A \"porta\" como veículo de passagem: a questão do \"limiar\" na concepção egípcia de morte (a Tumba de Sennedjem e o Livro Egípcio dos Mortos)

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Descrição do Produto

DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR (Organizador)

ANAIS DO I COLÓQUIO INTERNACIONAL HISTÓRIA E ESPAÇOS Espaços inventados: história e historiografia

NATAL 2015 CCHLA-UFRN

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE Reitor: Ângela Maria Paiva Cruz

Comissão Organizadora

Vice-Reitor: Maria de Fátima Freire de Melo

Carmen Margarida Oliveira Alveal

Ximenes

Durval Muniz de Albuquerque Júnior Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior Raimundo Pereira Alencar Arrais

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Diretor: Herculano Ricardo Campos Vice-diretor: Maria das Graças Soares Rodrigues

Comissão Científica Carlos Eduardo Pinto de Pinto (PUC-RJ)

Departamento de História

Fábio Ricardo Silva Beserra (UERN)

Chefe: Roberto Airon Silva

Fátima Martins Lopes (UFRN)

Vice-chefe: Lígio José de Oliveira Maia

Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior (UFRN)

Programa de Pós Graduação em História

Francisco de Assis de Souza Nascimento (UFPI)

Coordenador: Francisco das Chagas Fernandes

Francisco Fabiano de Freitas Mendes (UERN)

Santiago Júnior

Lindercy Francisco Tomé de Souza Lins (UERN)

Vice-coordenador: Helder do Nascimento Viana

Nilsângela Cardoso Lima (UFPI)

Elaboração Lehi Aguiar Bezerra

Divisão de Serviços Técnicos Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Colóquio Internacional História e Espaços: espaços inventados: história e historiografia (1. : 2014 : Natal, RN) I Colóquio Internacional História e Espaços: espaços inventados: história e historiografia, de 1 a 5 de dezembro de 2014, Natal, Brasil : Anais... /Durval Muniz de Albuquerque Júnior (org.), Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior (coord.). – Natal, RN: UFRN/CCHL, 2015. 675 p.: il. ISBN 978-85-61693-12-1 1. História – Congressos. 2. Historiografia – Congressos. 3. Recortes espaciais – Congressos. I. Albuquerque Júnior, Durval Muniz de. II. Santiago Júnior, Francisco das Chagas Fernandes. III. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. IV. Centro de Ciências Humanas Letras e Arte. V. Título. RN/UF/BCZM

CDU 82-94

APRESENTAÇÃO Os Anais do I Colóquio Internacional História e Espaços, evento promovido pelo Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em parceria com o projeto PRONEX/FAPERN/CNPq A Invenção da Terra Potiguar: instituições, intelectuais e agentes políticos na produção da espacialidade e da identidade norte-rio-grandense (1889-1960), realizado na cidade do Natal, no período de 01 a 05 de dezembro de 2014, reúnem os trabalhos apresentados nas sessões de comunicação, disponibilizando, assim, boa parte do material que foi motivo de discussão ao longo dos dias do evento. O evento buscou reunir autores nacionais e internacionais que trataram, em algum momento de sua produção acadêmica, da emergência e elaboração histórica de um dado recorte espacial, de uma dada identidade espacial, seja ela nacional, regional ou local. Ele permitiu a discussão dos próprios procedimentos historiográficos, do tipo de documentação, das diferentes abordagens e metodologias que foram utilizadas na produção desses trabalhos. O Colóquio objetivou não apenas reunir um verdadeiro painel dos trabalhos feitos em torno da construção histórica de dados recortes espaciais, proporcionando a reunião deles e a confrontação entre eles, mas também proporcionou a discussão dos distintos caminhos historiográficos apontados por esses trabalhos. Os Anais, agora disponibilizados, materializam essas intenções, à medida que reúne trabalhos de ampla diversidade temática, teórica e metodológica. Eles advêm tanto de pesquisas ainda em andamento, como de pesquisas já concluídas. Resultado de teses de doutorado e dissertações de mestrado concluídas ou por concluir, os textos aqui reunidos testemunham a diversidade dos campos de conhecimento e das instituições que vêm se interessando por dar um tratamento histórico as identidades e recortes espaciais. Os espaços são tratados aqui em suas diferentes dimensões: econômica, política, jurídica, simbólica, narrativa, estética, poética. Para quem pesquisa ou se interessa pelas questões espaciais, essa publicação, com certeza, trará contribuições importantes. A realização do evento e essa publicação foi possível pelo apoio e recursos recebidos da Capes, da Fapern, do CNPq, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a quem agradecemos. Durval Muniz de Albuquerque Júnior Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior (Coordenadores Gerais do Evento)

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A  “PORTA”  COMO  VEÍCULO  DE  PASSAGEM: a  questão  do  “limiar”  na  concepção  egípcia  de  morte (A Tumba de Sennedjem e o Livro Egípcio dos Mortos) Keidy Narelly Costa Matias 731 Orientador:Profª Dra. Márcia Severina Vasques.

INTRODUÇÃO A religião egípcia possuía dentre os seus preceitos uma característica em especial: era preciso reafirmar-se vivo. Em outras palavras, o morto não estava realmente morto – e daí ser o mundo egípcio dos mortos o mais acalentador de toda a Antiguidade. Continuar vivendo em outro mundo semelhante ao Egito e desprovido de perigos era o desejo daquele povo. No pós-vida egípcio o homem se associava ao deus Osíris e passava a habitar o paraíso do deus, também morto. Estar morto no Egito representava ter possibilidades de conhecer os deuses, de se alimentar da melhor maneira, de se movimentar etc. Além disso, depois da morte, o homem egípcio não precisava trabalhar, dado que essa tarefa era repassada aos shabtis732. Em resumo, estar morto era permanecer vivo. Contudo, os mortos permaneciam vivos depois do enterramento somente se fossem declarados  “justos  de  voz”,  na  sala  do  Tribunal  presidido  por  Osíris.  Admoestamos  que  a  sala   do Tribunal ao qual nos referimos faz parte do contexto do Novo Império (1550-1070 a.C.), e 731

PPGH/UFRN; MAAT/UFRN; Archai/UnB. Mestranda em História e Espaços. E-mail: [email protected] 732 732 Estatuetas com caráter mágico que faziam o trabalho braçal no outro mundo tão logo o morto lhes ordenasse, sobretudo através da pronúncia do Cap. VI do Livro dos Mortos. Cíntia Gama (2008) admoesta-nos que os shabtis evoluíram estilisticamente desde o Médio Império (2040-1640 a.C.) ao Período Ptolomaico (305-31 a.C.). Para mais detalhes, pede-se consultar: GAMA, Cíntia A. Os servidores funerários da coleção egípcia do Museu Nacional: catálogo e interpretação. Dissertação (Mestrado em Arqueologia) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008, p. 65-67. Disponível em: . Acesso em: 24 out. 2014.

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aparece no capítulo 30b do Livro dos Mortos. Somente depois de justificado era que o morto se habilitava a entrar nos domínios do deus morto, o Duat. Para ter essas benesses era necessário ao homem vivo se preparar para a morte: adquirir um Livro dos Mortos, um sarcófago, uma tumba etc. A passagem para o mundo dos mortos era realizada tanto na tumba quanto no Tribunal de Osíris: sem o enterramento o morto não estava habilitado a adentrar neste Outro mundo. Dessa forma, entrar na tumba era entrar no mundo dos mortos, mas permanecer no Duat era algo que dependia ainda da aprovação do morto pelos deuses. A partir do exposto, apontamos que a entrada na câmara sepulcral era a porta de passagem rumo a um ambiente material (a própria tumba), e a aprovação no Tribunal de Osíris era a porta de acesso a um ambiente imaterial, da esfera da consciência coletiva do povo egípcio (o Duat). Em outras palavras, propomos discorrer sobre a simbologia da “porta”   como   um   limite   entre   este   e   o   Outro   mundo   no   Egito   Antigo. Pensamos que a “porta”  pode  ser  vista  tanto  como  fronteira  física  quanto  simbólica  – e nesses dois aspectos aparece o caráter funcional da religião egípcia. Portanto, sugerimos o estudo de dois tipos de espaços, ambos de transição, a saber, o espaço da tumba, através da tumba de Sennedjem, e o espaço do Além, através do Capítulo 30b do Livro dos Mortos. Para estudarmos o espaço da Tumba de Sennedjem nós recorremos à tese de Marta Sanjaume,   “La   Tomba   de   Sennedjem   a   Deir-el-Medina   TT1”,   defendida   na   “Universitat   de   Barcelona”  em   2006;;   tal  escolha  foi  ocasionada   pelo   amplo  estudo  da  Tumba  Tebana  nº  01   realizado pela catalã e, sobretudo, ao catálogo por ela organizado – que nos permite entrar em contato com a fonte arqueológica. No que diz respeito ao Livro dos Mortos de Ani (c. 1275 a.C.) nos utilizaremos do Capítulo 30b, a mais conhecida cena do Livro. Optamos por trabalhar com apenas um capítulo por acreditarmos que essa cena (a pesagem do coração do morto contra a pluma da deusa Maat) é a primeira ação do morto na outra vida; ela própria é a desencadeadora da vida ou, em esfera contrária, da morte definitiva do homem no cosmos.

OS RITOS DE PASSAGEM Os ritos de passagem habitam inúmeras esferas da vida do homem na história; em nossa forma de concebê-los, os ritos de passagem possuem alguma carga de religiosidade ou de algo próprio do que é sagrado. Em outras palavras, um rito requer uma repetição que ao ser desfeita deixa de ser rito; não há espaço para a quebra em um rito porque isso acarreta na

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não realização de algo extremamente importante, seja ainda em vida ou na passagem do homem ao pós-vida. O rito necessariamente requer um grau de importância da ação a ser mantida ou das ações ainda desejadas. Fazer algo ritualisticamente não é o mesmo que fazer algo cotidianamente, dado que a vida cotidiana733 pode ser alterada; por exemplo, um homem pode escolher ir ao trabalho pela estrada A e não pela estrada B e, em outro dia, ir pela estrada B em vez de pela estrada A. A vida cotidiana admite quebras e mudanças, por mais que elas não sejam desejadas; o rito, ao contrário, requer segurança e comprometimento tanto no campo religioso quanto na esfera do sagrado.  Nesse  sentido,  talvez  a  expressão  “religioso”  não  se   diferencie  muito   da   palavra  “sagrado”. A passagem se faz em inúmeras esferas da vida, e inclusive, no caso egípcio, da vida à continuação da vida. A passagem é inevitável independentemente da crença (ou da descrença) do ser em alguma religião – basta que recorramos ao saber amplamente conhecido que   elucida   ser   “a   morte a   única   certeza   da   vida”.   A   morte   é   uma   passagem;;   para   um   ser   religioso pode representar a vida em outro espaço ou dimensão, para um ser não religioso representa a pura ausência de matéria. O que propomos no presente trabalho é que os ritos de passagem aos quais nos referimos ocorriam em espaços de liminaridade ou, em outras palavras, de transição entre a vida e a morte e a morte e a vida,  metaforizados  pela  “porta”  tanto  no  mundo  dos  vivos  (a   tumba) quando no universo dos mortos (cena da pesagem do coração). Caso não fossem realizados, o morto era considerado efetivamente morto e legado à não-existência.

O ESPAÇO DA TUMBA OU O ESPAÇO MATERIAL: A TUMBA DE SENNEDJEM Ao tomarmos o Novo Império (1550-1070 a.C.) como recorte cronológico, preferimos exemplificar o espaço da tumba através da Tumba Tebana734 n° 01 (TT 01),

733

Sobre o conceito de vida cotidiana cf. HELLER, A. Sociología de la vida cotidiana. Barcelona: Edicions 62 s/a, 1987; para uma discussão sobre Heller, bem como do conceito de história cotidiana cf. Guarinello, 2004, disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010201882004000200002 >. Acesso em: 01 set. 2014. 734 A necrópole tebana possui 415 tumbas catalogadas. A tumba de Sennedjem foi descoberta por trabalhadores egípcios no dia 31 de janeiro de 1886, durante o período no qual Gaston Maspero dirigia o  Serviço  de  Antiguidades  Egípcias.  Sennedjem  era  “servidor  do  Lugar  da  Verdade”,  título  ostentado   por trabalhadores das necrópoles reais. Eduard Toda (1855), diplomata catalão, foi o responsável pela exploração da tumba – é  “considerado  o  primeiro  egiptólogo  catalão  e  espanhol”,  de  acordo  com   Marta Sanjaume (2006, p. 12).

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construída para Sennedjem, alto funcionário que viveu nos anos finais do governo de Sethy I (c. 1306-1290 a.C.) e inícios do reinado de Ramessés II (c. 1290-1224 a.C.). No Império Novo, o túmulo passou a ser visto como um templo equipado com uma cripta subterrânea onde o defunto era instalado no interior de um sarcófago com a configuração de um relicário onde a sua múmia era colocada para aí figurar como uma estátua divina735.

A imagem abaixo nos dá uma dimensão geral da tumba de Sennedjem, cuja capela funerária é a central; sabe-se que a capela norte foi feita para Khonsu, filho de Sennedjem, e supõe-se que a capela sul pertenceu a Tjaro, pai de Iyneferti, a esposa de Sennedjem.

Reconstrução das câmaras funerárias da tumba de Sennedjem. Fonte: Sanjaume, 2006, p. 57 (ligeiramente adaptado por conta da tradução do catalão para o português).

O pátio era o lugar público da tumba – não entraremos na discussão do conceito de “espaço  público”,  basta-nos aqui delimitar que era nesse espaço onde os vivos podiam fazer homenagens e deixar oferendas, ou seja, um lugar para os vivos atuarem nas vidas dos mortos (lembremos que uma condição necessária ao post-mortem era a agência dos vivos no sentido de preservar a memória do morto, bem como de lhe prover de alimentos). O poço e as câmaras A e B representam os primeiros obstáculos à presença dos vivos; na câmara C – a única decorada – estava o corpo do morto. Eduard Toda, que esteve na escavação da tumba, descreve a câmara C da seguinte maneira: Penetramos a câmara funerária, cujo aspecto era realmente imponente. O solo estava coberto de cadáveres; nove destes encerrados em caixões de sicômoro e onze estendidos na areia. Nos cantos se viam vasos de barro cozido (adobe) amontoados, pães, frutas, móveis e guirlandas de flores murchas e secas 736.

735 736

SOUSA, 2010, p. 160. TODA apud SANJAUME, 2006, p. 233.

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O aparato funerário e a rica decoração dessa parte da tumba dão conta da importância da mesma. A decoração interna não era feita para os vivos, mas sim para os mortos; outrossim, a câmara C representava um microcosmo do Duat, como podemos atestar através da imagem abaixo, na parte leste da câmara – que contém a representação do Cap. CX do Livro dos Mortos:

Fonte: Sanjaume, 2006, p. 75.

Para ter acesso a essa parte da tumba o morto passava pelas outras câmaras – e isso protegia o seu corpo. O espaço dos vivos não era decorado, o local dos mortos sim. Propomos, então, que a porta de passagem para o mundo dos mortos, nessa tumba, era a transição da câmara B para a câmara C. Para além do sentido abstrato, havia uma porta de entrada para a câmara sepulcral, que literalmente dividia as esferas terrena e celeste.

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Reconstrução da porta de entrada para a Câmara C. Fonte: Sanjaume, 2006, p. 61.

Porta que dava acesso à Câmara C. Na parte superior: Sennedjem, Iyneferti e Ir-nefer (filha do casal) diante de Osíris e Maat. Na parte inferior: quatro filhas de Sennedjem prestam homenagens a Ptah-Sokar e a Ísis (cf. SANJAUME, 2006, p. 61-62).

Todo o interior da câmara sepulcral está decorado com cenas do Livro dos Mortos (cf. Sanjaume, 2006, p. 65), portanto essa câmara era o Outro mundo em miniatura, um microcosmo. A porta que dividia as câmaras representava literalmente o limiar entre o mundo dos vivos e o universo dos mortos, pois ninguém mais além do morto teria acesso ao ambiente decorado que estava através dela. Portanto, era por essa porta que o morto adentrava no Duat e, ao mesmo tempo, protegia-se do mundo dos vivos (sobretudo, dos ladrões de tumbas). A partir do momento em que a porta era trancada, o morto podia dar início à sua nova empreitada no além-mundo e, por se encontrar na parte mais distante e de difícil acesso para os vivos, a tumba podia gozar de alguma segurança (embora saibamos que a maioria das tumbas foi saqueada ainda na Antiguidade).

O ESPAÇO DO ALÉM OU O ESPAÇO TRANSCENDENTE (CAP. 30B DO LIVRO DOS MORTOS DE ANI) Para conjeturarmos sobre a questão da porta como um limiar no espaço do Além, nós propomos uma reflexão sobre o primeiro momento fundamental do morto na outra vida,

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documentado pelo Cap. 30b do Livro dos Mortos. Para esse trabalho, nos utilizaremos do Livro Ani (c. 1275 a.C.), da XIX Dinastia737 (1307-1196 a.C.). O   papiro   funerário   conhecido   como   “Livro   dos   Mortos   de   Ani”   é   um   dos   mais   famosos de todos os antigos artefatos descobertos pelo Departamento de Antiguidades Egípcias do Museu Britânico. É certamente um dos mais completos do tipo, somando 78 pés [23.77 metros] de comprimento total. Com a segmentação do papiro, apenas uma de suas trinta e sete folhas carecem de alguma vinheta. A maioria das folhas tem vinhetas na parte superior; outras possuem vinhetas que abrangem todo o papiro738.

Para os egípcios, a aspiração pela continuação da vida era algo que transbordava todos os ideais humanos. O desejo de continuar vivendo era em primeiro lugar uma associação com o culto ao divino. Eles concebiam a morte como uma quebra, da mesma forma que na dimensão divina se concebia o escurecimento da terra como algo perigoso, portanto, era preciso que em todas as manhãs o ciclo rítmico do renascimento do sol ocorresse, reafirmando o dia e, consequentemente, a vida. A noite era um momento perigoso, tanto para vivos quanto para mortos (basta que recordemos que os antigos chamavam o “Livro  dos  Mortos”  de  “Livro  para  Sair  à  Luz  do  Dia”).  A  escuridão  era  uma  metáfora  para  a   morte enquanto que a luz do dia era a própria vida. Os egípcios tinham medo que o sol não renascesse, pois isso significaria a perda da batalha do deus Seth frente ao inimigo do sol, Apóphis – que levaria à extinção do cosmos e à reinstalação do caos. O caos era descrito como um oceano estático e sem vida. É interessante destacar que o deus Osíris era o estático, o cansado – e associava-se ao morto, ao passo que o deus Rê, a luz do sol, se associava com os faraós mortos, eles próprios também deuses. Tal como Ré, o deus Sol, o defunto aspirava a continuar [sua] caminhada no Além, já depois da morte. Estabelecia-se, portanto, um caminho de continuidade entre a morte e a vida, um caminho que se iniciava no mundo terreno e que prosseguia no Além. Este caminho era, no entanto, perigosamente interrompido com o advento da morte corporal. No mito de Osíris, a morte física era a demonstração do triunfo de Set, o deus que personificava o mal e a cupidez. O fratricídio de Osíris, o deus que 737

Conforme  aponta  Antonio  Brancaglion  Júnior  (2003,  p.  140),  “a  XIX  dinastia  é  fundada  por   Ramessés I, um alto oficial militar do Delta oriental. Nesse período há um crescimento no número de dignitários e soldados de origem estrangeira, caracterizada pelo desenvolvimento do Delta, onde são criadas grandes cidades (Pi-Ramessés), a estruturação de uma economia subordinada aos templos e o desenvolvimento  do  culto  às  “tríades  ramessidas”  (Amon,  Rê  e  Ptah).  Ramessés  II,  o  mais  famoso dos faraós ramessidas, reafirma a hegemonia egípcia no Levante, a leste, e na Núbia, ao sul e o seu longo reinado estabelece um estilo que dá forma à arte e à cultura desse período. O Período Ramessida é melhor conhecido pelo gigantismo arquitetônico - o templo de Osíris construído por Séthi I em Ábidos; a grande sala hipostila no templo de Amon-Rê em Karnak; o templo esculpido na rocha de Ramessés II em Abu Simbel, na Baixa Núbia; e Medinet Habu, o templo funerário de Ramessés III em Tebas ocidental; além de um vasto programa epigráfico e uma grande produção literária que utiliza uma variante da língua egípcia, o neo-egípcio. Após o reinado de Ramessés III o poder egípcio declinou  gradualmente  levando  ao  III  Período  Intermediário”. 738 ANDREWS, 1998, p. 11.

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personificava o bem e a ordem civilizadora, tinha subjacente a ideia de injustiça, e era esta noção que configurava a imagem egípcia da morte: a de um atentado que de modo algum se afigurava na ordem natural das coisas e que introduzia o estado de inércia e de letargia, típicos da morte, que interrompia a fluidez e o movimento característicos da vida739.

A cena da pesagem do coração do morto, presente no Capítulo 30b do Livro dos Mortos, é uma tentativa de restabelecimento da ordem depois da quebra (caos) ocasionada pela morte. Nesse sentido, buscava-se refazer a ligação entre o homem e a sede de suas razões e sentimentos, que para os egípcios era o coração. O cadáver distinguia-se do corpo pelo facto de ter sido alvo de um crime que pusera termo à acção conectiva do coração, o principal garante da vida. Com a morte, o coração parava, pondo assim um fim à caminhada vital. A fonte do percurso vital emanava portanto do coração, o agente unificador e animador do corpo, e quando esta corrente cessava, sobrevinha a morte que tornava o cadáver inanimado, estático e aspectivo, ou seja, uma realidade desprovida de um agente unificador em que as partes perdiam a ligação entre si740.

Alguns deslizes ameaçavam a reinstalação da ordem, ou seja, a continuação da vida do morto no Além, dentre eles estava a reprovação do morto diante do Tribunal de Osíris, o juiz   dos   mortos.   Para   evitar   esse   “verdadeiro”   fim,   que   conduziria   o   homem   a   total   inexistência, ainda em vida o homem se precavia de inúmeras maneiras: adquirindo um Livro dos Mortos, preparando sua tumba etc. Mas depois de morto tinha de passar pelo desafio de se justificar perante a assembléia dos deuses (Cap. 30b). Era essa justificação que finalmente assegurava   a   continuidade   da   vida   no   que   aqui   chamamos   de   “espaço   transcendental”.   Na   medida em que o coração do morto, sede de suas razões e emoções e, portanto, lugar de suas verdades, era colocado em contrapeso com uma pluma, que representava a verdade, a justiça e o equilíbrio da deusa Maat (códigos morais que deviam permear a vida do homem), o deus Anúbis (no caso do Papiro de Ani, c. 1275 a.C.) ajustava a balança, e esse momento era o de maior apreensão para o morto, pois se o seu coração não se mantivesse equilibrado com a pluma ele seria destruído pela híbrida Ammit: 1/3 leopardo ou leão, 1/3 crocodilo e 1/3 hipopótamo (esses três animais também na esfera terrena representavam perigos para o homem).

739 740

SOUSA, 2010, p. 158. SOUSA, 2010, p. 158.

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FAULKNER, Raymond. The Egyptian Book of the Dead. The Book of Going forth by Day. Trad. e comentários R. Faulkner. San Francisco: Chronicle Books, 1998, plate 3.

Somente com a manutenção da balança em equilíbrio era que o morto podia finalmente deixar o espaço de transição representado pela Sala da Justiça, onde ocorria o julgamento, e adentrar nos domínios do deus Osíris, os Campos de Iaru. Para fazer esse percurso, saindo do limiar entre a vida e a morte e finalmente atingindo o mundo dos mortos, o morto contava com a ajuda do deus Hórus, que o conduzia pela mão à presença de seu pai.

FAULKNER, Raymond. The Egyptian Book of the Dead.

The Book of Going forth by Day. Trad. e

comentários R. Faulkner. San Francisco: Chronicle Books, 1998, plate 4.

Nossa proposta de trabalho coloca o julgamento como o limiar, como a porta de passagem para um universo transcendente; trata-se da afirmação da vida e da negação da morte. Trata-se, sobremaneira, da reafirmação da ordem cósmica que, por sua vez, desde o

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Antigo Império (2575-2150 a.C.), exalta que a caminhada do sol deve se renovar a cada dia na medida  em  que  o  deus  “ressuscita”  todas  as  manhãs.  Da  mesma  forma  deveria  ocorrer  com  o   morto: a morte física não representava o fim, mas uma transição que conduzia o homem a um novo começo, este sim eterno. O Livro dos Mortos era, sobretudo, um guia que possibilitava ao morto à abertura de portas – abrir portas é abrir caminhos, é movimentar-se. Abrir portas significa ter liberdade de transitar na outra vida. O Cap. 30b nos mostra a particularidade da abertura metafórica de uma porta  que  conduzia  o  homem  à  “eternidade  dos  milhões  de  anos”.  Dessa  forma,  a  porta  era  um   desafio; constituía-se como a primeira novidade do Outro mundo. O capítulo 30b é o primeiro desafio (o mais temido) do morto na outra vida, dado que é justamente nesse momento em que o mesmo descobre se terá ou não continuação no cosmos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Rogério Sousa (2010) admoesta-nos que a morte era vista como uma anomalia, e que diante deste fato era preciso reinstaurar a ordem natural das coisas. Na medida em que a morte era vista como uma anomalia, que por sua vez habitava a dimensão do caos, somente a vida podia restabelecer a ordem e, com isso, vencer tudo aquilo que era negativo. Uma maneira de afirmar a ordem era transpor os caminhos, pois uma das características mais apreciadas pelos egípcios no tocante à afirmação da ordem era o princípio do movimento, dado que movimentar-se é estar vivo; é se associar ao deus Rê e não ao cansado Osíris. O próprio renascimento do sol representava o rejuvenescimento deste, que no ocaso, quando associado a Atum, estava também cansado. O mundo egípcio dos mortos era cheio de caminhos, e o morto era constantemente exigido, pois só quando vencia esses desafios, geralmente abrindo caminhos, é que podia se movimentar e, consequentemente, viver. A primeira porta a ser atravessada era a da tumba, que colocaria o morto em repouso no microcosmo do Duat. Depois de encerrada essa porta, cada um continuaria a sua vida: os vivos chorando a perda do parente, mas cientes de que todo o aparato necessário para a continuação da vida que deles dependia fora realizado; o morto então tinha de se assegurar frente a outro desafio, metaforizado por uma segunda porta de passagem. Quando do julgamento no Tribunal de Osíris, pressuposto fundamental para que pudesse adentrar no paraíso osiríaco, nenhum vivo podia mais lhe auxiliar, então o morto via-se diante do seu coração e dos deuses, e clamava para que a sede de seus pensamentos falasse apenas coisas positivas de si – o coração era a testemunha do morto (vale dizer que quando o morto não

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confiava  muito  em  seu  coração  se  utilizava  de  um  “escaravelho-coração”,  que  lhe  apaziguaria   os desvios morais cometidos quando em vida). Ser justificado, ou seja, estar em equilíbrio, era o pressuposto fundamental para que o morto pudesse finalmente continuar vivendo. Depois de entrar no microcosmo do espaço da tumba era preciso entrar nos domínios do deus. E essa necessidade capital é o que nos faz sugerir ser este capítulo o mais importante de todo o Livro dos Mortos. Ideia essa que se justifica quando percebemos que o Cap. 30b é o mais recorrente nos livros dos mortos encontrados, um suporte funerário datado, sobremaneira, do Novo Império. REFERÊNCIAS ANDREWS, C. Preface. In: FAULKNER, Raymond. The egyptian book of the dead: the book of going forth by day. Trad. e comentários R. Faulkner. San Francisco: Chronicle Books, 1998. ASSMANN, Jan. The search for god in ancient egypt. New York: Cornell University Press, 2001. ______. Death and salvation in ancient egypt. New York: Cornell University Press, 2005. BRANCAGLION Jr., Antonio. Manual de arte e arqueologia egípcia I. Rio de Janeiro: Sociedade dos Amigos do Museu Nacional, 2003. (Série Monografias, 6). CD-ROOM. DODSON, Aidan; IKRAM, Salima. The tomb in ancient egypt. New York: Thames & Hudson, 2008. FAULKNER, Raymond. The egyptian book of the dead. The Book of Going forth by Day. Trad. e comentários R. Faulkner. San Francisco: Chronicle Books, 1998. HORNUNG, E. Introducción a la egiptologia: Estado, métodos, tareas. Madrid: Editorial Trotta, 2000. HORNUNG, E. The ancient egyptian books of the afterlife. Ithaca: Cornell University Press, 1999. SANJAUME, Marta Saura i. La tomba de sennedjem a deir-el-medina TT. 1. Departament de Prehistòria, Història Antiga i Arqueologia (Tese de doutorado). Universitat de Barcelona, Barcelona, 2006. SOUSA, Rogério P. N. F. O Regresso à Origem: O tema da viagem na iconografia funerária egípcia da XXI dinastia. Cultura, Espaço e Memória, n. 1, 2010, p. 157-176. Disponível em: < http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8838.pdf >. Acesso em: 21 out. 2014. TAYLOR, John H. Death and the afterlife in ancient egypt. Chicago: University of Chicago Press, 2001.

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