A política e a cidade

June 8, 2017 | Autor: R. Alves | Categoria: Political Science, Direito, Planejamento Urbano, Cidades
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A política e a cidade Rafael de Oliveira Alves1

Apresentação Nas últimas décadas, em especial, temos observado um crescente interesse por discutir as políticas subnacionais, seja pelo recorte da descentralização democrática, seja pelo viés da descentralização neoliberal (Arantes, Vainer, & Maricato, 2000; Castells & Borja, 1996). No Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988, os municípios adquiriram novas e diversas competências legislativas e executivas. Dentre essas, a competência primária para aprovar e executar a “política de desenvolvimento urbano” tem orientado novos conflitos entorno do plano diretor e do poder municipal. Segundo a Constituição Federal, o plano diretor é o instrumento básico para o desenvolvimento urbano (CF, art. 182§1º) e, de acordo com o Estatuto da Cidade, deve ser construído por meio de audiências públicas e participação dos cidadãos (Lei 10.247/2001, art. 40§4º). Assim, desde o marco da nova ordem jurídico-urbanística, em 2001, observamos uma profusão de participação no nível local. De acordo com a pesquisa Perfil dos Municípios, havia 2.318 planos diretores aprovados (IBGE, 2009), indicando que 41,65% do total dos municípios brasileiros tiveram algum tipo de discussão sobre o planejamento das cidades. Certamente, tal número evidencia avanços na construção do Estado, do direito e da cidadania. Contudo, a diversidade das experiências indicam fragilidade legal dos instrumentos. Em regra, os instrumentos são aprovados mas não regulamentados. Ademais, constata-se uma baixa eficácia social devido ao imediatismo do planejamento proposto e à incapacidade administrativa em executar os planos (Santos Júnior & Montandon, 2011). Esse cenário de mudanças jurídicas associadas a fragilidades político-institucionais alertanos para a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre os novos instrumentos urbanísticos. Contudo, torna-se premente ampliar a reflexão sobre a política na cidade. 1

Rafael de Oliveira Alves é advogado e professor. Doutorando em Geografia (UFMG). Mestre em Direito da Cidade (UERJ). Graduado em Direito (UFMG). Hoje, é professor da Universidade Federal de Ouro Preto.

Pretendemos, portanto, com este trabalho evidenciar limites e possibilidades do ser e do fazer política como condições de produção e reprodução da cidade. Para tanto, apoiamo-nos, inicialmente, em um conceito de [a] cidade como espaço do excedente econômico, do poder político e da festa cultural (Lefebvre, 1999; Monte-Mór, 2006). E [b] a política será pesquisada sob a perspectiva da condição de sujeito ativo sobre os elementos conformadores da cidade contemporânea. Se, por vezes e de modo mais estreito, podemos verbalizar a política por meio das manifestações estatais e jurídicas locais, devemos alertar que nosso objeto – a política na cidade – não pode ser subsumida ao Estado tampouco ao direito. Ao contrário, perseguimos os fundamentos da política de modo a criticar os limites impostos pela ordem jurídica e pela ordem estatal. Em outras palavras, acreditando que a política não pode ser reduzida a procedimentos de participação social de legitimação do poder constituído. Assim, então, propomos filiarmos às seguintes correntes teóricas: Os elementos da condição humana, exposta por Arendt, auxiliam-nos para a reunião de política e cidade em um conceito uno de polis. Em Foucault interessa-nos compreender a biopolítica como uma nova prática da governabilidade que esvai a política da cidade. Com essas referências, avançamos junto a Chauí para expor os limites da representação e da participação como meios de se alcançar a democracia moderna. Nesse crescente, Rancière nos propõe uma inversão de termos necessária: pensar a política a partir do dissenso. O que nos leva a considerar algumas linhas mestras de Holston e de Hardt & Negri sobre a insurgência como constituinte de uma nova cidadania. Tal itinerário pretende, assim, contribuir para a discussão sobre a relação entre a política e planejamento urbano. E, em consequência, alinhar caminhos para a repolitização da cidade. Um dos caminhos para a reconstrução das condições socioespaciais passa pelas insurgências do direito à cidade.

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A política Para reposicionar a política precisamos recuperar fundamentos teóricos abrangentes. Sobretudo no âmbito das práticas de planejamento urbano institucionais do Brasil recente não podemos reduzir a política aos procedimentos técnico-administrativos de aprovação e gestão de instrumentos urbanísticos. Desde os movimentos sociais observamos a construção de um direito à cidade que pressupõe mais do que contraprestações positivas do Estado; reivindica-se uma nova condição de cidadania. Essa condição de cidadania – um novo estatuto do sujeito na cidade – aproxima-se do conceito de a ação política (Arendt, 2007). Ao recuperar o modelo da antiga pólis grega, Hannah Arendt incursiona sobre de vida ativa composta pelos elementos: bios, labor e ação. A [a] bios seria a dimensão de manutenção da “vida”, dos processos biológicos, da sobrevivência e da necessidade. O [b] labor relaciona-se ao momento criativo do homem que transforma a natureza em artefatos para superar a futilidade e a efemeridade da vida biológica. Por fim, há uma terceira condição, [c] a ação, em que os homens se constituem na pluralidade do encontro entre iguais. Enquanto a condição humana da “bios” e do “labor” são contingentes da natureza e da efemeridade, a condição humana da “ação” preocupa-se em construir a história e a memória. Uma repercussão dessa classificação está na construção do espaço: enquanto as atividades de sobrevivência e de trabalho se realizam no espaço doméstico ou privado, a ação insurge-se no espaço público. Daí entender que a ação somente é possível quando há pluralidade de homens constituída em uma comunidade de iguais: a polis. O pensamento de Arendt contribui para enlaçar política e cidade, uma vez que há uma sinonímia entre cidadania ativa e espaço público. Pois, é nesse espaço público em que a igualdade dos homens é construída, pois “nós não nascemos iguais; nós nos tornamos iguais como membros de uma coletividade em virtude de uma decisão conjunta que garante a todos direitos iguais” (Arendt, 1976:243). Por isso, a cidade não é um dado

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natural, mas um construto socioespacial. Então, passamos a associar a política como o elemento constitutivo da igualdade, da cidadania e da cidade. Igualmente, Lefebvre já nos apontava que o direito à cidade é composto do direito à obra (Lefebvre, 2001), isto é, a ação participante e constituinte de uma comunidade. Desse modo, o direito à cidade não se reduz ao consumo ou ao trabalho (dimensões privadas), mas deve se orientar a construção do sujeito ativo (portador de um projeto) no espaço da cidade. Assim, a cidadania é pertencer a uma comunidade política (pólis) em que sua fala (lexis) seja significante e sua ação (práxis) seja eficaz. Logo, as reivindicações pelo direito à cidade não podem se dirigir primeiramente para a garantia de bens e serviços de consumo coletivo – os quais se constituem meios – mas, antes, deve ter por objetivo a realização da cidadania: a condição política constituinte do sujeito no espaço da cidade. Anote-se, ainda, que o direito à cidade não é por essência um direito estatal positivo. Ao contrário, o direito à cidade é um referencial ético-político que atualiza a realização da condição humana. Parece ser neste sentido que Lefebvre busca construir o “direito à cidade” como elemento orientador de um novo programa político, de um novo humanismo, de uma nova práxis (Lefebvre, 2001:107). Buscamos por esses referenciais contrastar a inversão moderna entre política e economia. Se antes a economia e a política estavam em espaços segregados – oikos e polis – na era moderna, constatamos que a política é capturada pelo Estado, que a transforma em economia política da cidade. De modo mais enfático, na Modernidade, a política ocupa-se da manutenção da vida (bios) como sua finalidade. Nascem, assim, as regulamentações estatais sobre o âmbito doméstico, familiar, do trabalho, da empresa etc. Enfim, a vida torna um produto mediado pelo Estado sob a toada da política reduzida a técnica de governamentalidade. Por isso, aproximamos, agora, de Foucault para expor o nascimento da biopolítica.

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A biopolítica Michel Foucault (2008) compreende o nascimento da biopolítica como um fundamento do Estado moderno. De modo acurado, o método foucaultiano investiga diversas práticas de governamentalidade que constituem o homo oeconomicus e a biopolítica. Se até o século XVIII o problema central buscava na Filosofia Política os fundamentos do poder soberano, a partir do século XVIII, a Economia Política apresenta-se como maestra para se estabelecer os contornos do poder público. Temos, então, a construção de uma nova “razão governamental”, a que não importa mais o motivo da fundação da autoridade, mas, sim, a justificativa para o exercício cotidiano do poder soberano. Doutro modo, o problema do poder dirige mais ao exercício cotidiano limitado do poder do que à justificativa de sua fundação originária. A construção de um novo Estado (razão governamental) é concomitante a construção de um novo homem, o homo oeconomicus. Esse sujeito constitui a contraface do poder soberano. Por isso, Foucault revela duas vertentes dessa construção simbiótica: [1] Por uma primeira via rousseauniana, parte-se “dos direitos do homem para chegar à delimitação da governamentalidade” (Foucault, 2008:54). Isto é, o limite do Estado é deduzido a partir da vontade geral, um consenso superior dos detentores de direitos naturais. [2] Na outra via inglesa, “o limite de competência do governo será definido pelas fronteiras da utilidade de uma intervenção” (Foucault, 2008:55). Ou seja, o limite do Estado é definido a partir da transação entre os partícipes da sociedade (governados) sobre a utilidade da ação estatal. A partir da Modernidade, o “bom” governo é o governo “útil”, que intervém somente quando necessário e autorizado pelos governados. Completa-se, assim, a transição da [a] legitimidade do Estado fundada no direito natural para [b] a legitimidade do Estado obtida pela manutenção das condições de liberdade econômica. Se no primeiro momento expomos a política como o exercício de construção do diálogo entre iguais no espaço público da polis (Arendt, 2007), nessa seção encetamos sua 5

substituição pela biopolítica: uma nova governamentalidade que é legitimada pela economia (homo oeconomicus). Dessa sorte, o Estado serve – é útil – para produzir liberdade econômica e, em paralelo, controlar os indivíduos que possam vir a perturbar a “ordem natural” de mercado. Assim sendo, o Estado não deve intervir sobre o mercado – onde deve reina a “ordem natural”. O Estado deve intervir, doutra feita, sobre a sociedade para produzir um novo homem – o homo oeconomicus (Foucault, 2008:199). Ou seja, em sua nova governamentalidade deve o Estado aplicar a racionalidade econômica sobre a sociedade civil. Logo, eficiência, eficácia, empreendedorismo, concorrência, produtividade, escassez, renda, investimento etc conformam a “grade de inteligibilidade”. Essa outra racionalidade permite [a] a “decifração das relações sociais e dos comportamentos individuais” (Foucault, 2008:334) e, também, [b] serve para “ancorar e justificar uma crítica política permanente da ação política e da ação governamental” (Foucault, 2008:338). Em suma, o conceito de homo oeconomicus permite a aplicação de fundamentos econômicos à análise social e à análise política. O Estado e a sociedade são convertidos em critérios econômicos, o que, consequentemente, afasta a política e amplia a biopolítica. Aqui, então, a finalidade da razão governamental endereça-se à sociedade civil. Ou seja, o poder soberano sobreporá seus instrumentos de controle biopolítico sobre a sociedade civil – fonte de preocupação e de risco à ordem natural de mercado. A nova governamentalidade, como visto, deve empreender esforços para o controle biopolítico dos governados. Destarte, se não é possível eliminar a política por completo, a biopolítica vai restringir a política ao aparato institucional do Estado. Sinteticamente, o conceito de política – ação dos sujeitos na cidade – somente pode ser compreendido se acontecer nos espaços institucionais estatais pré-definidos. Na seção seguinte, propomos discutir a democracia representativa como técnica governamental de regulação da política.

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A participação Inicialmente temos que a política (ação política) é um fundamento da condição humana. Entretanto, durante a Modernidade observamos a conversão da política em biopolítica – conversão da “condição humana” em “economia política governamental”. Tal transformação foi possível por meio da dissociação entre Estado (poder soberano) e sociedade civil (exterior ao Estado e, por isso, destinatária da biopolítica). Como resultante, o espaço público não é mais a construção da polis entre os iguais. Ao contrário, o público e a política são eventos pertencentes ao Estado, não à sociedade civil. A nova técnica de governamentalidade (biopolítica), então, vai regulamentar a participação e a representação como mecanismos básicos de controle da sociedade em um arranjo nomeado de democracia liberal burguesa. Temos, aí, a possibilidade da política restrita à participação esporádica em eleições para escolha da elite dirigente. Devemos destacar, ainda, que a dissociação entre Estado e sociedade civil consolida a separação entre o âmbito da política e o âmbito da vida. Isso repercute no entendimento corrente: a democracia é apenas um regime de governo e a política (ou biopolítica) que deve cuidar da provisão de bens e serviços úteis aos governados. Chauí destaca que “a questão da democracia, ao ser reduzida à esfera estritamente político-institucional, acaba sendo reduzida a uma discussão que se concentra, em última instância, nas transformações do aparelho do Estado” (Chauí, 2006:147). Nesse momento, a democracia e a política são reduzidas às manifestações internas aos aparatos institucionais do Estado. Como exposto, as questões da filosofia política sobre o “bom” governo são reduzidas e, em compensação, acrescem o cálculo econômico sobre a política e sobre a vida. Os interesses dos indivíduos como um clamor emudecido deve ser “captado pelo mercado político para ser convertido em "demanda social" e para ser trabalhado pelas "elites" a fim de convertê-lo em mercadoria oferecida pelos partidos aos cidadãos.” (Chauí, 2006:299).

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Assim, a política ideal adere-se ao elitismo democrático schumpeteriano de gestão econômica dos interesses individuais e coletivos. Para superar esses limites comumente vamos margeando a tensão entre os modelos representativo e participativo. Tal excurso intenta investigar as condições para a democracia. Todavia, Chauí enfatiza que “Se, na tradição do pensamento democrático, democracia significa: a) igualdade, b) soberania popular, c) preenchimento das exigências constitucionais, d) reconhecimento da maioria e dos direitos da minoria, e) liberdade, torna-se óbvia a fragilidade democrática no capitalismo” (Chauí, 2006:140). Em verdade, a democracia é limitada pela economia capitalista. O que torna superficiais as críticas sobre os procedimentos estatais de participação ou de representação sem a necessária análise dos fundamentos econômicos. Devemos, contudo, alertar para o risco constante da “racionalidade econômica” (homo oeconomicus) orientar nossas pretensões democráticas. Em resumo, deve-se suspeitar das investidas tayloristas e fordistas para a regulação da democracia – tão presentes nos modelos e consultorias para fomento e controle da participação. Ademais, o modelo de representação por meio de partidos políticos oculta outro limite à democracia, qual seja: pretender que um partido (fração da sociedade) consiga vocalizar a vontade geral de toda a sociedade. Sob esse aparato, a política é exercida eventualmente pelos indivíduos comuns durante os sufrágios, enquanto, no dia a dia, a política se torna a atividade profissional dos representantes eleitos. Diante disso, concluímos que “a ideia de representação não possui qualquer vínculo substantivo com a ideia de democracia” (Chauí, 2006:293). Ao contrário, o repertório histórico demonstra que o processo representativo esvazia e subverte a política – mesmo quando combinados os modelos de democracia representativa e democracia participativa. Em outras palavras, ao ser representado o cidadão deixa de participar; e ao participar diretamente deslegitima os poderes constituídos. Para superar esse quadro limitante da política na cidade, nosso referencial inflexiona-se à subversão dos canais participativos e representativos. Por isso, avançamos nosso raciocínio 8

sobre as possibilidades de política na cidade. Primeiramente, acolheremos o dissenso como fundamento da política, e, em seguida, sustentaremos a insurgência como um poder constituinte da condição socioespacial.

O dissenso Nosso trajeto examina a política [1] como uma condição humana de vida na comunidade da polis, que é convertida em [2] uma prática governamental biopolítica de controle dos corpos, combinada com [3] mecanismos de representação e de participação para represar a política dentro dos contornos do Estado e, assim, afastar os indivíduos da política. Se pela crítica evidenciamos as impossibilidades, devemos, agora, angariar elementos para repolitizar a cidade. Provocamos, aqui, um código heterodoxo à democracia moderna: o “dissenso” (Rancière, 1996). Rancière enuncia o dissenso como fundamento da política. Tal subversão opera-se sobre o pressuposto da racionalidade política moderna que procura resolver as diferenças como condição de sua existência. Ou seja, a democracia transformou-se em um método de solução de conflitos e construção de consensos. De acordo com a concepção de democracia consensual, o conflito e a diferença são eventos temporários, que, uma vez superados, alcançaremos o objetivo da política: o consenso. O consenso, seja por convencimento, seja por persuasão, pretende transformar o “outro” em “um”; transformar as diferentes “personas” em “uníssono”. Diante disso, sobressaem paradoxos da democracia ocidental. Primeiramente, a existência da democracia está condicionada ao esvaziamento da política porque se fundamenta sobre a distinção básica entre Estado (espaço da política) e sociedade (espaço da não-política). Em segundo, apesar da democracia apresentar-se como regime político, o objeto da política concentra-se sobre a gestão das necessidades econômicas. Quer seja, a democracia, ao

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invés de ser política, torna-se um regime econômico de solução das necessidades da vida (biopolítica) orientada pela racionalidade do homo oeconomicus. Rancière perfila, aqui, uma diferença necessária. [1] O termo “polícia” é vinculado a “gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação (…) conjunto de formas de gestão e de comando” (Rancière, 1996:371). [2] Doutro modo, Rancière nomeia “política” como “conjunto das atividades que vem perturbar a ordem da polícia pela inscrição de uma pressuposição que lhe é inteiramente heterogênea (...) manifesta pelo dissenso” (Rancière, 1996:371). Para sintetizar a nova política do dissenso devemos reunir três princípios ontológicos coerentemente. [a] Pelo princípio da igualdade, a política revela-se possível porque existe uma comunidade de iguais. Não uma comunidade biológica natural, mas, uma organização política deliberadamente construída por seus indivíduos. [b] Pelo princípio da reciprocidade, a política pressupõe a alternância entre governantes e governados de modo contingente e periódico. Logo não há uma elite ou profissão destinada à política contraposta a outra massa despolitizada. [c] Por fim, o princípio do dissenso proclama a quebra da ordem constantemente como condição a manutenção da vida política comum. Essa última asserção do dissenso como distorção da ordem interessa-nos grandemente como via privilegiada a ação política na cidade. Se, como exposto, a democracia moderna limitou a política ao aparato estatal, a transformação da condição socioespacial implica em uma pertubação da ordem político-econômica vigente. Portanto, abrimos a via à insurgência como mecanismo de dissenso que pode repolitizar a cidade.

A insurgência Nessa abordagem tensa e revolucionária da política na cidade, aproximamos da insurgência. Para tanto, Holston reitera a crítica ao “ planejamento e arquitetura como soluções para a crise social do capitalismo industrial” (Holston, 1996:243). Mormente

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sob o modernismo, a política estatal de planejamento urbano utiliza o saber técnico para resolver os limites do capital e, por consequência, descartar a experiência cotidiana. Para repolitizar a cidade, é preciso contrapor à cidadania formal estatal uma outra cidadania: material e insurgente. Assim, por meio da “cidadania insurgente”, os indivíduos constroem “lugares de insurgência, porque introduzem na cidade novas identidades e práticas que perturbam histórias estabelecidas” (Holston, 1996:250). Essa força insurgente, ao produzir espaço, consolida a condição socioespacial dos sujeitos na cidade. Se é certo que o [1] Estado utiliza os mecanismos biopolíticos para controle dos corpos e para gestão das crises do capital, então [2] a cidadania insurgente vale-se do dissenso para perturbar a ordem espacial vigente e gerar novas espacialidades. Na mesma esteira, Hardt e Negri recomendam a utilização do contrapoder para se combater o “Império”. Nessa abordagem precisaremos de três elementos: [a] a resistência, [b] a insurreição e [c] o poder constituinte – todos esses a serem manejados pela multidão (Hardt & Negri, 2002:163). A “resistência” é vista como uma importante arma política, que não deve ser reduzida ao âmbito individual ou de micropoder. Se coletiva, a resistência pode fomentar a “insurreição”, inclusive transvestida de guerra civil, de guerrilha urbana ou de atentados ao Poder Constituído. De todo modo, as forças do contrapoder somente alçam a transformação revolucionária quando prenhes de “poder constituinte” de uma “nueva formación social alternativa” e uma “democracia alternativa de la multitud” (Hardt&Negri, 2002). Esse caminho de Hardt e Negri reforça a cidadania insurgente proposta por Holston e o dissenso exposto por Rancière. Operacionalmente, os conceitos induzem a conclusão de que os indivíduos não podem verter toda ação política para os processos de planejamento urbano oficial. Ao contrário, a cidadania material insurgente impulsiona a produção direta de espaços diversos na cidade – por vezes fora do planejamento do Estado e do direito, por vezes contra o Estado e contra o direito. Em outras palavras, é necessário não somente resistir às práticas estatais de produção de cidade capitalista, mas também insurgir-se 11

contra elas publicamente, isto é, em plena praça pública, nas ruas, nos parlamentos, nas redes sociais diversas etc. De modo geral é possível visualizar a resistência política e espacial em todas as comunidades constituídas à margem do planejamento urbano oficial ou recepcionadas sob o regime de zona especial de interesse social (ZEIS) ou terras quilombolas. De modo mais radical, poderíamos apontar para a insurgência criadora em movimentos de ocupações programadas como Dandara, Irmã Dorothy ou Camilo Torres etc. Contudo, torna-se desafiador converter essas práxis insurgentes em um projeto de cidade. Certamente o trânsito da insurgência para o poder constituinte não tem uma utopia única ou uma metanarrativa pre-estabelecida. São as múltiplas singularidades da multidão que vão conformar a legitimidade política e constituir uma nova cidade. Como desfecho, anotamos a necessidade de se construir a condição humana em um espaço público comum. Porém, devemos atentar para os mecanismos biopolíticos manejados pelo Estado e pelo capital – pois, ambos conformam uma ordem socioespacial que deslegitima a ação política fora dos procedimentos democráticos pré-definidos. Isto é, as manifestações políticas fora do calendário eleitoral são vistas como baderna, vandalismo, desordem etc. Assim, a repolitização da cidade pela via democrática oficial é limitada e tende a reproduzir a ordem vigente. Logo, o dissenso apresentado no espaço público – ainda que restrito – é potencial se articulado aos espaços insurgentes produzidos e vividos fora do Estado e do direito. Por isso, reiteramos nossa aposta na política que destitui a legitimidade dos poderes constituídos e, ocupando as ruas e a cidade, produz uma nova ordem, um novo direito. Esse novo nomos é o direito à cidade: “O direito à 'obra' (à atividade participante) e o direito à 'apropriação' (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade” (Lefebvre, 1991:143).

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Referências Arantes, O. B. F., Vainer, C. B., Maricato, E. (2000). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes. Arendt, H. (2007). A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense. Castells, M., & Borja, J. (1996). As cidades como atores políticos. Novos Estudos, 45, 155-157. Chauí, M. (2006). Cultura E Democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez. Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1979). São Paulo: Martins Fontes. Hardt, M., & Negri, T. (2002). La multitud contra el Imperio. OSAL Observatorio Social de América Latina, (7). Holston, J. (1996). Espaços de cidadania insurgente. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 24, 243–253. IBGE. (2009). Pesquisa de informações básicas municipais - Perfil dos municípios brasileiros 2009. Rio de Janeiro: IBGE. Lefebvre, H. (1999). Revolução urbana (p. 184). Belo Horizonte: UFMG. Lefebvre, H. (2001). O direito à cidade. São Paulo: Centauro. Monte-Mór, R. L. (2006). O que é o urbano no mundo contemporâneo. Texto para discussão. Belo Horizonte. Rancière, J. (1996). O dissenso. In A. Novaes (Ed.), A crise da razão. Rio de Janeiro: Cia das Letras. Santos Júnior, O. A. dos, Montandon, D. T., & (orgs.). (2011). Os planos diretores municipais pós-Estatuto da cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Observatório das Metrópoles.

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