A prática cumulativa de Stanislávski nos ensaios de Artistas e Admiradores (1932-33) - Stefan Aquilina

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AQUILINA, Stefan. Stanislavski’s accumulative practice in Artists and Admirers rehearsals (1932-33). Artigo publicado na Revista Stanislavski Studies #2, disponível em http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/20567790.2013.11428586 Traduzido para fins didáticos por Laédio José Martins, Fev. /2017.

A prática cumulativa de Stanislávski nos ensaios de Artistas e Admiradores (1932-33) Stefan Aquilina Introdução: os ensaios de Artistas e Admiradores nos últimos anos de trabalho de Stanislávski O trabalho do ator sobre os “objetivos” é recorrente ao longo das diferentes fases da carreira de Stanislávski.1 O termo é prontamente associado com seu nome e herança. Bella Merlin observa como traços do trabalho com os objetivos já podiam ser discernidos a partir da direção de Stanislávski para a encenação de A Gaivota, em 1898.2 Sua identificação também foi uma característica importante na análise de mesa e até mesmo os últimos anos de trabalho mostram Stanislávski prosseguindo com interesse marcado pela aplicação dos objetivos na criação de sequências psicofísicas.3 Isso não quer dizer que o trabalho sobre os objetivos não sofreu qualquer alteração ao longo destes quarenta anos ou mais de exploração teatral. De fato, enquanto o interesse pelos objetivos permaneceu constante, pode-se ver Stanislávski mudando o modo pelo qual os objetivos são acessados, por exemplo, de uma prática centrada no diretor, para a discussão e, finalmente, para a improvisação ativa. No entanto, a recorrência de uma consideração como objetivos aponta na direção de uma prática que neste artigo será referida como “cumulativa”. Aqui, irei discutir a prática cumulativa de Stanislávski que emerge das notas de ensaio para a montagem de 1933 de Artistas e Admiradores, de Alexander Ostrovski. Elas apontam que, ao invés de negar práticas que ele alguma vez teve em alta estima – um ponto de vista emergindo de determinados momentos – Stanislávski procurou levar adiante sua prática anterior, ou seja, acumulá-la, para então transformá-la e infundi-la conforme a 

Professor Doutor do Departamento de Estudos Teatrais e Diretor de Pesquisa na escola de Artes Performativas, Universidade de Malta [Department of Theatre Studies, Director of Research, School of Performing Arts, University of Malta]. Pesquisador visitante da Escola de Performance e Indústrias Culturais, Universidade de Leeds – Reino Unido [School of Performance and Cultural Industries,University of Leeds – UK]; Publicou recentemente Stanislávski no Mundo: O Sistema e suas Transformações através dos Continentes [Stanislavsky in the World: The System and its Transformations across Continents]. http://www.bloomsbury.com/uk/stanislavsky-in-the-world-9781472587886 Mais informações em https://www.um.edu.mt/performingarts/theatre/staff/stefan-aquilina N.T.  Таланты и поклонники [Talanty i poklonniki]. Peça de Alexander Ostrovski (1823-1886), estreada em 1881 no Teatro Mali. N.T. 1 O termo em russo é “zadacha”. Ele às vezes é traduzido como “tarefa”. Ver Bella Merlin, Konstantin Stanislávski [Konstantin Stanislavsky] (Londres: Routledge, 2003), 160. 2 Ver, especialmente, Bella Merlin, Konstantin Stanislávski [Konstantin Stanislavsky] (Oxon: Routledge, 2003), 97-98. 3 Este artigo irá tratar especialmente da análise de mesa e dos últimos anos de trabalho de Stanislávski.

necessidade do trabalho em questão. O artigo também avalia os últimos anos de trabalho de Stanislávski, predominantemente definidos como os anos em que ele trabalhou mais marcadamente com a ação física a fim de explorar abordagens alternativas e as técnicas utilizadas. Stanislávski podia ser muito crítico de sua própria prática. Por exemplo, ele abriu as notas para O Inspetor Geral em O Trabalho do Ator Sobre o Papel com uma crítica ao trabalho pela inspiração, a abordagem para o papel pelo exterior, e a análise de mesa, abordagens que ele tinha experimentado em diferentes estágios de sua carreira.4 O relato de Vasili Toporkov sobre o trabalho de Stanislávski oferece mais evidências dessa postura crítica. Uma das fontes mais populares que aborda os últimos anos de trabalho de Stanislávski, o relato de Toporkov engloba os ensaios de três produções – Os Estelionatários [The Embezzlers, de Valentin Kataev] (1928), Almas Mortas [Dead Souls, de Nikolai Gógol] (1932) e Tartufo, [de Molière] (apresentado postumamente em 1939) – para referir-se ao trabalho de Stanislávski sobre a ação física. Tais críticas às abordagens que antes eram bem consideradas aparecem várias vezes no relato de Toporkov, das quais a que segue é um exemplo claro. Neste caso particular, Stanislávski não foi apenas crítico de sua prática anterior, mas na verdade, parece que a está negando completamente: Naquela época, ele considerava a base de seu sistema como o trabalho sobre as ações físicas, e ele afastou tudo o que poderia distrair os atores de seu significado. Quando o lembrávamos de seus métodos muito mais antigos, ele ingenuamente fingia que não entendia o que estávamos falando. Uma vez alguém perguntou: “Qual é a natureza dos ‘estados emocionais’ dos atores nesta cena?” Konstantin Sergeievich pareceu surpreso e disse: “’Estados emocionais’ O que é isso? Eu nunca ouvi falar disso.”5

Está claro, portanto, o foco de Stanislávski na ação física nestes últimos dez anos.6 Este foco está presente nas duas abordagens que caracterizam esses anos, nomeadamente “o Método Konstantin Stanislávski, O Trabalho do Ator Sobre o Papel [An Actor’s Work on a Role], trad. por Jean Benedetti (Oxon: Routledge, 2010), 46. 5 Vasili Toporkov, Stanislavski in Rehearsal, trad. de Christine Edwards (New York: Theatre Arts Books, 1979), 157 [Stanislávski Ensaia. Memórias. Traduzido do Russo para o Português em 2016 por Diego Moschkovich e lançado pela editora É Realizações]. Este exemplo é corroborado pela próxima anedota do relato, em que Stanislávski pede para uma atriz queimar as notas de ensaio para uma de suas montagens anteriores ao invés de tratá-las como algum tipo de tesouro. Ver também [p.] 90 e Konstantin Stanislávski, Minha Vida na Arte, trad. de Jean Benedetti (Oxon: Routledge, 2008), 253. 6 Sobre a prática desenvolvida durante estes últimos anos de trabalho, com uma referência particular feita à ação física, ver Sharon Marie Carnicke, “O Sistema de Stanislávski: Caminhos para o Ator” [Stanislavsky’s system: pathways for the actor], em Alison Hodge (ed.), O Treinamento/A Formação do Ator [Actor Training] (Oxon: Routledge, 2010), 5-23 [https://www.academia.edu/2700819/O_Sistema_de_Stanisl%C3%A1vski_-_Caminhos_para_o_Ator] e Stanislávski em Foco [Stanislavski in Focus] (Oxon: Routledge, 2009), 185-206; Merlin, Konstantin Stanislávski, 27-37; Jean Benedetti, Stanislávski e o Ator [Stanislavski and the Actor] (London: Methuen, 1998), 103-30; e Stanislávski, O Trabalho do Ator Sobre o Papel, 3-90. 4

da Ação Física” e a “Análise Ativa”. Meu artigo não aborda possíveis diferenças entre os dois, mas reconhece a proeminência de Stanislávski sobre a ação que perpassa as duas abordagens, como diz Merlin: “Em ambos os casos, o ator foi atraído em direção às ações físicas e afastado de preocupações com a emoção na atuação, de modo que o processo realmente liberou o subconsciente do ator.”7 Embora consentindo com o foco de Stanislávski sobre a ação, minha leitura do relato de Toporkov e, consequentemente, destes últimos anos de trabalho, defenderá a presença de uma gama mais ampla de práticas de ensaio. Já que as práticas alternativas aparecem timidamente no relato de Toporkov, vou defender uma presença mais marcada dessas alternativas conjuntamente com o trabalho sobre a ação física.8 Em outras palavras, minha pergunta é se Toporkov e os eruditos modernos sobre Stanislávski não tendem a super enfatizar sua inclinação, embora clara, sobre a ação física. Os ensaios de Artistas e Admiradores (1932-33) servirão como um estudo de caso destinado a ilustrar minha discussão sobre a diversidade das práticas e técnicas de ensaio de Stanislávski.9 Escrita por Alexander Ostrovski em 1881, a peça gira em torno de Aleksandra Negina, uma jovem atriz provinciana e seus vários admiradores. A peça atinge o seu clímax quando Negina renuncia ao seu amor por Pyotr (Petya) Meluzov, um universitário jovem e idealista, para viver com Ivan Velikatov, um latifundiário cuja riqueza poderia comprar o seu sucesso no teatro. Os ensaios para a montagem do Teatro de Arte de Moscou desta peça estavam localizados bem no meio da trajetória que Toporkov desenvolveu. De fato, esta produção estreou em 14 de junho de 1933, quando Almas Mortas já estava no repertório há seis meses.10 A imagem que emerge dos ensaios de Artistas e Admiradores mostra Stanislávski convocando uma variedade de práticas acumuladas ao longo dos anos e que ele então incorporou nas situações do ensaio em questão, no processo de alterar estas mesmas práticas para responder aos problemas particulares encontrados no ensaio. As notas de ensaio para esta

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Merlin, Konstantin Stanislávski, 16. Enquanto Benedetti e Robert Leach combinam o Método de Ação Física e a Análise Ativa, Merlin e Carnicke são muito cuidadosas ao delinear as diferenças entre as duas abordagens. Ver: Benedetti, Stanislávski e o Ator, xiv; Robert Leach, Stanislávski e Meyerhold [Stanislavsky and Meyerhold] (Berna: Peter Lang, 2003), 180; Merlin, Konstantin Stanislávski, 33; e Carnicke, Stanislávski em Foco [Stanislavski in focus], 192. 8 Referências em Toporkov à práticas alternativas para a ação física podem ser encontradas nas páginas 42-43 (ensaios de mesa), 88-89 (uso de marcação), 90-91 (imagens interiores) e 102 (improvisação na vida cotidiana). 9 O primeiro ensaio com Stanislávski que foi anotado é 17 de dezembro de 1932. A última anotação é para um ensaio agendado em 16 de maio de 1933. As notas dos ensaios foram tomadas por A. Tarasova, G. Kristi, e B. Zona. As notas de ensaio estão reunidas no volume russo Stanislavskii Repetiruet [Stanislávski Ensaia] (Moscou: Moscow Art Theatre, 2000), editado por I. Vinogradskaia. Eu indico as citações desta fonte, dando os números de página entre parênteses. A tradução do russo especificamente comissionada para este artigo é de Anastasia Lesnikova (Avatar Ltd.). Editado por Maria Kabanova e o autor. 10 Ver Jean Benedetti, Stanislávski: Sua Vida e Arte [Stanislvski: his Life and Art] (Methuen: Londres, 1999), 389.

montagem merecem ser expostas por duas razões. Em primeiro lugar, a referência a esta produção é praticamente inexistente nos estudos em Inglês sobre Stanislávski, uma vez que as transcrições ainda não têm uma tradução publicada.11 Consequentemente, este artigo também serve para introduzir este capítulo desconhecido na carreira de Stanislávski, o que explica minha citação relativamente extensa das notas de ensaio. Em segundo lugar, os ensaios de Artistas e Admiradores estão em uma conjuntura interessante na carreira de Stanislávski, quando os últimos vestígios de seus métodos anteriores, particularmente, como irei discutir, a prática do ensaio de mesa, estavam encontrando a ênfase de Stanislávski na ação. Eu afirmo que a última fase do trabalho de Stanislávski resultou de uma colisão entre a análise de mesa e a ação física. As notas de ensaio corroboram a ênfase na ação física, como o próprio Stanislávski elucidou diversas vezes: Você tem que procurar pela ação tanto nos acontecimentos da peça toda quanto em você. [...] Sempre, para sempre, comece a partir de si mesmo, em todos os personagens que você estiver atuando. Sou eu, agindo nessas circunstâncias dadas pelo autor. Se eu fosse Negina, como agiria nessa ou naquela circunstância? [...] Nunca fale e pense sobre sentimentos e estados de humor, procure pelas ações. (214, ênfase no original) Você tem que conhecer a lógica das ações físicas e como executá-las corretamente, de acordo com a natureza orgânica. Anteriormente eu pensava que, durante o momento de criatividade, o ator precisa disso, e daquilo, e uma terceira coisa. Na verdade, dezenas de vários elementos. Agora posso confirmar [que o ator só precisa] de uma ação física internamente justificada. Essa ação física pode ser a maior conquista do “sistema”. (243, ênfase no original)

Consequentemente, ele sugeriu que o ator representando Martyn Narokov deveria transmitir a admiração por Negina “pelo modo como você irá amarrar a fita no presente dela, o modo que você irá abrir o livro que ela está lendo, o modo como você se sentará na cadeira em que ela se sentou recentemente” (229). Da mesma forma, a falta de atenção de Negina sobre o duque é alcançada por causa da distração causada “pelas sacolas que ela trouxe com ela. Ela está sussurrando com elas. Ela está completamente ocupada por seu trabalho. [...] Ela o ouve, mas continua distraída com as sacolas debaixo da mesa” (217). Essa ênfase sobre a ação física é diluída nas sessões de Artistas e Admiradores através da presença de práticas de ensaio que enfatizam a racionalidade, o trabalho emotivo, a caracterização física e até mesmo a demonstração. A teoria da acumulação que irei desenvolver sustenta isso. Eu uso a “acumulação” de uma forma que lembra a abordagem dialética de Hegel: Num sentido amplo, a dialética de Hegel envolve três etapas: (1) Um ou mais conceitos ou categorias são tomados como fixos, claramente definidos e distintos uns dos outros. Esta é a fase de compreensão. 11

A única fonte que menciona essa produção é Benedetti, Stanislávski: Sua Vida e Arte, mas essas referências são restritas a umas linhas dizendo que a peça estava em ensaio ou no repertório (ver [pp.] 342, 350, 353).

(2) Quando refletimos sobre tais categorias, nelas surgem uma ou mais contradições. Este é o estágio da dialética propriamente dita, ou da razão dialética ou negativa. (3) O resultado dessa dialética é uma categoria nova, superior, a qual abrange as categorias anteriores e resolve a contradição nelas envolvida. Esta é a fase da especulação ou razão positiva. Hegel sugere que esta nova categoria é uma “unidade de opostos” [que] [...] mudam umas nas outras quando são intensificadas. 12

Certas técnicas que Stanislávski experimentou durante as diferentes fases de sua carreira podem ser vistas, num nível superficial, como sendo contraditórias entre si. Elas emergem como fenômenos distintos e opostos inadequados para reconciliação. Na linhagem que emerge da tradição de atuação de Stanislávski, essa distinção era particularmente evidente na tensão entre memória emotiva e ação física, uma tensão que levou à disputa de 1934 entre Lee Strasberg e Stella Adler.13 Tal avaliação que enfatiza a contradição e a negação se alinha à primeira e segunda etapas da dialética de Hegel, a partir das quais o filósofo alemão procurou mover através da aplicação da terceira etapa. No entanto, enquanto Hegel optou pela reflexão racional como uma saída para esse dualismo, Stanislávski sugeriu um confronto com essas técnicas que estavam firmemente enraizadas no trabalho prático. O terceiro passo da dialética de Hegel, “que abrange as categorias anteriores e resolve a contradição nelas envolvida”, está em consonância com a prática cumulativa de Stanislávski. Ela reúne as várias técnicas de trabalho e abordagens desenvolvidas ao longo dos anos, não para negar umas às outras, mas para na verdade, apoiar um terreno comum que é o trabalho do ator sobre o papel. É desta forma que a “acumulação” será tratada neste artigo.

Acumulando características da análise de mesa.

Darei alguns exemplos de quando a prática cumulativa de Stanislávski esteve mais clara. Por exemplo, vários ensaios de Artistas e Admiradores relembram a análise de mesa que Stanislávski havia experimentado desde 1906 até a década de 1920. Ao invés de trabalhar sozinho na criação da encenação, a abordagem do ensaio de mesa mostra Stanislávski reunindo os atores para examinar o texto da peça em conjunto. Através de uma metodologia de pesquisa que se baseou fortemente na discussão colaborativa, os participantes estudaram detalhes como a estrutura da peça e suas ações e objetivos inerentes, as possíveis relações entre os personagens, os estados emocionais e os contextos sociopolíticos. Foi dada atenção para as biografias dos personagens bem como para a linguagem do autor.14 Era, na verdade, uma

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Michael Inwood, Dicionário Hegel (Massachusetts: Blackwell Publishers, 1992), 81-82. Jonathan Pitches, A Ciência e a Tradição Stanislávski de Atuação [Science and the Stanislavsky Tradition of Acting] (London: Routledge, 2006), 86. 14 Para uma exposição detalhada da análise de mesa ver Stanislávski, O Trabalho do Ator Sobre o Papel, 98-133. 13

disputa analítica com o texto e o subtexto da peça que ajudava os participantes a ponderar os detalhes mais sutis da peça, mas também tendiam, se deixados sem seleção, a subjugá-los com uma enorme quantidade de material. A intenção de Stanislávski com este trabalho era também contrariar as acusações de “diretor-ditador” pelas quais ele era conhecido durante os primeiros anos do Teatro de Arte de Moscou.15 Na verdade, Merlin argumentou que a análise de mesa deu possibilidades criativas para aos atores fazendo deles colaboradores no trabalho sobre uma montagem.16 A seguir estão alguns exemplos em que algumas das características acima referidas dos ensaios de mesa também aparecem nos ensaios de Artistas e Admiradores – nomeadamente, os estudos da linguagem do autor, o plano estético e o contexto sociopolítico. Foi dada atenção à linguagem do autor quando Stanislávski contrastou Ostrovksi com Tchekhov para destacar o estilo de escrita e técnica dramatúrgica do primeiro: “[Ao contrário de Tchekhov,] as heroínas de Ostrovski nunca sucumbem à pressão da vida. Elas ainda tentam alcançar seu objetivo, e tentam fazê-lo por todos os meios” (225).17 A “exploração do plano estético”, outro aspecto da análise de mesa identificado por Leach, foi também evidente quando Stanislávski discutiu o grotesco.18 De acordo com Stanislávski, há profundidades e complexidades no grotesco que vão além da dimensão exterior exagerada com a qual esta estética foi frequentemente tratada: “Mostre ao invés o mundo interior [do personagem] [...]. O grotesco não significa o exagero das coisas. [...] [Ele] oferece uma profundidade ilimitada de características, mas não as entendemos ainda. Hoje em dia, o grotesco está só conduzindo para imagens estáticas” (227). A análise do contexto sociopolítico da peça reforça a presença, nos ensaios de Artistas e Admiradores, de certas características que foram exploradas por um tempo em ensaios de mesa. Esta análise foi tratada diferentemente durante dois ensaios separados, nos dias 16 e 23 de janeiro de 1933. A proposta de casamento malsucedida do Duque para Negina foi ensaiada no dia 16. O problema encontrado neste ensaio foi que Alla Tarasova, a atriz interpretando Negina, estava se precipitando em responder ao Duque, prejudicando assim o desenvolvimento dramático da cena. Stanislávski sugeriu o seguinte para retardar a recusa de Tarasova. Ele contrastou a mulher do século XIX, das quais Negina era uma representante, com sua contraparte moderna. Esta última, durante aquelas primeiras décadas de domínio soviético “aprendendo como administrar sua vida e a se comportar no mesmo nível que um homem”

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Ver Mel Gordon, A Técnica de Stanislávski: Rússia [The Stanislavsky Technique: Russia] (Nova Iorque: Applause Theatre Book Publishers), 19. 16 Ver Merlin, Konstantin Stanislávski, 15-16. 17 Outra justaposição entre Ostrovski e Tchekhov aparece na página 232. 18 Leach, Stanislávski e Meyerhold, 90.

(218), mas essa igualdade de pensamento não era possível para Negina. Consequentemente, uma compreensão da mulher do século XIX era necessária para Tarasova justificar sua prolongada reação ao que o Duque estava perguntando, e foi a partir deste ponto de vista que Stanislávski primeiramente pediu que Tarasova desempenhasse o papel. Tal verdade histórica não foi exigida no ensaio de 23 de janeiro, em que uma cena entre Negina e Petya foi ensaiada. Ao discutir o papel de Negina como tinha sido interpretado por Maria Ermolova, uma celebrada atriz da Era de Prata Russa,19 Stanislávski observou como esta última tinha desempenhado o papel, acentuando características que eram importantes para o seu público e contexto social contemporâneo. No entanto, “temos de chegar a Ostrovski de acordo com as tendências de hoje, e não como era [representado] antes” (225), ou seja, através das características sóciopolíticas evidentes no início dos anos 1930, quando a peça estava sendo ensaiada. Essa mudança de conduta era necessária para responder a um novo problema que Tarasova estava tendo em seu trabalho sobre o papel, o de confiar demais em sua interpretação de Negina a partir daquela de Ermolova. Esta última interpretou o papel como alguém que rejeitou a felicidade pessoal. Por sua parte, Stanislávski sugeriu um ponto de vista mais moderno, enfatizando o direito das mulheres de desenvolverem suas próprias carreiras. Ele também fez isso para desprender Tarasova da interpretação de Ermolova e melhor orientá-la para desenvolver seu talento individual, que ele mantinha em muito alta estima (230). É porque a prática de Stanislávski concedeu espaço para a acumulação que estas duas peças contrastantes de aconselhamento podiam ser expressas dentro de tão curto espaço de tempo. Ao invés de dogmatizar a prática anterior (o estudo do contexto sócio-político em ensaio de mesa) Stanislávski acumulou-o como uma parte importante de sua bagagem de ensaio. Dois desenvolvimentos diferentes foram dados a isso, a partir dos quais o ator e o diretor podem então escolher em resposta a situações específicas do ensaio. Alguém pode ser crítico de Stanislávski aqui, em que ele pode ser visto oferecendo contradições e, consequentemente confundindo a análise do papel e da peça. No entanto, a proximidade destes dois ensaios mostra como era fácil para Stanislávski transitar facilmente ao longo de toda a sua experiência acumulada. O que emerge das anedotas acima é um deslocamento de certas características de sua fonte original num momento em que essa fonte tinha sido quase completamente abandonada. Essas características de ensaio ainda são racionalmente processadas de forma semelhante à análise de mesa. Embora também fossem dirigidas às faculdades emotivas e imaginativas do 19

Ver Catherine A. Schuler, Mulheres no Teatro Russo. A Atriz na Era de Prata [Women in Russian Theatre. The actress in the Silver Age] (Londres e Nova York: Routledge, 1996), especialmente [pp.] 76-85.

ator, a análise de mesa dialogava principalmente com racionalidade do ator. Por exemplo, Merlin descreveu essa análise como de natureza “cerebral”.20 Tal racionalidade dos ensaios de mesa permeia os ensaios de Artistas e Admiradores para se encaixar nos modos característicos mais práticos e imediatos do trabalho sobre a ação física. O modo racional esteve presente durante os ensaios destinados a gerar a biografia do personagem, como no caso a seguir: Petya está acostumado a conversar com professores, mas ele se sente desconfortável próximo de pessoas de negócios. Ele fala com eles com o tom que usa para relatar um problema. Ele é ingênuo, uma alma brilhante e infantil, mas na empresa ele é uma aberração. Ele é irregular em seu caminhar (ele gosta de andar sobre os quadrados do parquet), míope e com uma falta de eloquência. (221)

As relações entre os personagens foram analisadas de modo semelhante: Negina se move entre três círculos encantados: Petya, Velikatov, e o teatro. É o teatro que ganha. Petya leva uma vida familiar modesta, num ambiente burguês. Com Velikatov seria um relacionamento pecaminoso que a faria parecer abastada. Mesmo assim, Velikatov é seu caminho para o teatro, uma vez que ele é um admirador do seu talento. Ela está pronta para dar tudo a alguém que reviva sua crença em si mesma como atriz. Portanto, ela não se deixa levar por ele para se tornar uma burguesa, mas para renunciar a si mesma em nome da arte. (225)

As trocas de um momento dramático para o outro se prestavam particularmente bem a esse modo racional e analítico: Toda a transição de uma condição para outra pode ser baseada sobre [o que segue]. Elas [Negina e sua mãe] pensaram primeiro que tinham que se tornar ricas. Então, pouco a pouco, as coisas se resolvem e elas descobrem que não é realmente assim. As palavras de Negina “Será mais difícil sem o salário” não podem ser carregadas com cores dramáticas. É o bastante para remover a animação. Se o termômetro estava marcando 18 graus e você de repente o leva para fora no frio, ele irá ainda diminuir de 18 para 17, de 17 para 16, etc [...]Mais adiante chegamos à palavra “mendicância”. Está ligeiramente abaixo de 0 lá, mas como geralmente acontece na vida, afaste para longe o que é desagradável. (220)21

Tratar a prática de Stanislávski como cumulativa também eleva em importância suas técnicas e abordagens iniciais. O ensaio de mesa não se torna um parêntese temporal na carreira de Stanislávski, aberto quando abordagens alternativas foram exploradas. A prática cumulativa trata o ensaio de mesa como uma importante progressão na linha que conduziu aos seus últimos anos de trabalho, especialmente através de sua ênfase na racionalidade que foi subsequentemente infundida com a improvisação explorada na Análise Ativa.22 A parte analítica de trabalhar sobre o papel em ensaios de mesa invariavelmente levou vários meses.

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Merlin, Konstantin Stanislávski, 20. Uma abordagem racional semelhante é também evidente nas páginas 217, 218, 219, 222, 224, 226, 229 e 235. 22 Sobre o papel da improvisação na prática da Análise Ativa, ver Sharon Carnicke, “A Técnica Knébel: Análise Ativa na Prática” [The Knebel Technique: Active Analysis in Practice], em O Treinamento/A Formação do Ator [Actor Training], 106; [https://www.academia.edu/27596624/A_T%C3%89CNICA_KN%C3%89BEL_A_AN%C3%81LISE_ATIV A_NA_PR%C3%81TICA_-_Sharon_Marie_Carnicke] Carnicke, Stanislávski em Foco, 202; e Merlin, Konstantin Stanislávski, 32-35. 21

Também foi separado do trabalho prático no palco, uma vez que os atores só se moviam para o ensaio de fato quando eles sentiam que o trabalho de mesa tinha sido esgotado. Tal separação não era evidente durante os ensaios de Artistas e Admiradores, como mostra o ensaio de 23 de janeiro. Depois de uma intervenção explicativa particularmente longa de Stanislávski, em que foi discutido o uso das pausas por Ostrovski, foi oferecido um convite aos atores para experimentarem tudo o que fora “dito na prática” (226). A análise de mesa foi originalmente separada do ensaio ativo no palco, mas o acúmulo de algumas de suas características permitiu que Stanislávski transitasse facilmente entre os diferentes modos de ensaio.23

A presença de trabalho emotivo e demonstrações

Tratar a prática de Stanislávski como cumulativa também exige uma reavaliação de seus últimos anos de atividade, durante os quais ele pode não ter sido tão apegado sobre a ação física quanto um cronista como Toporkov o fez ser. Isso emerge de um ensaio da última cena em Artistas e Admiradores, quando muitos dos personagens estão juntos no palco para a despedida de Negina e Velikatov. Depois da partida de Negina da estação ferroviária, Petya começa a refletir sobre o estado em que ele se encontra (sua amada o deixou para seguir carreira no teatro). Ao invés de consolá-lo, todos os outros personagens começam a zombar de sua retórica filosófica. Os atores estavam tendo problemas com isso, uma vez que não podiam delinear imagens de palco interessantes o bastante. Seus comportamentos eram muito parecidos uns aos outros. A solução de Stanislávski para este problema em particular foi dirigida não através da ação física, mas através de um ângulo emotivo. Ele pediu aos atores que zombassem de Petya de diferentes maneiras, mas em vez de sugerir ritmos ou ações diferentes, ele sugeriu estados emocionais e psicológicos para que os atores trabalhassem: “Métodos diferentes devem ser usados para zombar de Petya. Por exemplo: 1) muito alegremente; 2) ironicamente, enquanto se esconde o riso; 3) com admiração irônica; 4) com entusiasmo; 5) chocado, próximo da imobilidade” (223). A importância dada ao trabalho emotivo aparece de novo a partir de um exercício muito peculiar que Stanislávski usou em outra sessão. O exercício foi o seguinte: A fim de manter as coisas frescas e encontrar a verdade da peça, escreva uma lista dos diferentes sentimentos de uma cena, como ódio, gentileza, amor, sagacidade, etc. Escolha um com os olhos fechados e veja como as coisas seriam se você fosse guiado por este ou aquele sentimento em particular. (238)

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Sobre as dificuldades gerais encontradas na transferência dos ensaios para o grande palco, ver Benedetti, Stanislávski: Sua vida e Arte, 192-93. Benedetti refere-se aqui à montagem de 1909 de Um Mês no Campo [A Month in the Country]. Ver também Os Ensaios de Artistas e Admiradores, 244-45.

Mais ou menos na mesma época, Stanislávski encorajaria os atores a revigorar o trabalho sobre um determinado papel, fragmentando continuamente suas ações físicas. 24 No entanto, nesse caso em particular, ele propôs a emotividade inerente nesse exercício como um meio para revitalizar o trabalho do ator. Tal fluidez em suas práticas de ensaio é prova de que seu trabalho sobre a ação física não impossibilita uma aplicação consciente de abordagens mais emotivas quando foram estas que forneceram soluções mais imediatas aos problemas encontrados. O que segue é outra consideração emotiva presente nos ensaios. Observe como neste caso os estados emotivos também foram processados racionalmente de um modo que de novo lembra a abordagem do ensaio de mesa, acentuando a presença deste modo de ensaio durante os últimos anos de trabalho de Stanislávski: [Tarasova] Então, afinal ela [Negina] ama [Petya] fortemente? [Stanislávski] É claro que ela o ama, mas como? A qualidade é tudo. Não olhe superficialmente para as emoções humanas. Isso é um grande pecado para os atores. Cada paixão, como o amor, o ciúme, e assim por diante, tem um número infinito de tonalidades diferentes. Há amor por um amigo, por sua mãe, por seu irmão, por seu marido, por seu amante, há o amor pecador, o amor platônico, amor gentil, o amor iluminado e o das trevas. Cada um deles pode ser um amor forte, mas eles são todos diferentes. (241)

Portanto, a prática de Stanislávski durante esses últimos anos de trabalho não necessariamente negava abordagens mais emotivas. Foi a ordem de importância que mudou. Ao invés de tratar as emoções como o gerador primário do material da atuação, elas são processadas analiticamente depois que “a sequência de ações” (238) é criada. Tal mudança de ordem é característica da prática cumulativa.25 Isso recorre na discussão de Stanislávski, durante os ensaios de Artistas e Admiradores, para abordagens como caracterização física e a observação da vida. Essas práticas em algum momento haviam ocupado posições importantes na visão de Stanislávski, as quais ele às vezes usou para iniciar o trabalho sobre um papel.26 Nesses últimos anos de trabalho, sua presença permaneceu, mas tal posição iniciática foi transferida para a ação física. Por exemplo: “Verifique a sua fala na peça [...], e desta forma você abordará o que é típico da vida interior do papel. Depois disso, pegue dez perucas, dez barbas, dez bigodes e cole-os em várias combinações. Você tem que encontrar a aparência que irá refletir melhor a natureza interior” (235, ênfase no original). Um exemplo parecido aparece quando Anastasia Zueva, a atriz que interpreta Domna Pantelevna, comenta como ela se aproximou do papel através da observação da vida. Stanislávski não foi, em princípio, contrário 24

Veja as etapas 7 e 9 do “plano para o diretor (e indiretamente para o intérprete) incorporar o Método de Ações Físicas no processo de ensaio”, em Gordon, A Técnica de Stanislávski [The Stanislavsky Technique], 209-10. 25 A presença tardia da “memória emocional” é corroborada em um gráfico supostamente ditado em 1934 por Stanislávski a Stella Adler, que colocou esta técnica como um dos muitos outros aspectos do trabalho do ator. Em Pitches, A Ciência e a Tradição Stanislávski de Atuação, 119. 26 Ver Stanislávski, Minha Vida na Arte, 91-96, 150-53, e 222-26.

a esta abordagem, mas também advertiu a atriz para não confiar unicamente nisso (229). A abordagem cumulativa de Stanislávski não negou práticas anteriores, mas sim mudou a posição e a ordem de importância que elas carregam no trabalho do ator sobre o papel. Algumas práticas em Artistas e Admiradores contrastam claramente com uma série de casos de ensaio evidenciados no relato de Toporkov, uma prova adicional de que a prática de Stanislávski foi aquela que antes de negar, acumulou abordagens anteriores. Um desses casos diz respeito à demonstração da forma, que está ausente no relato de Toporkov, mas presente nos ensaios de Artistas e Admiradores. Durante os ensaios de Almas Mortas, Toporkov estava encontrando dificuldades em criar uma reverência característica de Chichikov, o papel que ele estava representando. Um atalho para resolver este problema poderia ter sido Stanislávski simplesmente mostrar a reverência para Toporkov imitar. No entanto, ao invés de demonstrar a reverência, Stanislávski sugeriu o seguinte exercício: “mentalmente coloque uma gota de mercúrio no topo de sua cabeça e então deixe-a rolar lentamente espinha abaixo para os seus calcanhares de modo que ela não caia no chão. Pratique este exercício várias vezes ao dia.” 27 Um ensaio de Artistas e Admiradores mostra uma tática diferente. O contexto é parecido ao exemplo da reverência, já que o ator estava novamente encontrando dificuldade em realizar uma tarefa física específica, desta vez um abraço específico chamado de “abraço de urso” (223). Ao invés de incitar o ator para um possível caminho (um exercício) através do qual ele poderia encontrar sua própria solução para o problema, Stanislávski, no caso do ensaio de Artistas e Admiradores, simplesmente se levantou e demonstrou ele mesmo o abraço, de um modo adotado durante seus primeiros anos de atividade.28 O uso de demonstração é, portanto, uma prática acumulada que aparece em diferentes situações de ensaio e ao longo de diferentes fases de trabalho. A passagem do tempo necessariamente influenciou alguma mudança nessas técnicas, inconscientemente talvez, conforme aumentava o conhecimento de Stanislávski sobre atuação, ou, conscientemente, até mesmo para responder ao que ele estava trabalhando. Esta mudança está evidente na justaposição entre a demonstração da forma evidenciada na anedota do abraço de urso e a demonstração de qualidade que Stanislávski apresentou em outro ensaio de Artistas e Admiradores. Stanislávski queria imprimir em seus atores que as ações físicas vão além da dimensão cotidiana de, por exemplo, entrar em uma sala, porque podem incorporar “a vida do

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Toporkov, Stanislávski Ensaia [Stanislavski in rehearsal], 98. Demonstração da forma (uma fala específica da peça) faz outra aparição nas [pp.] 241-42. Sobre o uso de demonstração por Stanislávski em seus primeiros anos de trabalho, ver Minha Vida na Arte, 174-75.  Qualidade no sentido da valoração do sentimento, de que tipo de sentimento se trata. N.T. 28

espírito humano no papel”.29 Ele começou a realizar uma simples ação cotidiana – escrever alguma coisa em um pedaço de papel. No entanto, os atores notaram que o foco de Stanislávski nessa ação aparentemente trivial era elevar sua presença na medida em que “cada um se sentiu muito feliz nisso porque nós [os atores] estávamos participando da verdadeira criatividade” (215). A escrita de Stanislávski não tinha nada a ver com o que estava sendo ensaiado naquele momento. Em outras palavras, a demonstração não foi tirada da peça, mas serviu para mostrar aos atores a qualidade que lhes estava sendo pedida. Desse modo, a demonstração dada foi mais uma demonstração da qualidade do que da forma e prova do processamento transformador que ele poderia dar a seus próprios métodos de ensaio e práticas acumuladas.

Implicações e conclusão A acumulação de abordagens de ensaios passados dá origem a uma “bagagem de técnicas”. Esta bagagem é diferente da “bolsa de truques”, à qual Stanislávski se refere como “um saco de todos os tipos de truques técnicos”.30 Stanislávski usa este último termo para referir-se, entre outras coisas, ao acúmulo de características físicas de um papel e bobagens de diretor.31 Estes são aspectos da montagem que são mais prováveis de causar uma forte, mas passageira impressão sobre o público. Clichês de atuação são mais um exemplo destes truques, conforme descrito por Stanislávski em seu ensaio de 1921 “Sobre as várias tendências na arte teatral”: “[Atores-artesãos] têm técnicas definidas para ler todos os papéis, clichês prontos para ilustrar todas as emoções humanas e padrões estabelecidos para a imitação de todos os personagens humanos”.32 Por outro lado, eu uso o termo “bagagem de técnicas” em relação à acumulação desenvolvida sobre um prolongado período de tempo e possivelmente ao longo de diferentes contextos de trabalho, de um conjunto de técnicas de atuação que foram cuidadosamente articuladas, pesquisadas e sistematizadas, ou, em outras palavras, processadas na prática. Este sentido de processo é capturado na descrição de John Schranz de “luggage” [“bagagem”], um termo sinônimo de “bagagem” usado para descrever o trabalho do ator: Bagagem [Luggage] é para os viajantes. Viajantes no espaço, no tempo. Viajantes que escolhem suas necessidades mais vitais e as levam consigo como extensões preciosas de si mesmos, como Konstantin Stanislávski, O Trabalho do Ator [An Actor’s Work], trad. por Jean Benedetti (Oxon: Routledge, 2008), 19. Ênfase no original. 30 Stanislávski, Minha Vida na Arte, 254. 31 Ibid., 107 e 128-29 e 133-34 respectivamente. 32 Konstantin Stanislávski, “Sobre as várias tendências da arte teatral”, em Obras Selecionadas (Moscou: Ragusa Editores, 1984), 134.  Algo como um necessaire, para embalar pertences pessoais para viagem. N.T. 29

testemunhos de si mesmos e o que eles são. Testemunhos à sua identidade, ao seu passado, às suas aspirações – testemunhos a serem produzidos para os outros [...]. Viajantes que pegam objetos ao longo de sua longa estrada, objetos para lembrar, objetos para testemunhar no futuro o seu “ter estado lá”, o seu “ter feito aquilo”. Objetos para serem usados no futuro em lugares e momentos onde e quando nenhum como eles possa estar disponível outra vez. 33

O fracasso em lidar com tal distinção entre um saco de truques e uma bagagem de técnicas leva à acumulação de bem-sucedidos ensaios ou momentos de atuação, porém amortecidos. Este é um perigo que Stanislávski contornou em seu retrato do Dr. Stockman, em O Inimigo do Povo [An Enemy of The People].34 O sucesso que ele tinha experimentado nas primeiras apresentações fê-lo complacente com o papel. Ao invés de aprofundar sua compreensão do papel, sem saber talvez, ele acumulou uma série de “ginástica técnica”, como expressões faciais, os olhos esbugalhados e os dois dedos mantidos juntos. Essas características serviram como uma série ou saco de truques que ele reproduzia mecanicamente de apresentação em apresentação.35 Nos ensaios de Artistas e Admiradores, Stanislávski estava se esforçando para imprimir nos atores que os momentos de sucesso não devem ser tratados com qualquer tipo de reverência. Eles não são o baú de tesouros de alguém: “não desenterre seus baús de tesouros nos quais vocês armazenam momentos inspirados de ensaios [ou apresentações] anteriores” (231). Tais momentos bem-sucedidos devem ser continuamente desafiados e interrogados para aprofundar nossa compreensão do papel, talvez através da aplicação de uma abordagem alternativa acumulada na bagagem. Embora as técnicas para trabalhar sobre o papel fossem de fato cumulativas, esta prática não se estendeu na visão de Stanislávski aos momentos de apresentação, cuja acumulação ele negava consistentemente. Do mesmo modo, a prática cumulativa de Stanislávski não se estendia às nomenclaturas usadas para delinear fases diferentes no desenvolvimento do sistema. A nomenclatura do ensaio de mesa foi abandonada nos anos 1930, mas suas características permaneceram, para serem aplicadas em um contexto de trabalho diferente. Até mesmo o termo “ação física”, ou “O Método de Ação Física”, foi visto com suspeita por Stanislávski, preocupado como ele estava com o perigo de limitar o trabalho do ator a uma dimensão puramente física.36 De fato, Carnicke diz que Stanislávski usou o termo “Método de Ação Física” apenas “provisoriamente”. 37 Tal 33

John Schranz e Teatru tal-Bniedem, Teatro: Um Salto Além [Theatre: A Leap Beyond] (Malta: Fundação de Estudos Internacionais, 1990), 20. 34 O espetáculo estreou em 1900 e permaneceu no repertório por uma série de temporadas subsequentes. Ver Stanislávski, Minha Vida na Arte, 215-18. 35 Ibid., 254. 36 Veja a resposta incisiva de Tortsov à opinião de um aluno sobre a ação física durante as sessões de “O Inspetor Geral”: “Eu pensei que tínhamos concordado, você e eu, em não discutir com palavras. Além disso, decidimos que havia muito de psicológico no físico e muito de físico no psicológico”, em O Trabalho do Ator Sobre o Papel, 55. Ver uma referência parecida na página 57. 37 Carnicke, Stanislávski em Foco, 189.

suspeita atesta a preocupação de Stanislávski com a fixação de uma terminologia que poderia dificultar o trabalho do ator ao invés de facilitá-lo.38 Consequentemente, a década de 1930 ainda encontra Stanislávski referindo-se à sua prática com o termo mais abrangente de “Sistema”. Até então o sistema tinha se tornado o trabalho acumulado de uma vida, um conjunto diversificado de técnicas e práticas pesquisadas durante diferentes momentos no tempo, mas agora reunidas não para se refutarem, mas para operar em harmonia. Ao invés da posição primária atribuída à ação física por Toporkov, essa harmonia dentro da bagagem cumulativa de Stanislávski pode realmente ser a principal afirmação desses últimos anos de trabalho. Por fim, está claro que a prática cumulativa de Stanislávski estava em contraste direto com uma atitude de negação manifestada por vários de seus alunos ou colaboradores, que frequentemente se fixavam em uma determinada fase da obra de Stanislávski, propagando esta única versão de seu ensinamento em detrimento de outras abordagens. Como diz Grotowski, “o método [de Stanislávski] evoluiu, mas seus discípulos não. Stanislávski tinha discípulos para cada um de seus períodos e cada discípulo prendeu-se a seu período particular”.39 Tal atitude negativa é particularmente clara no conflito entre Mikhail Kedrov e Maria Knébel, para quem viu o primeiro demitir a última do Teatro de Arte de Moscou em 1949 para eliminar sua abordagem alternativa aos últimos ensinamentos de Stanislávski.40 Conforme escreve Solovyova, Kedrov “foi um discípulo do chamado ‘método de ação física’, a única abordagem que ele reconheceu”.41 O conflito Adler-Strasberg acima referido foi um caso parecido. 42 Embora o nome de Kedrov será sempre sinônimo do Método de Ação Física, Strasberg da Memória Emotiva e Knébel da Análise Ativa, a prática de Stanislávski evidenciou uma dimensão mais aberta e rotativa enraizada numa prática cumulativa desenvolvida sobre décadas de trabalho.

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Sobre as possíveis repercussões negativas emergentes do uso da terminologia, ver Eugenio Barba, A Canoa de Papel, trad. por Richard Fowler (Londres: Routledge), 138-39. 39 Jerzy Grotowski, Em Busca de um Teatro Pobre (London: Methuen, 1975), 174. Ver também Carnicke, Stanislávski em Foco, 11. 40 Ver também Carnicke, Stanislávski em Foco, 191. 41 Inna Solovyova, “O Teatro e o Realismo Socialista, 1929-1953,” [“The Theatre and Socialist Realism, 19291953”] 356, em Robert Leach e Viktor Borovsky (eds.), Uma História do Teatro Russo [A History of Russian Theatre] (Cambridge: Cambridge University Press, 1999). Ênfase adicionada. 42 Ver também Benedetti, Stanislávski: Sua Vida e Arte, 351-52.

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