A POTÊNCIA ERÓTICA DO CORPO FEmININO ObESO: UmA APROxImAÇÃO DOS FREAK SHOWS COm A POÉTICA DE ElISA QUEIROZ THE EROTIC POWER OF FEMALE OBESE BODY: AN APPROACH OF FREAK SHOWS WITH THE POETIC OF ELISA QUEIROZ

June 2, 2017 | Autor: Júlia Mello | Categoria: Feminist Theory, The Body, Visual Arts, Freak Shows
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A POTÊNCIA ERÓTICA DO CORPO FEMININO OBESO: UMA APROXIMAÇÃO DOS FREAK SHOWS COM A POÉTICA DE ELISA QUEIROZ THE EROTIC POWER OF FEMALE OBESE BODY: AN APPROACH OF FREAK SHOWS WITH THE POETIC OF ELISA QUEIROZ.

Júlia Almeida de Mello Universidade Federal do Espírito Santo/ UFES/ FAPES José Cirillo Universidade Federal do Espírito Santo/ UFES/ FAPES/CNPQ

RESUMO Os freak shows obtiveram grande reconhecimento do público no final do século XIX e início do século XX e as mulheres corpulentas ganharam destaque nas apresentações. Ao analisarmos os trabalhos de Elisa Queiroz, notamos características que compartilham com as das performers desses espetáculos. Queiroz explora a volúpia em seu projeto poético, acentuando suas “carnes”. O estudo permite a visualização do preconceito em torno do corpo gordo e reconhece essas práticas artísticas como espécie resistência à hegemonia da “boa forma”. Palavras-chave: arte, freak shows, Elisa Queiroz, obesidade, gênero.

ABSTRACT The freak shows achieved great public recognition in the late nineteenth century and early twentieth century and corpulent women were highlighted in the presentations. When analyzing the works of Elisa Queiroz, we note that it shares characteristics with the performers of these shows. Queiroz explores the lust in her poetic project, emphasizing their “meat”. The study allows a visualization of prejudice around the fat body and recognize these artistic practices as a kind of resistance to the hegemony of “good shape”. Keywords: art, freak shows, Elisa Queiroz, obesity, gender.

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Introdução A utilização do corpo obeso como imagem geradora na arte contemporânea tem sido objeto central das minhas pesquisas. A recorrência da temática no ambiente artístico condiz com a proliferação de notícias sobre o assunto. Chama a atenção a forma com que os artistas lidam com tudo isso. Em muitos trabalhos artísticos desse gênero, é comum encontrar um sentido bastante subjetivo, principalmente nos que são produzidos por artistas mulheres obesas. Parece que Susan Bordo (2003) estava certa ao comentar que mesmo hoje, com a descoberta do público masculino pela indústria da moda e do cosmético, ainda é o corpo feminino o mais direcionado às pressões da chamada “boa forma” e, por que não, da “beleza”. Muitas artistas gordas (utilizando o termo para reforçar a ideia de afirmação do peso e distanciar um pouco de “obesas”, palavra abraçada pelo campo médico), se apropriam da sua forma para debater os padrões de beleza difundidos na contemporaneidade e defender suas “carnes” do discurso negativo da medicina. Elisa Queiroz (1974-2011) parecia se enquadrar nesse desejo de evocar volúpia através dos seus excessivos volumes. Em uma gravação disponibilizada pelo Laboratório de Pesquisa e Extensão em Artes da UFES, a artista indaga a obsessão feminina por dietas e cirurgias de redução de gordura e afirma que cada indivíduo deve ter o corpo que almeja, sem se prender a estereótipos ou a moda (QUEIROZ, [200-]). Queiroz provocava os espectadores e seus sentidos sabendo do choque que muitas vezes a corpulência poderia causar, sobretudo quando revelada em decotes e “ofertada”. Seduzia, aguçava o desejo utilizando muitas vezes do artifício da sinestesia (obras que exalavam cheiros e faziam imaginar sabores, obras de comer que acentuavam as cores). Assim como Queiroz, as performers dos espetáculos conhecidos como freak shows de meados do século XIX e início do século XX, viam em seus corpos rotundos a possibilidade de transgredir as tradicionais regras das apresentações - com números na maioria das vezes cômicos – oferecendo uma dose de erotização e sensualização para a plateia. O preconceito em torno do corpo obeso é bastante antigo no Ocidente. Segundo Gilman (2010), suas raízes estão na medicina tradicional (sobretudo com estudos da Grécia Antiga) e no cristianismo, que rebaixava a gula (e sua frequente consequência que era a gordura) a um dos sete pecados capitais, a algo material e portanto distante de Deus. É claro que muita coisa mudou com o passar dos séculos. Em alguns momentos e em determinadas culturas a gordura foi vista como algo associado a status, fartura, nobreza, beleza, fertilidade e etc. Mesmo assim, podemos nos arriscar a dizer que a ideia de um corpo magro, resultado da obediência às dietas e de práticas de exercícios ou do jejum para aproximação com o divino foi uma hegemonia na história do Ocidente. Os freak shows são uma prova da marginalizarão14 do corpo gordo. Popularizados no século XVI na Inglaterra sob o reinado de Elizabeth I, a espécie de circo passeava pela Europa com apresentações de pessoas que, de alguma forma, fugiam dos padrões de “normalidade”. As obesas se incluíam nesse grupo, confirmando a sua associação ao estranho, particular, anômalo.

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O interesse por esse tipo de espetáculo aumenta no final do século XIX e início do século XX em países europeus e nos Estados Unidos e é nesse momento que também aumenta a participação de pessoas gordas nas apresentações. Para estas pessoas os shows poderiam ser uma possibilidade de ganhar dinheiro com uma aparência que era considerada, além de tudo, exótica. A concorrência entre elas era tão grande que muitas tiveram que inovar criando cartões postais (que serviam como folders) ou de visita. De acordo com David e Fiona Haslam (2009), era comum entre estes artistas mentir o peso, usar roupas com enchimento ou divulgar cartazes com desenhos que exageravam suas formas para chamar ainda mais a atenção do público. Com a popularização das pessoas gordas nos shows, muitas performers viram a oportunidade de deslocarem de seu corpo a ideia de piada ou do grotesco para a ideia de provocação. Apelidos com conotações sexuais e cenas de nudez passaram a fazer parte de inúmeros espetáculos protagonizados por elas, alguns dos quais permitia que o público as tocasse. Desta forma, elas abriam o caminho para repensamentos sobre o lugar do corpo feminino obeso que ainda hoje, período próximo das produções de Queiroz, parece ser vítima das visões homogeneizadas e engessadas em nossa cultura. Fat ladies A ironia implantada na poética de Elisa Queiroz reforçando muitas vezes elementos grotescos e apresentando pessoas que muitas vezes fogem dos padrões de normalidade ditados socialmente (vide o Free Williams disponibilizado no Youtube) já pode ser uma amostra de freak show. As pessoas, ao conferirem essas obras, reagem de uma maneira semelhante ao público de um século atrás que acompanhavam um número de sideshow: acham graça, se divertem ao ver o “desajeito”. Mas, quero trazer aqui trabalhos da artista que talvez falem ainda mais sobre ela e que parecem refletir os verdadeiros sintomas da obesidade. Os verdadeiros, e não aqueles sintomas escorregadios pregados pelos discursos médicos. E o que chamo de “verdadeiros sintomas” são os efeitos causados por toda a estigmatização da gordura perpetuada na nossa cultura. O sentimento de exclusão, não pertencimento, desencaixe e que aos poucos podem se transformar em desejo de autoafirmação, resistência e autovalorização. Esses verdadeiros sintomas podem ser discutidos em Queiroz e também nas fat ladies dos shows. Mesmo sabendo do estigma que a gordura carrega, Elisa Queiroz frequentemente se autorretratava numa postura de satisfação e contentamento. Provavelmente insinuava que não era preciso ser magra para ser autorrealizada. Ela encontrou na arte o caminho para afirmar sua autoconfiança e (re)conhecer sua forma.

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Figura 1. Elisa Queiroz, S/ título. Técnica mista (tecido, plástico, linha, espuma, tinta e fotografia), 50 x 35 x 5cm, 1998. Fonte: Catálogo de Elisa Queiroz (LEENA)

Nas primeiras obras da artista já observamos o indício desse desejo de seduzir por meio da imagem de si (Figura 1). A postura de Queiroz condiz com a de Katy Dierlam (1950-) que é uma performer e atriz mais contemporânea no campo dos shows de excentricidades (Figura 2). Segundo Braziel e LeBesco (2001, p. 261), ela entrou para o universo dos freak shows se apresentando como uma fat lady de um senso profundamente político. Dierlam, incorporando a personagem Helen Melon, teve a oportunidade de confrontar as questões sociais concernentes ao seu corpo, ganhando segurança de si. Aceitar uma performance como Fat Lady significava deixar de se esconder, deixar de esconder qualquer excesso, como o fez Queiroz, embora timidamente nas séries que incluem a Figura 1. Aos poucos a artista ia reconhecendo seu espaço e, à medida que expunha através de fotografias e montagens seus seios, nádegas e barriga, ia se assumindo como um corpo de resistência.

Figura 2. Fotografia de Katy Dierlam, s/d. Fonte: Sideshow Word.

Enquanto Queiroz precisava da arte para libertar seu corpo, Dierlam precisava de uma personagem para se livrar das amarras sociais. Era a Helen Melon que a tiraria da humilhação e representaria seu corpo como potência erótica. Ela dizia que o que poderia ser uma “anomalia ou deficiência” na vida, poderia se tornar uma resistência ou um protesto nos espetáculos (BRAZIEL; LEBESCO, 2001, p. 261). Helen Melon, nome que vem de uma fruta, sugere volumes, circunferência e sabor. Queiroz também brincava com as frutas e suas formas para evocar os sentidos do público. Na sua série de trabalhos “comestíveis” ela frequentemente se colocava como uma deusa ou musa repaginada de algum “grande mestre” se deliciando com frutas volumosas e arredondadas (Figura 3).

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Figura 3. Elisa Queiroz, “Sirvase”, instalação, transfer, saquinhos de chá, acrílico, madeira e alumínio, 2002. Fonte: Catálogo de Elisa Queiroz (LEENA)

Figura 4. Cartão postal de Alice Wade, s/d. Fonte: Sideshow World.

Queiroz se insinuava através de decotes, pouca roupa, coberta de lençóis, rendas ou transparências. Percebe-se que a Figura 2 permite uma aproximação com um dos cartões postais de Alice Wade (1894-1955, Figura 4), outra fat lady, conhecida por suas exibições sensuais. A cena e a pose são bastante próximas das de Queiroz. Em “Sirva-se” (2002), Queiroz parece ter colorido a cena de Wade, tornando tudo mais divertido. Não que a artista tivesse conhecimento do postal – pelo menos não há nenhum evidência que permita afirmar se as conhecia. Aparentemente sem querer, esse encaixe

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desliza desde preto e branco “sério” e “racional” para o colorido entorpecente e delirante de Queiroz. O sorriso dela é mais largo e, podemos induzir, a oferta também: além do deleite com ela, uma porção de frutas espalhadas sobre a cama é sugerida ao público. Saindo da imagem e indo para todo o contexto da instalação, os sentidos são ainda mais aguçados. Saquinhos de chá, que formam o grande mosaico, aguardavam a apreciação dos que por ali passavam. Mas era preciso encontrar a chave certa para abrir as portas de acrílico e então degustar o chá. O perfume era intenso, reforçava a ideia de seduzir, embriagar, desconcertar o público. Uma vantagem, ao meu ver, nos trabalhos de Queiroz como potência subversiva, é a variedade de materiais que a artista trabalhou. Enquanto as fat ladies tinham o corpo como produto final de exposição, Queiroz tinha o seu como “base” para originar o produto final. Seus trabalhos, portanto, poderiam servir de apoio para outras pessoas, poderiam transcender um “problema” aparentemente pessoal para algo coletivo.

Figura 5. Elisa Queiroz, “Odor de fêmina”, instalação, couro virgem, tecido linha, látex, plástico e ferro, 120 x 100 x 80cm, 2000.

“Odor de Fêmina” (Figura 5) é um exemplo do compartilhamento de questões do corpo feminino. Ela desta vez molda diferentes corpos, em diferentes posições em couro de vaca. O detalhe: os couros contêm marcas, cicatrizes, números. Características que analogamente remetem muitas vezes à (ainda existente) submissão do papel da mulher na contemporaneidade. Mulher vista muitas vezes pelo corpo, pelas medidas, pela roupa íntima que a aprisiona. Últimas palavras Evitando expor seu corpo como símbolo de vergonha e humilhação – símbolos tão propagados pela moda e mídia -, Queiroz, assim como as fat ladies, desconstruiu as abordagens da gordura como algo indigno de beleza, prazer e sensualidade. Possivelmente Queiroz e as fat ladies interviram desafiando o campo social dos estereótipos, dos corpos “controlados”, mostrando uma nova leitura que permite a existência

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(justa) da diferença, das identidades. Práticas como essas podem chacoalhar a ordem vigente. Práticas como essas só reforçam a potência da arte em dizer algo a mais. Em mostrar outros caminhos, novas possibilidades. Referências BORDO, Susan. Unbearable weight: feminism, western culture and the body. 10 ed. Berkley e Los Angeles: University of California Press, 2003. BRAZIEL, Jana Evans; LEBESCO, Katleen (ed.). Bodies out of bounds: fatiness and transgression. 1 ed. Berkley e Los Angeles: University of California Press, 2001. GILMAN, Sander. Obesity: the biography. 1 ed. Nova York: Oxford University Press, 2010. HASLAM, David; HASLAM, Fiona. Fat, glutonny and sloth: obesity in literature, art and medicine. 1 ed. Liverpool: Liverpool University Press, 2009. QUEIROZ, Elisa. Entrevista com Elisa Queiroz. [200-]. Arquivos do Processo de Criação de Elisa Queiroz disponíveis no Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA) na Universidade Federal do Espírito Santo. ______________. Elisa Queiroz. [200-]. Catálogo de obras da artista não publicado. Arquivos do Processo de Criação de Elisa Queiroz disponíveis no Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA) na Universidade Federal do Espírito Santo. 36 p. SIDESHOW World. Sideshow performers from around the world. Disponível em: . Acesso em: 23 set. 2014. Notas 14 Também conhecidos como sideshows.

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