A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade

July 29, 2017 | Autor: Manuel de Sousa | Categoria: Architecture, Urbanism, History of photography, Portugal (History), Porto
Share Embed


Descrição do Produto

A PRAÇA: DO CASAL DE PAIO DE NOVAIS À PRAÇA DA LIBERDADE Texto de Manuel de Sousa 8 nov 2014

A cidade do Porto tem várias praças, mas há uma que se destaca das demais ao ponto de, muitas vezes, ter sido designada simplesmente como “A Praça”. Referimo-nos à praça da Liberdade, o coração da Baixa. Escrevendo em 1914, Firmino Pereira destacava um certo ascendente que o Porto – corporizado na Praça – tinha sobre a capital. «O Rossio tinha engulhos quando lhe constava que a Praça Nova se impunha. E do rei D. Luís se conta que, em certa ocasião agitada, chamara o Fontes [Pereira de Melo] e lhe dissera, entre aterrado e medroso: – O Porto não está contente, o Porto mexe-se. O melhor é o ministério cair para evitar qualquer bernarda». E Aquilino: «Esta Praça é que foi a verdadeira Universidade, não apenas do Porto, mas de Portugal. Dali saiu a geração que contribuiu em boa parte para fazer a República e que arejou as letras». Mas, que fatores contribuíram para que este local se tornasse o centro da cidade?

imagem 01 Na verdade, no tempo da cidade dos bispos, foi em torno da Sé que se estabeleceram os órgãos essenciais à vida do burgo, protegidos pela cerca de muralha primitiva. O desenvolvimento do comércio fluvial e marítimo fez deslocar o centro para a beira-rio. O pulsar da cidade passou a sentir-se na praça da Ribeira, estendendo-se até à rua Nova dos Ingleses (hoje, rua do Infante D. Henrique) e ao largo de São Domingos, onde, nas arcadas do mosteiro dominicano, se reunia frequentemente a Câmara.

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade

1

No entanto, duas intervenções do rei D. Manuel I acabaram por ajudar a fazer “subir” a Baixa. A construção do mosteiro de São Bento de Avé-Maria (onde hoje está a estação ferroviária de São Bento), em 1518 [imagem 01], e a abertura da rua de Santa Catarina das Flores (hoje, apenas rua das Flores), em 1521. O novo arruamento passou a ligar o movimentado largo de São Domingos ao novo mosteiro feminino de São Bento. O mosteiro ficava no limite norte da muralha fernandina, mesmo ao lado da porta de Carros, de onde partia a estrada de Guimarães (a que hoje corresponde a rua do Bonjardim). Na zona extramuros, havia uma grande propriedade agrícola chamada casal de Paio de Novais, da qual fazia parte uma área de cultivo a poente da porta de Carros, vulgarmente chamada campo das Hortas. Entretanto, nas proximidades, fixam-se mais dois mosteiros: o dos cónegos de santo Elói, intramuros (com frente para o atual largo dos Loios); e o da congregação de São Filipe de Néri, os conhecidos congregados, cuja igreja persiste até aos nossos dias [imagem 02].

imagem 02 Em 1721, o campo assume a designação de praça Nova das Hortas ou, mais comummente, apenas praça Nova. Por essa altura, a sul da praça corria ainda a muralha fernandina; a nascente ficavam os dormitórios dos Congregados; a poente, uma série de pequenos prédios; a norte, dois edifícios de boa traça – os palacetes de Morais Alão Amorim e de Monteiro Moreira.

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade

2

imagem 03 Entretanto, a cidade assiste a um grande desenvolvimento económico, a par de um fulgurante crescimento demográfico. Como forma de enquadrar a expansão urbana do burgo, sob a égide do marquês de Pombal, é criada em 1758 a Junta de Obras Públicas do Porto, liderada por João de Almada e Melo. De entre as numerosas melhorias urbanas impulsionadas por João de Almada, incluem-se a abertura das ruas dos Clérigos e de Santo António (hoje de 31 de Janeiro) [imagem 03], ligando as igrejas dos Clérigos e de Santo Ildefonso, através da praça Nova.

imagem 04 Muito importante para o desenvolvimento da Praça foi a iniciativa dos padres loios de, em 1794, procederem à demolição de um lanço das muralhas, iniciando a construção do seu novo convento com frente para a Praça [imagem 04]. As obras foram-se arrastando e já não chegaram a ser concluídas pelos Loios. Entretanto, dão-se os episódios das invasões francesas, da transferência da família real para o Brasil e da administração inglesa do território metropolitano. Em 1819, os serviços da Câmara instalam-se no palacete Monteiro Moreira, na frente norte da Praça, coroando o edifício com a célebre estátua de um guerreiro, intitulada “O Porto” [imagem 05]. A praça Nova consagra-se como local da centralidade simbólica, institucional e administrativa do Porto.

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade

3

imagem 05 Foi da varanda deste edifício que, a 24 de agosto de 1820, foi proclamada a Junta Provisória do Governo Supremo do Reino, com o objetivo de convocar Cortes para elaborar uma Constituição. A praça Nova passou, oficialmente, a praça da Constituição, designaç o ue manteve até 1823, quando os ventos da história começaram a soprar em sentido contrário e o terror miguelista se fez sentir de forma implacável. Foi na Praça que, a 7 de maio e a 9 de outubro de 1829, subiram ao patíbulo os, mais tarde chamados, Mártires da Liberdade, por terem tomado parte na revolta contra D. Miguel. Por sentença judicial, depois de enforcados foram-lhes cortadas as cabeças que ficaram em exposição pública. Quando o desenrolar dos acontecimentos voltou a favorecer os liberais, em 1832, a Câmara decidiu substituir o antigo nome da praça pelo de D. Pedro. Com o triunfo definitivo dos liberais, em 1834 as ordens religiosas são extintas em Portugal. Os conventos dos Loios e dos congregados são confiscados pelo Estado e vendidos em hasta pública. Do antigo convento dos padres congregados é conservada a igreja, mas os antigos dormitórios são divididos por diversos proprietários que vão rentabilizando da melhor forma os seus lotes [imagem 06]. Neste espaço, que representa a frente nascente da Praça, abriram as suas portas diversos estabelecimentos comerciais que marcaram a vida da cidade. Na esquina com os Congregados, existiu o famoso café Guichard, muito frequentado pelos literatos da época, a que sucedeu, um pouco mais ao lado, o Camanho [imagem 07]. No mesmo lado da praça, existiam as duas relojoarias de maior prestígio na cidade: Geremy Girod e Germano Courrège. Na esquina da praça com Sampaio Bruno (inicialmente chamada rua de Sá da Bandeira), em 1864 existiu o café Portuense, vizinho da farmácia Birra. Mais tarde, o Portuense seria substituído pelo café Suíço. Ao lado da farmácia Birra, o café Central que cedeu lugar ao Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade

4

Imperial, espaço atualmente ocupado por um restaurante de uma cadeia internacional de comida rápida.

imagem 06

imagem 07 Na parte sul da praça, o edifício inacabado do convento dos Loios foi arrematado por Manuel Cardoso com o compromisso de o terminar, respeitando o projeto inicial. O facto de a obra ter sido finalizada pela sua viúva e filhas terá determinado que o passeio em frente tenha ficado conhecido como passeio das Cardosas e o prédio como edifício das Cardosas [imagem 08].

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade

5

Neste grandioso prédio fixaram-se numerosos estabelecimentos comerciais. No gaveto com a praça de Almeida Garrett estabeleceu-se o café Astória [imagem 09]. Um pouco mais ao lado, esteve instalada a dependência no Porto do Banco Angola e Metrópole, do célebre Alves dos Reis, em cujo cofre, em 1925, os inspetores detetam duas notas de banco de 500 escudos com o mesmo número de série, pondo a descoberto a maior falsificação de sempre em Portugal. Muito próximo esteve a conhecida loja de artigos de caça Casa Laporte que, a toda a largura do estabelecimento, ostentava como tabuleta uma enorme réplica de uma imagem 08 espingarda. O espaço ocupado pela filial do Banco Comercial do Porto, em 1933, daria lugar à conhecida farmácia Vitália. Já no gaveto com o largo dos Loios, em meados do século XIX, funcionou a livraria Moré, considerada a melhor do Porto e frequentada por nomes como Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro e Ramalho Ortigão.

imagem 09

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade

6

Após profundas obras de remodelação de todo o edifício, em 2011 aqui abriu um hotel de luxo de uma cadeia internacional, recuperando-se a designação Astória num novo café-restaurante pertencente ao hotel.

imagem 10

imagem 11 Ao contrário das outras frentes da praça, do ponto de vista arquitetónico, o lado poente sempre foi o mais heterogéneo. No século XIX, este era o local predileto das cervejarias, dos restaurantes e das casas de pasto. Aqui esteve também a Flora Portuense – estabelecimento de Aurélio da Paz dos Reis, entusiasta da fotografia e pioneiro do cinema em Portugal – e a farmácia Albano – a mais antiga da Praça e fornecedora da Casa Real [imagem 10]. Sensivelmente a meio da frente poente da praça havia uma estreita travessa que ligava a Praça Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade

7

à rua do Almada, chamada viela da Polé [imagem 11]. Em 1917, a construção do edifício do Banco de Portugal ditou a definitiva eliminação desta antiga travessa. Todos os lotes para norte da viela da Polé encontravam-se mais recuados em relação aos restantes, formando um pequeno largo dentro da Praça. Foi aqui que existiu uma fonte com o respetivo tanque, mandada fazer por Francisco de Almada, onde os cavalos dos trens de aluguer que operavam na praça iam beber.

imagem 12

imagem 13

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade

8

O topo norte da praça era ocupado pelos palacetes de Morais Alão Amorim e de Monteiro Moreira, onde funcionava a sede da edilidade [imagem 12]. Desde o episódio do Cerco do Porto (1832-33) que a vereação acalentava a ideia de vir a construir um momento que homenageasse o Rei-Soldado. Para tal, obteve autorização para que as peças de artilharia inimigas fossem fundidas para que o metal pudesse ser usado no novo monumento. Feito o concurso público em 1862, o vencedor foi o escultor belga Anatole Calmels. Aquando da inauguração, a estátua equestre de D. Pedro IV estava protegida por um gradeamento de ferro e chegou a estar guardada por uma sentinela que ali tinha a respetiva guarida [imagem 13]. Imitando a solução encontrada para revestir o largo do Rossio, em Lisboa, a Câmara do Porto decidiu também calcetar a praça de D. Pedro recorrendo a pequenas pedras de calcário e basalto, justapostas em faixas de cor alternadas, a conhecida “calçada portuguesa”. A empreitada foi adjudicada a artistas vindos de Lisboa e executada em 1882 [imagem 14].

imagem 14 Na segunda metade do século XIX, a praça tornou-se o ponto de encontro de políticos, jornalistas, burgueses e “brasileiros de torna-viagem”. Circulavam pelos cafés, pelas redações dos jornais, pela livraria Moré e muitos, como os autointitulados membros do “Real Clube dos Encostados”, entretinham-se em longas conversas e a admirar quem passava à porta dos estabelecimentos do passeio das Cardosas, a que popularmente se chamava também o “pasmatório dos Loios”. A abertura do tabuleiro superior da ponte Luís I, em 1886, e a chegada do comboio à estação de São Bento (ainda em construção) em 1896 [imagem 15], vieram reforçar a afirmação da Praça e a sua influência sobre a envolvente regional.

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade

9

imagem 15

imagem 16 A Praça era também o local de conspiração. Foi nos cafés da Praça que se preparou a revolta republicana de 31 de janeiro de 1891. A república foi proclamada da varanda da Câmara [imagem 16], sendo arvorada uma bandeira verde-rubra para, poucas horas depois, a guarda municipal sufocar o sonho a tiro de carabina e de canhão. A república acabaria por vingar, mas quase duas décadas mais tarde e a trezentos quilómetros de distância, sendo os portuenses informados da ocorrência por telégrafo [imagem 17]. Em outubro de 1910, o nome da praça é mudado para praça da República e, duas semanas depois, para praça da Liberdade, designação que mantém até hoje.

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade

10

imagem 17 No final do século XIX começa a generalizar-se a ideia de que o centro cívico existente era demasiado exíguo, falando-se na abertura de uma grande avenida central. Após várias propostas, acaba por ser aprovado um projeto do arquiteto inglês Barry Parker que previa a demolição dos paços do Concelho existentes, rasgando-se um ampla avenida, no topo da qual seria erguida os novos paços do Concelho. A 1 de fevereiro de 1916, com a presença do presidente Bernardino Machado, dava-se início à demolição do antigo edifício da Câmara Municipal [imagem 18], inaugurando-se a construção da avenida, primeiro chamada “da Cidade” ou “Central”, depois da Primeira Guerra Mundial, “das Nações Aliadas”, e, mais tarde, apenas “dos Aliados”. A monumentalidade da nova avenida obrigou também à reformulação da frente urbana da praça da Liberdade. Com a exceção do edifício das Cardosas e do da Casa Navarro, todos os restantes foram reconstruídos ou, pelo menos, viram as suas fachadas imagem 18

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade

11

serem profundamente alteradas. No entanto, no contexto alargado dos Aliados, a Praça acabou por perder a sua singularidade inicial [imagem 19].

imagem 19

Manuel de Sousa nasceu em Miragaia em 1965. Licenciado em Ciências Históricas, desenvolveu uma atividade profissional ligada à área empresarial, nomeadamente à Comunicação e ao Marketing, sem nunca ter abandonado o seu interesse pela história da cidade do Porto. Procurando aliar a divulgação da história local com as redes sociais, no início de 2012 criou a página “Porto Desaparecido” no Facebook, cujo sucesso lhe valeu a atribuição da Medalha Municipal de Mérito pela Câmara Municipal do Porto.

Artigo publicado no jornal Porto24 de 4 de novembro de 2014: http://www.porto24.pt/memoria/praca-casal-de-paio-de-novais-praca-da-liberdade/

Manuel de Sousa - A Praça: do casal de Paio de Novais à praça da Liberdade

12

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.