A Política Externa da República Popular Democrática da Coreia: atuação no sistema internacional e as relações com o Brasil

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS

CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A POLÍTICA EXTERNA DA REPÚBLICA POPULAR DEMOCRÁTICA DA COREIA: ATUAÇÃO NO SISTEMA INTERNACIONAL E AS RELAÇÕES COM O BRASIL

STHEFANIE PETTI

SÃO PAULO

2014

STHEFANIE PETTI

A POLÍTICA EXTERNA DA REPÚBLICA POPULAR DEMOCRÁTICA DA COREIA: ATUAÇÃO NO SISTEMA INTERNACIONAL E AS RELAÇÕES COM O BRASIL

Monografia apresentada ao Curso de Relações Internacionais

da

Pontifícia

Universidade

Católica de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de bacharel em Relações Internacionais, sob orientação do Professor Orientador Lauro Ávila Pereira.

SÃO PAULO

2014

AVALIAÇÃO: _________________________________________________________________

ASSINATURA DO ORIENTADOR: ________________________________________________

RESUMO

O papel da Coreia do Norte no sistema internacional vem a ser impresso apenas divulgando as violações dos direitos humanos, que de fato ocorrem infelizmente a mando frio dos oficiais de Estado e que se institucionalizou a ponto de ser perpetuada em nível social mas que não podem ser a figura de exportação única e exclusiva do regime jucheniano. A reorganização social ligada à xenofobia jucheniana junto ao culto à personalidade dos Kim impõe ampla obediência civil, o que eficazmente garante a coesão do regime e torna inabalável a soberania interna do Estado. O Brasil, sendo um dos poucos que oferecem apoio diplomático a Pyongyang e um dos vinte e cinco países que fincaram suas reapresentações de Estado ali, pode tornar-se um dos atores no expoente das novas relações do regime com Estados capitalistas não-beligerantes e futuramente um player de grande relevância nas relações de poder da região.

Palavras-chave: Coreia do Norte, nacionalismo, juche, direitos humanos, sistema internacional, Brasil.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................................5

CAPÌTULO 1 – Um novo Estado: a RPDC e seus desafios.............................................................6 1.1 Anos de dominação: a orgiem do nacionalismo coreano............................................................6 1.2 Ideologia juche..........................................................................................................................13 1.3 Violação dos Direitos Humanos...............................................................................................18 CAPÌTULO 2 – A Política Externa da RPDC................................................................................22 2.1 A RPDC e o Sistema Internacional...........................................................................................22 2.2 A RPDC e os “Irmãos do Sul”: propostas de negociação e unificação....................................28 2.3 América Latina e Brasil: sancionar ou negociar?.....................................................................31 CONCLUSÃO................................................................................................................................34

CONCLUSÃO................................................................................................................................34

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................................37

INTRODUÇÃO

A condição de um país enclausurado em uma ditadura totalitária cuja distância geográfica e cultural do Ocidente determina por vezes uma visão viciada não serve para a compreensão do processo que ocorre no país. O que de fato vai além do estereótipo de um líder tirano que herdou o país? Um ditador que se mantém com o exército de uma abastada classe dominante de dirigentes de um partido comunista? Há com grande recorrência fomes e violações constantes dos direitos humanos sob o olhar de um Estado altamente coercitivo e quase inteiramente fechado para o restante do mundo. Entender a Ásia contemporânea é ainda um desafio, sobretudo para as antigas metrópoles do expropriado continente colonizado. É intrigante a hipótese de que em meio a uma série de percalços sociopolíticos o regime norte-coreano se mantenha legítimo graças à força ideológica implantada desde seu fundador Kim Il Sung. É de forte relevância neste contexto, diante da maneira como o regime instalado se perpetua domesticamente, compreenderse também como este se relaciona com forças externas e de que maneira é percebido no sistema internacional; todos aspectos fundamentalmente interligados. Haja vista que para um regime instituído em decorrência da Guerra Fria uma política externa de não-alinhamento em relação à antiga bipolaridade hoje não mais vigora, cautelosos acordos bilaterais e aproximações culturais se tornam de imediata preocupação do Itamaraty, palácio que sedia o Ministério das Relações Exteriores do governo brasileiro. Defrontados todos estes aspectos, cabe à pesquisa portanto discutir e buscar a compreensão de que forma com que o Brasil manteve e mantém suas relações diplomáticas com a República Popular Democrática da Coreia.

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CAPÌTULO 1 – Um novo Estado: a RPDC e seus desafios 1.1 Anos de dominação: a orgiem do nacionalismo coreano

As linhas fronteiriças do norte da península, vizinhas das atuais China e Rússia, passaram sempre por diferentes demarcações ao longo de sua história. Decorrente deste fato, a identidade nacional de um coreano não era em nada diferente da cultivada por um chinês. Isolados do próprio continente, durante o século XVII os coreanos se entendiam mais chineses de que seus próprios vizinhos, uma vez que acreditavam que sua civilização teria sido fundada por Gija ou Jizi, um sábio chinês originário da Dinastia Shing (1600-1046 a.C.).

Escavações encontradas na península coreana remontam ao paleolítico, apontando para os primeiros humanos a habitarem-na há cerca de quinhentos mil anos atrás. Aproximadamente há alguns anos a.C. até meados do século IX., três reinos simultaneamente ocuparam a península: Baekje, Koguryeo e Silla. Durante os quatro séculos sucedentes a península passa por um período de unificação dos reinos sob o comando do reinado de Goryeo (918-1392), encorporando as remanescências aristocráticas (yangban) dos três antigos reinos. Vários feudos encastelados de maior relevância passaram a chamar atenção de reinos chineses como o dos Han, Mongóis e Ming, os quais até a era do reino de Joseon (1392-1897) levariam comandarias para militarmente e administrativamente ocuparem o território ao lado da Manchúria. Entretanto, a sucedida civilização de Joseon, além de unificar a linguagem em toda a península com a criação de uma escrita alfabética independente, iniciou na região a cavalaria, a cultura do bronze e do ferro e a sofisticação da agricultura, permitindo um considerável crescimento demográfico.

Como civilização sino-confuciana, cultura ainda remanescente no âmbito sócio-político atual, não apenas a política doméstica assim como a externa eram orientadas à hierarquização e obediência doutrinária. A diplomacia de Joseon seguia o lema de “servir ao melhor” (sadae), o que a leva a integrar-se ao Estado tributário chinês. O “Império do Centro” oferecia segurança diante das tentativas de invasão japonesas e europeias, ainda que limitada autonomia política cujo 6

exercício doméstico se mantinha sujeito a decisões diretas de Beijing. Apesar da conquista dos reinos e da proeminente cultura da olearia, cujas cerâmicas peculiares têm raízes originárias em uma cultura exclusivamente coreana, não havia até então proeminentemente um projeto de Estado Nação (VISENTINI, 2012).

Esta condição de status quo só é revogada no século XIX, quando ocorre a temporária independência da península cartada pela elite local, fragilizando o país. Sob o pretexto da Guerra Sino-japonesa (1894-1895), o evento é sucedido pelo acordo de protetorado com o Japão, o qual saía do conflito vitorioso, firmado em 1905. A simultânea presença czarista na península provoca a guerra entre russos e japoneses de 1904-1905, caracterizada pela ascendência do Império do Sol. Sucumbindo às pressões de dominação imperialista japonesa, a imperadora Myeong Seong, cuja busca ao auxílio diplomático russo se dá sem êxito, é assassinada por agentes japoneses em seu próprio palácio. Inicia-se uma era de domínio japonês sobre toda a península coreana, o qual brutalmente coloniza todas as instituições sociais do território anexado em 1910. A Coreia estrategicamente representava senão a porta de entrada para a Manchúria e o restante da China.

A violenta repressão nipônica feita após uma tentativa frustrada de levante popular para conceder independência à Coreia em 1919, movimento ligado ao conceito wilsoniano de autodeterminação dos povos1 conhecido como 1º de Março, excitou os ânimos em relação à nacionalidade. Concomitantemente, falhando em reprimir a resistência local a empreitada do império consistia em persuadir a colônia de que sua origem era também racialmente pura por ser comum à dos japoneses, encorajando os coreanos de terem orgulho de suas raízes nipodescendentes, de sua história, sua cultura e seu “dialeto irmão” (MYERS, 2010). Neste momento, em resposta à campanha, em detrimento de Gija cuja figura cai em esquecimento, o mítico fundador Dangun Wanggeom torna-se a lenda prioritária de origem da Coreia e fundamental para a concepção nacionalista dos movimentos anticolonialistas. Uma nova elite nacionalista, contrária à transformação da antiga yangban agora sob vassalagem aos colonos japoneses, surgia diante da criação secreta em 1925 do Partido Comunista da Coreia (PCC), participante da VI 1 O presidente dos Estados Unidos Woodrow Wilson apresentou o conceito de autodeterminação dos povos, dentre os Quatorze Pontos, em declaração em Janeiro de 1918.

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Internacional Comunista.

A fim de dar cabo ao seu projeto de expansionismo, a já constituída União de Repúblicas Soviéticas Socialistas (URSS) formaliza seu apoio aos grupos de guerrilha esquerdistas e durante a previsível invasão japonesa da Manchúria oferece refúgio a cidadãos coreanos. Ao longo da Segunda Guerra Mundial, para os japoneses a região torna-se um celeiro bélico de produção e armazenamento, uma vez imune a bombardeios. Contudo, o foco dos combates é alterado posteriormente quando do fim do conflito, em Julho de 1945: Stalin e Roosevelt se aliavam para lutar contra as restantes forças de ocupação japonesa da península (VISENTINI, 2012).

A nascente Guerra Fria neste evento iniciava-se por meio da introdução da URSS à balança de poder da Ásia. Stalin já havia ocupado a Manchúria e parte do norte da Coreia. Em Agosto a negociação do acordo de paz em Yalta incide na reação dos Estados Unidos da América (EUA) na tentativa de conter a atuação deste novo elemento regional e sufocar a emergência de movimentos nacionalistas na antiga colônia. Com a queda do Japão, ambas as novas potências partilhavam de interesse geopolítico sobre o território mergulhado no coração do leste do continente; a linha do paralelo 38, que recai sobre si, é rapidamente demarcada por jovens oficiais do Pentágono. Assim seria representada a concessão em tutela temporária do lado norte à URSS e do sul aos EUA, que desta maneira detinham a capital Seul. Sobre a linha de divisa repousariam 250 quilômetros de Zona Desmilitarizada (ou DMZ na sigla em inglês) cuja delimitação de quatro quilômetros de profundidade mata adentro serviria de controle militar para as duas tutelas.

As frentes de resistência anticolonial, através do Comitê de Preparação da Independência Coreana, iniciam uma aproximação do último governador-geral japonês na península para a entrega do poder a um novo Estado independente. Lyuh Woon Hyung, fundador do comitê e assumidamente um nacionalista de centro-esquerda, assume o poder da República Popular da Coreia e no 6 de Setembro de 1945 inicia os trabalhos do Congresso sob regime representativo em Seul. O projeto de Estado-nação finalmente logrado tão recentemente finda no dia consecutivo, desmantelado oficialmente em Outubro, frente à tomada pelo regime militar interino

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norte-americano.

Em Washington, o general MacArthur indica o tenente John Hodge à administração de sua parte da península, o qual se recusa a reconhecer a legitimidade do recém-concebido governo independente. O Governo Militar Aliado instaurado sofre a oposição do levante operário, no outono do seguinte ano, em reivindicação à volta dos comitês populares os quais haviam formado a República Popular anteriormente, a melhores salários e condições de trabalho, ao direito à organização política e à soltura dos presos políticos mantidos pelo exército dos EUA. Os militares no poder por sua vez mobilizaram fura-greves, polícias, grupos de extrema direita, tropas e tanques dos EUA enviados às ruas. Declarando lei marcial sucedem parcialmente em combater a insurgência iniciada em Busan, espalhando-se por todo o país e retomada em 1948 na ilha de Jeju.

Diante desta conjuntura, o aristocrata educado na Universidade de Princeton Lee Seung Man (ou Syngman Rhee na romanização mais arcaica), considerado um ardente anticomunista, se aproximava ideologicamente mais que seu opositor Lyuh aos anseios estadunidenses quanto à perseguição aos opositores e às campanhas militares de repressão contra aparelhos de esquerda insurgentes as quais têm ocorrência em seu mandato-fantoche no Governo Provisório da República da Coreia. Seung Man recorre à política macarthuriana de caça às bruxas exercendo uma clara limpeza ideológica no processo de perseguição a comunistas alistando à chamada Liga Budo campesinos e civis, em sua maioria sem qualquer relação à questão, sujeitos à pressão sofrida por oficiais do governo para preencherem as quotas de alistamento e massacrados posteriormente. A luta de classes interminantemente se perpetua no Sul, onde sua conscientização é massivamente suprimida.

Em vista do exposto, o Exército Vermelho permitiu em seu Norte a organização dos comitês populares, amigáveis à União Soviética. A fim de centralizá-los foi instaurada a Autoridade Civil Soviética. Sem grandes resistências, uma massiva reforma agrária redistribuiu terras de colonos, oficiais e cidadãos ligados aos japoneses para campesinos desprovidos de terra,

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permitindo que todos tivessem partes igualitárias. Fugindo agora das massas rumo ao sul do paralelo, as antigas burguesias durante a ocupação haviam concentrado no norte da península as indústrias de base. Este parque industrial é então todo estatizado. Em Agosto de 1946 é empossado como presidente do Comitê Central do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte Kim Il Sung, educado quando em exílio na Manchúria pelo Partido Comunista Chinês e pelo Ministério de Assuntos Interiores russo (ou MDV na sigla em russo). As tropas soviéticas voltaram à metrópole em 1948.

As forças políticas no fatídico ano de partilha entre as duas Coreias, deixaram o território da península coreana à mercê de grandes conflitos. Ambos os governos provisórios instaurados na península estavam a competir pela tomada de poder na reconciliação. EUA e URSS se encontravam na berlinda da desconfiança entre si diante do início da Guerra Fria. No outono de 1947 delegados americanos expõem a questão à recém-formada Organização das Nações Unidas. Em oposição ao envolvimento da ONU na península e em boicote à sua resolução, a URSS se conscientizava do favorecimento às forças capitalistas por parte da organização sediada em Nova Iorque. A ONU, por outro lado, sugere a convocação de eleições gerais para cada lado e a retirada de tropas estrangeiras. As eleições não são supervisionadas e ocorrem apenas no Sul, por mando de Lee Seung Man. Tanto os partidos de esquerda do Sul quanto a URSS no Norte boicotam as urnas no que precedia o concedimento de poder oficial a Lee como presidente da República da Coreia (RC) no 15 de Agosto de 1948 e a Kim como primeiro-ministro da República Popular Democrática da Coreia (RPDC) no 9 de Setembro.

Da derradeira instância dos dois governos simultâneos para uma nação dividida por forças externas e ideológicas até o 25 de Junho de 1950, o intuito de ambos convergia na unificação da península. As duas forças armadas, portanto, escalonam as batalhas entre si até que o Norte ultrapassa a fronteira em uma tentativa de ocupação. Ficassem os EUA à espreita do invasor e terem atacado por si só, teriam eles restaurado o poder até o paralelo. Entretanto o Pentágono se ateve às forças da ONU, cujas tropas in loco são lideradas pelo exército dos próprios EUA, alterando sua política de contenção, a fim de prevenir a expansão inimiga, para a de rollback (ou reversão), com o propósito de deslocar e destituir o poder de Kim. A estratégia americana só não 10

contava com a mobilização de soldados da China maoista para um contra-ataque, empurrando os capacetes azuis de volta ao Sul em apenas um mês de enfrentamento. A crise doméstica de divergências entre a linha de apaziguamento de Truman e a linha dura de MacArthur quanto a levar a guerra à China prolonga o fim do conflito, levado até o armistício assinado em 27 de Julho de 1953. Os EUA reconheciam a conjuntura irreversível da divisão que haviam causado enquanto os coreanos viam a eufórica expectativa de unificação tornar-se em um pesadelo diante do holocausto ao qual foram submetidos em três anos de combate.

Ambos os lados criaram mitos na retomada do território com a capitulação japonesa: no Norte Kim Il Sung teria sozinho varrido a colonização de volta a seu arquipélago de origem; no Sul tratava-se este de um impostor que havia roubado o nome do verdadeiro herói nacional. Ao fim da Guerra “do 25/06” ou “da Liberação da Terra do Pai”, como sul e norte-coreanos se referem respectivamente, o status quo ante restaurado somente acirrava a divisão.

Contudo, o real legado do conflito encabeça o ideário mútuo de nacionalismo coreano, assim criado no século XX. A etnia han desde o século II a.C. teve um grande projeto migratório de ocupação de toda a Ásia e seu nome, que remete à tradução de “bom”, “melhor” ou “líder” do coreano arcaico, é usado também na representação da nacionalidade, língua e cultura dos coreanos. A palavra hoje denota um espírito coletivo de opressão e isolamento; aspectos de lamento e injustiça os quais quem carrega passivamente anseia por vingança. O ressentimento a ser saciado só com a justiça não só é uma identidade étnico-cultural como também constitui o nacionalismo racial na Coreia.

A concepção de uma raça pura advinda da figura semidivina de Dangun, influenciada pela concepção de raça do império japonês fascista durante sua campanha colonial, remonta ao projeto de unificação e à tendência expansionista da dinastia Gureyo. Esta associação fortalece a resistência em períodos de protetorado e tutela. A homogeneidade étnica da península por sua vez desmantela a possibilidade de que um dos dois lados venham a clamar por maior pureza frente ao outro. Diferentemente de Stalin, o qual têve de construir ideologicamente a “questão nacional”

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contra a “autocracia russa que perseguia ferozmente a cultura nacional das nacionalidades estrangeiras” de uma Rússia plurinacional (STALIN, 1954), para Kim Il Sung essa foi uma grande oportunidade para se consolidar no poder.

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1.2 Ideologia juche

Diante da nacionalidade racial que legitima a missão heroica dos Kim, a xenofobia é inevitável. Há, por exemplo, feriados para a celebração de dias de manifestação civil nas ruas de Pyongyang contra o imperialismo estadunidense. Até mesmo crianças entoam músicas – infantis; ou seja, a elas especificamente compostas – em que “o americano se rende ajoelhado vergonhosamente”. Esta mesma nova e moderna Pyongyang de edifícios monumentais é fruto advindo do “fato de que Kim Jung Il é um gênio da criação”, como entoa o entusiástico narrador na propaganda invadindo casas populares adentro sendo transmitida no único permitido canal de televisão estatal. A Televisão Central da Coreia (TVCC) também exibe propagandas a julgar-se a alta qualidade de vida na RPDC em que “todos são providos de apartamentos garantidos pelo Estado” em detrimento à exploração do capital e “especulação imobiliária que assola os irmãos da Coreia do Sul”. São apartamentos estes dados senão aos mais fiéis à doutrina da dinastia Kim.

Em pouco mais de meio século de história pode-se dizer que a RPDC desenvolveu sua própria versão do socialismo traduzido em um regime autoritário que mescla o marxismoleninismo junto à rígida estrutura social hierárquica de classes do confucionismo e o culto à personalidade de seu líder. Ainda que com uma economia aos frangalhos, sua decorrente pobreza, recorrentes violações dos direitos básicos humanos assim como crises de insuficiência alimentar em massa, uma nova sociedade complacente fora criada para a sustentação ilimitada de Kim e seus descendentes no poder. Quando Il Sung falece em 1994 teria ele vivido e permanecido ao encargo da liderança do Partido dos Trabalhadores da Coreia (PTC) e da RPDC por mais quatro décadas em relação a Joseph Stalin na Rússia e mais duas em relação a Mao Ze Dong na China, enquanto no mandato de seis presidentes sul-coreanos e 21 primeiros-ministros japoneses.

Arquitetando a tríade Estado, Partido e Forças Armadas quase ilustremente sozinho – ainda que tivesse um precário coreano com apenas oito anos de educação formal somente em 13

chinês quando na Manchúria, em 1955 Kim Il Sung promulga o juche. Considerado o “marxismo-leninismo do presente” o juche é a obra ideológica “unitária” ou “monolítica do Partido” na qual o modus operandi do novo sistema trabalhava para trazer a “autossuficiência nacional”. Havia de se depender coletivamente “de sua própria força” para que a revolução fosse centrada na própria Coreia e não para o benefício de outro país. Kim Il Sung define juche como "a posição independente de rejeitar a dependência de outros e usar o próprio poder, acreditar na própria força e demonstrar o espírito revolucionário da autonomia”. Este aspecto passa a ser o alicerce da construção e dos trabalhos do Partido; o foco do planejamento do novo Estado e sua política externa. Para Kim Jong Il, em “Sobre a Ideia Juche” (1982, p. 25-26), isso significa que:

“...as massas populares devem manejar todos os problemas da revolução e a construção por seus interesses, de acordo com seu discernimento e sua decisão próprios e independentes. O direito de administrá-los pertence unicamente ao povo, os donos [da revolução], do país em questão. (…) Este é o único modo de o povo de cada país poder defender seus interesses e carregar sua vontade e desejo. O povo de cada país não pode tolerar qualquer pressão e interferência estrangeiras. Falhar em resolver os próprios problemas por decisão própria sob pressão ou em aliança com outros significa perder o próprio direito de ser dono; seguir a vontade de outros e agir contra o próprio interesse significa desistir do direito de ser dono”.

Todos os anos de dominação chinesa e os ranços remanescentes do colonialismo japonês opressivamente guardados no gene do coreano estavam aí sendo expurgados, o que legitimava a nova proposta. O socialismo passava a ser pensado para um só país, onde o nacionalismo racial se replica de maneira maximizada através do juche, sem que este precise do marxismo-leninismo. Assim como a raça coreana, a ideia juche seria “a melhor”. Porém mais do que isso, esta era uma ferramenta política para eliminar os dissidentes pró-soviets ou pró-maoistas que fizeram oposição a Il Sung enquanto o marxismo-leninismo era a única e inquestionável fonte doutrinária durante a primeira década da Coreia do Norte.

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A segunda geração dos Kim busca fortalecer por sua vez o “militarismo em primeiro lugar” (songun) para a consolidação do poder e da legitimidade às sombras das credenciais militares de Il Sung. O regime dá preferência ao desenvolvimento de aparatos de defesa militar e à realização de “prioridades econômicas executadas no espírito militar revolucionário”. As forças armadas devem ser o primeiro pilar da revolução e da reconstrução econômica de Pyongyang e do restante do país, totalmente devastada no pós-guerra. Aos militares devem ser concedidos quaisquer sejam os seus desejos pois são eles um componente estratégico para os objetivos nacionais do Estado.

Nesta nova sociedade altamente militarizada, o endeusado grande líder controlava até mesmo o pensar e agir políticos de cada um construindo uma figura de forte presença ao viajar pelo país por mais de 150 dias do ano inspecionando comunas agrícolas, fábricas, minas, creches e outros adventos do milagre econômico das primeiras décadas de sua nova Coreia. Nas visitas às escolas as crianças ganhavam uma foto de revelação instantânea e levavam às paredes de suas casas nas quais só eram permitidos retratos do onipresente líder Kim a serem pendurados. Até hoje os norte-coreanos começam e acabam seus dias em casa com uma saudação à imagem do líder.

Não em 2014 mas no ano 103 da era juche é que se vive no país que segue datando sua história desde o nascimento de Kim Il Sung. A obediência doutrinária advinda do confucionismo e o trabalho ideológico ocupam destaque central na legitimação do regime. Muito próximo do que era o processo de escolha entre os herdeiros do trono e treinamento do príncipe na Joseon confuciana, seu filho mais velho Kim Jong Il, no preparatório para assumir o poder quando Il Sung perecesse, esteve à frente do Ministério da Cultura ligado à Secretaria de Ideologia do PTC. O herdeiro promoveu a divinização oficial de seu pai, status em ascensão desde “herói nacional” e “querido líder” a semideus. O local em que nascera em Mangyongdae e onde fora enterrado em Pyongyang vieram a ser transformados em verdadeiros templos de adoração e passeios doutrinários obrigatórios nas instituições de ensino. O legado do fundador da República se perpetua constantemente na mente dos norte-coreanos os quais desde a escola maternal memorizam seus poemas sobre sua vida e compõem os seus próprios versos e desenhos em seu 15

tributo. No ensino fundamental estrelam em peças teatrais sobre o líder e quando nas indústrias decoram longas passagens de sua obra. As mulheres também devem ter em mente trechos em relação à família. A casa do norte-coreano passou a ter estantes com a obre juche e rádios para profetizar suas passagens de manhã em transmissão automática e obrigatória – como alto-falantes orwellianos entre quatro paredes.

“Querido grande líder, por que nos deixaste aqui? Por que o Senhor não nos levou junto?” lamentava na TVCC o apresentador da programação que cobria o cortejo fúnebre de Il Sung em meio aos prantos ensurdecedores em frente à Torre Juche na Praça Kim Il Sung. A construção da crença na causa levou à intransigência de uma fé inabalável. Diante desta nova liturgia não há espaço para outras religiões e as que estavam sendo praticadas antes da divisão do paralelo 38 tampouco são permitidas e portanto foram e são fortemente reprimidas. O artigo 68 da Constituição Socialista da RPDC exprime que “ninguém pode usar da religião como pretexto para trazer forças externas ou prejudicar o Estado e a ordem social” pois os dogmas estrangeiros são senão uma ameaça.

Quando o filho ascende finalmente à governança suprema, a inevitável impotência de igualar-se à figura ideológica do pai faz com que Jong Il evitasse comparações por parte das massas, fundamentado na relação vertical entre pai e filho dentre os cinco pilares de relações sociais confucionistas, sempre a contribuir com a harmonia social asiática: príncipe-súdito, paifilho, irmão mais velho-mais novo e amigo-amigo. A nova sociedade de classes do regime (songbun) tem suas origens nesta estrutura relacional e hierárquica da época de Joseon: os “oficiais acadêmicos” (a nobreza ou yangban), o “povo médio” (técnicos e administradores subordinados à nobreza), os comuns (camponeses, artesãos e mercadores os quais representavam aproximados 75% da população total) e os “desprezados” (estrangeiros e escravos).

Il Song formulou diretrizes para que o Partido regulamentasse a estrutura dos songbuns em guerrilheiros anticolonialistas da pré-revolução e veteranos da guerra, proletariado agrário e operário, intelectuais e abaixo outros 50 grupos qualitativamente decrescentes. Seus descendentes

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herdam o status de seus ancestrais. A partir da década de 60 os oficiais além de atualizarem o status de cada indivíduo também podiam investigá-los, o que permitiu o desenvolvimento de uma grande rede de controle alimentada pelo serviço de inteligência do Partido e por delatores que em troca aspiravam ascender socialmente.

O songbun de um norte-coreano pode ser considerado bom ou ruim. É fácil decair de posição seja por uma visível falta de fervor ideológico, preguiça, incompetência ou por razões mais graves como um casamento com alguém que tenha um songbun ruim, cometendo um crime ou ter grau de parentesco com alguém que cometa uma ofensa ao regime. Risivelmente os que estão no topo da classificação são “tomates”, considerados bom comunistas por serem todos vermelhos. Em seguida as “maçãs”, vermelhas somente na superfície, devem ser ideologicamente melhoradas. Finalmente, para os que são “uvas” não há esperança. Dentre toda a população cerca de 10 a 15% é privilegiada com melhor educação e acesso à Universidade Kim Il Sung, moradia e vestimenta, melhores e mais rações e mais assistência médica. O extrato médio, sem a possibilidade de obter educação de nível superior e carreira profissional, aspira um trabalho no exército e, chamando a atenção do Partido, ser promovido a um posto melhor. Aos 40% que representam a base piramidal restam as vagas em fábricas ou fazendas de trabalho coletivo.

A nova estrutura de classes, assemelhando-se à confuciana na antiga Joseon, resulta em uma razoável imobilidade, estritas relações entre si e a perpetuação do patriarcado. Uma criança elitista vive em uma casa ou apartamento concedido pela unidade de trabalho de seu pai, é criado no bairro em que vivem as crianças dos colegas de trabalho de seu pai, vai à escola com elas, viaja com elas e futuramente passa a trabalhar com elas, ocupando o posto de seu pai. Membros de outras classes, ainda que com mais limitações, têm a mesma experiência e modus vivendi. Sem uma vivência global e exposição até mesmo a outras realidades domésticas, pelo menos duas gerações foram criadas neste sistema e fora dele nada conhecem. É portanto claramente observável que esta reorganização social ligada à xenofobia jucheniana junto ao culto à personalidade dos Kim impõe ampla obediência civil, o que eficazmente garante a coesão do regime e torna inabalável a soberania interna do Estado.

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1.3 Violação dos Direitos Humanos

A República Popular Democrática da Coreia de fato pouco ou nada é democrática. Seu governante, Kim Jung Un, vive encastelado ao passo que, dentre mais de 24 milhões de residentes de seu território, entre cem a trezentos mil tornam-se “desertores” do regime fugindo à China ou à Rússia desde 1953. Só em 2011, 21.400 deles dirigiram-se à Coreia do Sul. Certamente, a fuga para as montanhas sul-coreanas, fortemente vigiadas, minadas e sob postos de mísseis, seria mais perigoso. São não mais que seis os estimados campos de concentração para presos políticos os quais o governo nomeia de “colônias de trabalho”. Este motivo além das questões insurgentes em relação a falta de moradia e alimentação dão justificativa à decisão de colocar-se em risco a própria vida em busca de condições melhores da simples sobrevivência humana.

A fim de perpetuar o sistema regido pelo lema de “socialismo à nossa moda” o regime procurou alavancar as relações de força sobre o “mercado do povo”, levando à prática uma reforma monetária. O pacote de mudanças até mesmo previa a criação de zona econômicas especiais, as quais por falta de administração de Pyongyang quase inteiramente não lograram com exceção de Kaesong e a abertura de novas rotas turísticas. A mudança entretanto levou a resultados inesperados na era Kim Jong Il: a cotação das commodities sofreram inflação, o que prejudicou o planejamento de uma economia planificada e precarizou o acesso às rações de arroz e outros insumos básicos da alimentação coreana. Uma grande crise de fome, conhecida como “Marcha Árdua” passou a assolar todo o interior do país, matando cerca de 2 milhões de pessoas.

O último relatório da Comissão de Investigação sobre Direitos Humanos na República Popular Democrática da Coreia das Nações Unidas entende que no território do Norte ocorrem sistematicamente violações do “direito a comida, tortura e tratamento sub-humano, prisões e 18

detenções arbitrárias, discriminação – em particular na sistêmica negação e violação de direitos humanos básicos e liberdades fundamentais, do direito à liberdade de expressão, do direito à vida e do direito à liberdade de movimentação como também induzidos desaparecimentos à força, incluindo até mesmo o sequestro de cidadãos de outros Estados”.

Presos políticos são sujeitos não somente à reclusão social como, sobretudo, ao trabalho forçado. Sob o nome de kwanliso, os “distritos especiais de controle”, aos quais os subversivos ao sistema são enviados, operam em funcionamento que nada difere dos campos de concentração gulak soviéticos. Divididos entre os que são de curta e longa permanência, os kwanliso são dirigidos sobre rígido controle do Bureau de Guia Agrícola.

O caso mais célebre das prisões de longo prazo é o de Shin Dong Hyuk. Durante os 23 primeiros anos de sua vida o jovem passou todos os seus dias no Campo 14. Filho de um acasalamento forçado entre prisioneiros políticos que ao bater metas de produção no campo eram permitidos acoitar três vezes, Shin viria ao mundo para suprir a demanda por capital humano dentro do sistema de produção do campo. A desnutrição e a grande quantidade de execuções e mortes decorrentes das torturas fazia com que as novas crianças fossem estimadas.

O jovem teve seu irmão e sua mãe publicamente executados e só quando torturado por dias por conta da atitude de seus parentes é que teve o desejo de passar os muros de arame farpado eletrocutantes e fugir também. O mundo além das cercas parecia ser todo igual ao do campo. Os presos que haviam chego dos mais diversos cantos de sujeição à inteligência do Partido no país não podiam falar de suas experiências para os outros presos. Todo tipo de conversa era controlada. Ninguém sabia um do outro, mesmo do porquê estavam ali. A alienação do mundo exterior se esfacelava. Para quem fora sujeitado a vida toda aos mandos dos soldados e oficiais do Bureau, permanentemente privado de todos os direitos devidos aos seres humanos a possibilidade de ir e vir não seria única conquista de Shin que assim que chegasse à China e despistasse os deportadores.

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Sem querer minimizar em nada o horror que representam os campos de prisioneiros nortecoreanos, vale destacar que os Estados Unidos também mantém prisões, as quais são constantemente delatadas em relação à tortura e outras violações legais, a exemplo de Guantánamo, prisão mantida em Cuba. A Assembleia Geral das Nações Unidas portanto se volta majoritariamente aos governos controversos e que não atendem totalmente às condições da lógica do capital, comandada pelos EUA. A cada ano a organização adota resoluções pedindo que a RPDC se atente às violações aos direitos humanos. Sanções são sempre revisitadas. O regime, por sua vez, pouco se volta às iniciativas de cooperação; contrariamente, julga-se vítima de uma conspiração a fim de “humilharem e degradarem seu sistema”. O jornal estatal norte-coreano tece:

“The U.S. is the worst human rights abuser in the world which has neither qualification nor face to talk about the human rights issueThe U.S. is the worst human rights abuser in the world which has neither qualification nor face to talk about the human rights issue. (...)The Korean nation and the world progressives will always remember the U.S. heinous human rights abuses and certainly punish it on behalf of history” (ACNC, 2014).

A organização não-governamental Human Rights Watch entende que o governo dos Kim usou e continua a usar do medo, gerado principalmente por ameaças de detenção, trabalho forçado e execuções públicas, para prevenir dissidências e impor restrições graves à liberdade de informação e trânsito (HUMAN RIGHTS WATCH, 2014). A estatização dos meios de comunicação não só perpetua a temerosidade e virtu dos príncipes Kim como também os legitima e os cultua. Qualquer atitude que por mais remotamente possa ser considerada uma ofensa aos Kim resulta em prisão. Dobrar páginas de publicações em que a figura de um dos líderes está impressa, por exemplo, é ato ilícito e passível de condenação aos campos de concentração.

Diante deste cenário de terror, o pedido de asilo dos desertores como Shin, que passam a fronteira e deixam o mundo a par de suas histórias, normalmente é concedido nos Estados

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Unidos. Na Coreia do Sul o asilo e a naturalização de norte-coreanos é feita automaticamente. Mas infelizmente, as agências de observação de maior relevância tratam dos refugiados como “desertores”, o que legitima também o regime e como ele vê os que decidem cruzar a fronteira e “abandonar a missão heroica da revolução”. “Refugiados” e “asilados” permanecem como condição rara para ser atribuída aos “Shins”.

O papel da Coreia do Norte no sistema internacional vem a ser impresso apenas divulgando as violações dos direitos humanos, que de fato ocorrem infelizmente a mando frio dos oficiais de Estado e que se institucionalizou a ponto de ser perpetuada em nível social mas que não podem ser a figura de exportação única e exclusiva do regime jucheniano. Somado ao exposto, com a ascendência de Kim Jong Un, da terceira geração dos Kim, rumores de que todos os homens teriam que ter o mesmo corte de cabelo “tigela” ou de que Jong Il tinha uma vasta coleção de filmes em DVDs e era não só um cinéfilo mas também um dos maiores compradores de uma marca famosa de conhaque francês tornaram a autocracia “revolucionária” tragicômica. A RPDC ganhou portanto áurea de governo cruel e curiosamente bizarro.

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CAPÌTULO 2 – A Política Externa da RPDC

2.1 A RPDC e o Sistema Internacional

É inquietante a hipótese de que em meio a tantos percalços sociopolíticos o regime nortecoreano se mantenha legítimo graças à força ideológica implantada desde Kim Il Sung. É de forte relevância neste contexto, diante da maneira como o regime instalado se perpetua domesticamente, compreender-se também como este se relaciona com forças externas e, finalmente, de que maneira é percebido no sistema internacional; todos aspectos fundamentalmente interligados.

Ao lado de grandes potências vizinhas e sob forte controle militar e político exercido por parte dos EUA em toda a região, a península coreana se vê como uma nação dividida por um conflito sem resolução ainda que após o fim da URSS e consequentemente da Guerra Fria. Diante de tais aspectos coercitivos, a política externa das duas Coreias é ainda orientada pelas consequências do embate na região e portanto exerce um papel de grande relevância no sistema internacional.

Do lado do Norte, em face da negação ao outro e suas influências notavelmente xenofóbicas diante de uma “raça pura e virtuosa” como a dos coreanos (MYERS, 2011), a política externa kimilsungista é conduzida pelo que enfatiza posteriormente Jong Il em:

“In order to develop socialist national culture on a sound basis, we must thoroughly prevent imperialist cultural penetration and, at the same time, reject the tendency to return to the past and nihilist inclination with regard to the heritage of national culture, inherit and develop its fine traditions, and critically

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adopt progressive elements of foreign culture, which are congenial to our people's sentiments” (KIM; JONG IL, 1982, p. 41).

Nenhum contato com o exterior é bem-visto nem sequer permitido, o que trouxe por muito tempo um verdadeiro isolamento para o regime. A visão da diplomacia da RPDC é pragmática, histórica, nacionalista e fortemente ideológica. O artigo 17 da Constituição Socialista da RPDC manifesta a “independência” como um dos “ideais básicos da política externa” do Estado e de suas “ações no exterior”. O Norte só estabelece “relações diplomáticas, econômicas e culturais” com outros países exclusivamente na condição de que se construa a igualdade e o “respeito mútuo” e não haja “interferência nas questões de cada um”. O Ocidente certamente pouco se enquadra nas negociações simétricas e não-impositivas requeridas.

Hoje os esforços dos representantes da ONU se concentram em conceder aos quatro quilômetros de mata de intensa fauna da beligerante tensão da DMZ o título de Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO. Como medida de peace building na península, com o espaço cedido aos técnicos da UNESCO e outros atores do regime ambiental incita a gradual desmilitarização da zona que, apesar do título de que recebe hoje, concentra incisiva presença da tríplice de forças RPDC- RC-EUA remanescente.

Alega-se que a DMZ está a uma hora e meia via terra de distância de Seul e a duas horas e meia de Pyongyang. Do lado norte-coreano não há nenhuma triagem. Entretanto, sobre os vários monumentos aos arredores da linha de divisa estão plantadas diversas minas a fim de que, no caso de uma suposta invasão, uma vez tombados sirvam de barreiras para tanques inimigos. Por instância, do lado sul-coreano, passam-se por sete checkpoints até que se chegue à zona. A incisiva militarização abaixo do paralelo tem seus motivos. A visão maniqueísta da diplomacia de Bush filho atribuía após os ataques de 11 de Setembro à RPDC a figura de “um regime que se mune de mísseis e armas de destruição de massa às custas da fome de seu povo”, ou por assim dizer que “um Estado como este e seus aliados terroristas constituem o Eixo do Mal, se armando para ameaçar a paz mundial”. Havia a necessidade de fazê-la sentir uma “mão mais pesada”. Decorrentes deste duro peso – entenda-se hard power, ou diplomacia coercitiva e sanções 23

econômicas as quais pretendem sempre coagir e intimidar –, 28.500 soldados estadunidenses estão mobilizados no Sul ainda hoje para auxílio ao serviço de inteligência sul-coreana e à patrulha da zona desmilitarizada. Presença esta desde os remotos tempos de guerra civil que se unirá a outras 800 tropas americanas futuramente, declarou o Secretário de Estado norteamericano John Kerry.

Tal medida se dá como resposta receosa ao programa nuclear dos Kim, um grande desafio da segurança no nordeste asiático. A armamentização da Coreia do Norte pode ser datada desde o escalonamento do songun kimilsungista na década de 60, quando foi feito o pedido à URSS na ajuda de desenvolver as bombas. A União, por sua vez, concedeu o envio de cientistas para treinamento local no que seria um programa de energia nuclear pacífico. Contudo, os testes feitos na segunda e terceira geração do regime bem comprovam que há a capacidade de produção de armas de destruição em massa no Estado jucheniano. O então criado Centro Científico de Pesquisa Nuclear de Yongbyon, a 50 km a norte da capital, viria a ser um dos motivos de maior desavenças diplomáticas na região. As ameaças de atingir Seul, Tóquio e as ilhas dos EUA no Pacífico são constantes.

Contra o imperialismo do hegemon em um pós-Guerra Fria altamente unipolarizado, os EUA veem a RPDC como um “fora-da-lei” internacional. As atividades de Pyongyang no que concerne a proliferação nuclear, o desenvolvimento e a venda de tecnologias bélica, o tráfico de narcóticos e câmbio ilegal, a contravenção legal humana e a ameaça militar aos aliados na região impõem um real desafio para Washington. A política mais dura de contenção sempre foi a preferência do realismo reinante no Departamento de Estado. Portanto o massivo controle militar, mesmo durante o apaziguamento do conflito, se deu não apenas no intuito de observar como também de provocar o regime.

Hoje atracado em Pyongyang para visitação e parte da doutrinação ideológica, o navio de coleta de dados de inteligência USS Pueblo fora capturado em 1968 na costa do Norte; no ano seguinte um avião de reconhecimento aéreo dos EUA também fora tombado. Entre as duas forças

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aliadas no sul, a insistência norte-americana para a realização do anual treinamento militar adjunto “Team Spirit” de 1986 foi motivo do rompimento das relações Norte-Sul após um curioso momento de ajuda humanitária do Norte enviada ao Sul, prejudicado então por enchentes – a economia de Il Sung até décadas atrás era mais robusta do que a de Syngman Rhee. Mesmo firmando um tratado de não-proliferação nuclear em 1994 acordando na desnuclearização da península no que levaria a RPDC a congelar, colocar sob observação internacional e desmantelar seu programa, as “hostilidades” (ACNC, 2003) causadas por Washington – sobretudo as do gabinete de Bush filho – fizeram com que em 2003 Pyongyang se retratasse do acordo e expulsasse os observadores da Agência Internacional de Energia Atômica.

Vetar as sanções infligidas sobre a economia de Kim Jong Un no Conselho de Segurança da ONU não é mais sustentável. Mesmo que a China não reconheça oficialmente a RPDC como aliada, uma nova política externa por parte de Beijing torna-se necessária para manter a península em sua órbita de atuação política, reconhecendo-a como um espaço de projeção de seus interesses. Sediado então pela própria China, um novo fórum de negociação para a questão nuclear, o Diálogo a Seis, fora rapidamente estabelecido também entre Coreias, EUA, Rússia e Japão. O foro todavia, repetindo a mesma diplomacia desatualizada, não teve adesão de Jong Un. Como George Kennan dizia a Washington em seu famoso Telegrama Longo nos primórdios da Guerra Fria, os americanos deveriam “formular e promover às outras nações uma visão de mundo mais positiva e construtiva” que gostariam de ver do que a que promoveram no passado. “Não é o suficiente compelir povos a desenvolverem processos políticos similares aos nossos próprios [dos americanos]”.

O governo norte-coreano por sua vez se vê diante da preocupação real de que o regime poderia se enfraquecer ou até mesmo ir a colapso sem o apoio da China, seu principal parceiro de importação de recursos energéticos e insumos industriais, buscando novo asilo político. Por conseguinte Kim Jong Un congratulou a rainha britânica por seu octogésimo oitavo aniversário e o regime de Bashar al Assad na Síria por sua reeleição, de acordo com o jornal estatal ACNC. Bashar em resposta declarou que os dois povos são “camaradas de exercício militar e amigos próximos lutando contra os movimentos de forças hostis”, também em divulgação na mídia dos 25

Kim. No mesmo ano, Assad também havia parabenizado o falecido Il Sung, que “goza de imortalidade”, em sua data de aniversário. A aproximação do regime sírio pode estar ligada à aproximação ideológica centrada na figura de um estadista autoritário mas que em constante declínio e em meio a uma dura e longa guerra civil pouco serviria de real apoio a Jong Un. A única prosperidade mais visível na aliança é a venda de armas e tecnologia de defesa para o regime alauita, como também se fez para Líbia, Irã, Síria e Egito. Esta ação é de continuidade da diplomacia, como estratégia compensatória do nordpolitik, do Movimento dos Não-Alinhados.

A burocracia de Estado porém não é coesa e grupo do tio de Jong Un, Jang Song Taek, estava crescendo e na contramão do grupo de Jong Un. Diz-se que as negociações às escuras com a China fizeram Jong Un fuzilar o marido da irmã de seu pai, considerado líder-número dois no regime e possível interino no caso o PTC visse Jong Un ser muito novo para ocupar a posição de Jong Il. Recentes ajustes estruturais na elite do poder como este estiveram visíveis desde que após a queda do possível opositor Ri Yong Ho, chefe do Exército Popular da Coreia, em Julho de 2013.

Esta nova estrutura de poder, criada para legitimar o caçula, institucionaliza no PTC o sistema autoritário de decisão política centrado na figura do terceiro Kim e rapidamente assimilar projetos de oposição interna depondo adversários e os repondo por novas forças aliadas. Execuções públicas de facções contrárias são massivamente conduzidas para que haja um Estado de terror e temor pelo novo líder. Conduzindo também inspeções em usinas e testes nucleares e de mísseis força o novo comandante de Estado é aliado à figura songunista de seu pai.

De fato, a figura do novo Kim pouco era conhecida. Visto como pouco atuante na revolução e mais intelectualizada, devido à inexperiência no Partido por conta de seu intercâmbio na Suíça, pensava-se que um dos irmãos mais velhos seriam apontados ao trono. O novo Estado portanto incorpora símbolos de ambição e juventude para que as falhas da terceira e precoce geração no poder sejam convertidas em virtude. Emular a persona benevolente de seu avô junto ao aumento na quantidade das rações também foram claras medidas para torná-lo ainda mais

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carismático.

O que depreende-se é que a relação marxista entre latifundiários, burguesia, pequena burguesia, proletariado, lumpenproletariado e excluídos pouco difere da do songbun. A conscientização para a luta de classes só não foi além da estrutura anterior. As “uvas” ainda não estão conscientes de que para elas pode existir uma revolução também. Depôs-se um regime em que havia uma classe dominante para impor-se outro em que também o há. Junto à questão do nacionalismo racial, originária do fascismo japonês, B. Myers entende que no espectro esquerdadireita a RPDC está assim mais posicionada na direita. Estas questões “se decentemente compreendidas, não apenas ajudarão o Ocidente a entender a lealdade demonstrada à RPDC por seus cidadãos cronicamente empobrecidos como também a entender o motivo pelo qual a política do Ocidente de buscar soluções no estilo do final da Guerra Fria para o problema nuclear está fadada a falhar” (MYERS, 2011). Não só esta política desatualizada fez com que todas as tentativas de aproximação diplomática e desnuclearização sempre falhassem como também fortaleceu o isolamento e, mais uma vez, a coesão interna do regime dos Kim.

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2.2 A RPDC e os “Irmãos do Sul”: propostas de negociação e unificação

Enclausurada entre grandes potências, como seus vizinhos Rússia, China e Japão quanto pela projeção de poder norte-americana na região, a Coreia do Norte se vê encurralada também diante de seus “irmãos do sul”. Após a divisa do paralelo 38, na instância de inferência política norte-americana emerge localmente o aristocrata Lee Seung Man. Sua política externa é orientada estritamente pela atuação dos EUA na região. Durante os primórdios da era Kim Il Sung, a Coreia do Sul, a qual fora militarmente ocupada por tropas estadunidenses que até hoje permanecem na península, teve também sua produção voltada para abastecer as indústrias japonesas que detinham domínio econômico sobre o território. O processo de expansão para a periferia capitalista asiática ficou conhecido por “Revoada dos Gansos”. Por intermédio deste período de ocupação, no que se entende por learn by doing o Sul deteve apropriação do saber técnico para voltar-se à industrialização própria. Esta foi a era de ouro das chaebols, conglomerados oligárquicos geralmente pertencentes a uma família.

Na década de noventa, a crise asiática a qual os sul-coreanos se referem como “Crise do FMI” por terem recorrido a um empréstimo do Fundo Monetário Internacional e se submetido ao programa de ajustamento da organização trouxe graves consequência para a independência da econômica da RC. As imposições compreendiam isenção tributária sobre novos investimentos estrangeiros por cinco anos e tarifário para a importação de insumos. Apesar da fuga de capital o doloroso processo insere os sul-coreanos nas cadeias globais de fornecimento. A República da Coreia vê sua economia ilustrada na mídia internacional ao ser considerada como parte integrante do grupo dos chamados “novos tigres asiáticos”. Atualmente produtos de conglomerados como LG, Samsung, Hyundai e Lotte figuram em prateleiras e em anúncios por todo o mundo.

Nesta mesma época a “Política do Sol”, nome dado à política sul-coreana para a Coreia do 28

Norte de 1998 até 2008 articulada pelo Presidente sul-coreano Kim Dae Jung, permite maiores contatos políticos e culturais entre as duas Coreias. A política consistia em “não tolerar provocações armadas” – possivelmente para que a extrema-direita sul-coreana e os EUA não a boicotassem – mas também não tentar absorver o Norte por nenhum método. A antiga proposta falhava ao gerar um abismo entre Pyongyang, cronicamente pauperizada, e Seoul, em ascensão econômica. A diplomacia sul-coreana do nordpolitik nos anos 80 e início dos 90 apontava para o estreitamento com Moscow, Beijing e o Leste Europeu, o que o PTC considerou como “traição”. Para os norte-coreanos restava o estranhamento: quem seriam os sul-coreanos a imporem o esfacelamento da heroica missão nacionalista juche e a absorção ao Estado inimigo diante de um simples viés de desvantagem econômica? A nova abordagem, mais que isso, buscava “ativamente” por “meios de cooperação”, cuja empreitada levou a um acréscimo de US$ 641.7 milhões na balança 2001 a 2002.

Desta tímida interação nasceu a zona industrial de Kaesong em 2004, principal porta de entrada de reservas estrangeiras no Norte. O pólo opera como região administrativa especial no Norte, onde mais de cem empresas do Sul podem usufruir da força de trabalho estatizada e de baixo custo do Norte. O salário de quase US$150 de um norte-coreano dali, confiscado em partes pelo governo, representa um quinto do salário-mínimo sul-coreano. De acordo com a agência France Press, o faturamento desde o início das primeiras instalações chega a cerca de US$ 1,98 bilhões. Não se fazem, porém, negócios com parceiros cuja soberania não se reconhece. A RC portanto não só explora uma força de trabalho de alta oferta, baixo poder de barganha e sujeita a violações explícitas dos direitos humanos como também legitima o regime por se beneficiar dele, reconhecendo sua existência, e o financia.

Ambos os Estados concordaram em 1976 com o fato de que a unificação é um objetivo comum mas sempre discordaram substancialmente em como proceder metodologicamente. Pyongyang legitimamente sempre reforçou a necessidade de discutir a questão como um problema coreano interno sem interferências estrangeiras. De fato, uma península colonial prestes a se emancipar e ter um governo de centro-esquerda autônomo no pós-segunda-guerra incomodou o Pentágono e dali surgiu a divisão. Do Pentágono porém em quase setenta anos não 29

surgiu uma solução para o que parece ser irreversível.

Talvez prevendo possíveis alterações geopolíticas, os Kim só querem a “união com o mundo (...) na defesa pública dos povos que se opõem a todas as formas de agressão e interferência e lutam pela independência de seu país e a emancipação de classe” (COREIA, 1998). A RC, por sua vez pouco autônoma militarmente e fiel aliada política aos EUA, não se enquadra nas exigências. Vista como encorajamento de um novo distúrbio a fim de fragilizar o vizinho e oportunidade para unificar, ameaças são recorrentes. Com o incidente do naufrágio do navio da marinha sul-coreana Cheonan em 2010, no qual a embarcação com mais de 140 homens fora supostamente atacada próxima à fronteira por um míssil submarino, sanções internacionais foram impostas ao regime dos Kim e sua economia deteriorou-se gradualmente.

Em Setembro de 2010, ao passo que o Congresso formalizava o status hereditário de Kim Jong Un, o filho mais novo do segundo líder, subsequentemente houve a distensão das relações intercoreanas. Novos encontros de famílias separadas pela divisão do paralelo 38 foram organizados. Quando Jong Il perece de um súbito ataque cardíaco, o recurso destinado às reformas econômicas em curso passou automaticamente à construção de novas estátuas e monumentos de glorificação e eternização do “querido líder”, o que pauperiza ainda mais a existência dos que são pertencentes aos extratos médios e baixos da sociedade norte-coreana e parecesse desestabilizar qualquer prioridade dada a possíveis ameaças. Contudo, os ataques de teste de mísseis à ilha de Yonpyong do território ao sul do paralelo perturbaram a calmaria a qual pensava-se seguir rumo durante a fase de transição do regime hereditário à sua terceira geração.

É esta segunda transição que pode alterar o lugar da Coreia do Norte no cenário internacional. De que forma a chegada de um herdeiro inexperiente, e com acesso irrestrito aos recursos beligerantes do Estado pode impactar o Brasil em face do Sistema Internacional?

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2.3 América Latina e Brasil: sancionar ou negociar?

Cuba, como de praxe entre os não-alinhados, desde a década de sessenta esteve em permanente contato diplomático com a RPDC. Os dois Estados mantém embaixadas no território de cada um, ainda que tivesse tido incidentemente um de seus embaixadores, sua esposa e uma delegação de médicos cubanos nas ruas de Pyongyang sofrendo violências verbais dado ao nacionalismo racial fortemente construído no ideário das massas populares. Em relação à estabilidade política na península Fidel Castro, que ainda no presente exerce liderança sobre a ilha caribenha, aponta que:

“Si allí estalla una guerra, los pueblos de ambas partes de la Península serán terriblemente sacrificados, sin beneficio para ninguno de ellos. La República Popular Democrática de Corea siempre fue amistosa con Cuba, como Cuba lo ha sido siempre y lo seguirá siendo con ella. Ahora que ha demostrado sus avances técnicos y científicos, le recordamos sus deberes con los países que han sido sus grandes amigos, y no sería justo olvidar que tal guerra afectaría de modo especial a más del 70 % de la población del planeta”. (FIDEL; CASTRO, 2013)

Em contramão aos ataques do grupo hegemônico encabeçado por EUA e União Europeia à ditadura jucheniana, o Ministério das Relações Exteriores estrategicamente tornou-se um dos únicos 25 Estados a terem sua representação consular em Pyongyang, quatro anos após a embaixada norte-coreana ser inaugurada em Brasília. A medida acompanha justamente a Política do Sol de Kim Dae Jung. Em Janeiro de 2001, durante uma visita residencial do presidente Fernando Henrique Cardoso à Coreia do Sul em Pammunjom, posto de defesa bilateral na DMZ onde o armistício de 1953, conversas com a Coreia do Norte foram estabelecidas para que relações diplomáticas entre os dois Estados pudessem ser praticadas. Em março os chefes de missão na ONU oficializam o acordo mas é só em 2005 que o primeiro embaixador da RPDC se 31

instala no Brasil.

A temerosidade em relação à segunda transição hereditária do regime faz com que a comunidade internacional fique em alerta. A balança de poder pode ser gravemente alterada na região caso o líder jovem e inexperiente em ascensão faça inesperadamente uso de seu arsenal bélico. De que forma isso pode impactar o Brasil? A crítica feita à política externa durante o mandato de Luís Inácio Lula da Silva é em face da questão de colocar uma embaixada munido de bombas nucleares e mísseis. Não só isso, o relacionamento com um Estado de aspirações regimentares stalinistas não fazia parte da conduta da política externa anterior.

O Embaixador Roberto Colin, segundo e atual chefe do corpo consular na RPDC responde à contenda exprimindo não acreditar que a Coreia do Norte fosse capaz de pôr em prática de fato a ostensiva prometida em constantes ameaças. “Só o líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, tem autoridade para declarar uma guerra. Nem ele e nem os demais membros da liderança daqui [a RPDC], a maioria militares, nunca me pareceram irracionais, ilógicos e muitos menos suicidas”. Apesar de o corpo diplomático esperar sempre não ter que jamais usá-lo, a Embaixada Brasileira em Pyongyang, entretanto, tem seu próprio abrigo subterrâneo (SILVA, 2013). “Não existe um plano de evacuação definido, mas em situação de emergência, a embaixada seria evacuada para Dandong, China, na fronteira com a Coreia do Norte, que está a quatro horas daqui por via terrestre” (GIRALDI, 2013).

A alegação do Itamaraty para conceder uma justificativa a tal ariscada manobra frente ao equilíbrio da balança de poder na região de seu maior parceiro comercial, a China, incide na preocupação do Ministério em saber em antemão o que se passa no regime mais fechado do mundo. Contrariamente às críticas, esta pode ser justamente uma medida para agradar a China. Mesmo que o Norte seja um vizinho quase sempre inconveniente, a visibilidade da instalação da embaixada em sua capital pode vir a ser de agrado do dragão chinês. Porém, oferecer auxílio à China diante das conflituosas relações de poder no Conselho de Segurança pode não ser entretanto a porta de entrada para o processo de conquista de uma cadeira permanente a qual o

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Brasil tanto almeja.

O acordo comercial firmado em 2006 entre o Ministério de Relações Exteriores do Brasil teve baixos resultados todavia. O país exportou apenas US$ 16.459 milhões em 2013, o que representa aproximadamente ínfimos 0,3% de toda a exportação brasileira. Para a Coreia, entretanto, os fluxos com o Brasil em 2008 teriam representado cerca de 4% de todo o comércio no país. O legado da irreverente medida de se aproximar dos Kim, certamente não é econômico.

Sem que haja alarde do sistema internacional, o Itamaraty alega que “o Brasil tem ajustado sua interlocução com a Coreia do Norte de acordo com o comportamento do país asiático no campo internacional, mantendo diálogo fluido nos momentos de normalidade e adotando posição cautelosa quando se acirram as relações da Coreia do Norte com a sociedade internacional”. Nessa linha, houve emissão de “notas à imprensa condenatórias ao teste nuclear e de lançamento de míssil de longo alcance, ambos em 2006”. O Brasil têve sua política de nãoalinhamento com os EUA até recentemente no que tangia políticas de concepção de áreas de livre comércio, ainda que num governo neoliberal. Mesmo em um panorama um pouco alterado dos anos 2000 até o presente, os ganhos desta nova política com a República Popular Democrática da Coreia serão políticos. O Itamaraty pode tornar-se um dos atores no expoente das novas relações do regime com Estados capitalistas não-beligerantes e futuramente um player de grande relevância nas relações de poder da região.

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CONCLUSÃO A visão da imprensa de massa de fato destoa de relatos recentes. Quando o primeiro embaixador do Brasil na RRDC chegou ao posto em 2009, ele teve de entregar o seu telefone celular no aeroporto. Até então era possível somente que se atravessasse a fronteira Norte adentro mediante a negativa de possuir “armas, munição, explosivos e dispositivos letais; drogas, entorpecentes, narcóticos e veneno; GPS ou navegadores; telefones móveis e outros meios de comunicação; riquezas históricas e culturais e obras de arte; e, por fim, publicações de quaisquer tipos”.

Alguns anos depois, os agentes alfandegários pouco se dariam ao trabalho de revistar as malas de alguns jornalistas e observadores internacionais; é possível que se entre no país com vários aparelhos eletrônicos, inclusive um iPhone. Os estrangeiros podem comprar e usar cartões SIM, e muitos norte-coreanos podem ser vistos conversando através de seus celulares em Pyongyang, embora estrangeiros e residentes ainda precisem usar redes separadas e não possam fazer ligações entre si. Atualmente, há dois milhões de usuários de celulares no país (STUENKEL, 2013).

Mas esta seria uma abertura ou uma adaptação do regime sem que se concedam direitos básicos aos norte-coreanos? O que de fato serve para a conquista das liberdades humanas? O kimilsungismo como o conhecemos no momento iria se transformar ou acabar? Para a China, o principal parceiro comercial e aliado de Pyongyang, o ideal seria que seu vizinho abarcasse o seu modelo político, econômico e social. A potência regional hipoteticamente reforçaria o envio de suplementos energéticos, alimentícios e financeiros e na contramão a abertura gradual, com a criação de zonas econômicas especiais – as quais já estão em andamento.

No outro extremo, a hipótese mais sombria seria a de falência do regime e uma imediata “macro-desestabilização dos seus fundamentos sociais (e consequente emigração em massa para o território chinês), e posterior reconstrução sob o modelo de uma democracia com economia de 34

mercado e reunificação com o Sul, consagrando-se a construção de uma Península Coreana unificada sob os auspícios do Ocidente” (JUNIOR, 2009).

As possibilidades de desfecho para o empasse na península coreana são as mais diversas, mas todas parecem ser um processo sociopolítico e econômico de longo prazo para sua condução e finalização. O Partido pode admitir que sua economia é falha diante dos desafios apresentados pela nova ordem mundial mas o Rodong Sinmun, jornal do PTC, deixa claro que remediá-la com a abertura não seria a solução: "As 'reformas' e a 'abertura' tão propaladas pelos imperialistas e reacionários não são 'um remédio' para a RPDC enfrentar suas dificuldades econômicas ou revitalizar sua economia".

De fato, a acusação do regime de que os EUA e sua trupe de aliados são arbitrários e “de punhos cerrados” pois “não querem mudar seu sistema mas trabalham duro para pressionar os outros a mudarem seus sistemas em algo ditados por eles”. As poucas e falhas tentativas de distensão são ligadas ao fato de que os EUA veem o mundo na ótica do capital sem um distanciamento na observação antropológica do outro e portanto sem um compromisso em compreender os processos históricos e políticos que conduziram e ainda conduzem a conflitos regionais.

A seu mando, as organizações internacionais do pós-guerra como o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio e o FMI e a própria ONU conduzem políticas de conversão forçada aos valores da potência hegemônica. Por meio de empréstimos abusivos mediante a concessões de isenção fiscal, as organizações credoras institucionalizam a fuga do capital estrangeiro, que expropriando ainda mais os meios sociais de produção promovem o aniquilamento da industrialização local e não medem escrúpulos em apoiar financeiramente ditaduras políticas – sejam elas neoliberais. São elas também em relação ao regime ambiental predatórias ao pregarem uma política produtivista de desenvolvimento. Junto às intervenções militares dos capacetes azuis como foi na península coreana na década de cinquenta, tais medidas ferem diretamente a soberania dos Estados pertencentes à periferia global.

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Todos estes são atores cúmplices na imposição de uma agenda radicalmente oposta à satisfação dos direitos humanos fundamentais. A atual ditadura de Kim Jong Un não obstante também não deixa de perversamente feri-los e entende, por exemplo, que a aceitação da ONU em estabelecer um gabinete observatório dos direitos humanos em Seul é uma “provocação inaceitável”. Para tanto a RPDC não tem legitimidade e reconhecimento do sistema internacional. Mas esta não é a única razão para tal. Como dito, os esforços do capitalismo vão no sentido de coagir sistemas adversos. Por consequência a única forma de o juche se sustentar e perpetuar a dinastia Kim no poder é pela política de defesa e ameaça como resistência. A unificação pode de fato nunca ocorrer. Porém o quê e quem sucede Kim Jong Un, a quem podemos atribuir a condição de líder enfraquecido por ainda não ter herdeiros e pulverizar outras figuras que já não considera mais como braço-direito mas que continua fortalecido com o programa nuclear da família, os EUA e o sistema internacional não fazem questão de prever ou interferir. Diante desta perspectiva, por fim, o Brasil sendo um dos poucos que oferecem apoio diplomático a Pyongyang e um dos vinte e cinco países que fincaram suas reapresentações de Estado ali, poderia ele ser um fator catalisador de estabilização peninsular e possível resolução de conflito.

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