, tentando uma chance, sofrendo, brilhando nos olhos uma esperança incômoda diante de tantas agruras, que fui mudando minha opinião. Não foram argumentos jurídicos, embora eu os conheça, foi passar não um, mas vários ―dias na cadeia‖. Na cadeia deles, os pobres, lugar de onde vieram meus pais, de um lugar que experimentei um pouco só quando mais moço. De onde eles vêm, as cotas fazem todo sentido. (William Douglas, juiz federal - revistaforum.com.br) No trecho (9) há marcas de uma heterogeneidade mostrada não marcada no enunciado ―Se a quantidade de brancos e negros fosse equilibrada poderia se dizer que o fator cor não é relevante‖, evidenciando a posição privilegiada de brancos quanto à concorrência às vagas até então. A negação polêmica também é evidente neste discurso no enunciado ―o fator cor não é relevante‖, que contestam

asserções anteriores,

explícitas ou não, em um verdadeiro ato de negação de um enunciado positivo correspondente, é o embate com as FDs que afirmam que a cor é relevante. Há também a marca de heterogeneidade não mostrada e não marcada em que temos, ao longo do texto, indícios de ironia que percebemos através do tom, ou seja o ethos, o qual a ministra enuncia, em que parece, a todo momento, estar explicando algo óbvio à todos, que por questões de ignorância muitos não percebem e, portanto, enunciam de uma FD adversária.

No trecho (10) temos marcas de heterogeneidade mostrada e marcada na forma ―dias de cadeia‖, aqui o enunciador remete a outro discurso em que ―dias de cadeia‖ remete a mudança que o ser humano passa ao passar pela experiência do cárcere em uma penitenciária. Ainda a respeito desta expressão, temos a marca da memória discursiva, já que a expressão é utilizada neste discurso como recurso de embasa-lo,

mas é retirada de um discurso preexistente à este e que é redefinida ou transformada na FD enunciada pelo Juiz Federal.

Considerações Finais

O presente trabalho procurou abordar os pontos principais para um primeiro contato com a Análise do Discurso. Com o corpus composto de textos presentes em notícias e jornais veiculados pela internet, o intuito foi mostrar como os discursos se constituem por outros, mesmo quando é um gênero marcado pela objetividade, cujo objetivo é transmitir informações. Em todos os textos, o enunciador tenta e não consegue manter esta neutralidade, pois sendo assujeitado, sua posição em uma formação discursiva reflete, no discurso sua, posição ideológica. Assim, nos discursos polêmicos não é diferente. A presença do Outro no discurso, confere este caráter heterogêneo aos discursos, mas é importante lembrar que há uma pré-determinação das possíveis sequências linguísticas que serão enunciadas a partir de uma ou outra formação discursiva. Nos discursos analisados a respeito da polêmica das cotas, notamos sempre que a presença do Outro no discurso, isto é, a heterogeneidade, é uma ―tentativa do sujeito em harmonizar as diferentes vozes que atravessam o seu discurso,numa busca pela unidade, mesmo que ilusória‖ (Authier Revuz,1990).

Referências http://akina.jusbrasil.com.br/noticias/149933987/professor-universitario-debocha-denegros-e-cotistas-em-sala-de-aula?ref=topic_feed# http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2010/06/pesquisa-mostra-danos-das-cotasraciais.html#sthash.YZg9bo7g.dpuf http://portal.mec.gov.br/cotas/legislacao.html http://portal.mec.gov.br/cotas/docs/lei_12711_2012.pdf

http://veja.abril.com.br/270202/ponto_de_vista.html http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao11/artigos_06.php

MAINGUENEAU, D. 2010. As três facetas do polêmico. Trad. Sírio Possenti. In: Doze conceitos em Análise do Discurso. Trad. Sírio Possenti e M. Cecília P. de Souza-ESilva (orgs.). São Paulo: Parábola Editorial. MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. 3ª ed. Campinas, SP: Pontes/Ed. Unicamp, 1997.

AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva. In: Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

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