XXI Simpósio Nacional de Ensino de Física – SNEF 2015
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A (POUCA) PRESENÇA DE MINORIAS ÉTNICO-RACIAIS E MULHERES NA CONSTRUÇÃO DA CIÊNCIA Katemari Rosa
Universidade Federal de Campina Grande/Departamento de Física/
[email protected]
Resumo Este trabalho parte de duas hipóteses básicas. A primeira é a de que todas as áreas do conhecimento são responsáveis pela educação das relações étnico-raciais positivas, conforme a Lei 10.639/2003, e o ensino de física deve ter essa como uma de suas preocupações. A segunda é a de que a física é um empreendimento científico colaborativo, no qual a comunidade decide não só o que física é, mas quem é cientista. Essa comunidade tem um conjunto de rituais e tradições que seleciona quem pode fazer parte desse grupo. Tradicionalmente, essas práticas foram forjadas de modo que acabam por excluir as mulheres em geral, e mulheres negras em particular. No entanto, há mulheres negras que conseguiram fazer parte do mundo da física, seja por aprender as regras ou por quebrá-las, criando novas regras e contribuindo para uma nova física. Ancorada em perspectivas feministas, de performatividade e na Teoria Crítica da Raça, este trabalho foca na trajetória acadêmica de mulheres negras ao se tornarem cientistas. Através da história de vida de físicas negras estadunidenses, discutirei o papel da escola e da comunidade científica nesse percurso. Além disso, mostrarei alguns dos obstáculos enfrentados por essas mulheres e apresentarei estratégias utilizadas para a superação desses desafios.
Palavras-chave: ensino de física, educação anti-racista, mulheres nas ciências, inclusão. Introdução Inicio este texto expressando meu contentamento em ver o maior evento de Ensino de Física do país, o SNEF (Simpósio Nacional para o Ensino de Física), trazendo espaços para uma discussão explícita sobre inclusão no ensino de física. Nesta edição do evento há uma palestra convidada com discussão sobre mulheres negras na física e uma mesa-redonda centrada na formação de professoras e professores de física para tempos de inclusão, com debate sobre experiências para o ensino de física de pessoas com deficiência auditiva e/ou visual. A presença dessas atividades é um sinal de reconhecimento de que a comunidade de ensino de física, espelhando a sociedade de maneira mais ampla, se constitui num espaço de exclusão, mas que pode e deve trabalhar para o desenvolvimento de práticas, metodologias e debates em prol de um ambiente mais igualitário. Este texto parte de duas hipóteses básicas. A primeira é a de que todas as áreas do conhecimento são responsáveis pela educação das relações étnico-raciais positivas, conforme a Lei 10.639/2003, e o ensino de física deve ter essa como uma de suas preocupações. A segunda é a de que a física é um empreendimento científico colaborativo, no qual a comunidade decide não só o que física é, mas quem é cientista. Nesse sentido, o texto inicia com uma introdução, pelo ponto de vista jurídico, sobre a educação das relações étnico-raciais no Brasil. Posteriormente, apresento uma discussão sobre mulheres negras na ciência ancorada em perspectivas feministas, de performatividade e na Teoria Crítica da Raça. Em seguida, compartilho resultados de uma pesquisa com foco nas trajetórias ____________________________________________________________________________________________________
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de mulheres negras físicas estadunidenses e discutirei o papel da escola e da comunidade científica nesse percurso. Finalmente, mostrarei alguns dos obstáculos enfrentados por essas mulheres e apresentarei estratégias utilizadas para a superação desses desafios. Educação das Relações Étnico-Raciais e a Legislação As questões ligadas às relações étnico-raciais não são temas recentes no Brasil. As tensões entre povos de diferentes origens étnicas são tão antigas quanto à própria história do nosso país – ou da humanidade. Essas questões e tensões têm repercussão em várias esferas da sociedade como saúde, mercado de trabalho, segurança e educação, gerando condições de severas desigualdades na população. O Movimento Negro, bem como outras organizações da sociedade civil têm contribuído fortemente para a adoção de políticas públicas que promovam condições mais igualitárias entre a população brasileira. Um reflexo disso foi a promulgação da Lei 10.639/2003 que alterou o texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) para incluir, explicitamente, a obrigatoriedade do ensino sobre história e cultura Afro- Brasileira na Educação Básica. Em nove de janeiro de 2003, a LDB (Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996) passou a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A e 79-B: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro- Brasileira. § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’. (BRASIL, 2003)
Essa lei trouxe, do ponto de vista político, uma significativa mudança para as relações étnico-raciais no Brasil;; foi um reconhecimento de que a história e a cultura da população negra, bem como nossa contribuição para a formação da sociedade estavam ausentes dos bancos escolares. A promulgação da lei trouxe, também, implicações pedagógicas. Em 2004, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou o Parecer n.º CNE/CP 003/2004, que instituiu as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- Brasileira e Africana”. Nesse parecer o CNE regulamentou as alterações que a Lei 10.639/2003 havia trazido. Isso significa que a lei trouxe a obrigatoriedade da discussão e o parecer mostrou caminhos de como e porque essas discussões devem ser feitas. O parecer justifica que (...) busca cumprir o estabelecido na Constituição Federal nos seus Art. 5º, I, Art. 210, Art. 206, I, § 1° do Art. 242, Art. 215 e Art. 216, bem como nos Art. 26, 26 A e 79 B na Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação ____________________________________________________________________________________________________
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Nacional, que asseguram o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, assim como garantem igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos Brasileiros (grifo meu). (BRASIL, 2004, p. 1)
Apesar do foco na história e na cultura nacional é minha compreensão de que o ensino da física deve se comprometer, ativamente, na discussão de questões que envolvem as relações étnico-raciais no Brasil. Minha justificativa apoia-se na noção de que o acesso à ciência e tecnologia e ao ensino de física de qualidade é uma questão de cidadania, não sendo possível dissociar uma luta por cidadania de uma discussão das tensões étnico-raciais em nosso país. Além disso, parto da ideia de que a ciência é uma construção social que reflete a cultura de um povo, ao mesmo tempo em que é parte dessa própria cultura. Como construção social, a ciência está sujeita aos mesmos problemas que atingem nossa sociedade de maneira geral e não está imune às tensões étnico-raciais. Dessa forma, quando o parecer do CNE estabelece diretrizes para a educação das relações étnico-raciais, está também estabelecendo diretrizes para o ensino de física. O parecer CNE/CP 003/2004 tem implicações na formação de professoras e professores para a educação das relações étnico-raciais, pois ressalta a necessidade de assegurar às pessoas negras, e todos os cidadãos brasileiros, o direito de estudarem em escolas que tenham professoras e professores preparados para (...) lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações, sensíveis e capazes de conduzir a reeducação das relações entre diferentes grupos étnico raciais, ou seja, entre descendentes de africanos, de europeus, de asiáticos, e povos indígenas” (BRASIL, 2004, p. 2).
O CNE argumenta que a promulgação da Lei 10.639/2003 apoia as demandas da comunidade negra brasileira por valorização, afirmação e reconhecimento de direitos. Para o CNE, esse reconhecimento exige a “adoção de políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da diversidade, a fim de superar a desigualdade étnico-racial presente na educação escolar brasileira, nos diferentes níveis de ensino” (BRASIL, 2004, p. 3). Além disso, esse reconhecimento requer um professorado que seja não apenas competente no domínio dos conteúdos específicos, mas que tenha um comprometimento “com a educação de negros e brancos, no sentido de que venham a relacionar-se com respeito, sendo capazes de corrigir posturas, atitudes e palavras que impliquem desrespeito e discriminação” (p.4). Nesse sentido, a educação das relações étnico- raciais está relacionada também com questões atitudinais que não estão restritas a um conteúdo específico, devendo ser um compromisso de todas as áreas. Do ponto de vista jurídico, portanto, a comunidade de ensino de física tem a responsabilidade de pensar sobre como as tensões étnico-raciais influenciam o ensino e a aprendizagem da física. Isso não se limita aos conceitos científicos, mas às relações sociais, comportamentais e procedimentais que envolvem o fazer física. Essa comunidade deve problematizar questões referentes à subrepresentação de pessoas negras na ciência e tecnologia brasileira, a continua representação masculina e europeia de cientistas e à dita neutralidade da ciência. É pensando nessas questões que trago uma discussão sobre as experiências de mulheres negras na ciência, particularmente na física. Mulheres Negras na Física ____________________________________________________________________________________________________
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As discussões sobre as mulheres na ciência no Brasil não são uma novidade (LETA, 2003) e muito embora nossa baixa representatividade na área seja bem documentada, poucos são os trabalhos que falam sobre as particularidades das mulheres negras na ciência (ROSA, 2008). Quando olhamos especificamente para a Física, a subrepresentação das mulheres é ainda menor, sendo a ciência em que as mulheres são menos representadas no Brasil (GRUPO..., 2015). Essa condição de subrepresentação nos coloca numa posição em que sofremos discriminação e preconceitos ao longo de nossa formação e da nossa carreira. Isso pode acontecer de maneira mais ou menos explícita. Nesse cenário, não é difícil imaginar que a representação da mulher negra nas ciências seja ainda menor. A mulher negra tem a particularidade de viver experiências resultantes da intersecção de gênero e raça, ou seja, de enfrentar uma combinação de desafios por ser mulher e por ser negra. Então, hoje, faço um convite para que se olhe para as experiências de pessoas que nem sempre têm as histórias ouvidas, para que se aprenda um pouco com a experiência de mulheres negras na física e para que pensemos em algumas estratégias para promover o sucesso de mulheres negras na física. Começo falando um pouco sobre mim, de como acabei investigando sobre mulheres negras na física e sobre o contexto da pesquisa. Depois, trago o perfil das cientistas que participaram desse trabalho e conto um pouco da história de cada uma delas. Em seguida, compartilho alguns temas emergentes deste estudo e apresentar recomendações práticas de coisas que a podemos fazer para promover o sucesso de mulheres negras na física. Referenciais e Métodos Sou mulher, negra, licenciada em física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre e fiz mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em Salvador. Mudei-me de uma cidade que tinha menos de 20% da população negra e nenhuma professora negra, nenhum professor negro no Instituto de Física, para viver numa cidade onde cerca de 80% da população era negra e encontrei apenas um professor negro no Instituto de Física. Foi então que comecei a me perguntar por que havia tão poucas pessoas negras na física. Paralelo a isso eu tinha outras preocupações sociais, trabalhava junto a movimentos populares e organizações não governamentais ligadas à educação. Mais tarde, trabalhando no Departamento de Física da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na Bahia, orientei uma estudante que pesquisava sobre mulheres na ciência, o que me despertou mais interesse por essa questão. Foi aí que comecei a questionar sobre as outras mulheres negras na física. Isso aconteceu num período em que a Lei 10.639/2003 já havia sido promulgada, mas não se via qualquer efeito da discussão em torno dessa lei chegar à comunidade de pesquisa em ensino de física. Num levantamento bibliográfico, verifiquei uma carência de pesquisas que analisassem a participação das mulheres e de minorias étnicas nas ciências (ROSA, 2008). Nesse contexto, resolvi pesquisar sobre mulheres negras na física. Especificamente, me debrucei em responder como é que mulheres negras físicas constroem uma identidade cientifica, como é que se dá a construção de uma cientista (ROSA, 2013). No estudo usei conceitos provenientes de teorias feministas (BARTON, 1998;; COLLINS, 2000), de teorias de identidade e performatividade ____________________________________________________________________________________________________
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(LAVE & WENGER, 1998;; HOLLAND ET AL., 1998) e da Teoria Crítica da Raça (TCR) (DELGADO, 1995;; SOLÓRZANO & YOSSO, 2002). Não é minha intenção, neste texto, promover uma discussão mais ampla em relação ao referencial teórico, nem me aprofundar nos aspectos metodológicos desenvolvidos ao longo da pesquisa, mas de compartilhar os principais resultados desse trabalho. Uma das contribuições importantes do uso desses referenciais foi um entendimento do papel de se usar histórias, de ouvir a história das pessoas. Ou seja, de reconhecer o valor em utilizar histórias de experiências de vida como fonte de dados para a construção do conhecimento. Mais do que coletar histórias, esse referencial exige o ouvir (e contar) histórias de pessoas que normalmente não têm suas histórias ouvidas, sendo essa uma das ideias centrais dentro da Teoria Crítica da Raça. Na TCR, existe o conceito de counter storytelling, que é uma contracontação de histórias, isso é, contar as histórias de pessoas que não fazem parte do discurso hegemônico, histórias que oferecem uma contra narrativa aos discursos estabelecidos;; isso inclui pessoas negras, mulheres, homossexuais e pobres, por exemplo. Metodologicamente, realizei uma investigação qualitativa nos Estados Unidos, país onde há mais discussão sobre representatividade na ciência. Identifiquei mulheres negras que tiveram sucesso ao seguir uma carreira em física. Isso foi definido como ter doutorado em física ou áreas afins e trabalhar na área. Conduzi entrevistas semiestruturadas e gravadas em áudio com as cientistas que concordaram em participar do estudo. No total, entrevistei seis mulheres de várias partes dos Estados Unidos, em diferentes etapas da carreira profissional e que trabalhavam em áreas diversas, como governo e academia (instituições de ensino públicas e privadas). Baseada nas entrevistas, construí histórias sobre a vida dessas mulheres. Neste texto, não trago as histórias de todas elas, mas um breve perfil das cientistas que eu entrevistei, destacando alguns aspectos da trajetória de cada uma delas. Resultados Apresento um quadro geral do perfil das seis mulheres entrevistadas. Todas se identificavam como Afro-Americanas ou negras e tinham formação em física ou área correlata, como física aplicada. Três trabalhavam em órgãos do governo estadunidense, uma numa faculdade privada, uma numa Universidade e Faculdade de Ensino Superior Historicamente Negras (HBCU – Historically Black Colleges and Universities) e uma numa universidade pública de pesquisa. Durante a pesquisa, não consegui encontrar participantes que trabalhassem no setor da indústria. Quadro 01: Perfil das cientistas Raça/Etnia Allyson
Betty
Títulos
Função Atual
Setor de Atuação
Afro- Americana
B.Sc. Física
Cientista Pesquisadora
Governo
Afro- Americana
B.Sc. Engenharia Elétrica Analista de Pesquisa Ph.D. Física
Ph.D. Ciências dos Materiais e Engenharia
Governo
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Christa
Afro- Americana
B.Sc. Física
Afro- Americana
B.Sc. Física Aplicada
Afro- Americana
B.A. Física
Shanna Afro- Americana
B.Sc. Física
Esther Jane
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Professora Faculdade Adjunta de Física Privada
Ph.D. Física Ph.D. Física Aplicada Ph.D. Física Aplicada Ph.D. Física
Professora HBCU Adjunta de Física Pública Pesquisadora Associada
Universidade Pública
Engenheira Elétrica
Governo
Perfil das cientistas Allyson
A Allyson era a mais jovem das entrevistadas. Ela é de uma família classe média que morava no subúrbio – o que, nos Estados Unidos, significa morar em área nobre, residencial, de famílias com maior poder aquisitivo e acesso a boas escolas. Quando Allyson estava na escola, teve a chance de frequentar classes avançadas e percebia que ela era sempre a única estudante negra nessas turmas. Ela notava que, de maneira geral, outros estudantes negros não eram colocados em turmas avançadas e ela se lembra de sentir que os professores a tratavam de forma diferente, como se ela estivesse no lugar errado. O pai da Allyson era engenheiro e a família procurava desenvolver fortes habilidades em matemática e ciências. O pai dela dizia que ciência estava em tudo e tentava mostrar isso para as duas filhas. A família da Allyson era bastante religiosa e ela participava ativamente das atividades da igreja, onde foi, por exemplo, coroinha. Participava também de muita atividade extraclasse, como o escotismo e programas de verão com atividades científicas. Na graduação, a Allyson estudou numa HBCU, que são Universidades e Faculdades Historicamente Negras. No doutorado, entretanto, ela foi para uma instituição predominantemente branca. Essa transição não se deu sem traumas. Para Allyson, o ambiente da HBCU era mais acolhedor e ela enfrentou problemas de adaptação na nova instituição e sensação de isolamento. Por exemplo, ela cita que teve um de seus experimentos sabotados, no laboratório, por uma colega, ocasionando perda de dados em um momento de sua pesquisa. Ela conta que sofreu muito para aprender sobre as relações políticas que existem no doutorado. Allyson foi a primeira na família a ter um doutorado. Atualmente, trabalha para um órgão do governo estadunidense desenvolvendo tecnologias. Betty
Betty cresceu num grande centro urbano, os pais eram ativistas políticos, participaram do movimento de justiça social e a casa estava sempre cheia de gente. A família da Betty tinha uma fraca conexão com a igreja, a família era mais espiritual do que religiosa, propriamente dita.
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Estudou em escola pública, porém de referência, que tinha muitos recursos e qualidade de ensino reconhecida. Ela teve acesso a muitas atividades extracurriculares em ciências e matemática, tendo participado de clubes de matemática, por exemplo. Betty conta que, nessa época, ela e seus colegas eram abordados pelas universidades, especialmente de engenharia e ciências, que estavam tentando ampliar o número de estudantes negros em seus cursos. O que levou Betty para as ciências foi seu amor pela matemática, ela gostava de resolver problemas, era fascinada pelas relações matemáticas. Atualmente, Betty é funcionária de um órgão do governo que trabalha com pesquisas em diversos segmentos e ela é uma especialista em análises quantitativas. Betty conta que, na sua posição atual, é difícil encontrar mentores e pessoas que a ajudem como guia na carreira, pois ela atingiu uma posição tal em que ela é a referência e não há alguém que tenha a experiência e a especificidade no conhecimento que ela tem. Ela atingiu o topo, e sente-se isolada. Christa
Christa vem de uma família de baixa renda, mas que morava numa região que tinha bons recursos como escolas e museus. Ela foi criada na maior parte do tempo pela mãe, o pai dela era um motorista de longas distâncias e passava grandes períodos longe da família. Tinha dois irmãos, mas foi a única que demonstrou algum interesse pelas ciências. Vendo esse interesse, a mãe de Christa buscou opções para fomentar o interesse da filha;; ela a levava para museus, palestras de cientistas e descobriu um acampamento de verão de paleontologia para a menina passar as férias. Christa vem de uma família muito religiosa e tinha ativa participação na igreja, mesmo nos momentos de faculdade. Christa foi a primeira estudante negra no Instituto de física onde ela estudou e sentia forte pressão por parte da instituição de que ela tinha que ser bem sucedida. Ela era a primeira, ela era a única, ela era o exemplo. Ela era também a primeira da família a ir para a faculdade. Tinha sobre si uma pressão para ser bem sucedida que seus colegas não tinham. Em parte por essa pressão, Christa sofreu um colapso nervoso ao final da graduação. Ao se formar, decidiu sair da academia. Mais tarde, pelo que ela atribui ter sido um chamado divino, ela retornou e ingressou no doutorado. Atualmente Christa é professora numa universidade, líder de um grupo de pesquisa, e dirige seu próprio laboratório. Esther
Esther é mãe, esposa e avó. Ela foi criada pelos avós, após o falecimento da mãe e viveu numa área rural dos Estados Unidos. Cresceu dentro da igreja e a família era bastante religiosa;; o pastor almoçava quase todos os finais de semana na sua casa. Os avós participavam ativamente da vida escolar de Esther. A avó era cozinheira na escola onde ela estudava e o avô era membro da Associação de Pais e Mestres. Esther estudou em escola segregada, num período em que pessoas negras e brancas não podiam estudar nas mesmas escolas nos Estados Unidos. Ela participou do processo de integração das escolas, ainda adolescente. O sonho de Esther era ser professora de ensino fundamental. Ela nunca pensou em ser física, ____________________________________________________________________________________________________
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mas um dia um professor disse para ela que ela deveria fazer física, porque ela era boa aluna em física. Então ela seguiu os conselhos do professor. Durante o curso, ela não gostou da experiência da pesquisa e de laboratórios e ao terminar a graduação foi trabalhar na indústria. Esther reingressou na academia para fazer o doutorado porque só assim ela poderia concluir o sonho de criança e ser professora, porém universitária. Atualmente Esther é professora numa HBCU. Jane
Jane foi criada num grande centro urbano da costa leste dos Estados Unidos. Filha de pais imigrantes do Caribe, ela era da primeira geração de estadunidenses. Seus pais eram professores no país de origem e prezavam muito pela educação dos seis filhos. Era a única filha mulher. Jane também cresceu numa família religiosa. Seu pai era pastor e a família era bastante rígida, não podia ouvir música secular, por exemplo. Os pais queriam que fosse médica;; ela gostava de matemática. Optou por física na faculdade porque foi o curso que oferecia as melhores opções de bolsas e incentivos. Vindo de uma família de baixa renda, esse era um fator importante para Jane. Ao final da graduação, foi trabalhar na área de saúde e não queria fazer pós- graduação. Ela retornou à academia porque viu que as opções dela no laboratório (da área médica) eram limitadas sem um doutorado. Jane teve um longo doutorado, era a única mulher negra no curso e se sentia muito isolada. A família apoiava inicialmente sua decisão, mas depois de um tempo eles não entendiam porque ela ficava estudando por tanto tempo e cobravam quando iria trabalhar e formar uma família. Atualmente Jane dirige um laboratório num centro de pesquisa em física. Ela continua sendo a única mulher negra no trabalho. Shanna
Shanna também cresceu numa grande área urbana;; viveu numa casa de mulheres, foi criada pela mãe, a vó e a tia. A família de Shanna não era religiosa, ela se lembra de ter ido ocasionalmente à igreja. Na escola, participava de clube de ciências e programas de verão oferecidos por escolas de engenharia para atrair jovens negros e pobres para seus cursos. Shanna morou em projetos habitacionais, que são residências populares para pessoas carentes, durante toda a sua vida e ela queria ser diferente das outras crianças, queria ser diferentes do pessoal do bairro. Então decidiu fazer ciências atuariais na faculdade, porque era diferente. Porém acabou fazendo física, pois ganhou uma bolsa integral que restringia a opção do curso por física. Shanna argumenta que todo mundo queria fazer engenharia e ninguém queria fazer física, então havia mais dinheiro para física, para incentivar. Física era diferente o suficiente, então ela fez física. Shanna iniciou o doutorado numa instituição, cursou as disciplinas, mas não passou nos exames de admissão. Então ela foi para outra instituição, que era, ironicamente, de maior prestígio e concorrência. Ela concluiu o doutorado e disse que não queria viver naquele ambiente da academia. Atualmente, Shanna é ____________________________________________________________________________________________________
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pesquisadora num órgão governamental analisando trabalhos de inovação tecnológica e é responsável pelo treinamento de novos pesquisadores. Discussão Ao olharmos para as trajetórias dessas mulheres, ainda que de forma resumida nos perfis aqui apresentados, começamos a ter uma noção mais concreta de algumas dificuldades que essas mulheres vivenciam, como a pressão familiar e social pela excelência. Mulheres negras, na física, são poucas e tratadas, às vezes, como exemplo de superação a ser seguido. Sobre essas mulheres são colocadas expectativas a mais em relação aos outros estudantes e profissionais de física. Muitas são as questões reveladas na análise dos dados coletados neste estudo (ROSA, 2013), entretanto, como proposto inicialmente, concentro-me em alguns pontos relativos ao papel da escola e da comunidade científica nesse percurso. Ao analisar as trajetórias das cientistas que participaram desta pesquisa, observo que a maioria (83%) tem experiências escolares ligadas à ciência e matemática fora do espaço regular da escola. Elas participam de clubes de ciências, programas de férias relacionados com ciências e clubes de matemática e oficinas de ciências e engenharia. Os relatos indicam que as memórias positivas que essas cientistas têm relação a experiências escolares ligadas a ciência vêm de atividades realizadas fora do espaço de aulas regulares. Por exemplo, Shanna integrava um clube de ciências no junior high, equivalente ao segundo ciclo do ensino fundamental no Brasil. Ela diz que “essa é umas das coisas que eu me lembro sobre estar realmente interessada em ciências, fazer parte daquele Clube de Ciências”. Essas experiências podem até ser na escola, mas não são ligadas às disciplinas específicas do programa letivo, são atividades extras. Mais tarde, Shanna faz parte de um programa direcionado a introduzir minorias nas engenharias. Nesse programa, ela vai a diferentes faculdades e tem aulas preparatórias para o semestre seguinte. “E então eu estava cercada por um bando de adolescentes que estavam interessados em matemática e ciências e engenharia, pelo menos fora da escola regular”, ela aponta. O convite para fazer parte da ciência é feito por escolas, universidades e instituições de pesquisa. Essas esferas têm, portanto, um papel central em atrair grupos minoritários na ciência para a área. Outro traço comum na vida das cientistas entrevistadas refere-se à fase acadêmica de seus estudos. Nesse período, quando já estão nos cursos de graduação em física, algo que elas relatam como sendo significativo na experiência para se tornar cientistas é a participação em programas de pesquisa em ciências, algo similar aos programas de iniciação científica que temos em nossas universidades brasileiras. Todas as entrevistadas relatam a participação em atividades desse tipo. Entretanto, mais do que programas de iniciação científica, esses programas envolvem estágios em outras instituições ou laboratórios, seja na área acadêmica ou na indústria. A configuração desses estágios pode ser considerada uma comunidade de práticas (LAVE, WENGER, 1998), pois as cientistas-em-formação têm a oportunidade de conviver com profissionais experientes e viver situações autênticas do fazer ciências. É interessante mencionar que, embora as entrevistadas relatem situações de discriminação e preconceito durante a graduação e pós-graduação em suas instituições de origem, o mesmo não acontece em relação às experiências nessas comunidades de práticas científicas.
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Neste trabalho, não foi possível identificar a razão disso, mas é algo para ser olhado no futuro. Finalmente, gostaria de falar um pouco sobre o processo de exclusão que ocorre durante a formação dessas cientistas negras e que foi relatado por todas. Os relatos se referem ao isolamento sofrido por essas mulheres e em como isso é prejudicial para o desenvolvimento acadêmico delas. Elas são excluídas de espaços sociais, ao não serem convidadas para eventos organizados por colegas, por exemplo, ou para participar em grupos de estudo. A questão dos grupos de estudo é particularmente interessante e discuto mais sobre isso em outro trabalho (ROSA, 2015). As entrevistadas falam do sentimento de estar em um espaço ao qual não pertencem ao participarem de congressos. Nessas ocasiões, sentem os olhares de estranheza, como se estivessem no lugar errado e ao apresentarem trabalhos, têm a impressão de que não são levadas a sério em suas pesquisas. Para superar as dificuldades enfrentadas, as cientistas desenvolvem diferentes estratégias ao longo da formação. Essas estratégias envolvem, por exemplo, a associação a outros estudantes negros na universidade, mas que não estão na área científica. Isso contribui no enfrentamento do sentimento de isolamento, mas não ajuda na parte acadêmica em relação à aprendizagem dos conteúdos. Para isso, uma estratégia adotada foi a de “invadir” os grupos de estudo. Uma das entrevistadas relata que tentava descobrir o horário e local de encontro em que seus colegas iriam se encontrar e simplesmente aparecia, mesmo eles continuando a não convidá-la. Às vezes ela levava biscoitos para o grupo. Conclusões Os relatos dessas mulheres podem contribuir significativamente para nossa discussão em como enfrentar a subrepresentatividade de pessoas negras nas ciências, de maneira geral, e na física, em particular. Os dados sugerem que a criação de programas acadêmicos que incentivem a prática da ciência é positiva para atrair grupos geralmente excluídos dessa área. Além disso, a escola tem um papel fundamental em organizar espaços que promovam atividades em caráter científico, estimulando o debate, a curiosidade e o uso de procedimentos da ciência. Outra questão que as experiências de vida relatadas apontam é a da importância de projetos voltados especificamente para atrair grupos subrepresentados na física. Assim como a Lei 10.639/2003 é explícita ao exigir uma educação para as relações étnico-raciais, a inserção de pessoas negras e outros grupos que estão em minoria na ciência exigem ações explícitas para a inclusão. Algumas dessas ações requerem políticas públicas e financiamento de agências de fomento à pesquisa, mas há outras medidas que podem contribuir para a inclusão e que dependem diretamente de cada professora, professor, gestores e gestoras escolares, seja em nível de Educação Básica ou Superior. A questão da socialização nas universidades, por exemplo, pode ser incentivada pelos departamentos de física através da organização (e financiamento) de happy hours, debates e outras confraternizações que permitam a estudantes a formação de uma rede de contatos. É claro que isso não garante que essas redes irão se formar, mas o movimento institucional para a socialização oferece um caminho. Além disso, os departamentos deveriam considerar a busca de pesquisadoras e pesquisadores de diversas origens étnicas para proferir palestras na instituição. Ao organizar eventos, devem-se incluir palestrantes de diversas ____________________________________________________________________________________________________
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regiões do país, diferentes raças/etnias, homens e mulheres, ou seja, mostrar a comunidade da física de forma mais diversa, não apenas de homens brancos (do sul-sudeste). Já na sala de aula, incluir no ensino da física a contribuição de pesquisadores negros e pesquisadoras negras, é um reconhecimento de que a população afrodescendente tem contribuições para a ciência. Por fim, gostaria de lembrar o quão importante é que estejamos, enquanto professoras e professores, com a atenção voltada para nossas ações em sala de aula. Muitas vezes reproduzimos discursos e práticas que legitimam a discriminação e o preconceito;; afinal, não somos imunes à sociedade em que vivemos, e transformamos nossas salas de aula em espaços de exclusão. Somos responsáveis por dirimir as tensões étnico-raciais em nosso país e as salas de aula de física, os laboratórios de pesquisa e os eventos científicos não são lugares isentos. Se fingirmos que são, estaremos sendo coniventes com a exclusão e a opressão. Referências BARTON, Angela Calabrese. Feminist science education. New York: Teachers College Press, 1998. BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, 9 de jan. 2003. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer n.º CNE/CP 003/2004, que instituiu as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. . Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, 10 de mar. de 2004. COLLINS, Patricia. Black feminist thought: Knowledge, consciousness, and the politics of empowerment. New York: Routledge, 2000. DELGADO, Richard. Critical race theory: The cutting edge. Philadelphia: Temple University Press, 1995. GRUPO DE TRABALHO SOBRE AS MULHERES NA FÍSICA – IUPAP. Disponível em:http://www.if.ufrgs.br/iupap/ Acesso em: 20 de janeiro, 2015. HOLLAND, Dorothy et. al. Identity and agency in cultural worlds. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1998. LAVE, Jean;; WENGER, Etienne. Communities of practice: Learning, meaning, and identity. New York, NY: Cambridge University Press, 1998. LETA, Jacqueline. As mulheres na ciência brasileira: Crescimento, contrastes e um perfil de sucesso. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 271-284, Sept./Dec. 2003. ROSA, Katemari. Gênero e etnia no ensino de Física: o cenário da investigação brasileira. Trabalho apresentado ao VI Encontro da rede Brasileira de estudos e pesquisas feministas – REDEFEM, Belo Horizonte, 2008. ROSA, Katemari. Gender, Ethnicity, and Physics Education: Understanding How Black Women Build Their Identities as Scientists. Columbia University, 2013, 190 p. ____________________________________________________________________________________________________
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Tese de (Doutorado) - Executive Committee of the Graduate School of Arts and Sciences, Columbia University, New York, 2013. ROSA, Katemari;; MENSAH, Felicia Moore. (2015). Educational pathways of Black women physicists: Stories of life. No prelo. SOLÓRZANO, Daniel;; YOSSO, Tara. Critical race methodology: Counter-storytelling as an analytical framework for education research. Qualitative Inquiry, v. 8, n. 1, 23- 44, February 2002.
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