A POLÍTICA DE PODER INTERNACIONAL DA RÚSSIA SOB O COMANDO DE VLADIMIR PUTIN: UMA VISÃO DO REALISMO POLÍTICO MODERNO

May 29, 2017 | Autor: L. Mocelin Speran... | Categoria: International Relations, Political Economy, Political Science, International Politics
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ANAIS DO I ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA POLÍTICA INTERNACIONAL 11 a 13 de Maio de 2016

A POLÍTICA DE PODER INTERNACIONAL DA RÚSSIA SOB O COMANDO DE VLADIMIR PUTIN: UMA VISÃO DO REALISMO POLÍTICO MODERNO

Luiz Fernando Mocelin Sperancete312

RESUMO O presente artigo busca explicitar como as ações da Rússia na política internacional sob a liderança de Vladimir Putin têm sido caracterizadas como uma busca por maximização de poder por este país no sistema político internacional. Nesse sentido, as nacionalizações do setor energético, a reestruturação do setor bélicomilitar e uma concepção de política externa “pragmática”, são os principais elementos definidores dessa busca por maximização de poder executada pela Rússia de Vladmir Putin. Deve-se ressaltar que os postulados da teoria política “hobbesiana” são usados como forma de caracterizar o sistema político internacional como um sistema que está em permanente tensão, em que não há uma força superior ao Estados capaz de detê-los em sua busca por poder. Por outro lado, a economia política da globalização é usada para descrever como a Rússia nos anos 1990 experimentou forte retração de seu poder político e econômico e que gerou como consequência a ascensão de Putin ao poder, com grande apelo da sociedade daquele país. Por fim, a teoria do “realismo político moderno” das relações internacionais (teoria realista) é usada como fonte para se tentar interpretar as ações russas na política internacional como ações que visam, em última instância, expandir o poder russo outrora perdido nos anos 1990. Exemplos disso, nas crises da Ucrânia e da Síria, Vladimir Putin assumiu uma postura de não deixar esfacelar uma aliança que no Leste Europeu dura mais de quinhentos anos, não deixando a Ucrânia pacificamente se juntar à União Europeia, enquanto que, no caso sírio, Putin não quer deixar cair seu último pilar de projeção de poder no Oriente Médio, a saber, deixar cair o regime sírio de Bashar Al-Assad.

Palavras-chave: Rússia. Vladimir Putin. Poder. Política externa. Introdução

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Mestrando em Ciências Sociais na PUC-SP, com ênfase em Ciência Política. Bolsista de mestrado do CNPQ.

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Com o fim da guerra-fria e a subida de Boris Yeltsin ao comando do Estado russo, operou-se na Rússia um duplo movimento de reformas institucionais de cunho liberal: por um lado, iniciou-se uma abertura russa ao capitalismo liberal contemporâneo (FIORI, 2008). Consequentemente, a modernização econômica permeou a retórica dos dirigentes deste país, e foi justificativa para uma série de privatizações de empresas estatais atuantes em setores estratégicos da economia, caso do setor energético, por exemplo, o que permitiu a formação de oligarquias privadas locais controladoras das empresas estatais recém-privatizadas. Por outro lado, no plano político-militar, o desmoronamento da União Soviética tornou possível a independência dos países satélites soviéticos. Países como Letônia, Lituânia, Estônia, Ucrânia, dentre outros, tornaram-se independentes e alinharam-se ao Ocidente, muitos adentrando à OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), e implementaram reformas econômicas internas destinadas a abrir suas economias aos fluxos financeiros internacionais. Consequentemente ao desmoronamento soviético, por um lado, “Os Estados Unidos e a União Europeia apoiaram a autonomia dos países da antiga zona de influência da União Soviética e promoveram ativamente o desmembramento do território russo” (FIORI, 2008: 46) e, por outro, definiram como um problema prioritário da sua agenda geopolítica a “administração” da desmontagem do “império” russo, por causa de suas consequências econômicas, e pelo velho desafio geopolítico da Europa Central (FIORI, 2008: 47).

Com tais eventos ocorrendo no decorrer da década de 1990, pode-se afirmar que coube à Rússia o papel de grande potência derrotada, “que perdeu um quarto de seu território e metade de sua população” (FIORI, 2008: 49) e que, com a abertura econômica implementada por Boris Yeltsin, o país viu uma rápida eliminação da intervenção do Estado sobre a economia e substancial regressão social313. Por um lado, pode-se identificar que o desmoronamento soviético - com a consequente perda de influência sobre as antigas republicas satélites soviéticas e com a abertura econômica relativamente rápida enfraqueceu o poder político internacional da Federação Russa ao longo dos anos 1990. Mas, por outro lado, conforme relata José Luis Fiori, “[a Rússia] ainda [manteve] de pé seu armamento atômico e seu potencial militar e econômico” (FIORI, 2008: 49). Tendo este contexto como pano de fundo, Vladimir Putin subiu ao poder na Federação Russa em 2000, com mais de 52% dos votos nas eleições daquele ano, rendendo-lhe vitória no primeiro turno314.

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Por exemplo, o PIB da Federação Russa, ao longo da década de 1990, sofreu uma regressão sistemática, chegando em menos 15% em 1992 e 1995, conforme atesta Carlos Aguiar de Medeiros (MEDEIROS, 2008: 182). 314 OSCE, 2000: 32.

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A Rússia sob o comando de Vladimir Putin A subida de Vladimir Putin ao poder trouxe de volta ao stablishment russo a ideia da formação da “Grande Nação Russa”. No entanto, nessa seara de mudança de comando do “grande urso” euro-asiático, Vladimir Putin assumiu um país com gritantes desigualdades econômico-sociais, mas, em contrapartida, ao lado [do] cenário de decadência econômica e despovoamento, a Rússia seguia apresentando características que fazem deste país uma realidade única: um imenso poder nuclear, indústrias sofisticadas no complexo industrial militar e um diversificado pool de trabalhadores científicos (MEDEIROS, 2008: 242-243).

E foi com base nesse “rescaldo” de poder que Putin assentou as bases da nova política externa russa, cuja tônica seria uma política de expansão de poder. Por exemplo, Putin implementou uma estratégia de centralização do poder do Estado em que a doutrina independente de segurança militar, a autonomia em relação aos Estados Unidos e um maior controle dos mercados constituíam seus traços mais visíveis (MEDEIROS, 2008: 245).

Tal visão de Putin, do ponto de vista da “escola realista” das relações internacionais, representa a escolha do líder russo pela “alta política”, a qual consiste na subordinação de todos os outros fatores – econômicos, sociais, culturais – em relação à política, ao militarismo e à diplomacia (MORGENTHAU, 2003). Ao fazer essa opção pela “alta política”, Putin colocou em marcha uma série de medidas com vistas a aumentar a projeção do poder russo no cenário internacional. Uma das primeiras medidas do líder russo foi a nacionalização das riquezas energéticas russas, a saber, gás e petróleo, através da reestatização das empresas energéticas Gazprom, Lukoil e Yukos. (MEDEIROS, 2008). Nesse sentido, desde a nacionalização do setor com a Gazprom, as exportações de gás e petróleo, voltadas em grande parte para a Europa, mas em acentuada expansão para a China, têm se afirmado como importante instrumento de negociação política do Estado russo [com o exterior] (MEDEIROS, 2008: 248).

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Tal medida de centralização energética fez com que o governo russo tivesse como influir nas decisões de fornecer ou não gás e petróleo para a Europa, tendo em vista a grande dependência europeia da energia russa. Ao aproximar estas ações russas com a “escola realista” das relações internacionais, pode-se inferir que a determinação de Putin de nacionalizar o setor energético russo é um sinal claro de que a Rússia pretendia voltar ao jogo do poder na política internacional, após a sombria década de 1990, pois, conforme revela Hans Morgenthau, a situação de dependência, concebida para durar para sempre, pode facilmente produzir no vencido um desejo de inverter sua posição com a do vencedor, de subverter o status quo por ele criado e trocar de lugar com ele na hierarquia de poder. Em outras palavras, a política [de poder] seguida pelo vencedor, quando pode antecipar sua vitória, muito provavelmente dará lugar, mais cedo ou mais tarde, a uma política [de poder] por parte do perdedor. Se o derrotado não tiver sido destruído para sempre ou de algum modo aliciado para a causa do vencedor, ele vai querer reconquistar o que já perdeu e, se possível, ganhar algo a mais (MORGENTHAU, 2003: 114).

Adicionalmente, Hobbes revela que há, como tendência geral de todos os homens (neste caso, os Estados), um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte [...], e a competição pela riqueza, a honra, o mando e outros poderes levam à luta, à inimizade e à guerra, porque o caminho seguido pelo competidor para realizar seu desejo consiste em matar, subjugar, suplantar ou repelir o outro (HOBBES, 1983:60).

Putin usou a centralização do poder enérgico russo como uma arma para conferir maior autonomia energética russa frente à Europa e aos Estados Unidos, e também como poder de barganha política frente aos desafios mais amplos enfrentados ao longo do seu grande período à frente da Federação Russa 2000-2016 (incluindo-se o período de Dmitri Medvedev como presidente e Putin como primeiro-ministro, entre 2008 e 2012), como o caso da insurgência separatista na Ucrânia, recentemente. Outro fator característico da busca da Rússia por poder na política internacional contemporânea tange a questão militar, ou seja, a expansão do complexo bélico-militar, que foi fortemente estimulado por Putin. Nesse contexto, o orçamento militar russo sob Putin teve forte expansão, assim como a compra, pelo exército russo, de armas de tecnologia de ponta (MEDEIROS, 2008). Ademais, após a nacionalização das empresas do

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setor energético por Putin, os lucros com a venda de recursos energéticos ao exterior ajudaram a alavancar os investimentos no setor militar e, longe de ser um ‘fardo’ que impede a utilização de recursos para outros fins, [os investimentos no setor bélico-militar foram] um importante estímulo para a expansão econômica e, devido às suas características, também para o progresso tecnológico [russo] (MEDEIROS, 2008: 249).

Cabe salientar que a reorganização do complexo militar russo apresentou importantes reflexos na política exterior russa, tendo em vista que o país passou a vender, fortemente, armas para a China, Síria, Venezuela e Irã. Com relação aos possíveis impactos da projeção de poder russo no exterior com a retomada dos investimentos no setor bélico-militar, Putin desenvolveu uma concepção de política externa mais pragmática (a qual será explicitada mais adiante), estreitando seus laços políticos-diplomáticos com a China, Coréia do Norte, Irã, Índia e Síria, em detrimento às relações amistosas com os países do Ocidente. Mas, cabe destacar que as relações com a Alemanha passaram a ser consideradas estratégicas, assim como tornou-se evidente a concepção de que os Estados Unidos eram o grande obstáculo à projeção de poder russo no exterior projetada por Putin, tendo em vista que, a partir de 2004, [...] uma Rússia cada vez mais assertiva passou a bater de frente com os Estados Unidos a respeito de certas questões, como a expansão da aliança militar (OTAN) em direção ao Leste Europeu e a proposta de um sistema antimíssil da OTAN a ser instalado na Polônia e República Tcheca, e voltado contra o Irã - na direção da Rússia - (SEGRILLO, 2015: 254-255).

Entrementes, é importante ressaltar que a expansão da OTAN para o leste europeu, o alargamento da União Europeia para vincular as ex-repúblicas soviéticas ao bloco, assim como as sucessivas ondas de “revoluções coloridas” pró-Ocidente na Geórgia (2003), Ucrânia (2004) e Quirguistão (2005), “foram percebidas [por Putin] como principais desafios à afirmação de seu projeto nacional” (MEDEIROS, 2008: 250). Por conta disso, os três movimentos separatistas citados anteriormente foram brutalmente “abafados” pelo exército russo. Ademais, a supressão de movimentos separatistas pelo exército russo na Chechênia, em 2000, na Ossétia do Norte, entre 2000 e 2006, e no Cáucaso do Norte, em 2009, foi uma estratégia de Putin para manter a unidade territorial nacional, assim como para manter sob poder russo regiões que poderiam servir como bases de interesses pró-americanos na fronteira imediata com a Rússia (SEGRILLO, 2015).

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Outra importante frente de ação da política externa russa refere-se ao escudo antimísseis que a OTAN e os Estados Unidos pretendiam implantar durante os governos de George W. Bush na Polônia. Neste caso, percebe-se a aproximação da reação russa (à instalação deste escudo antimísseis na Polônia) aos postulados da teoria política hobbesiana de que “o medo e a opressão predispõe os homens à antecipar-se [...], pois não há outra maneira de assegurar a vida e a liberdade” (HOBBES, 1983: 61), pois a resposta do governo de Vladimir Putin foi imediata, firme e contundente, tendo em vista que a retórica russa era a de que qualquer tipo de sistema antimísseis instalado em repúblicas que permeassem a sua zona fronteiriça seria considerado uma clara provocação de Washington à Moscou e, em resposta, o governo russo teria o direito de intervir militarmente, a qualquer momento, em qualquer país, caso houvesse a necessidade de defender seu território e sua população (MEDEIROS, 2008). Tal reação, explícita em comunicados do chefe do estado-maior das forças armadas russas e do ministro da defesa russo, reflete a objetividade russa quanto à defesa de sua soberania e de seu território, conforme reportagens divulgadas à época por vários meios de comunicação Ocidentais315. Ademais, tal retórica russa de predisposição para intervenções preventivas, para resguardar a soberania do país, encontra explicação em Hobbes quando este revela que “a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida” (HOBBES, 1983: 75).

A nova doutrina (Putin) para as relações exteriores Com o início de seu terceiro mandato como Presidente da Rússia em 2012, Vladimir Putin lançou a nova doutrina russa de política externa em 2013, a qual visava, grosso modo, alterar o status quo das relações políticas e econômicas internacionais a seu favor, principalmente em relação a duas regiões, a Europa e o Oriente Médio. Nesse sentido, a nova doutrina russa de política externa316, propunha, como objetivo central, assegurar a segurança do país, protegendo e fortalecendo a soberania e a integridade territorial, e assegurar um lugar de destaque [para a Rússia] na comunidade internacional, como um dos polos de influência e competitividade (RUSSIA, 2013: 1).

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Além disso, tal doutrina leva em consideração mais oito pontos de orientação, os quais, sumariamente, destacam que o país 1) criará condições externas favoráveis para alavancar a economia do país, com modernização tecnológica; 2) promoverá ativamente a estabilização da segurança internacional, através da promoção de relações internacionais baseadas no direito internacional, em coordenação e fortalecimento do papel das Nações Unidas neste quesito; 3) promoverá boas relações com seus vizinhos; 4) promoverá a cooperação a nível internacional, de forma bilateral ou multilateral, em organizações internacionais, sempre levando em consideração o respeito à soberania, pragmatismo, transparência, previsibilidade, e proteção dos interesses nacionais; 5) fortalecerá a posição global da Rússia como big trader na economia internacional, através de suporte diplomático e recorrendo ao recurso de instituições multilaterais para evitar a discriminação de seus produtos no mercado global; 6) assegurará a proteção dos direitos e dos interesses do povo russo, inclusive daqueles que vivem no exterior; 7) promoverá a língua russa no exterior e fortalecerá a disseminação de informações a respeito do país no exterior e, por fim; 8) facilitará a constituição de um diálogo construtivo entre diversos países e civilizações com benefício mútuo para todos. (RUSSIA, 2013). Entrementes, a consequência de tal doutrina revela a posição russa no mundo após seu lançamento, em que o país passa a adotar uma visão soberana a respeito dos novos desafios que a política internacional apresenta, também como elege como prioridade o retorno do país ao panteão das grandes potências mundiais, definidoras dos rumos da política internacional. Há que se destacar ainda que tal doutrina desdobra desafios a serem superados pela Rússia, a saber, irromper o cerco que os Estados Unidos e a União Europeia vem promovendo à Rússia, principalmente com relação à expansão da OTAN. Segundo tal doutrina, a Rússia mantem uma atitude negativa em relação à expansão da OTAN e à abordagem da infraestrutura militar da aliança à fronteira da Rússia em geral, [considerando-as] como ações que violam o princípio da equidade e leva à emergência de uma nova linha divisória na Europa (RUSSIA, 2013: 15).

Os desafios impostos por Estados Unidos e União Europeia têm sido encarados de forma cada vez mais “realista” pelo presidente Vladimir Putin, tendo em vista que o stablishment russo entende que aqueles dois polos de poder são as barreiras que a Rússia tem de transpor para almejar o status de grande superpotência novamente, outrora perdido com o desmoronamento da União Soviética. Esta nova postura russa em relação aos norte-americanos e europeus, segundo o chanceler russo, Serguei Lavrov, é uma resposta às intenções de norte-americanos e europeus em avançar o sinal vermelho no leste europeu, conforme ocorreu através da incorporação das ex-republicas soviéticas à União Europeia, à OTAN e à tentativa de criação de um escudo antimísseis norte-americano no leste europeu, o qual visaria, retoricamente, conter um ataque terrorista ao

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território norte-americano e europeu, mas que, de fato, segundo a visão russa, visa anular a força estratégica do arsenal nuclear russo. Nas palavras do chanceler russo, Serguei Lavrov, os parceiros ocidentais [da Rússia] escolhem expandir a OTAN ao leste até ao espaço geopolítico que eles controlam perto da fronteira russa. Isto é a essência dos sistêmicos problemas que tem complicado as relações da Rússia com os Estados Unidos e a União Europeia (LAVROV, 2016: 9).

Por outro lado, Covington (2015) destaca que Putin pretende reconstruir o poder, o prestígio e o domínio russo sobre o antigo espaço soviético [não somente europeu] após a humilhação trazida pelo fim da guerra-fria, sendo esta uma das linhas mestras da política exterior russa, e, para isto, a superação do cerco que a OTAN impõe à Rússia é fundamental. Segundo o autor, para Putin,o colapso da URSS foi a maior catástrofe geopolítica do século XX. Isto pode ser considerado como uma sugestão de Putin para tentar reconstruir, ou mesmo tentar retomar, a força russa do período soviético, durante o seu mandato, e, em 2014, isso fica muito explicito quando explodiu a crise na Ucrânia e como vem se desenrolando da guerra na Síria.

A crise da Criméia, a guerra na Síria e a projeção do poder russo no exterior Tantoa guerra na Síria “quanto as declarações e ações de Vladimir Putin concernentes [...] à Ucrânia não são respostas ad hoc, mais sim representam uma nova “Doutrina Putin” para a ação russa nas relações exteriores” (GOBLE, 2014: 1). Ou seja, o papel russo na questão ucraniana e na guerra da Síria sugere uma nova era de competição entre a Rússia e o Ocidente, e tanto em uma questão quanto em outra, o conflito apresenta a natureza dos problemas entre a Rússia e o Ocidente, envolvendo guerra econômica, sanções de ambos os lados, fluxos de dinheiro, armas e suporte técnico para os combatentes locais de cada lado, em cada região (MONAGHAN, 2015). Com relação à questão ucraniana, com a queda de Viktor Yanukovich (pró-Rússia) e a subida de um governo na Ucrânia mais alinhado à União Europeia e aos Estados Unidos, Putin determinou a ajuda do governo russo aos movimentos pró-Rússia na Península da Criméia, mais precisamente aos habitantes das cidades de Sebastopol e Sinferopol. Com tal ajuda, tais movimentos pró-Rússia emergiram como forças políticas locais, e consumaram um referendo de anexação da Península da Criméia à Federação Russa, em 16 de março de 2014. Do ponto de vista político e tendo como pano de fundo a “escola realista” das relações internacionais, a anexação da Península da Criméia pela Federação Russafoi um ato de projeção de poder russo sobre aquela região, assim como a recomposição permanente de um território outrora pertencente à antiga

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União Soviética. Nesse ínterim, cabe destacar que tal ação da Rússia levou em conta que Sinferopol é um importante centro urbano e a capital da Criméia, e em Sebastopol há uma importante base naval russa que dá acesso aos russos ao Mar Negro, assim como acesso aos canais do Mar Mediterrâneo, através do Estreito de Bósforo. Além disso, a anexação da Criméia pode ser entendida como uma resposta russa à ofensiva ocidental que ajudou a oposição pró-União Europeia a tomar o controle do Estado em Kiev, na Ucrânia.Putin vem financiando e promovendo o aumento de tensões no país eslavo, através de ajuda financeira e militar à região leste do país, a qual apresenta uma população esmagadoramente russa (ou pró-Rússia). Além do mais, a questão da Ucrânia apresenta-se para Moscou como um meio para afirmar-se como polo de poder sobre a União Europeia, pois Putin barganha o fornecimento de energia russa para a Europa, mediante a contrapartida de que os europeus diminuam sua participação na questão da Ucrânia. Todavia, este posicionamento está longe de ser reiterado por Bruxelas, por conta do posicionamento da OTAN em relação à Rússia e ao apoio que o bloco europeu confere à OTAN e ao novo governo de Kiev, o que, por outro lado, legitima as ações russas na questão energética e também ajuda Moscou a manter influência sobre a região leste ucraniana, também como para manter esta região como uma linha limítrofe para a expansão da OTAN no leste europeu. Portanto, a anexação da Península da Criméia pela Rússia foi um importante resultado da postura mais pragmática e “realista” de Putin acerca do papel da Rússia na política internacional, e tal ação orquestrada pelos russos na Criméia remete ao argumento de Hans Morgenthau de que o Estado que uma vez perde poder procurará de todas as formas contestar o status quo internacional, buscando insistentemente, no mínimo, recuperar o poder de outrora, ou, se possível, ainda mais do que perdeu (MORGENTHAU, 2003). No que tange ao papel russo na guerra da Síria, destaca-se a ajuda do governo russo ao governo sírio de Bashar al-Assad contra os grupos extremistas islâmicos que se encontram em solo sírio para combater o governo daquele país. Cabe destacar que a Síria era, desde os tempos de Hafez Al-Assad, pai do atual presidente Bashar AlAssad, durante a guerra-fria, e continua a ser atualmente, um importante aliado dos russos no Oriente Médio. Por conta desta aliança histórica entre russos e sírios, e muito também por conta da estratégia de Putin de solidificar e expandir a influência russa na região do Oriente Médio, atualmente o governo de Moscou vem defendendo a permanência de Bashar Al-Assad como líder do governo sírio, assim como fornecendo ajuda militar, econômica, alimentar e energética àquele governo (Economist, 2012). Não obstante toda a ajuda que Putin vem fornecendo ao governo de Al-Assad, qualquer tipo de resolução vinculante no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (CSONU), que tenha como objetivo a retirada de Bashar Al-

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Assad do governo da Síria, ou mesmo a diminuição forçada de sua capacidade bélica, é vetada pela Rússia, a qual tem poder de veto em tal Conselho, por ser um dos cinco membros permanentes317. Por exemplo, emuma resolução aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU318, em nenhum momento tal resolução exorta o líder sírio a abandonar o governo, tampouco aprova ataques do Ocidente, com aval da ONU, para diminuir a capacidade bélica do exército de Al-Assad, mas sim

[condena] o uso de armas pesadas tanto pelas forças armadas sírias como por membros armados da oposição no atual conflito sírio, na zona de separação, incluído o uso de tanques pelas forças armadas sírias e pela oposição durante os enfrentamentos319 (CSNU, 2014: 1).

Por conta do veto russo a qualquer tipo de intervenção estrangeira na síria, o governo de Al-Assad resiste a mais de quatro anos na guerra contra extremistas islâmicos. Além disso, o enfoque da intervenção russa vem sendo manter no controle daquele país um grupo tradicionalmente e historicamente aliado de Moscou desde os tempos da guerra-fria, o grupo de Hafez AlAssad (já falecido) e de seu filho, Bashar Al-Assad, atual presidente sírio. A tônica russa na Síria expressa a maneira como Moscou encara a política internacional atualmente. Nesta guerra, Moscou vem ajudando o referido governo de Al-Assad, em parceria e para a promoção de um cinturão xiita no Oriente Médio com o Iran, Iraque e o partido Hezbollah do Líbano. Por outro lado, Estados Unidos e União Europeia vem fornecendo ajuda econômica e militar aos rebeldes sírios ditos “moderados”, que fazem oposição armada ao governo de Al-Assad. Há ainda o autodenominado “Estado Islâmico”, que tem como parceiros externos a Arábia Saudita, o Catar e outras monarquias do golfo pérsico, os quais consolidam um cinturão sunita extremista na região, que também contam com o apoio discreto de Washington e Bruxelas, o que também está no cerne da atual indisposição política entre Moscou e as duas capitais Ocidentais citadas. Ao promover a ação militar aérea juntamente com o governo de Damasco no interior da Síria, Putin demonstra a vontade política necessária para colocar em prática sua nova doutrina de política externa, de forma a garantir os interesses russos na região do

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Os membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas são os Estados Unidos, Rússia (antiga União Soviética), Reino Unido, França e China. Estes países foram os vitoriosos na Segunda Guerra Mundial, e, por isso, além de serem membros permanentes neste Conselho, o qual delibera sobre a guerra e paz em nome da ONU, podem vetar qualquer tipo de deliberação que se choca com seus interesses. O caso do veto russo sobre a questão síria, no Conselho, é o exemplo mais emblemático, atualmente. 318 Resolução 2163, de 25 de junho de 2014. 319 Condemning the use of heavy weapons by both the Syrian armed forces and armed members of the opposition in the ongoing Syrian conflict in the area of separation, including the use of tanks by the Syrian armed forces and opposition during clashes(CSNU, 2014: 1).

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Oriente Médio, também como para promover uma nova coalisão de forças nesta região, tendo em vista o cinturão xiita que emerge deste conflito, sob influência, ainda que indireta, de Moscou. Em suma, o que se pode perceber do apoio russo ao governo de Al-Assad na Síria é que Putin está se saindo como o grande arquiteto e estrategista na política internacional nesta segunda década do século XXI, tendo em vista o fortalecimento da influência russa sobre uma região outrora dominada, quase que exclusivamente, pelos interesses dos países Ocidentais (o Oriente Médio) e também por estar solidificando a projeção de poder russo sobre outras áreas do mundo, como na Europa do Leste e no Noroeste asiático. Por fim, as ações de Moscou sob a era Putin são uma clara mensagem do líder russo aos países Ocidentais, principalmente os da União Europeia e os Estados Unidos de que, conforme discurso do próprio Putin, a Rússia não vai se tornar uma segunda edição de, digamos, EUA ou GrãBretanha, onde os valores liberais têm tradições históricas profundas. O nosso Estado e suas instituições e estruturas tem sempre desempenhado um papel extremamente importante na vida do país e de seu povo [...]. Os russos [ficaram] alarmados com o enfraquecimento evidente do poder do Estado [nos anos 1990]. O público olha para frente e com expectativa para uma certa recuperação do papel de orientação e regulação do Estado, provenientes das tradições russas, bem como o atual estado do país. A única opção realista para a Rússia é a escolha de ser um país forte, forte e confiante em sua força320 (SAKWA, 2004: 47/207).

Considerações finais Conforme viu-se neste artigo, após o desmoronamento da União Soviética e o avanço neoliberal nos anos 1990, a Rússia passou a adotar uma nova postura na política internacional a partir da chegada de Vladimir Putin à Presidência do país no ano 2000. Tal postura revelou-se através da nacionalização do setor energético com vistas a colocá-lo como arma russa frente aos desafios impostos pela União Europeia ao país; através do fortalecimento das forças armadas do país, tendo em vista a utilizar do poder militar como elemento dissuasor 320

Russia will not become a second edition of, say, the US or Britain, where liberal values deep historic traditions. Our state and its institutions and structures have always played an exceptionally important role in the life of the country and its people […] the Russians are alarmed by the obvious weakening of state power [in 1990’s]. The public looks forward to a certain restoration of the guiding and regulation role of the state, proceeding from Russia’s traditions as well as the current state of the country. The only realistic choice for Russia is the choice to be a strong country, strong and confident in its strength(SAKWA, 2004: 47/207).

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de ameaças do exterior, principalmente da OTAN (Estados Unidos e União Europeia), e; através do lançamento de uma nova doutrina mais “pragmática” de política externa, a qual, dentre outras medidas, propõe o fim do “cerco” da OTAN ao país nas fronteiras russas da Europa do Leste. Além disso, a crise da ucrânia e a guerra na Síria são importantes flancos de atuação para a política externa russa, pois tais conflitos colocam em questão o choque entre a força político-militar russa e aquelas forças políticas e militares que são consideradas, pela doutrina de política externa do país, como os principais entraves para a expansão do poder russo na política internacional, a saber: os Estados Unidos, a União Europeia e a OTAN. Por fim, o recurso ao uso do realismo político de Thomas Hobbes e Hans Morgenthau éimportante pois apresentaquestões teóricas que ajudam a decifrar as ações da Rússia de Putin na política internacional, afinal o chefe do Kremlin procura alterar a correlação de poder internacional a seu favor, tentando recuperar, pelo menos, o poder que a Rússia possuía no período soviético, ou algo a mais. Tal ação do líder russo seria aquilo que Morgenthau (2003) chama de “a volta ao jogo”. Em síntese, a Rússia de Putin vem procurando se recolocar na atual arquitetura política internacional de forma a contestar a hierarquia da mesma, principalmente na Europa e no Oriente Médio, afinal, segundo o chanceler russo, Serguei Lavrov, “hoje, as relações internacionais são um mecanismo muito sofisticado para ser controlado por apenas um ou dois centros [de poder]” (LAVROV, 2016: 9).

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