A prática de linguagem em sala de aula: Praticando os PCN (ROJO/Org., 2000)

Share Embed


Descrição do Produto

149

65

Roxane Helena Rodrigues Rojo (org.)
Praticando os PCNs: dos Parâmetros Curriculares
Nacionais à Prática de Sala de Aula
118

117

Roxane Helena Rodrigues Rojo (org.)
Praticando os PCNs: dos Parâmetros Curriculares
Nacionais à Prática de Sala de Aula
122

66

Praticando os PCNs: dos Parâmetros Curriculares
Nacionais à Prática de Sala de Aula
Roxane Helena Rodrigues Rojo (org.)


* Contribuição apresentada ao Simpósio Praticando os PCNs: dos Parâmetros Curriculares Nacionais à Prática de Sala de Aula, durante o 9º InPLA - Intercâmbio de Pesquisas em Lingüística Aplicada, 01/05/1999, LAEL/PUC-SP.
Chevallard (1985; 1991), apud Bronckart (1998).
Que os PCNs preferem designar como organização e seqüenciação dos conteúdos.
Uma exceção a esta afirmação são os trabalhos de Geraldi (1984; 1993; 1996), cujos fragmentos circulam em muitas orientações da CENP.
Grupo de Assessoria, Pesquisa e Formação em Escrita (GRAFE/ ), por mim coordenado. As referidas experiências dizem respeito a dois Programas de Formação Contínua de Professores de porte, levados a efeito entre 1997 e 1999 (Programa de Educação Continuada (PEC) da FAEP/UMC-SEE-SP e o Programa de Formação Contínua abrangido no Projeto de Pesquisa Aplicada MEP/FAPESP Práticas de Linguagem no Ensino Fundamental: Circulação e apropriação dos gêneros do discurso e a construção do conhecimento, atualmente em curso numa EEFM da Capital.
Ver, a respeito, Geraldi (1984; 1993; 1996); Franchi (1988; 1991) e Possenti (1996).
Refiro-me, desta vez, à elaboração de livros paradidáticos para Língua Portuguesa, na Coleção Trabalhando com os Gêneros do Discurso, a sair pela Editora FTD, e a assessorias prestadas a autores na elaboração de livros didáticos de Língua Portuguesa para 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental (Coleção Recriança, a sair pela Ediouro Publicações).
Ver também a respeito Pasquier & Dolz (1996).
São temas transversais às áreas de ensino indicados nos PCNs: ética, pluralidade cultural, meio ambiente, saúde, orientação sexual e trabalho e consumo.
Maiores detalhes sobre este tipo de organização didática podem também ser obtidos em Dolz & Schneuwly (1998).
Coordenadora da pesquisa "Práticas sócio culturais de leitura e escrita de crianças e adolescentes".
Conservo aqui os seus nomes reais porque eles assim o permitiram.
Essa é a forma de compreensão empática proposta por Bakhtin, que se baseia no seu conceito de exotopia segundo o qual, por ocupar um espaço diferente do outro, terei condições de ver e saber "algo que ele próprio, na posição que ocupa e que o situa fora de mim e à minha frente, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar - a cabeça, o rosto, a expressão do rosto -, o mundo ao qual ele dá as costas, toda uma série de objetos e de relações que, em função da respectiva relação em que podemos situar-nos, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele"(Bakhtin, 1992,p.43).
Pediu-se, por exemplo, aos vestibulandos que relacionassem o título ORDENHA DE ESTURJÃO com o significado global do seguinte texto, extraído da Revista Veja: "Duas empresas russas que comercializam caviar anunciaram ter descoberto um novo método de extração do produto que evita a morte do esturjão. Pela técnica o peixe recebe uma injeção de hormônio que estimula a ovulação e posteriormente é submetido a uma espécie de cesariana para que as ovas sejam retiradas. Feito isso o esturjão volta para a água e pode viver normalmente. 'Obter caviar será o mesmo que ordenhar uma vaca', diz a pesquisadora Elena Tchertova, uma das responsáveis pelo novo método. Tradicionalmente o peixe é morto para a retirada das ovas. O principal objetivo da técnica agora apresentada é evitar a extinção dos esturjões do mar Cáspio - eles têm sido mortos sistematicamente por aqueles que os comercializam para a produção de caviar."
Estamos usando "significado" e "significação" indiferentemente, pois a palavra russa original é a mesma em Vygotsky (1934) e Bakhtin (1929), embora os tradutores tenham usado uma e outra, respectivamente.
Segundo Pasquier & Dolz (op.cit) "... aprendizagem em espiral refere-se a um ensino-aprendizagem, em todos os níveis escolares, da diversidade discursiva (narração, explicação, argumentação, descrição, e diálogo). O que varia de um nível escolar a outro é, de um lado, o gênero textual (conto de fadas, relato de experiência, lenda, relato histórico, narrativa de enigma, etc.) e, de outro lado, as dimensões textuais estudadas (uso dos tempos verbais; uso dos organizadores textuais; progressão anafórica; esquema dos actantes - papel dos personagens -; estrutura narrativa; pontuação, etc.)".
Esse grupo é formado por alunas do curso de pós-graduação de mestrado e doutorado LAEL- PUCSP que atuam em sala de aula e em formação efetiva de professores em diferentes instituições.
Optamos por utilizar a denominação "conto de fadas" para a história Chapeuzinho Vermelho, ainda que tal denominação não seja utilizada universalmente.
Por escolarização dos gêneros entendemos a transformação que os gêneros constituídos em outros contextos sociais adquirem ao serem utilizados na escola como objeto de ensino/aprendizagem: leitura e interpretação, estudo do vocabulário, "gramaticalização" etc..
3 Por escolarização dos gêneros entendemos a transformação que os gêneros constituídos em outros contextos sociais adquirem ao serem utilizados na escola como objeto de ensino/aprendizagem: leitura e interpretação, estudo do vocabulário, "gramaticalização" etc..

O Pólo 3 cobre as seguintes Delegacias de Ensino: 10ª, 11ª, 21ª, Itaquaquecetuba, Suzano e Mogi das Cruzes.
A escolha das séries escolares, bem como das áreas curriculares que seriam contempladas, foi determinada a partir de uma demanda apresentada pelas Delegacias de Ensino envolvidas no Projeto, baseada, por um lado, no fato de que estas séries tinham sido muito pouco contempladas em projetos de formação anteriormente desenvolvidos e, por outro, nos dados relativos aos altos índices de repetência e evasão existentes nessas séries.
Diretores, vice-diretores, coordenadores pedagógicos, supervisores de ensino e assistentes técnico- pedagógicos.

Ver um maior detalhamento do trabalho desta frente adiante.
Para uma abordagem mais completa dos gêneros do discurso, ver Volochínov/Bakhtin (1929) e Bakhtin (1979).
Cabe ressaltar que aqui se está considerando tanto gêneros escritos como orais, estes últimos freqüentemente ignorados pelas práticas escolares. Para uma abordagem mais aprofundada da questão, que fugiria ao escopo do presente artigo, ver SCHNEUWLY (1994) e DOLZ. & SCHNEUWLY (1996).
Denominado originalmente pelos autores "descrever ações".
Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, por exemplo, indicam como critério de agrupamento de gêneros a esfera de circulação social a que cada gênero se vincula, propondo, então, a seguinte classificação: gêneros literários, de imprensa, de divulgação científica e de publicidade.
Ver, a este respeito, os artigos de Bräkling e de Rosemblat, neste volume (Nota da Organizadora).
Uma seqüência didática é entendida como um conjunto de atividades de leitura, produção e análise lingüística, em torno de algum dos gênero do discurso. No presente caso, estas atividades visavam explorar aspectos da sócio-história do gênero em questão, suas condições de produção, seu conteúdo temático, sua forma composicional e suas marcas lingüísticas.
Temas controversos são aqui tomados como aqueles de ordem social inseridos num determinado sistema de valores.
Trata-se de uma pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas (LAEL) da PUC/SP. A íntegra da pesquisa encontra-se em Rosenblat, E. (1998) A Argumentação na Sala de Aula.
A diferenciação que fazemos aqui entre convencer (por meio de argumentação) e persuadir é a mesma sugerida por Dolz (1995), para quem persuadir é mudar a opinião e/ou a atitude do outro, através de apelos emocionais/sentimentais, diferentemente de convencer, que é obter tal mudança através da razão.
Refutação e contra-argumento estào sendo tomados como movimentos argumentativos muito próximos, sendo que o primeiro consiste em "desqualificar" as justificativas do outro e o segundo, em tomar as justificativas do outro em favor de posição antagônica à pretendida.
Na sala de aula onde os alunos em pesquisa estudavam, havia um armário com várias divisórias onde guardavam seus materiais. Os escaninhos individuais eram chamados por eles de "casinhas".
Dado o foco do trabalho, a análise centrou-se em torno do objeto da aprendizagem, o gênero. Sem dúvida, no projeto pedagógico há um conjunto de critérios que vão direcionar a escolha dos gêneros relevantes nas diferentes situações de ensino.
Para Bakhtin, há uma relação estreita e recíproca entre linguagem e ideologia. "O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo o que é ideológico possui um valor semiótico." (1988, p. 32)
O que elimina a possibilidade de um "gênero prototípico" para o ensino.
Há uma flutuação na terminologia corrente para a nomeação da esfera jornalística, sendo que muitas vezes o termo imprensa não se limita apenas ao jornalismo impresso, mas incorpora os outros.

As características do gênero aqui levantadas se baseiam na observação de artigos veiculados nos jornais.
Melo (op. cit.) propõe a seguinte classificação para as categorias e os gêneros do jornalismo brasileiro:
Jornalismo informativo: nota, notícia, reportagem, entrevista;
Jornalismo opinativo: editorial, comentário, artigo, resenha, coluna, crônica, caricatura, carta.
Isso considerando-se que artigo e ensaio, na esfera jornalística, constituam-se como gêneros distintos. Melo (op. cit., p.118) os considera como um só gênero: "identificamos duas espécies de artigos: o artigo, (propriamente dito) e o ensaio", embora reconheça diferenças entre os dois.

Grifo meu.

Os PCNs indicam como projetos escolares : promoção de eventos de leitura em feiras culturais, coletâneas de textos de um mesmo gênero, livro sobre determinado tema pesquisado, mural, entre outros.
As condições não vão ser autênticas, reais, pois se está em outro lugar institucional, a escola, que tem suas funções próprias.

Escola Cooperativa da Vila Mariana, da Cooperativa Educacional da Cidade de São Paulo, administrada por um Conselho de Pais de Alunos.
Dolz, J & B. Schneuwly (1996) Gêneros e progressão em expressão oral e escrita - elementos para reflexões sobre uma experiência suíça (francófona). Mimeo. Tradução de Roxane H. R. Rojo.
Idem nota anterior.
Idem nota 1.
Este tema não foi, na realidade, previsto no levantamento coletivo inicial, mas sim numa atividade intermediária, preparada com a finalidade de discussão da forma pela qual diferentes autores estabeleceram a progressão temática em seus artigos. Os artigos com esse tema, no entanto, acabaram por compor a revista da classe.
Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa - Terceiro e Quarto Ciclos. MEC/SEF, 1998.


123

Roxane Helena Rodrigues Rojo (org.)
4

5




Atenção leitor! Este é um pré-print, não correspondendo exatamente à edição final de 2000. Logo, evite citar sem cotejar com a referida edição. Mas os textos que permaneceram na edição de 2000 são bastante aproximados dos desta versão.


















(página em branco)


ÍNDICE

Os PCNs, as práticas de linguagem (dentro e fora da sala de aula) e a formação de professores – Uma apresentação
Roxane Helena Rodrigues Rojo

Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula: progressão curricular e projetos
Roxane Helena Rodrigues Rojo

Práticas de Leitura e de Produção de Textos
Descobrindo novas formas de leitura e escrita
Maria Teresa de Assunção Freitas
A construção de "títulos" em gêneros discursivos diversos: um processo discursivo polifônico e plurissêmico
Sérgio Roberto Costa


Práticas de Formação de Professor
Os PCNs: Uma experiência de formação de professores do Ensino Fundamental
Berenice Wanderley Pompílio; Cristiane Cagnoto Mori de Angelis; Heloisa Amaral Dias de Oliveira; Ivaneide Dantas da Silva; Marly de Souza Barbosa & Rosana Helena Nunes

Os PCNs e a formação pré-serviço: Uma experiência de transposição didática no Ensino Superior
Cirlene Magalhães Almeida
Do professor suposto pelos PCNs ao professor real de LP (PEC - SEE-SP/Polo3): Os PCNs são praticáveis?
Jacqueline Peixoto Barbosa
A Elaboração de Materiais Didáticos
Critérios para a construção de uma seqüência didática no ensino dos discursos argumentativos
Ellen Rosemblat
O artigo jornalístico e o ensino de produção escrita
Rosângela Hammes Rodrigues
Trabalhando com Artigo de Opinião: Re-visitando o eu no exercício da (re) significação da palavra do outro
Kátia Lomba Bräckling
5
9

23
45

67
83
103

119
135
149


Os PCNs, as práticas de linguagem (dentro e fora da sala de aula) e a formação de professores – Uma apresentação

Roxane Helena Rodrigues ROJO (organizadora)


Gostaria de dizer que este livro é especialmente dedicado a professores e a multiplicadores e formadores de professores em serviço e pré-serviço, identificados com as propostas presentes nos PCNs de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental, seus leitores prefigurados. Assim sendo, insere-se em um movimento atual de discussão da proposta e de ensaios de concretização de seus princípios e está em diálogo com outras iniciativas de mesmas finalidades, sobretudo no que diz respeito à formação de professores e à elaboração de currículos, programas e projetos.
Este volume é resultado de uma série de atividades subseqüentes, docentes e de intercâmbio de pesquisas, levadas a efeito no Programa de Estudos Pós-Graduados de Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), nos anos de 1998 e 1999. Em primeiro lugar, ele é resultado de um curso optativo que ministrei, no segundo semestre de 1998, em parceria com a professora doutora Maria Antonieta Alba Celani, intitulado Tópicos em Lingüística Aplicada e a sala de aula: dos Parâmetros Curriculares à prática de sala de aula. Nesse curso, pretendemos examinar e cotejar os embasamentos teóricos e metodológicos subjacentes aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de 3º e 4º Ciclos do Ensino Fundamental, de Língua Portuguesa e de Língua Estrangeira, para, a partir daí, examinar a questão do preenchimento da lacuna existente entre a teoria e a prática. Foram abordadas questões como: O que é necessário compreender/fazer para transformar os Parâmetros em práticas de sala de aula, no que diz respeito à organização de programas de ensino, de preparação e uso de materiais didáticos e de procedimentos de sala de aula? Como o professor de 5ª a 8ª séries pode ser preparado para que os PCNs possam servir de orientação para o ensino?
Dos debates e discussões deste curso resultaram trabalhos e experiências muito interessantes e ilustrativos, alguns deles – relativos a Língua Portuguesa – integrando este volume. É o caso do capítulo de Pompílio, Mori-de-Angelis, Oliveira, Silva, Barbosa e Nunes e do de Almeida. Estes mesmos trabalhos deram origem à idéia de se organizar um simpósio sobre o tema, em maio do ano seguinte, que abrangesse um número maior de trabalhos.
Assim foi que organizei e propus para o 9º InPLA – Intercâmbio de Pesquisas em Lingüística Aplicada, realizado no LAEL-PUC-SP, dentro do tema de referência mais geral "Políticas Lingüísticas contra o Iletrismo", um simpósio intitulado Praticando os PCN: dos Parâmetros Curriculares Nacionais à prática de sala de aula, desta vez tematizando o ensino-aprendizagem e os PCNs de Língua Portuguesa. Este simpósio, visando um maior aprofundamento e debate sobre novas práticas, destinava-se a discutir e contrastar diferentes propostas de transposição didática de aspectos variados do ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, abordados nos PCNs de 3º e 4º Ciclos do Ensino Fundamental, que vinham sendo implementadas, seja na formação de professores, seja em sala de aula, por agentes capacitadores e professores de Ensino Fundamental. A quase totalidade dos capítulos que compõem este volume foi apresentada em forma de contribuição aos debates deste simpósio por seus autores.
Em todo o período de discussão que acabei de relatar, as propostas e experiências de implementação dos PCNs diziam respeito, essencialmente, a duas frentes: a formação de professores para a implementação de propostas de ensino e as práticas didáticas e projetos escolares levados a efeito em sala de aula. Cabe também ressaltar que, na discussão das práticas didáticas de sala de aula, formatadas em projetos de ensino-aprendizagem de gêneros, não por acaso, privilegiou-se sempre gêneros argumentativos, um dos domínios da linguagem fortemente enfatizado nos PCNs e grandemente ausente das práticas correntes de sala de aula.
Também é importante enfatizar que a discussão dessas práticas renovadas não se processa sem uma reflexão sobre as práticas de leitura e escrita – práticas de letramento – que têm lugar na escola e fora dela, em diferentes esferas de circulação da escrita e da linguagem.
Estas foram as bases que resultaram na organização deste volume, que optei por dividir em quatro partes. A primeira, aberta por esta Apresentação, é destinada a uma abordagem teórico-política de um ponto essencial para a discussão: a questão da transposição didática deste documento, em diferentes níveis, especialmente naqueles que dizem respeito à elaboração de currículo, programas e projetos. O artigo de Rojo que abre o volume aborda este ponto de discussão.
As outras três partes da coletânea abordam relatos de pesquisas ou de experiências didáticas relevantes para a discussão, centradas em três domínios: o das práticas de letramento intra e extra-escolar; o da formação de professores; e o das experiências práticas de concretização, em sala de aula, das referências dos Parâmetros. A segunda seção aborda as práticas de leitura e escrita e, nela, figuram artigos de Freitas e de Costa. Freitas relata uma pesquisa sobre práticas de letramento que têm lugar em outras esferas de práticas comunicativas cotidianas que não a escolar, em um segmento de alunos de alto grau de letramento. Costa, por sua vez, analisa criticamente uma prática crucial na produção de textos: o uso enunciativo e discursivo de títulos em gêneros de duas esferas institucionais – a jornalística (imprensa) e a escolar –, cotejando-as e buscando elementos para práticas escolares mais relevantes ao uso social mais amplo da linguagem.
A terceira seção dedica-se a relatos e discussão de experiências de formação de professores, envolvendo a implementação de alguns dos princípios presentes nos PCNs, sobretudo aqueles relativos a tomar os gêneros discursivos como objetos de ensino escolar. Estes artigos buscam sempre apontar não somente os ganhos didáticos destas experiências, mas também os principais problemas encontrados durante sua realização, de maneira a contribuir para a reflexão de formadores, multiplicadores e capacitadores. O artigo de Pompílio, Mori-de-Angelis, Oliveira, Silva, Barbosa e Nunes relata uma breve experiência de formação de professores em serviço no Ensino Fundamental; o de Almeida relata uma experiência de formação pré-serviço, levada a efeito na disciplina de Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa 1, na UnB; e, finalmente, o de Barbosa discute as principais dificuldades e problemas encontrados na implementação da proposta dos PCNs de se tomar os gêneros discursivos como objetos de ensino e como organizadores do currículo, a partir de uma experiência de formação de professores em serviço, mais longa, que teve lugar no PEC-Pólo 3 (Programa de Educação Continuada, Universidade de Mogi das Cruzes/SEE-SP), em 1997 e 1998.
Finalmente, a quarta seção dedica-se ao relato e discussão de pesquisas e experiências de concretização de projetos, seqüências didáticas e seus materiais didáticos necessários, levadas a efeito no Ensino Fundamental. Como mencionei anteriormente, não por acaso, todos estes capítulos abordam gêneros que envolvem argumentação. Rosemblat relata e discute parte de uma pesquisa feita no 1º Ciclo de Ensino Fundamental (2ª série) que demonstra que as crianças não só argumentam, como também o fazem com certa sofisticação, na dependência do gênero trabalhado pelo(a) professor(a). No trabalho são focados três gêneros: a discussão argumentativa, a carta de solicitação e o ensaio argumentativo escolar. Rodrigues sustenta que a instituição escolar precisa estar comprometida com um projeto educacional que crie as condições para a efetivação do letramento integral e que gêneros jornalísticos – como o artigo de opinião – constituem um dos instrumentos para o "exercício efetivo da cidadania" e para a "participação plena no mundo letrado" (PCNs, 1998), principalmente para as classes populares, que passam à margem dos discursos escritos desta esfera comunicativa. A partir disso, a autora discute os principais aspectos envolvidos na concretização de uma proposta de trabalho com este gênero, em uma ótica bakhtiniana. Por sua vez, Bräkling, trabalhando com o mesmo gênero jornalístico, faz um relato crítico-reflexivo do processo de elaboração e desenvolvimento de um projeto de escrita organizado na perspectiva apresentada pelos PCNs de Língua Portuguesa de 3º e 4º Ciclos, de maneira a possibilitar ao professor uma análise de uma prática docente e, ao mesmo tempo, apresentar uma possibilidade – efetivamente realizada – de implementação da proposta em questão.









MODOS DE TRANSPOSIÇÃO DOS PCNs ÀS PRÁTICAS DE SALA DE AULA: PROGRESSÃO CURRICULAR E PROJETOS* *
Roxane Helena Rodrigues ROJO (LAEL/PUC-SP)

Introdução
A elaboração e publicação dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental) representam, em minha opinião, um avanço considerável nas políticas educacionais brasileiras em geral e, em particular, no que se refere aos PCNs de Língua Portuguesa, nas políticas lingüísticas contra o iletrismo e em favor da cidadania crítica e consciente. E isso, em grande parte, porque, ao invés de se constituírem - como tradicionalmente tem sido feito no Brasil - em grades de objetivos e conteúdos curriculares pré-fixados, estes Parâmetros, como o nome já indica, constituem-se em "diretrizes que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar uma formação básica comum" (PCNs: Introdução, p. 49).
Dada a diversidade regional, cultural e política existente no país, os PCNs buscam parametrizar referências nacionais para as práticas educativas, procurando fomentar a reflexão sobre os currículos estaduais e municipais, já em andamento em diversos estados e municípios.
Mas a construção dos próprios currículos para o ensino fundamental, adequados às necessidades e características culturais e políticas regionais, deverá ser feita pelos órgãos educacionais de estados e municípios e pelas próprias escolas, com base na reflexão fomentada por estes referenciais, pautados essencialmente no processo de construção da cidadania.
Se isso se apresenta como uma qualidade inovadora dos PCNs, se comparados a outros documentos oficiais já elaborados no território nacional, por outro lado, isso implica um grande esforço de reflexão para a transposição didática destes princípios e referenciais às práticas educativas em sala de aula. E este esforço envolve não somente a construção de currículos plurais e adequados a realidades locais, como também a elaboração de materiais didáticos que viabilizem a implementação destes currículos. Ambas as ações envolvem diretamente a formação inicial e continuada de professores e educadores.

Modos de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula
O próprio texto introdutório aos PCNs menciona quatro níveis de concretização destes princípios, que podemos entender como quatro níveis de transposição didática dos Parâmetros. O primeiro nível de concretização é justamente o da própria construção dialogada dos Parâmetros como referenciais para outras ações de política educacional: "a formação inicial e continuada de professores, a análise de livros e outros materiais didáticos, como também a avaliação nacional" (op. cit., p. 51).
O segundo, no âmbito das instâncias educativas oficiais estaduais e municipais, é o diálogo que os PCNs poderão estabelecer com as propostas, documentos e experiências já existentes neste nível.
O terceiro e quarto níveis de concretização dizem justamente respeito à elaboração do projeto educativo de cada escola e à realização do currículo em sala de aula. Este último nível vai envolver crucialmente a elaboração e utilização adequada de materiais didáticos apropriados a esta realização.
Ora, no caso dos PCNs de Língua Portuguesa, são mencionados princípios organizadores dos conteúdos do ensino de LP e critérios para a seqüenciação destes conteúdos, além de organizações didáticas especiais, tais como projetos e módulos didáticos.

A organização da progressão curricular
A organização dos conteúdos encontra-se distribuída, nos PCNs de LP, por dois eixos de práticas de linguagem: as práticas de uso da linguagem e as práticas de reflexão sobre a língua e a linguagem, conforme representado no diagrama da próxima página:


REFLEXÃOREFLEXÃOUSOUSO
REFLEXÃO

REFLEXÃO

USO
USO
PRÁTICA de ANÁLISE LINGÜÍSTICAPRÁTICA de ANÁLISE LINGÜÍSTICAPRATICA de PRODUÇÃO de TEXTOS ORAIS e ESCRITOSPRATICA de PRODUÇÃO de TEXTOS ORAIS e ESCRITOSPRÁTICA de ESCUTA e de LEITURA de TEXTOSPRÁTICA de ESCUTA e de LEITURA de TEXTOS
PRÁTICA
de
ANÁLISE LINGÜÍSTICA
PRÁTICA
de
ANÁLISE LINGÜÍSTICA
PRATICA de PRODUÇÃO
de
TEXTOS ORAIS e ESCRITOS
PRATICA de PRODUÇÃO
de
TEXTOS ORAIS e ESCRITOS
PRÁTICA
de
ESCUTA
e de
LEITURA de TEXTOS
PRÁTICA
de
ESCUTA
e de
LEITURA de TEXTOS








Os conteúdos indicados para as práticas do eixo do uso da linguagem são eminentemente enunciativos e envolvem aspectos como: a historicidade da linguagem e da língua; aspectos do contexto de produção dos enunciados em leitura/escuta e produção de textos orais e escritos; as implicações do contexto de produção na organização dos discursos (gêneros e suportes) e as implicações do contexto de produção no processo de significação. Logo, neste universo, o texto é visto como unidade de ensino e os gêneros textuais como objetos de ensino.
Já os conteúdos indicados para as práticas do eixo da reflexão sobre a língua e a linguagem abrangem aspectos ligados à variação lingüística; à organização estrutural dos enunciados; aos processos de construção da significação; ao léxico e às redes semânticas e aos modos de organização dos discursos.
Quanto aos critérios de organização de progressões didáticas e de currículos, estes encontram-se representados no diagrama da próxima página:







PROJETO EDUCATIVO DA ESCOLAOBJETIVOS DO ENSINOPROJETO EDUCATIVO DA ESCOLAOBJETIVOS DO ENSINOGRAU DE COMPLEXIDADE DO OBJETOEXIGÊNCIAS DA TAREFAGRAU DE COMPLEXIDADE DO OBJETOEXIGÊNCIAS DA TAREFA
PROJETO EDUCATIVO DA ESCOLA

OBJETIVOS DO ENSINO
PROJETO EDUCATIVO DA ESCOLA

OBJETIVOS DO ENSINO
GRAU DE COMPLEXIDADE DO OBJETO

EXIGÊNCIAS DA TAREFA
GRAU DE COMPLEXIDADE DO OBJETO

EXIGÊNCIAS DA TAREFA







NECESSIDADES DE APRENDIZAGEMNECESSIDADES DE APRENDIZAGEMPOSSIBILIDADES DE APRENDIZAGEMPOSSIBILIDADES DE APRENDIZAGEM


NECESSIDADES DE APRENDIZAGEM
NECESSIDADES DE APRENDIZAGEM
POSSIBILIDADES DE APRENDIZAGEM
POSSIBILIDADES DE APRENDIZAGEM

GRAU DE AUTONOMIA DO SUJEITOGRAU DE AUTONOMIA DO SUJEITO
GRAU DE AUTONOMIA DO SUJEITO
GRAU DE AUTONOMIA DO SUJEITO


Ora, esta proposta de organização curricular exige dos órgãos educacionais estatais providências no sentido de uma efetiva reorganização da formação inicial e contínua dos professores, que inclua revisões curriculares dos Cursos de Letras e das disciplinas de Prática de Ensino e Projetos que viabilizem uma formação em serviço dos atuais professores de LP realmente contínua. Isto porque o enfoque lingüístico-enunciativo (Teoria da Enunciação de vezo bakhtiniano, Teoria de Gêneros do Discurso) adotado nos subsídios e indicações brevemente comentados acima, com o qual concordo, encontra-se praticamente ausente dos currículos de graduação em Letras e das Propostas Curriculares da CENP e de seus subsídios no Estado de São Paulo.
Baseada em duas experiências recentes de transposição dos PCNs às práticas de sala de aula levadas a efeito pelo Grupo , posso apontar alguns dos principais problemas e procedimentos envolvidos na formação de professores para a transposição didática na organização de currículos e progressões orientadas por princípios como os dos PCNs. Em primeiro lugar, no que se refere aos objetos de ensino:
a construção da compreensão dos professores da Teoria da Enunciação e da Teoria dos Gêneros do Discurso, envolvendo crucialmente a compreensão de todos os conteúdos indicados para as práticas de uso de linguagem;
a discriminação destas teorias em relação a Teorias Textuais e Cognitivas em circulação há mais tempo nos discursos de formação de professores da Rede Pública;
ligadas a estes problemas/procedimentos anteriores encontra-se a ausência e a necessidade de elaboração de textos de divulgação científica a partir destes saberes de referência;
também os conteúdos indicados para as práticas do eixo da reflexão sobre a língua e a linguagem exigem uma compreensão mais acurada dos professores: aspectos ligados à variação lingüística; à organização estrutural dos enunciados; aos processos de construção da significação; ao léxico e às redes semânticas e aos modos de organização dos discursos precisam também ser abordados nas formações iniciais e em serviço;
embora não suficientemente enfatizado nos PCNs, este processo de reflexão vai implicar uma rediscussão do ensino de gramática em geral e, em particular, do que se tem chamado de gramática funcional ou gramática no texto ou ainda das ditas atividades epilingüísticas e metalingüísticas, sempre mencionadas nesta discussão;
como os processos de construção da significação, os modos de organização dos discursos e a organização estrutural dos enunciados são vistos nesta abordagem como resultantes do contexto de produção, torna-se também necessário um processo acurado de descrição dos gêneros textuais, no que diz respeito à sua forma composicional e marcas lingüísticas, assim como a disponibilização destas descrições em textos de divulgação teórica (subsídios) e em materiais didáticos implicados na formação contínua dos professores.
Já no que se refere aos critérios de organização de progressões curriculares:
este último procedimento mencionado acima (o da descrição acurada dos gêneros textuais) é também necessário para a determinação do grau de complexidade do objeto de ensino-aprendizagem;
já para determinar as exigências das tarefas envolvidas nas práticas de uso e de análise da linguagem, necessitamos de uma revisão teórica enunciativamente baseada no que diz respeito às Teorias Cognitivas de Processamento da Linguagem em Produção e Compreensão correntes, que ainda está por ser feita.
Estes dois primeiros critérios (o grau de complexidade do objeto de ensino-aprendizagem e as exigências das tarefas nas práticas de uso e de análise da linguagem) têm de ser utilizados em relação ao projeto educativo da escola e de seus objetivos de ensino, o que coloca, para a formação contínua, mais um desafio:
a formação do professor para a elaboração de projetos de ensino-aprendizagem e para a seleção de objetivos de ensino, prática esta que tem sido substituída nas últimas décadas no Brasil, pela simples adoção de um livro didático que passa a ditar os objetivos de ensino e a configurar o projeto de ensino-aprendizagem.
Além disso, a seleção dos objetivos de ensino e a elaboração do projeto de ensino-aprendizagem estão submetidos a uma dupla determinação: a das possibilidades e a das necessidades de aprendizagem. Isto implica a formação do professor numa teoria do ensino-aprendizagem de base sócio-histórica vygotskiana por um lado:
capaz de levá-lo a determinar, por meio da avaliação do desenvolvimento real de seus alunos, quais serão as possibilidades de aprendizagem para cada objeto de ensino e, por outro lado,
capaz de levá-lo a uma reflexão sobre as necessidades de aprendizagem de um ponto de vista histórico-cultural, que, por sua vez, o levará a eleger os objetos histórico-culturais que deverão ser propostos para a aprendizagem no desenvolvimento potencial do aluno, na criação de ZDPs.
Ocioso lembrar que também esta Teoria da Aprendizagem e do Desenvolvimento encontra-se praticamente ausente tanto dos currículos dos Cursos de Letras e das disciplinas de Prática de Ensino, como das Propostas Curriculares da CENP no Estado de São Paulo e de seus subsídios.
Por fim, como, nesta perspectiva, a aprendizagem se dá por mediação do outro no processo de interação, é ainda preciso:
levar o professor, na formação contínua, a refletir sobre os processos interativos que têm lugar em sala de aula e sobre sua qualidade.

A realização do currículo em sala de aula e o livro didático
Numa realidade escolar onde sabemos que o que rege as práticas de sala de aula é a adoção do livro didático, por variadas razões que vão desde o número de alunos por sala, até a falta de tempo remunerado e de formação do professor para a elaboração de seus próprios materiais didáticos, a elaboração de materiais didáticos que criem condições de viabilidade para a realização do currículo em sala de aula torna-se um problema crucial.
Com base em outras duas experiências recentes do Grupo de transposição didática dos PCNs na elaboração de materiais didáticos, concluo que, também na elaboração de livros didáticos, o conjunto das indicações acima comentadas é relevante.
Na base de um bom material didático, tanto quanto na de um bom projeto de ensino aprendizagem, estão a seleção e organização de objetivos e conteúdos (objetos) de ensino. È assim que livros e materiais didáticos podem ser elaborados tomando por base o mesmo conjunto de princípios comentados anteriormente e envolvendo, portanto, o mesmo conjunto de desafios para seus autores.
Como vimos, os gêneros textuais são tomados como objetos de ensino nos PCNs e são, portanto, responsáveis pela seleção dos textos a serem trabalhados como unidades de ensino.
Dois tipos de agrupamentos de gêneros textuais têm sido sugeridos pela literatura concernente para organizar a seleção dos gêneros e dos textos s serem trabalhados. Dolz & Schneuwly (1996) sugerem um agrupamento de gêneros essencialmente regido pelas capacidades de linguagem exigidas pelas práticas de uso da linguagem em pauta e que os distribui por cinco domínios que exigem capacidades de linguagem diferenciadas: o narrar, o relatar, o expor, o argumentar, e o instruir/prescrever. Esta distribuição é acompanhada da indicação de que gêneros de cada um dos domínios devem ser trabalhados em cada série do Ensino Fundamental, prevendo-se uma progressão didática em cada domínio, como nos PCNs, responsável por um processo de aprendizagem em espiral.
Já os PCNs de LP agrupam os gêneros textuais em função de sua circulação social, em gêneros literários, de imprensa, publicitários e de divulgação científica, entendidos como gêneros "cujo domínio é fundamental à efetiva participação social" (PCNs - Língua Portuguesa, p. 53), levando em conta os usos sociais mais freqüentes (leitura/escuta; produção de textos orais e escritos) dos textos, no que se refere aos gêneros selecionados.
Considerando todas as outras indicações comentadas anteriormente, creio que distribuições de um ou de outro tipo podem ser pautas organizadoras de livros didáticos para o ensino fundamental. Creio mesmo ser possível uma combinação dos dois agrupamentos na elaboração dos esqueletos dos livros. Mais uma vez aqui, as práticas de leitura/escuta de textos e de produção de textos orais e escritos estariam integradas na abordagem do texto como unidade de ensino para a construção do gênero como objeto de ensino e as práticas de análise lingüística ou de reflexão sobre a linguagem seriam resultantes das e também integradas nas práticas de uso da linguagem.

Organizações didáticas especiais: projetos e módulos e seqüências didáticos
Ao final do "Tratamento didático dos conteúdos", os PCNs de LP (às páginas 87-88) sugerem e incentivam a adoção de organizações didáticas diferenciadas e alternativas, comentando as suas formas organizativas e suas vantagens para o ensino-aprendizagem de LP. São elas os projetos e os módulos didáticos.
O projeto é definido como a organização didática que "tem um objetivo compartilhado por todos os envolvidos, que se expressa num produto final em função do qual todos trabalham e que terá, necessariamente, destinação, divulgação e circulação social" na escola ou fora dela (op. cit., p. 87). São apontadas no texto várias vantagens pedagógicas da organização por projetos, tais como: a flexibilização do tempo; o compromisso e envolvimento do alunos com as atividades e com a própria aprendizagem; a inter-relação necessária entre as práticas de uso da linguagem e de reflexão sobre a linguagem; e seu caráter interdisciplinar e a possibilidade que apresentam de tratamento dos temas tranversais.
Já os módulos didáticos são definidos como "seqüências de atividades exercícios, organizados de maneira gradual para permitir que os alunos possam, progressivamente apropriar-se das características discursivas e lingüísticas dos gêneros estudados" (op. cit., p. 88). Em seguida comenta-se no texto princípios de organização de módulos didáticos.
Nos próprios PCNs é sugerida a relação entre esta organização didática alternativa e o material didático organizado por seqüências didáticas, isto é, um material pensado para "um conjunto de aulas, organizadas de maneira sistemática em torno de uma atividade de linguagem (seminário, debate público, leitura para os outros, peça teatral), no quadro de um projeto de classe" (Dolz & Schneuwly, 1998: 93).
Creio que seqüências didáticas podem ser elaboradas tanto para módulos didáticos como para projetos, constituindo-se num material didático de certa extensão, monotemático ou monogenérico, maior e mais aprofundado que unidades de livros didáticos.
As seqüências didáticas parecem se adaptar bastante bem ao formato dos livros paradidáticos no Brasil. No entanto, creio que os próprios livros didáticos poderiam ser pensados na forma de um conjunto de pequenas seqüências didáticas, adaptadas a diferentes projetos ou módulos didáticos durante um ano letivo. É de se prever que este formato não seja de imediato muito bem aceito pelos professores, escolas e editores, na medida em que implica mudanças na forma de programar e organizar o ensino-aprendizagem no tempo escolar. Mas isso não quer dizer que não seja produtivo e adequado.
Em resumo e para finalizar, os aspectos aqui comentados compõem, a meu ver, um programa e uma pauta complexos para a formação contínua dos professores; um conjunto de indicações de conteúdos e áreas curriculares a serem contemplados nos Cursos de Letras, assim como um conjunto de indicações de necessidades complementares para viabilizar a formação inicial e em serviço e práticas renovadas em sala de aula: descrições variadas de gêneros textuais; elaboração teórica de saberes de referência adequados a campos do conhecimento aí envolvidos; elaboração de textos de divulgação científica destes saberes de referência; elaboração de programas e materiais didáticos diversificados que configurem estas práticas renovadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bronckart, J.-P. (1998) La transposition didactique: Histoire et perspectives d'une problématique fondatrice. Pratiques, março/1998.
Dolz, J. & B. Schneuwly (1996) Genres et progression en expression orale et écrite. Eléments de réflexions à propos d'une expérience romande. Enjeux, 1996: 31-49. Tradução de Roxane Rojo.
_____ (1998) La séquence didactique: une démarche d'enseignement de l'oral. In J. Dolz & B. Schneuwly (orgs) Pour un Enseignement de l'Oral: Iniciation aux genres formels à l'école, pp. 91-114. Paris: ESF Editeur.
Franchi, C. (1988) Gramática e criatividade. SP: SEE/CENP.
_____ (1991) Mas o que é mesmo "gramática"? SP: SEE/CENP.
Geraldi, J. W (org) (1984) O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel: Assoeste.
_____ (1993) Portos de passagem. SP: Martins Fontes.
_____ (1996) Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas: ALB/Mercado de Letras.
Possenti, S. (1996) Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: ALB/Mercado de Letras.
Pasquier, A. & J. Dolz (1996) Un decalogo para enseñar a escribir. Cultura y Educación, 2: 31-41. Tradução de Roxane Rojo. Madrid: Infancia y Aprendizaje.
SEF (1998a) Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: introdução. Brasília: MEC/SEF.
_____ (1998b) Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF.




























(página em branco)
















































Práticas de Leitura e de Produção de Textos















(página em branco)

DESCOBRINDO NOVAS FORMAS DE LEITURA E ESCRITA
Maria Teresa de Assunção FREITAS (FACED/UFJF)
1- Introdução
O que pretendo narrar aqui é o resultado de uma experiência por mim empreendida na Pesquisa Práticas sócio-culturais de leitura e escrita de crianças e adolescentes, realizada no período de 97 a 99. Penetrei em um novo mundo durante aquelas horas de conversas com dois grupos de adolescentes, alunos da primeira série do ensino médio de um colégio particular dos mais conceituados da cidade de Juiz de Fora e que atende a uma clientela classe A. Essa pesquisa tem como proposta conhecer e compreender práticas sócio-culturais de leitura e escrita de crianças e adolescentes de diferentes inserções culturais. Coube a mim entrevistar estes alunos pertencentes a uma parcela sócio e financeiramente privilegiada de nossa sociedade. Outros membros da equipe de pesquisa se encontraram com adolescentes de outras faixas sociais com diferentes experiências de vida.
Foi uma viagem interessante em que percorri, arrastada por suas palavras, um mundo bastante diferente do meu atual e, principalmente, do meu mundo de adolescente. Vítor, Guilherme e Marcelo (jogadores de RPG) e depois Cleber, Danilo e Maria (tocadores de guitarra), são garotos de 15 anos que trazem no olhar a expectativa diante do novo, a crítica ao já estabelecido. Todos eles trajando as indefectíveis calças jeans, camisetas de malha, blusões, tênis. Roupas de griffes comuns aos adolescentes. São filhos de pais advogados, médicos, professores, com mães também profissionais e de nível universitário. Apenas duas mães não exercem uma profissão. Famílias que têm recursos, que lhes pagam mesadas, e que lhes oportunizam o uso em casa de computador, internet, aparelhos de som, instrumentos musicais, televisão comercial e de assinatura, acesso a jornais e revistas nacionais e importadas, freqüência a curso de línguas e academias esportivas.
De fato é "um fosso impreenchível" que nos distancia. Isso também está presente nas palavras de Pasolini que se dirige a Gennarielo dizendo: "a nova produção das coisas, isto é, a mudanças das coisas dá a você uma lição originária e profunda que não posso compreender[...] E isto implica um distanciamento entre nós dois que não é somente aquele que durante séculos separou os pais dos filhos" (1990, p.133).
Pasolini está se referindo a toda uma tecnologia presente no mundo de hoje que para os jovens é natural como se sempre estivesse estado ali e da qual acolhem os ensinamentos como algo absoluto. Para nós, da geração anterior, habituados a conviver com outras coisas, as novas tecnologias: computador, internet, domínio da imagem, escrita vocal, são estranhas e nos colocamos em relação a elas numa postura de medo, dúvidas e crítica. Portanto, é aí, no âmbito das novas coisas, que um verdadeiro abismo nos separa, assinalando um dos mais profundos saltos de geração.
Aquilo que as coisas com sua linguagem me ensinaram é absolutamente diferente daquilo que as coisas com sua linguagem ensinaram a você. Não mudou porém, a linguagem das coisas, caro Gennariello: são as próprias coisas que mudaram. E mudaram de maneira radical. [..]E é um fim de mundo, o que aconteceu entre mim que tenho cinqüenta anos, e você, que tem quinze. Minha figura de pedagogo é então irremediavelmente colocada em crise. Não se pode ensinar se ao mesmo tempo não se aprende (Pasolini, 1990, pag.131-132).
Acho que foi isto que aconteceu comigo no decorrer dos encontros com os seis adolescentes. Sentia a diferença entre nossos mundos e via o quanto poderia aprender com eles. No seu jeito de expressar, nas suas falas eles me apresentavam uma realidade para mim ainda desconhecida. Entrei em nossos encontros tentando compreendê-los, com disposição para penetrar em seu mundo embora o soubesse tão diverso do meu. Minha preocupação era justamente captar esse mundo a partir de suas palavras, não tentando impor a autoridade da minha geração mas me dispondo a ouvir o que tinham para contar.
Nesse sentido todo o referencial teórico metodológico da pesquisa, a perspectiva histórico-cultural, me dava o suporte para usar a entrevista como um espaço de produção de linguagem, portanto, de mútua compreensão, um espaço de entre-falas, de diálogos. Entendendo como Bakhtin (1992) que o enunciado é a unidade da comunicação discursiva que supõe a alternância dos sujeitos falantes, busquei, ao penetrar em seu discurso, compreender os adolescentes com quem me deparava. Optei por não realizar entrevistas individuais mas encontrar-me com pequenos grupos. Não queria restringir a situação da entrevista a uma relação apenas entre duas pessoas situadas em tempos e lugares diferentes. À minha voz de adulto, pertencente a outra geração, queria contrapor, deixar emergir, outras vozes de adolescentes que no grupo, na interação, pudessem ser mais espontâneas, adquirir força. Nesse encontro dialógico queria surpreender no discurso entre coetâneos a heterogeneidade, a diversidade de experiências, o embate de pontos de vista divergentes.
Baseando-me em Bakhtin (1992), estava consciente de que devia compreender a fala viva de meus entrevistados acompanhando-a com uma atitude responsiva ativa. "A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa[...] toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor" (Bakhtin,1992, p.290).
Essa postura me levava a identificar-me com eles e a procurar ver o mundo que eles viam e estavam me apresentando. Devia colocar-me no lugar deles e depois, de volta ao meu lugar, completar o seu horizonte com tudo o que descobri. Ao voltar ao meu lugar é que teria condições de dar forma e acabamento ao material recolhido no momento da identificação.
Foi esse o movimento que empreendi na interação com meus sujeitos, compreendendo que eles vivem um tempo diverso, daí resultando muitas diferenças em seu comportamento, linguagem, costumes. Diferenças essas que separam nossas gerações e que são o resultado das mudanças que marcam cada época. Bourdier (1998) assinala que é preciso aprender a ler nas palavras dos sujeitos de uma pesquisa a estrutura das relações objetivas pois é a revelação delas que permite resgatar o essencial, a complexidade singular de suas ações e reações. Assim, compreendendo como Calvino que "só depois de haver conhecido a superfície das coisas é que se pode proceder à busca daquilo que está embaixo" (1990, p.52) mergulhei nas palavras dos adolescentes procurando captar o sentido que dão a elas para poder, a partir daí, não falar sobre eles mas com eles de suas experiências.
Interessada em compreender suas práticas de leitura e escrita, deparei-me com outros dados que me revelaram seu cotidiano e me deram elementos para conhecer aspectos de sua vida pessoal e do contexto em que vivem. Seus interesses, aversões, atividades me falavam de um mundo em transformação, de uma cultura produzida pelas novas tecnologias que vem alterando o cotidiano e o modo de vida das pessoas contemporâneas. Como sujeitos históricos, concretos, marcados por uma cultura, criam idéias e consciência ao produzirem e reproduzirem a realidade social, sendo nela ao mesmo tempo produzidos e reproduzidos (Freitas,1996).
Para este trabalho, como uma contribuição à discussão sobre os PCNs, considerei importante refletir sobre as formas de leitura e escrita vivenciadas por adolescentes na contemporaneidade. É importante conhecer esta realidade para que a escola não se distancie dela. As formas de leitura e de escrita estão tendo no momento atual uma mudança profunda, está surgindo uma nova modalidade de apropriação do texto. Neste final de século estamos estabelecendo uma convivência com três tipos de textos: o manuscrito, o impresso e o eletrônico.
2-O texto eletrônico
No cotidiano dos adolescentes entrevistados, ao lado da leitura de livros, jornais, revistas e de uma escrita manuscrita está o texto eletrônico com uma forte presença. Todos eles têm contato com o computador e o possuem em casa, passando pelo menos três horas diárias diante dele. O que fazem? Jogam e principalmente navegam pela internet. Buscam sites de acordo com seus interesses: cinema, música, bandas, esporte, RPG, etc. e participam de listas de discussão, de chats. O jogo parece constituir-se numa atividade introdutória. Por ele chegam à máquina, familiarizam-se com ela, substituindo-o depois por outras atividades.
Em casa eu normalmente, eu estou tocando guitarra ou então eu fico no computador jogando jogo. (Cleber)
Ah eu curto bastante. Eu adoro também. É uma coisa, eu gosto de estar acompanhando assim, também... porque é mais da minha geração... aí eu gosto. Eu prefiro jogar. O que eu mais uso de computador é mais para jogar[...]Eu gosto de jogo esportivo, mais corrida, tenho até um simulador lá em casa e tiro. .[...] é basicamente isso, só esses dois tipos de jogos.[...] Ah eu não tenho internet, não. Ai eu jogo mais é jogo mesmo, gosto de avião, submarino, jogo de esporte, tiro, Eu gosto dessas coisas. ( Danilo)
Dos jogos chegam à internet e ela é a maior responsável pelo tempo gasto diante do computador. Os adolescentes estão descobrindo via internet a possibilidade de satisfazer sua curiosidade sobre os assuntos de seu interesse, de entrar em contato com pessoas distantes. Ela é algo realmente novo que se insinua na vida dos brasileiros. De acordo com Nicolaci da Costa (1998), a internet no Brasil pode ser dividida em dois períodos distintos: o acadêmico e o comercial. O acadêmico iniciou-se entre nós mais ou menos em 1990, e o comercial em 1995. Com apenas três anos de existência ela já conquistou muitos usuários. Uma pesquisa publicada em fevereiro de 1977, realizada por um site de busca, o "Cadê", em associação com o Ibope e citada por Nicolaci da Costa (1998), revela que os usuários brasileiros são em sua maioria homens, jovens, solteiros e pertencentes ao topo da pirâmide social sendo que um grande contingente é formado por estudantes que estão completando o ensino médio. Estas informações coincidem com o observado em relação aos adolescentes por mim entrevistados que, ao navegarem pela tela, ficam horas a fio envolvidos em atividades de leitura e escrita com características próprias e especiais.
Normalmente eu acesso umas três horas, duas horas, fico no computador mexendo nisso. ( Marcelo)
Eu acho que no mínimo, não no mínimo não... espera aí, deixa eu pensar, por exemplo.. hoje eu fiquei num total assim umas duas horas e pouco até agora. É mais ou menos isso, eu acho.[...] Depende, fim de semana mais, porque aí sim, fim de semana assim fica muita gente conectada com você no bate papo. Aí você fica três horas direto falando, assim, sabe? ( Maria)
É um tempo que nem vêem passar, tão absorvidos ficam com a possibilidade de através do teclado ou do mouse, chegarem rapidamente às páginas onde podem encontrar seu ídolo do esporte ou da música e informações sobre cinema ou RPG. De acordo com a pesquisa já citada a maioria se conecta em busca de informações. Para os adolescentes que entrevistei não consiste apenas numa busca de informação, numa leitura simples do que aparece na tela, mas mais do que isto é importante a troca de idéias, o bate-papo virtual que os faz discutir com diferentes pessoas os temas de sua preferência. Eles descobrem um novo espaço onde transitar, o cibernético, no qual a realidade é virtual. O ciberespaço, segundo Nicolaci da Costa (1998), é a realidade imaginária compartilhada das redes de computadores. Neste espaço virtual vão construindo novas turmas de amigos em torno de interesses comuns.
Mesmo quando eu estou na Internet, eu assim, 97% é relacionado à música [...] Fim de semana que eu uso mais esse assim do bate-papo, você entra num canal assim, aí você pode escolher, geralmente um assunto assim, por exemplo, você pode falar de Arquivo X que eu às vezes gosto de falar também [...] dia de semana eu faço parte de lista de discussão que tem... Eu faço parte da lista do Dire Straits[...] a gente está sempre vendo mensagem um para o outro, falando... aí pergunta, o outro sabe responder, aí fica visitando.. aí um dá dica de página legal, eu vou visitar as páginas, vou pego foto, vídeo, tudo o que me interessa eu vou pegando.[...] A discussão que mais me interessa, que eu também gosto muito de cinema,[...] faço parte da lista do Tarantino.[...] eu vou ver os "scripts" ou então as páginas de Hollywood, aí você vai ver os filmes que estão saindo...[...] Se vai passar, por exemplo, quando que vai sair no cinema aqui no Brasil, aí você começa a falar quem escreveu a história, qual a história. Ou então o filme que eu já vi, eu fico vendo os detalhes, assim, pessoas que viram os filmes às vezes ficam reparando detalhes, eles ficam comentando, se aquilo tem algum significado mais profundo, assim no filme, aí você fica conversando com as pessoas. É legal. (Maria)
Às vezes a gente costuma pegar trabalho ou às vezes idéias lá. Conversar também ou pegar jogos, ah.. tem muitas coisas que você pode fazer.( Danilo)
Durante esse tempo eu virei fã da Martina Mendes e daí todo dia eu acesso a home page dela, pra saber o que está acontecendo de novo, converso com os outros fãs, troco correspondência, fotos, essas coisas. [...] Ela joga tênis. É jogadora de tênis. Do tênis, virei fã dela, daí assim agora eu vejo, porque eu não tinha nada para fazer, daí entrei lá e gostei.[...] mas, agora, assim, tenho que acessar quase todo dia se não acessar eu fico... com dor na consciência, não saber o que está acontecendo. (risos) Fico perseguindo, se ela vai jogar ou não, essas coisas.( Marcelo)
Eu também gostava de um jogo, mas agora estou parando de jogar. Estou mais na internet também vendo páginas de músicos, de autores.. Eu faço igual ele assino listas também na internet, vejo as mensagens, só que eu não respondo muito, eu respondo só quando eu assim , me interesso pelo assunto, se interessar eu leio e de vez em quando eu respondo. [...] tem do Dire Straits, um grupo de Rock, do Bruce Springsten, um cantor e do Stephem King, autor do RPG. (Vítor)
Falam com entusiasmo dessas suas incursões com o sentimento de alguém que está participando de uma revolução, com a curiosidade insaciável gerada por um novo que nunca deixa de ser novo. Procuram me explicar os nomes que dizem , informando-me de quem são. Apresentam isso para mim como se fosse uma conquista deles, algo que lhes pertence e do qual me vêem excluída. Vão desenrolando diante de mim toda a gama de experiências que a internet está lhes trazendo. Sua leitura agora é a vertical, seus olhos passeiam pela tela onde desfilam cores e imagens, textos que trazem até eles informações que há poucos anos atrás não lhes seriam acessíveis.
[...] E além disso eu assino uma lista sobre RPG que normalmente chega é... cinqüenta mensagens por dia lá em casa. E normalmente eu leio todas e respondo a maioria e tal .. acaba demandando muito tempo[...] E daí a gente troca idéias sobre o como mestrar, como fazer aventura, personagem, não sei o que, essas coisas. E daí eu pego as mensagens, normalmente eu respondo, todas[...]Isso dá um tempo danado, sabe? Desde que eu tive um computador, assim, desde que acesso a internet, eu posso dizer que assim nada pra fazer nunca tive assim esse negócio de nada para fazer, normalmente eu tenho, vou lá, sempre tem um negocinho para fazer, quando não tem nada para fazer, eu arranjo alguma coisa, procuro alguma sobre alguém, essas coisas...(Marcelo)
A rede coloca à disposição de seus usuários uma gama enorme de informações que vêm ao encontro da natural curiosidade dos jovens que se vêem envolvidos pelas possibilidades que lhe são apresentadas. Vão descobrindo os mistérios da nova máquina com facilidade. São autodidatas que dominam a nova tecnologia impulsionados pela curiosidade, pelo espírito de aventura, de descoberta. Eles se iniciam no mundo da cibernética de uma maneira muito mais simples do que o adulto, pois, de acordo com Nicolaci da Costa (1998), eles não têm que fazer nenhum esforço para se despojar daquilo que já absorveram e que muitas vezes é obstáculo para a incorporação do novo.
Uma redação de uma das alunas entrevistadas, realizada numa atividade de seu colégio e corrigida pela professora exprime bem como os jovens estão se situando diante dessa novidade cibernética. Achei interessante reproduzi-la aqui, na forma manuscrita como foi produzida por Maria:
Analisando o material escrito que os adolescentes me trouxeram sobre o que lêem e escrevem na internet, duas coisas me chamaram a atenção: a forma da linguagem usada e o emprego da língua inglesa.
Nas listas de discussão, nos "e-mail", deparei-me com uma escrita abreviada, telegráfica, econômica. As frases são curtas, diretas; as palavras abreviadas convivem ao lado de símbolos como [ ]'= abraços, sinais que expressam emoções. Há palavras novas, inventadas, palavras da língua inglesa que se abrasileiram. Os acentos e cedilhas não existem mais e a grafia das palavras é alterada devido a isto. A entonação é expressa pelos pontos de exclamação e interrogação usados em profusão, pelas palavras em letras maiúsculas que significam voz alta, gritos e pelos "emoticons" , ícones de emoção.
Que efeitos essa nova forma de escrita pode trazer para os seus usuários? Como o seu uso poderá se incorporar ao seu estilo de escrever? O que será da pontuação e da ortografia da nossa língua portuguesa? Essa forma concisa, objetiva, econômica interferirá na maneira de pensar? Este adolescente saberá escrever de uma forma mais analítica? A escrita pessoal, reflexiva , com autoria será ainda possível?
Estas são questões que levanto e para as quais ainda não tenho resposta. Penso no entanto que é o momento de a escola, de nós educadores nos debruçarmos sobre elas para procuramos compreendê-las, pesquisá-las buscando os elos perdidos entre a escola e as novas práticas de seus alunos.
Nicolaci da Costa (1998) diante do texto escrito de usuários da internet analisados em sua pesquisa afirma:
[...]a língua usada para falar na Rede não é o português tal como o conhecemos fora dela. É mais uma língua híbrida, cuja forma de expressão é predominantemente escrita, que tem como base o português - principalmente sua gramática -, mas com alta incidência de vocábulos ingleses não traduzidos, como, por exemplo "home page" e outros tantos neologismos, ou seja, expressões e palavras novas que são adaptações de palavras inglesas, como por exemplo deletar. Há ainda abreviações de expressões em inglês, ou acônimos como btw( by the way ou a propósito)[..]... a língua mãe da internet é o inglês e nós, brasileiros não parecemos ter nenhum problema em admitir isso (p.159-160).
Será isto um problema? Como estaremos nós nos posicionando diante do emprego indiscriminado desta língua que não tem fronteiras neste mundo globalizado? O que a pesquisadora citada observou em relação à presença do inglês na internet foi por mim constatado no material que me foi fornecido pelos sujeitos entrevistados.
Mensagens em inglês são também enviadas pelo correio eletrônico como a que se segue:
Hello...
I'm sending my best five pics again, I think you have them because yuor gallery is enormous, but just for you see. May be tomorrow I send you the five pics that give me more trouble for found.
See you later....
Marcelo Versiani
Textos em inglês são acessados e impressos em sites da internet, como o texto de 17 páginas "Law and Disorder on the electronic frontier" by Bruce Sterling. Vítor comenta sobre ele:
Esse aqui é um livro que eu achei na internet. São quatro capítulos, aqui tem dois só que é um livro bastante famoso na internet. E conta a história de 1990 e 1991, uns piratas cibernéticos invadiram os computadores provocando uma pane no sistema de telefonia dos EUA inteiro. E esse livro vem contando a história desse acontecimento e as repercussões que teve depois em toda internet [...]. Eu vi numa revista de internet comentando sobre literatura cibernética que esse era um dos melhores livros que estavam disponíveis na internet. Inclusive ele foi feito para ser distribuído livremente. Ele não foi feito para ser impresso no papel. (Vítor)
Leio na internet, leio mais em inglês, eu também leio livro, eu estou lendo um... o que eu estou lendo em inglês, também estou lendo um livro em inglês que é "As viagens de Marco Polo"( Maria).
Estes adolescentes por mim entrevistados estão lendo e escrevendo em inglês. Todos eles freqüentam ou já freqüentaram algum curso de inglês e consideram que os cursos forneceram a eles o básico para o conhecimento da língua mas falam com entusiasmo das vantagens da internet.
E assim... a gramática, essas coisas assim, até que dá uma ajuda, apesar de eu não saber muita gramática, deu uma boa ajuda esse curso de inglês. Claro que.. eu achei, assim, meio...muito lento, o aprendizado meio lento, para aprender pouca coisa [...]Depois que eu comecei a mexer na Internet eu aprendi coisas muito mais rápido e muito mais fácil.[...] eu tenho nessa conversa aqui, o tempo real, então eu tenho que responder na mesma hora, daí eu tenho que me virar com o que eu tenho, pego palavra na hora, procuro no dicionário rápido, sabe, essas coisas. Tento me virar daí ...está até rendendo mais.( Marcelo)
Eu acho hoje em dia muito mais fácil uma pessoa que não teve a oportunidade de morar fora, conseguir falar um inglês bom do que antigamente, entendeu, porque minha mãe fez assim, quando era nova, mas não sabia falar muito bem. Agora, tem assim, além dos cursos estarem melhores, assim, você tem... acho que a internet ajuda muito, porque eu tenho assim amigos que só conversando na internet falam inglês que eu acho assim excelente, sabe?[...]É porque eu acho se na internet se você não souber falar inglês, você fica muito limitado (Maria).
O uso da língua inglesa foi constatado não só em relação ao que lêem e escrevem na internet mas também em outras atividades.
Ah, eu tenho muita facilidade com inglês. Eu gosto muito, meu avô também ele entende, me passa sempre... ele assina revistas que não tem traduzidas, vêm em inglês e ali está sempre me passando e eu procuro sempre ler. Livros em inglês, também eu é bom pro meu vocabulário... eu pego livros no meu curso de inglês...Eu vejo inglês é... mais como uma variação, por exemplo, eu fico em casa, quando eu não estou escutando música, fazendo as minhas atividades que sejam preferidas, eu uso o inglês pra fugir daquela rotina, é despertar sua mente, aí você varia um pouco, você conhece um pouco da cultura deles, então eu acho isso muito bom.[...] eu também procuro pegar filmes que não tem legenda, nem tradução , pra ver se eu estou... como é que está o meu inglês.. e tal, isso é muito bom (Danilo).
Marcelo diz que escreve na internet com prazer, adora escrever nas listas de discussão que em sua maioria utilizam o inglês como forma de comunicação. Guilherme considera emocionante escrever em inglês e mostra entre os textos pessoais que usa para falar de seus sentimentos e dos acontecimentos do dia a dia alguns escritos em inglês.
O inglês também é presença marcante em um jogo muito comum entre eles o "Role Playing Game", o RPG. Este é um produto da indústria cultural americana que chegou ao nosso país nesta década e está se impondo como preferência entres os adolescentes, como mais uma forma de consumo. Para jogar, precisam ler os livros de regras e algumas vezes livros auxiliares na composição da trama. Eles me apresentaram uma série de livros que são necessários para o jogo, todos em inglês A maior parte desse material é encontrada em inglês. Existe muito pouca coisa em português.
A forma significativa com que interagem com a língua estrangeira, de uma maneira funcional, concreta torna a aprendizagem mais eficaz do que a conseguida nos cursos onde ela é ensinada de maneira formal e artificial. Bakhtin (1988) se referindo ao ensino de línguas estrangeiras diz que o essencial é familiarizar o aprendiz com cada forma da língua inserida num contexto e numa situação concreta. "Assim na prática viva da língua, a consciência lingüística do locutor e do receptor nada tem a ver com um sistema abstrato de formas normativas, mas apenas com a linguagem no sentido de conjunto dos contextos possíveis de uso de cada forma particular"(Bakhtin, 1988,p.95). Portanto, para ele, o método eficaz e correto de um ensino da língua exige que ela seja assimilada não no sistema abstrato, mas na estrutura concreta da enunciação.
O que a presença marcante do inglês na vida desses adolescentes pode significar? Seria a adoção de uma segunda língua? Que efeitos isto poderá ter sobre o uso da língua materna? Até que ponto a sua identidade cultural estará tendo influências desse idioma dominante? Ao pensar sobre isso percebo as vantagens do uso de mais uma língua e como a internet e o RPG podem estar ajudando no desenvolvimento dessa habilidade tão útil em momentos de globalização. Entretanto, até que ponto não está acontecendo uma dominação cultural via língua? Bakhtin (1988) analisando o papel ideológico da palavra estrangeira, vê que esta se funde com a idéia de poder, imposição e verdade. A palavra estrangeira transporta consigo forças e estruturas dominadoras . Assim, um povo vencedor ao submeter o outro, impõe sua língua, escraviza a sua consciência, cria novas formas de relações com o real. É semelhante o pensamento de Pasolini quando, ao se referir à revolução dos meios de informação, diz que esta iniciou uma obra de padronização destruidora de qualquer autenticidade e concretude. Assim, junto com o esvaziamento da língua materna, esvazia-se também a cultura que a expressa. É o que ele chama de aculturação do novo poder da sociedade consumista. Para ele, quem possui uma cultura própria e se exprime através dela é livre e rico. Os valores estão assim sendo substituídos clandestinamente através de uma espécie de persuasão oculta à qual ele chama de afasia ou perda da capacidade lingüística. "Os jovens estão perdendo os antigos valores populares e absorvendo os novos modelos impostos pelo capitalismo, correndo assim o risco de uma forma de desumanização, de uma forma de afasia atroz, de uma brutal ausência de capacidade crítica, de uma facciosa passividade (1990, p.115).
São considerações que podem ser feitas no momento que o inglês se insinua como a língua obrigatória dos jogos, da comunicação da internet, dos filmes a que assistem e das músicas que escutam ou tocam. Entre as músicas citadas como de sua preferência todas se referem a bandas americanas, valorizam os filmes americanos de ficção científica, terror, suspense e os autores americanos das histórias do RPG. Que identidade nacional está sendo construída entre estes meninos? Que subjetividades podem ser constituídas com estas marcas de dominação cultural? "As identidades, dizem, se quebraram. Em seu lugar não ficou o vazio, mas o mercado[..] Sonhamos com as coisas que estão no mercado". (Sarlo,1997, p.26).
O papel da escola nesse caso seria determinante na conscientização destes jovens sobre o uso da língua inglesa em suas vidas. Esta deveria lhes ser apresentada numa perspectiva crítica, acompanhada da compreensão da interação entre os diversos idiomas.
3-Jogando RPG
A leitura do texto eletrônico compete com outro tipo de entretenimento que ocupa grande parte do tempo livre desses adolescentes: o Jogo de RPG ( Role Playing game).Este jogo foi criado nos Estados Unidos em 1973 e chegou ao Brasil na década de 80 trazido por estudantes brasileiros que faziam intercâmbio nos EUA. Hoje está bastante difundido entre os jovens, principalmente entre aqueles de maior poder aquisitivo. Desenvolvido a partir dos jogos de estratégia, trabalha com a oralidade dos participantes que, na troca e no exercício da imaginação, vão contando histórias e desempenhando os papéis dos personagens.
Os meninos transitam com desenvoltura sobre a leitura de aventuras de ficção científica e terror que lhes fornecem material para a trama das histórias nas quais se envolvem, às vezes durante 12 horas nos fins de semana. Mas, por que os adolescentes se interessam por ele? Pode ser uma resposta ao apelo de mais um produto que é colocado para ser consumido, mas o fato de encontrar ressonância entre os adolescentes talvez esteja ligado as transformações da forma e conteúdo de seu pensamento que deixa o concreto para se tornar conceitual, categorial. Toda sua imaginação está ligada ao pensamento conceitual. Assim, no jogo lidam com o imprevisível, a possibilidade de planejar, de colocar o seu ponto de vista, de dar o rumo que querem às histórias que constróem. Também este jogo favorece o estar junto, a turma, o grupo, as relações sociais, a cooperação. Estes garotos formam um grupo de amigos que acabou se constituindo a partir do RPG. Marcelo descobriu o jogo há 4 anos ao visitar uma livraria da cidade. Interessou-se, formou uma turma e começou a jogar.
Quando a gente começou a jogar, a gente nem se conhecia direito, a gente não era amigo, não era nada, era colega, a gente se reunia pra jogar porque não tinha muita gente que gostava de jogar RPG, então a gente se reunia para jogar o jogo, não é para conversar, para nada.[...] Depois de quatro anos a gente ficou virando amigo, essas coisas... (Marcelo)
Para falar de RPG, esta nova forma de lazer que vem ocupando os dias dos adolescentes, ninguém melhor do que eles mesmos. Vou reproduzir aqui alguns diálogos ocorridos durante as entrevistas:
-Marcelo: -É um jogo de interpretação de papéis, mas não é um teatro, porque nada tá pronto, nada está esquematizado. O jogador pode fazer o que ele quiser, então eu tenho que lidar com o que ele for fazer, então eu tenho que pensar no que ele vai fazer, mas não adianta, porque ele sempre arruma um jeito de fazer uma coisa diferente da que eu pensei, daí eu tenho que acabar inventando e ... fazer, tenho que fazer... mapas, essas coisas porque, por exemplo, tem tiroteio, caverna, tem que montar uma nave, alguma coisa assim. E daí eu tenho que fazer o cronograma da aventura, o que vai acontecer, o que vai aparecer, essas coisas... isso dá um trabalho.
- Maria Teresa:- Trabalho. Quer dizer, você é o mestre do grupo?
-Marcelo:- É , normalmente, não é só o trabalho. Você tem que pensar no que vai fazer, tem que ficar um negócio legal, não adianta você fazer só ... uma coisas que começa a ficar repetitiva, até que vocês estavam reclamando demais por causa disso, estava sempre a mesma coisa. Daí tinha que pensar mais, alguma coisa, tivemos que trocar de ambientação, essas coisas todas. Aí, assim, isso dá trabalho, né?
- Vítor: Mas é bom.[...] eu gosto das duas coisas (cinema e RPG) Porque numa você vai fazendo uma história já planejada, você tem um tipo de divertimento e noutra você construiu uma história, é outro tipo de divertimento. Os dois são interessantes.
- Maria Teresa: Quer dizer que você por exemplo no cinema e na TV tem um história pronta e no RPG você é construtor de uma história.
Para jogar RPG há necessidade de comprar livros caros que trazem todo o material do jogo. Há um livro básico que dá os elementos principais e os suplementos que dão os argumentos e favorecem a construção dos personagens, ajudando-os a ambientar e organizar a trama da história que depois é desenvolvida por eles mesmos.
Essa é uma nova forma de leitura encontrada nos adolescentes entrevistados. Embora este seja um jogo que se baseia sobretudo na oralidade, onde os participantes montam uma história da qual cada um é um personagem e desempenha um papel, há necessidade de leitura. Quem exerce mais atividade de leitura é o mestre, o coordenador do jogo. Ele tem que ler todo o livro básico e organizar o material a ser trabalhado. Durante o jogo os participantes lêem os formulários que são entregues a cada um pelo mestre e escrevem preenchendo estes formulários. No material que me apresentaram pude conhecer estes formulários bem como os diversos livros e suplementos quase todos em inglês. Existe muito pouca coisa traduzida e já há um esforço de produção de RPGs nacionais, ambientados no país, embora estes lutem contra a força do mercado internacional e o próprio preconceito dos usuários.
Estaria o RPG aproximando os adolescentes dos livros? Que tipo de livros? Ele leva os adolescentes a fazerem outras leituras diferentes da oportunizada pelos livros específicos do jogo? Os depoimentos dos jovens ajudam-nos a encontrar essas respostas.
A gente começou a jogar o Gurps, que é o sistema Gurps, a gente começou a jogar uma aventura baseada em Duna que é o livro que eu estou lendo. Eu comecei a ler o livro de ficção científica porque a gente ia começar jogar a aventura e eu precisava saber da ambientação da aventura, porque todo mundo já sabia, então, assim, ficava chato e a minha história era muito grande ,então peguei o livro para ler com meu amigo. Ele falou que tinha umas páginas ali de um a duzentos que você vai saber tudo. Aí eu li até seiscentos e depois, fui pegando mais. Por isso eu comecei a ler. (Marcelo)
Assim, em função do jogo vão aos livros e são capazes de enfrentar até seiscentas páginas movidos pela curiosidade e interesse despertado pela necessidade de participar da montagem da aventura exigida pelas regras do RPG. Normalmente, em vez se limitarem aos suplementos, preferem um livro relacionado ao assunto do jogo que dará subsídios para a construção da história. Existem livros de ficção científica, de terror, que são usualmente lidos e depois aproveitados para ambientar episódios do RPG.
É porque você tem que ler muito, várias páginas, e além disso, você tem que entender a história inteira, uma trama, às vezes longa, essas coisas, aí fica difícil... [...]Às vezes leio um livro transformando-o para o Rpg.[...]Nós começamos a fazer uma aventura desse livro Desespero do Stephen King. O livro é a história de várias pessoas isoladas, elas estão viajando por vários motivos. Aí elas encontram um policial louco...numa estrada. Quando eles estão passando perto da cidade Desespero , esse policial louco leva essas pessoas pra cidade deserta e aprisiona todo mundo. E esse livro conta a história dessas pessoas tentando fugir da cidade e fugir do policial. Aí eu pensei em fazer uma aventura de RPG baseada nesse livro.[...] Os jogadores seriam os viajantes que seriam aprisionados e eles tentariam fugir da cidade, aí o mestre coordenaria as ações dele e comandaria o policial (Vítor)
Vítor visita com freqüência uma livraria da cidade, que oferece uma boa variedade desse tipo de livros e desse autor. Estes são volumosos e custam em média 40 reais. Há na cidade livrarias especializadas que além de vender os livros e material de suporte, oportunizam a criação de grupos e oferecem espaço para as partidas que reúnem os adolescentes.
Parece pois que o RPG leva a uma leitura direcionada aos temas propiciados pelos jogos. É uma leitura que alimenta a fantasia para o desenrolar da trama. Há também uma prática de escrita durante o jogo pois os participantes preenchem formulários e anotam uma espécie de diário do personagem descrevendo suas ações. Estes formulários podem ser preenchidos à mão num texto manuscrito, mas também no computador, existindo até programas especiais para isto.
Enfim, o RPG é mais um produto da indústria cultural que conquistou seu lugar entre os jovens e com a força da moda, com o atrativo do novo, o desafio à imaginação, se fez em mais um objeto de consumo. Consumo que se impõe a jovens de um maior poder aquisitivo e que lhes proporciona mais um tipo de lazer, criando novas formas de leitura e escrita.
4-Lendo livros
No decorrer de nossos encontros foram portanto reveladas outras formas de leitura e escrita, produtos do novo contexto social. Uma leitura bastante diferente da que me foi oportunizada. Para mim leitura sempre foi algo prazeroso e significativo desde minha infância. Quando adolescente era uma leitora voraz. Passava horas, avançando muitas vezes pela noite, envolvida na leitura. Até hoje me delicio com os clássicos, com a literatura. Enfim, leitura para mim é uma experiência estética, uma viagem da qual sempre regresso com um novo sentido do meu eu. Compreendo pois, como Larossa (1996) que a leitura é uma atividade que tem a ver com a subjetividade do leitor, não só com o que o leitor sabe, mas também com aquilo que ele é. Leitura como formação e transformação, como algo que nos constitui ou nos põe em questão naquilo que somos. Leitura é o que nos passa. Esse tipo de leitura existe entre os adolescentes?
Deparei-me com relatos que falavam de uma leitura de livros que de certa forma acompanhavam o seu interesse pelo mistério, o suspense, o imprevisível. Assim vou colhendo alguns depoimentos:
Eu estou lendo agora um livro do Stephen King e... eu gosto mais deste tipo de literatura mais romance, ficção. Eu não gosto muito de.. livros é.. mais drama, mas não ficção. Eu gosto mais de histórias. Tem um mistério, suspense, alguma coisa assim... [...] Meu autor preferido é o Stephen King, mais livro de terror, eu gosto muito. Mas tem o Michael Crichton. (Vítor)
Eu tenho um amigo que ele tem muitos livros de ficção científica, daí foi uma mão na roda, né? Livro de graça! Daí eu peguei para ler que tem uma serie de seis livros chamada Duna, eu já li os três primeiros e vou pegar os outros três depois para ler, com ele[...]Eu acho que vou ler ficção científica até eu completar uns, assim, dezenove anos, porque tem tanto livro e não vou perder a chance de pegar livro de graça com ele, então...(risos)( Marcelo)
Olha eu estou lendo.. eu comecei a ler... eu li um livro da Ágatha Cristie, aí eu gostei muito do estilo, aí de vez em quando eu estou lendo. Inclusive, eu devo ter lido uns vinte já...[...] Meu pai... saiu na banca, estava saindo uma coleção semanal, então ele comprou muitos, entendeu? A[..] Agora eu já estou quase acabando, faltam uns três só.(Cleber)
Livros de mistério, ficção científica, policiais. Ao mergulharem nas tramas intrincadas dessas histórias talvez estejam buscando a emoção trazida pela aventura, pelo suspense. Podem ainda estar procurando nestes livros as mesmas emoções dos seriados televisivos, dos filmes a que gostam de assistir. Talvez seja uma leitura que completa a força da imagem a que estão acostumados. Consumo esse que me faz lembrar do episódio da loja de queijos contado por Ítalo Calvino no seu livro Palomar. O senhor Palomar, diante da profusão de espécies de queijos à sua escolha, se decide pelo mais convencional, aquele que conhece e está habituado a comer. O gosto, a preferência se estabelece a partir de uma experiência anterior a esta, é o percurso da memória e imaginação em relação ao já experienciado. "O verdadeiro conhecimento está na experimentação dos sabores, feita de memória e imaginação ao mesmo tempo e, somente com base nesta se poderia estabelecer uma escala de gostos e preferências, curiosidades e exclusões" (Calvino, 1990, p.68).
De fato é isto o que acontece. O gosto é feito de memória. No relato dos três garotos o seu imaginário está povoado com os heróis e tramas dos filmes a que assistem. Em casa, onde não há uma oferta de livros disponível, poucas são as oportunidades de conhecer algo diferente. Eles escolhem o que está ao alcance da mão: a biblioteca de ficção do amigo, a coleção de policiais comprada pelo pai na banca de jornal.
Por outro lado, Maria e Guilherme, filhos de professores, comentam que foram criados no meio de livros:
Minha casa já é uma biblioteca.(risos) Tem muito livro lá, entendeu? (Guilherme)
[...] Minha casa parece uma biblioteca[...], minha mãe tem um monte de livro, então, acho que quando eu era pequena eu ficava folheando assim.... Minha avó tem uma casa que tem .. ela tem um monte dessas coleções Monteiro Lobato, Jorge Amado, tem um monte... Meu pai também tem muito livro... acho que lá em casa tem muito livro, então eu acho que isso ajudou muito, (Maria)
O contato diário com os livros, tendo à sua mão uma variedade de ofertas, talvez tenha lhes permitido uma ampliação e diversificação de seus interesses. Parecem hoje ter o gosto pela informação envolvendo-se na leitura de revistas e jornais brasileiros que são assinados pelos pais. Maria diz que prefere ler jornal a assistir o noticiário da TV, que acha muito sensacionalista. Lê a "Folha de S. Paulo", a "Veja" e muitos livros. Ela se refere à mãe como a pessoa que a levou a gostar de ler:
A coisa que minha mãe mais gosta de fazer é ler. Desde pequena eu lembro dela lendo assim. Quando a gente foi lá para os Estados unidos, ela foi para escrever a tese, ela ficava dia inteiro na biblioteca pegando coisa para a tese dela, então ..tudo isso. Lá ela levava a gente para ver biblioteca, essas coisas... Acho que foi isso [...] minha mãe lê muito, então, assim, acho que ela foi a principal assim na minha vida para eu começar a ler. Me estimulou muito[...] eu leio geralmente assim, minha mãe fala: ah!, esse livro é bom, ela compra para mim. Aí, por exemplo, eu li Cem anos de solidão. Agora estou lendo Incidente em Antares e ela comprou para mim um outro. ..é do Mário Vargas, esqueci como é que se chama[...] Fora dos que eu me interesso assim, grande parte dos que ela compra para mim, eu gosto.
E Maria vai lembrando de sua infância, do primeiro livro grande que leu, dado pela mãe.
Fora aqueles livros Pato Bola, aquelas coisas assim, aí eu nunca tinha lido um livro grande assim, consideravelmente grande, aí eu já tinha visto o filme da Disney, Pollyana, aí minha mãe me deu. Aí, ela assim ficava lendo às vezes comigo assim para eu ler porque senão eu não lia. Depois de um tempo eu já ficava assim doida para ler de novo querendo saber o que ia acontecer... tem livros assim que te prendem mesmo.
Como é importante a presença desse outro que leva pela mão à maravilhosa viagem pelo mundo da leitura. Elias Canetti, em seu relato autobiográfico, mostra como foi fundamental em toda sua vida a experiência de leitura apreendida com o pai.
Alguns meses depois de meu ingresso na escola aconteceu algo solene e excitante que determinou toda minha vida futura. Meu pai me trouxe um livro.[...] Falou-me, de forma animadora e séria de como era lindo ler. Leu-me uma das histórias; tão bela como esta seriam as outras histórias do livro. Agora eu devia tentar lê-las, e a noite eu lhe contaria o que havia lido. Quando acabasse de ler este livro ele me traria outro.[...] Ele cumpriu sua promessa, sempre havia um novo livro e não tive que interromper minha leitura um dia sequer.[...]quase tudo aquilo a que devo minha formação estava nos livros que por amor de meu pai, li aos sete anos de idade (1987, p.50).
Todo conhecimento é construído na partilha, com o outro. É pelo outro que vou percebendo o mundo ao meu redor e construindo a partir dele o meu próprio. "Esse amor da mãe e dos próximos, que desde a infância proporciona, de fora, a forma ao homem, proporciona, ao longo de toda a sua vida, consistência ao seu corpo interior" (Bakhtin, 1992, p.68).É esse também o pensamento de Larossa (1996), quando diz que o outro é algo do qual posso ter uma experiência que me transforma. Foi através da presença ativa e significativa de um outro que Maria descobriu o prazer de ler, vivendo a experiência da leitura no texto que penetra e deixa marcas.
Agora, por exemplo, um livro, vou dar o "Cem anos de solidão", como um exemplo de novo (risos)[...] O livro, assim o final te dá uma paz, assim, sabe? É ótimo! Aí eu ficava todo dia, pegava a última frase... a frase e lia de novo, sabe? Porque eu achava ótimo, assim, porque quando você pensava ... no livro todo, você via igual um filme passando na sua cabeça, você via aquele final assim[...] Emprestei para minha amiga agora, mas acho que ela nem leu, mas...antes de emprestar para ela, eu ficava lendo todo dia a última página assim.( Maria)
E Maria, conhecendo o prazer dessa experiência quer difundi-la, não quer privá-la aos seus amigos e introduz Guilherme na leitura.
Eu não gostava muito de ler não. Eu tenho uma amiga, Maria , ela lê bastante. Aí ela começou a me obrigar a ler, entendeu? Ela pegava os livros dela (risos) Oh , você tem que ler esse livro, sabe?[..] Aí eu lia, aí eu gostava, aí eu sondava se ela não tinha outro para me emprestar. Aí ela me obrigava a ler outro. Aí eu comecei a ler assim mais regularmente. Antes eu não lia nada. (Guilherme)
E Guilherme mordeu a isca, foi contaminado, transformou-se em leitor, ainda principiante, com um pouco de medo dos clássicos, que considera muito difíceis para ele.
Tem uns autores assim, um negócio obscuro [...] um negócio assim muito clássico pra mim[...] aqueles livros que têm aquelas capas vermelhas com uns negócios dourados... [...] Deixa eu ver se eu lembro dos nomes dos autores.. Kafka.....[...] é muito inteligente para mim.[...] Estou lendo três livros agora. [...] eu só leio, eu leio quando eu estou gostando do livro, quando o livro começa a ficar chato, eu paro e começo outro .[...]Estou na metade, não, mais da metade, do "Beijo da Mulher Aranha", na metade do "Confesso que eu vivi" e eu peguei um livro lá( na biblioteca da sua casa) "Iniciações tibetanas" porque eu achei bonitinha a capa(risos) e eu já li três capítulos (Guilherme).
Guilherme foi revelando a sua maneira de ler. Lê em casa quando dá vontade, ao sabor do prazer que experimenta. Interrompe a leitura, se dá este direito de procurar outro e voltar depois naquele que deixou para trás, mas está descobrindo um novo mundo que lhe dá uma visão crítica e avaliativa do que chama de "livro de colégio".
Maria revela que ao iniciar uma leitura o faz devagar até que o entusiasmo chega e a faz não soltar mais o livro.
Tem uns livros assim que te prende mesmo. O Mundo de Sofia eu ficava assim lendo no sábado o dia inteiro lendo porque eu não agüentava de curiosidade, assim para saber o que ia acontecer. O Cem anos de solidão, assim porque todo livro...eu nos inícios dos livros eu sou bem preguiçosa, porque eu não estou entendendo a história. Aí eu leio todo dia assim de noite para não ir perdendo. Mas tem dia assim, tem semana que não dá pra você pegar nem uma vez porque está cheio de coisa para escola....[...] mas Cem anos de Solidão é o melhor exemplo que eu posso dar porque foi o livro que eu mais gostei.[...] No final dele, ficava assim, o dia inteiro assim, lia assim, três horas assim direto no livro porque ficava doida para saber... o livro é muito bom, você não consegue parar de ler! (Maria)
O sabor da literatura penetrou em Maria e está começando a penetrar em Guilherme. E este gosto os levará pela memória à procura de outros livros, não só para lê-los, mas como queria Benjamin(1987), para habitar neles, morar entre suas linhas.
Já Vítor, Cleber, Marcelo, embora leitores, ainda não experimentaram o gosto pelos clássicos da literatura. Encontram prazer na ficção cientifica, no terror, no policial. Danilo mais objetivo gosta de algo que reflete a realidade que vive e por isso está lendo as lei de Murphy que lhe foi emprestado pelo seu padrinho. Já leu também "O homem que calculava" de Malba Tahan. Todos eles já sabem caminhar por entre as páginas de um livro encontrando prazer nessa deliciosa aventura.
Estes são alguns dados que através do discurso dos adolescentes mostram a realidade de suas práticas de leitura e escrita e permitem uma reflexão sobre o papel da escola na construção do leitor/escritor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bakhtin, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
_____ . (Volochínov, V. N.) Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988.
Benjamin, W. Obras Escolhidas II- Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987.
Bourdieu, P. A Miséria do Mundo. Petrópolis: Vozes, 1998.
Calvino, I. Palomar. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
Canetti, E. A Língua Absolvida. São Paulo: Companhia das letras, 1996.
Chartier, R. A leitura no tempo O Globo- 24/10/98
Fitchtner, B. O Computador e o Desenvolvimento de Novas Atividades. Universidade de Siegen, 1997.
Freitas, M. T. A. Vygotsky e Bakhtin- Psicologia e Educação: Um intertexto. São Paulo: Ática, 1994.
_____ . Bakhtin e a psicologia. In Faraco, C. A et allii (org.) Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Editora da UFPR, 1996.
Giroux, H. Escrita e pensamento crítico nos Estudos Sociais. In Giroux, H. Os Professores como Intelectuais. Porto Alegre, Artes Médicas, 1997.
Larossa, J. Literatura, experiência e formação. In Costa, M.V.( org.) Caminhos Investigativos. Porto Alegre, Mediação, 1996.
_____ . Pedagogia, experiência e subjetividade, In Silva, L. H & Azevedo, J,,C,( org.) Reestruturação Curricular. Petrópolis: Vozes, 1995.
Nicolaci da Costa, A. M. Na Malha da Rede - Os impactos íntimos da Internet. Rio de Janeiro: Campus, 1998.
Olson, D.R. A escrita e a mente. In J. Wertsch et alii Estudos Socioculturais da Mente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
Pasolini, P. Os Jovens Infelizes. São Paulo. Brasiliense, 1990.
Pennac, D. Como um Romance, Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
Pino, A. O conceito de mediação semiótica em Vygotsky e seu papel na explicação do psiquismo humano. Cadernos CEDES, São Paulo, 24, 1991, p..32-43.
Sarlo, B. Cenas da Vida Pós Moderna. Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ, 1997.
Vygotsky, L.S. Obras Escogidas, IV. Madrid: Visor, 1996.
Wertsch, J. et allii Estudos Sócioculturais da Mente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.


A CONSTRUÇÃO DE "TÍTULOS" EM GÊNEROS DISCURSIVOS DIVERSOS: UM PROCESSO DISCURSIVO POLIFÔNICO E PLURISSÊMICO
Sérgio Roberto COSTA (DLET/UFJF)

1 Introdução
O objetivo deste texto fazer uma reflexão sobre a construção de títulos em gêneros textuais diversos se deve a, pelos menos, três fatos recentes que me chamaram a atenção: dois, envolvendo escrita e o outro, leitura. No ano de 1998, em contato com professores de 1ª a 4a séries da rede pública de MG, no programa de capacitação à distância (PROCAP), promovido pela SEE, em convênio com várias universidades públicas e particulares, entre elas a UFJF, onde trabalho, tive oportunidade, em oficinas de produção e avaliação de textos e leitura, em que procurava dar um enfoque enunciativo-discursivo a essas atividades, de ouvir perguntas do tipo " Os alunos devem ou não dar títulos aos trabalhos produzidos em sala de aula?", como se os títulos fossem apenas um "enfeite", sem importância enunciativa ou discursiva. Ouvi, ainda, certa feita, uma conversa entre duas professoras: uma dizia que não exigia que seus alunos dessem títulos aos textos; outra, ao contrário, o exigia sempre. O terceiro fato se refere à dificuldade de vestibulandos em resolver questões de interpretação envolvendo o significado global do texto lido e o título dado, como tem acontecido nos vestibulares da UFJF. Segundo ponto de vista enunciativo, as questões de leitura (Interpretação) e escrita (Prova de Redação e Provas Abertas de Português) exigem do candidato o uso "vivo" da língua, em que a situação de produção implica usos de estruturação discursiva e escolhas de unidades lingüísticas, segundo o gênero proposto, o que estaria ligado, respectivamente, à capacidade discursiva e lingüístico-discursiva dos interlocutores.
Diante desses fatos, uma questão básica pode ser levantada: que concepções de língua, linguagem, discurso, alfabetização ou letramento teriam essas professoras do ensino básico e, por extensão, muitos professores dos outros graus subseqüentes de ensino de 1º e 2º graus, que talvez estivessem se refletindo, ao final de 11 anos de aprendizagem de língua materna, na dificuldade de os vestibulandos interpretarem questões (ou produzirem textos na, chamada tradicionalmente, Prova de Redação) que fujam à visão de um ensino sistêmico ou lógico-gramatical da língua materna?
É justamente, fugindo dessa visão para uma perspectiva discursiva que olha a língua como enunciação (oral/escrita), a partir de uma situação concreta de uso/produção da língua, mediada por gêneros discursivos diversos, que devem ser reificados como objetos de ensino num processo em que o texto seria sua unidade primeira de ensino, que os PCNs, em vários momentos, apontam, estabelecem diretrizes, parâmetros para uma organização progressiva curricular, e não apenas gradual. Alguns excertos, presentes nos PCNs, resumem minhas palavras (p.8): "O discurso, quando produzido, manifesta-se lingüisticamente por meio de textos /.../ que só podem ser compreendidos como unidade significativa global, isto é, quando possuem textualidade." E ainda "Todo texto se organiza dentro de um determinado gênero, formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura, caracterizados por três elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional."
Além disso, está muito clara nos PCNs a noção do que significa produzir linguagem ou linguagens, como atividade e prática socio-histórica viva e reflexiva (p.7): "Produzir linguagem significa produzir discursos: dizer alguma coisa a alguém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico e em determinadas circunstâncias de interlocução. Isso significa que as escolhas feitas ao produzir um discurso não são aleatórias - ainda que possam ser inconscientes -, mas decorrentes das condições em que o discurso é realizado."
Partindo, então, do pressuposto de que cada gênero representa um contexto social determinado que supõe uma capacidade de ação do interlocutor para seu uso efetivo e eficaz, em que o gênero é estruturado discursivamente, e de que, implicitamente, alia-se a isso o desenvolvimento da capacidade lingüístico-discursiva do sujeito - conjunto de elementos de que o usuário ( no caso, o aluno) deve se apropriar, resolvi fazer um recorte de um dos elementos composicionais comuns a muitos gêneros, que é o TÍTULO, cuja função operacional não é tão sem importância enunciativa ou discursiva, como pode parecer a muitos professores. Pelo contrário, é um dos fatores operacionais de complexificação discursiva dos gêneros, que está intimamente ligado a operações diversificadas, quando da produção ou da leitura de um texto, e à capacidade de linguagem dominante de que se faz uso (narrar, relatar, argumentar, descrever ações...) em diferentes níveis ou esferas socio-institucionais (cotidiano, escola, igreja, mídia, etc.).
Assim, neste trabalho objetivo, discutir a importância da construção de TÍTULOS em gêneros diversos como um dos fatores operacionais (formais e/ou estruturais) no processo de complexificação discursiva polifônica e plurissêmica de letramento; ligá-la com a proposta de seqüência didática por agrupamento de certas capacidades de linguagem (narrar, relatar, argumentar...) nesses gêneros; propor a leitura e a escrita de títulos como uma prática didática de letramento contemplada nos PCNs em seus objetivos gerais e específicos de leitura e produção de textos e analisar, criticamente, o uso enunciativo e discursivo de títulos em gêneros textuais de diversas esferas institucionais.

2 Organização curricular progressiva
Se pensarmos, como Dolz & Schneuwly (1996), em currículo como organização de conteúdos disciplinares conceituados em função das capacidades e experiências necessárias àquele que aprende, oferecida em progressão inter e intraciclos (Coll, 1992), em que aprendizagem de natureza essencialmente social (Vygotsky, 1930) é uma condição prévia necessária às transformações qualitativas que se produzem ao longo do desenvolvimento ontogenético dos sujeitos em contato com a sociedade em que vivem e com a linguagem que utilizam, então podemos comungar com Dolz (1994) que considera a autonomia do aprendiz como conseqüência da mestria do funcionamento da linguagem em situações concretas de comunicação, em que se devem levar em conta as características do lugar social no qual as aprendizagens se realizam, no caso, a escola.
Para tal enfoque teórico social de ensino-aprendizagem, as interações, nessa nova instituição, mais complexa, diferente da esfera cotidiana, são reguladas pelos professores e socio-construídas pelos pares do mesmo ou de diferentes ciclos, mediados por instrumentos e estratégias que visam transformar as capacidades anteriores, prospectivamente, em novas etapas do complexo processo de socialização.
Nesse sentido, aprender uma língua na sua expressão oral e escrita implica um ensino sistematizado, cuja operacionalização passa pela criação de um espaço potencial de desenvolvimento (ZDP, Vygotsky, 1930), em que as propostas de situações de ensino interativas (não necessariamente harmônicas/simétricas) sejam eficazes e mediadas por seqüências didáticas que instaurem a relação entre apropriação de certas práticas sociais de linguagem, acumuladas historicamente, e os instrumentos que facilitariam a apropriação - o gêneros - (Bakhtin, 1953), aliados a certas capacidades de linguagem dos domínios sociais de comunicação: NARRAR, RELATAR, EXPOR, ARGUMENTAR E PRESCREVER AÇÕES (Pasquier & Dolz, 1996).
Segundo Schneuwly (1994), os gêneros são mega-instrumentos próprios de nossa ação em situações de linguagem constitutivas do contexto de produção, pois possuem três dimensões essenciais: os conteúdos que se tornam digeríveis através deles; a estrutura particular dos textos pertencentes a eles e as configurações específicas das unidades de linguagem (traços dos papéis dos interlocutores, tipos de textos e seus aspectos formais e estruturais do discurso oral ou escrito). Apropriar-se, portanto, dos gêneros, sistematicamente, mediados por estratégias de ensino intervencionistas formalizadas, é reconstruir a linguagem em novas situações concretas de comunicação, mais complexas, que certamente levarão os alunos a uma autonomia progressiva nessas atividades comunicativas complexas.
Em outras palavras, na socio-construção das práticas sociais discursivas de letramento, envolvendo escrita, leitura e oralidade, as atividades pedagógicas geradoras de consciência e controle devem ser praticadas e conduzidas no sentido da apropriação, emancipação e da autonomia.
Em síntese, a proposta de agrupamentos de gêneros segundo capacidades de linguagem dominantes e a de progressão didática de gêneros (Dolz & Schneuwly, 1996), relidos como mega-instrumentos para aprendizagem do texto escrito (Schneuwly, 1994) implicam que a complexificação dos gêneros organiza o currículo numa progressão discursiva em que todos os tipos de texto devem ser construídos das suas formas concretas mais primitivas e simples (pessoais e privadas) para as mais complexas e tardias (públicas).
Portanto, na produção de um gênero vai haver sempre uma interação determinada, regulada pela organização enunciativa da situação de produção, que é definida por alguns parâmetros sociais: (i) o lugar social da interação (sociedade, instituição, esfera cultural, tempo histórico); (ii) os lugares sociais dos interlocutores ou enunciadores (relações hierárquicas, relações interpessoais, relações de poder e dominação, etc.) e (iii) finalidades da interação (intenção comunicativa do enunciador). Além disso, a forma composicional e as marcas lingüísticas (gramática) dependem do gênero a que pertence o texto e esse gênero operante dependerá da situação da enunciação em curso na operação.
Segundo Dolz, Pasquier & Bronckart (1993), o aprendiz, na produção de um gênero em determinada interação deve adaptar-se às características do contexto e do referente (capacidades de ação) e dominar as operações psicolingüísticas e as unidades lingüísticas (capacidades lingüístico-discursivas). Assim, por exemplo, num gênero como "artigo de opinião", em que vai usar a argumentação (a favor ou contra), tendo como conteúdo a "descriminação das drogas", e.g.), o aprendiz deve identificar e levar em conta o destinatário real ou virtual do texto, o órgão em que seria publicado (representação do contexto social: capacidade de ação) e aprender a hierarquizar seqüência de argumentos ou produzir uma conclusão coerente com os argumentos construídos (estruturação discursiva do texto: capacidade discursiva) e reconhecer e utilizar expressões de construção enunciativa de uma opinião a favor ou contra, ou, ainda, distinguir organizadores que marcam argumentos dos que marcam conclusão (escolha de unidades lingüísticas: capacidade lingüístico-discursiva).

3 Construção (e apropriação) do "significado" ou da "significação"
Deixei entrever, acima, que os gêneros do discurso se ligam às diversas esferas da atividade humana cotidianas ou culturalmente mais complexas como o é a nova realidade cultural escolar. Também deixei entrever que a noção de função instrumental sígnica constitui um processo que dá a conhecer novos saberes e abre novas possibilidades de atividades discursivas (orais/escritas), heterogêneas e mais complexas. É nesse sentido, pois, que gostaria de, em rápidas palavras, introduzir aqui a visão de construção da "significação" para Vygotsky (1934) e Bakhtin (1929,1953) e sua relação com a construção do letramento em instituição escolar. Tal conceituação me será um ferramenta importante para a seção de análise de "títulos" a que me propus neste trabalho.
Para Vygotsky, a construção da "significação" se faz ao longo da ontogênese do sujeito, que vai ajustando os significados aos conceitos predominantes no grupo cultural e lingüístico a que pertence. Na escola, a estruturação conceitual da criança e do(a) jovem se faz a partir de definições, referências ou conceitos, mediados pelo conhecimento/saber acumulado nas diferentes ciências, portanto, consolidado na cultura. Os significados propiciam a mediação simbólica entre o sujeito e o mundo real e é por eles que esse sujeito compreende o mundo e age sobre ele.
Vygotsky distingue significado/significação e sentido: aquele refere-se ao sistema de relações objetivas e gerais, compartilhado pelo grupo cultural que o usa; e este, tem a ver com o significado da palavra para cada sujeito, conforme o contexto de uso da palavra e o motivos afetivos e pessoais de quem faz uso dela. Segundo essa visão, a experiência individual é mais complexa que a generalização, isto é, que o significado objetivo expresso nos signos. Segundo Vygotsky:
"O significado de uma palavra representa um amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem, que fica difícil dizer se se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da 'palavra', seu componente indispensável. Pareceria, então, que o significado poderia ser visto como um fenômeno da fala. Mas, do ponto de vista da psicologia, o significado de cada palavra é uma generalização ou um conceito. E como as generalizações e os conceitos são inegavelmente atos de pensamento, podemos considerar o significado como um fenômeno do pensamento". (op.cit.: 104)
Já para Bakhtin, a palavra é enunciação, e como é de natureza social, sua significação é inseparável da situação concreta em que se realiza. Em si mesma não quer dizer nada, é apenas um potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto (1929:131), ligada à compreensão ativa, que é um diálogo ininterrupto que se processa a partir de cada enunciado. Nessa linha, toda enunciação efetiva, em qualquer forma, é a indicação de um acordo ou desacordo com o que foi expresso e o sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto. Os contextos não estão apenas justapostos, como se fossem indiferentes uns aos outros. Pelo contrário, encontram-se numa situação de interação e de conflito tenso e ininterrupto (id.:107). Como processo ininterrupto, a palavra veicula, de maneira privilegiada, a ideologia, pois a palavra é o signo por excelência, ou melhor, é o fenômeno ideológico por excelência (id.:36). Nas palavras de Bakhtin:
"Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivenciar. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida". (op.cit.: 95)
É nesse sentido que Bakhtin (1953:311) diz que a significação da palavra, por si só, é extra-emocional, ou seja, a emoção, o juízo de valor e a expressão são coisas alheias à palavra como forma neutra lingüística/lexicográfica, "e só nascem graças ao processo de sua utilização ativa no enunciado concreto". Nosso discurso é construído no diálogo com o outro, como um todo enunciativo, com uma intenção discursiva e sob a forma de um gênero definido. E a(s) palavra(s) que escolhemos para a elaboração do enunciado, tiramo-la(s) de outros enunciados genéricos (gêneros primários ou secundários). Conforme o autor:
"Costumamos tirá-la [a palavra] de outros enunciados, e, acima de tudo, de enunciados que são apresentados ao nosso pelo gênero, isto é, pelo tema, composição e estilo: selecionamos as palavras segundo as especificidades de um gênero. O gênero do discurso não é uma forma da língua, mas uma forma do enunciado que, como tal, recebe do gênero uma expressividade determinada, típica, própria do gênero dado. No gênero, a palavra comporta certa expressão típica. Os gêneros correspondem a circunstâncias e a temas típicos da comunicação verbal e, por conseguinte, a certos pontos de contato típicos entre as significações da palavra e a realidade concreta.
Assim como para Vygotsky o significado/significação propriamente dito(a) refere-se ao sistema de relações objetivas que se formou no desenvolvimento da palavra e consiste num núcleo relativamente estável de compreensão, assim também, para Bakhtin, as significações lexicográficas das palavras da língua garantem sua utilização comum e a compreensão mútua dos usuários da língua. Assim como para Vygotsky, o sentido da palavra liga seu sentido objetivo ao contexto de uso da língua e aos motivos afetivos e pessoais de seus usuários, assim também, para Bakhtin, a utilização da palavra na comunicação verbal ativa é sempre marcada pelo contexto e pela individualidade. Contudo, Bakhtin, a meu ver, ao acrescentar a compreensão ativa (comunicação/interação verbal ativa) no processo de construção da significação da palavra, do enunciado um processo dialógico ininterrupto, polifônico (vozes) apresenta uma explicação epistemologicamente mais abrangente para a experiência verbal individual do sujeito que toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro. Seria, para ele (1953:314), "um processo de assimilação, mais ou menos criativo, das palavras do outro - a alteridade - (e não das palavras da língua)". Em síntese, conforme Bakhtin, a palavra existe para o locutor sob três aspectos:
"como palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém; como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou de minha expressividade". (op.cit.: 313)
A partir, pois, das idéias expostas nas seções 2 e 3, passo a analisar, criticamente, alguns enunciados (gêneros textuais) produzidos em sala de aula e na imprensa, enfocando a produção de títulos como um elemento composicional genérico, comum a muitos gêneros textuais, cuja função operacional deve ser vista sob o ponto de vista enunciativo-discursivo, como um dos fatores de complexificação discursiva dos gêneros, que estou interpretando como instrumentos semiótico-psicológicos de que o aprendiz deve se apropriar, levando em consideração as características do contexto e do referente. Nesse processo vai desenvolvendo, progressivamente, sua capacidade lingüístico-discursiva, e pelo uso "vivo", concreto e adequado das unidades lingüísticas, vai assimilando-as expressivamente na alteridade verbal e social.
4 Construção de "títulos": um processo polifônico e plurissêmico
Pasquier & Dolz (1996), ao destacarem a importância de se quebrar a fronteira entre a escola e a sociedade para que o gênero cumpra sua função na transposição didática e na seqüenciação curricular (em espiral), fazem uma diferença entre textos autênticos que circulam fora da esfera escolar (textos sociais) produzidos em contextos sociais reais: nos meios de comunicação, nos espetáculos, no comércio, etc. e textos escolares dos livros didáticos e cartilhas que se tornam modelares, tanto pela forma como pelo conteúdo informacional. Nesse sentido a escola apenas faz uma transposição didática de um corpus textual ou de um modelo de texto, cujas vozes ecoam, uniformemente e imutavelmente no texto, com repetições de estruturas, vocábulos e expressões idênticos, bastando quase que, somente, mudar o "objeto referencial" expresso pelo título. Em eventos enunciativos escolares deste tipo reflexos de uma prática cartilhesca ou de uma visão mecanicista da linguagem o título não tem função operacional discursivo-enunciativo nem polifonia ou plurissemia em relação a um possível sentido global do conjunto dos enunciados, pois o conteúdo informacional é um modelo que deve ser seguido por todos os alunos e escriturado por meio de frases curtas simetricamente organizadas, em que o código alfabético escrito é que importa, num exemplo típico de alfabetização tradicional.
Os exemplos abaixo (transcritos ipsis litteris), de uma escola do interior de Santa Catarina (textos 1, 2 e 3 - Bortolotto, 1998:35) e de outras duas do interior de Minas Gerais (textos 4, 5 e 6), escolas de cidades tão distantes entre si, confirmam essa prática, quando de uma atividade sobre bichinhos de estimação:
(1) A cabra
A cabra dá leite.
A cabra faz: mé... mé... mé...
Ela faz cocô e xixi.
A cabra é amiga da zebra.
(Que cabra levada)

(2) O coelho
O coelho é branco.
O coelho branco corre e pula.
Ele come capim.
O coelho é amigo da 1ª série.

3) O cachorro
Dudu tem um cachorro.
O cachorro corre e pula.
Ele come bala e uva.
O cachorro faz: au! au! au!
Que cachorro levado.

No caso dos textos abaixo (MG), nem o título muda:



(4) O animal
Eu me chamo toto.
Eu moro numa casinha.
Eu vivo com duas pessoas legal.
Eu tenho penas.
Eu tenho um bico.
Sou amarelo e pequeno.
Eu gosto de asoviar.
Eu gosto de comer alpiste.
Eu gostaria de ser um leão, mas eu sou um passaro.

(5) O animal
Eu me chamo Leleca.
Eu moro numa Eu moro na selva.
Eu vivo com meu pai leão e com Aminha mãe leoa.
Eu tenho rabo minhas peles são masias eu tenho 4 patas.
Eu gosto de casar comida.
Eu gosto de comer carnes.
Eu gostaria de ser uma borboleta. Mas eu sou uma leoa.

(6) Os animais de Talita
O pato de Talita vive na lagoa.
O passarinho de Talita voa
O caracol de talita é bonito.
Talita também tem uma baleia.
O pato de Talita é bonito ele é todo amarelinho.

Além disso, parece haver uma estrutura canônica geral (Começo/Meio/Fim ou Introdução/Desenvolvimento/Fecho ou Conclusão) que organiza a produção de muitos textos escolares, como se as estruturas organizacionais dos gêneros fossem fixas, sem falar na sua heterogeneidade conteudística e lingüístico-discursiva. Por exemplo, no texto 7 abaixo, também de Santa Catarina - "A bola de Pedro" -, de conteúdo informacional semelhante aos textos 1, 2 e 3, a profa. Diz: Quem tem uma bola? Quem sabe escrever o início da história "Pedro tem uma bola". Um aluno fala: A bola de Pedro é colorida. Não, agora é o início da história. Quero ver quem adivinhou (a professora escreve no quadro: A bola de Pedro é colorida!.(Bortolotto, 1998:35)
O texto 7 teria, então:
O TÍTULO: A bola de Pedro
O INÍCIO: Pedro tem uma bola
O DESENVOLVIMENTO: A bola de Pedro é colorida!
O FECHO (?): A bola pula, pula!
A professora chama de "história" algo que não passa de um modelo genérico escolar, fora dos padrões dos gêneros existentes na cultura social extra-escolar das crianças.
Num outro texto (folha avulsa retirada de um livro didático de 2ª série - escola de MG -), vêm explicitamente escritas as palavras COMEÇO, MEIO, FIM, numa atividade de redação, baseada numa seqüência de gravuras em que há um grupo de crianças brincando fora de casa, até que começa a chover, quando então elas correm para dentro de casa para continuar brincando. O resultado é este (texto 8), transcrito ipsis litteris:
REDAÇÃO
COMEÇO AS CRIANÇAS (TÍTULO)

AS CRIASA LAFORA
COM VERSADO.
O DIA ESTA BONITO

MEIO: DEREPETE COMECOU
AS CRIANSAS CORRERO
PARACASA
COMECOU ACHOVER

FIM: AS CRIASAS FECHARÃO A JANELA
E BRINCARÃO DETRO DE CASA
PAROU DE CHUVER
E CHEGOU O SOU.

Em todos os textos acima (se é que podem ser chamados de textos), os títulos até podem ter relação de sentido com as frases construídas, mas, como não há uma situação real de produção de uso de língua "viva", determinada por um tipo de gênero social, eles não contemplam um possível significado global dos enunciados que seriam produzidos. As professoras, por exemplo, poderiam planejar uma seqüência didática sobre o conteúdo "Animais de estimação" em que as crianças produzissem relatos (orais ou escritos) sobre algo que tivesse acontecido com um seu bichinho, narrassem uma história ficcional (como que Talita, por ex., poderia ter uma baleia???), escrevessem uma carta para alguém contando a doença do bichinho, produzissem um texto de opinião sobre a caça a animais e sua extinção ou o hábito de prendê-los, etc.. Assim teríamos a produção de gêneros textuais diversos que exigiriam escolhas lingüístico-discursivas específicas, incluindo títulos que seriam construídos enunciativamente de acordo com a representação do contexto social, com a interlocução, intenção comunicativa ou estruturação discursiva desses textos. E certamente os títulos não seriam meras nomeações, ou uma parte do enunciado que abre o início de cada parte (começo, meio e fim), como no texto 8 acima, ou palavras genéricas de temas/assuntos debatidos nas escolas (v. A luta - texto 9 abaixo).
Aliás, essa é outra prática comum nas salas de aula. Debate-se um tema (drogas, aborto, cigarro, ecologia, etc.), geralmente nas semanas ou dias institucionalizados, fazem-se projetos maravilhosos, envolvendo todas as disciplinas, mas na hora da produção textual, a transposição didática de gêneros sociais (produção de panfletos, slogans, artigos de opinião, etc. ) não é feita com clareza para o aluno que não sabe direito que tipo de texto deve produzir e faz uma salada de gêneros, o que provam, entre outros índices, as más estruturações discursivas dos textos e as más escolhas lingüístico-discursivas.
Assim, por exemplo, o possível "texto de opinião" (?) A Luta (produzido por uma aluno de 4ª série) é uma salada de frases soltas, cheia de "chavões alheios" também soltos (talvez de portadores de textos diversos lidos em sala de aula). É um texto que não parece uma coisa nem outra. Inclusive, as últimas frases (imagine se não existissem árvores, o Bicho homem dá um tempo por favor) não são enunciados típicos de um texto de opinião. O uso do modo verbal (imagine... dá...), numa interlocução direta (fática) também soa estranho num texto desse tipo. O título "A Luta" também não se adequa ao todo enunciativo. Realmente uma péssima escolha lingüístico-discursiva, como se pode ver no texto 9:

A luta
A luta para salvar a natureza das garas do bicho homem que destroi comtinua. O homem não sabe a falta que ela faz. As causa do desmatamento das queimada a retirada da madeira. Os índios como todos nós dependemos da natureza para viver nos precisamos das plantas para viver melhor.
Precisamos respira imagine se não extissem arvores, o Bicho homem dá um tempo por favor. (4ª série)

O texto Cigarros também é um bom exemplo de escrita de redação escolar, em que não se tem, com clareza, o gênero que estaria por trás da proposta do professor (se é que houve uma proposta clara). Seria um texto de opinião ou um panfleto para campanha antitabagista com predomínio da função fática. Contudo, a aluna de 2ª série, ao mesmo tempo em que tenta argumentar (causa e conseqüência do uso do cigarro), inicia uma série de frases com valor imperativo, escolha lingüístico-discursiva típica de "slogans" de campanhas "anti-alguma-coisa". Neste caso, nem seria necessário um título e a estrutura genérica não seria a do texto, como pode-se ver abaixo:
Cigarros
O cigarro é uma coisa que pode acabar com sua vida. Você pode parar no hospital por causa disso pode Ter um infarto fuminante porisso não usa cigarro pode acabar com a sua vida isso é uma droga.

Em relação aos dois textos acima, até que podemos elogiar a intenção dos professores em trabalhar a argumentação nas séries iniciais do 1º grau, mas não assim numa produção sem organização dentro de um determinado gênero operacionalizado em uma situação de enunciação interlocutiva concreta, ou, pelo menos, virtualmente, possível (o virtual não é a negação do real), como exemplifiquei à pagina 4, primeiro parágrafo.
Contrapondo-se a essas produções textuais artificiais escolares, faço um recorte de alguns exemplos de textos produzidos na imprensa em que as escolhas lingüísticas dos títulos construídos pelos jornalistas, ao mesmo tempo em que possuem significação, pois referem-se aos sistema das relações gerais e objetivas do grupo cultural que as usa, também possuem sentido, conforme a experiência individual de cada sujeito que fez uso delas de acordo com o contexto de uso das palavras e de seus motivos afetivos e pessoais (Vygotsky, 1934). Ou segundo Bakhtin (1953:311), tem-se um discurso construído no diálogo com o "outro", como um todo enunciativo, com uma intenção discursiva e sob a forma de um gênero específico. Nesse sentido, as palavras escolhidas para a elaboração do enunciado (texto de opinião, editorial, notícia, reportagem...) são tiradas de outros enunciados, mas tomam uma expressividade própria do gênero dado, com pontos de contato típicos entre as significações da palavra e a realidade concreta social ou cultural em que foi realizada. Ou seja, como a palavra é enunciação de natureza social, está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. (op. cit. 95).
Assim, entre tantos exemplos, posso destacar:
Na revista ISTOÉ, na Seção de Economia e Negócios, quando da crise financeira do iene no Japão, que derrubou as bolsas em vários países do mundo, a jornalista Cintia Valenti deu o título à reportagem de A FEBRE AMARELA, numa referência a um tipo de febre epidêmica típica de países tropicais, ligada à raça amarela japonesa.
Uma outra reportagem sobre a morte de um estudante de medicina na piscina da USP recebeu o título de FARRA MORTAL, numa referência ao trote aos calouros, que resultou numa tragédia. Já Roberto Romano, num artigo de opinião publicado na FOLHA DE S. PAULO, intitula seu texto, produzido a partir do mesmo tema, em TROTES: O AFOGAMENTO DO ESPÍRITO, criticando a falta de ética e o espírito fascista que, recorrentemente, subjaz a ações presentes nos meios universitários.
Quando o governador do RJ, Garotinho, se mudou com a família (a mulher e oito filhos) para o Palácio das Laranjeiras, belo e requintado, o título da reportagem da ISTOÉ foi surpreendente: REINAÇÕES DE GAROTINHO, numa alusão ao livro de Monteiro Lobato "Reinações de Narizinho". Também numa polifonia literária com uma obra de Nelson Rodrigues ("A dama do lotação", inclusive levada para o cinema), o Caderno de Educação do Jornal do Brasil, na seção Perfil, ao fazer uma reportagem sobre um rapaz de 25 anos, negro, motorista de ônibus da linha 384 (Castelo-Pavuna), que passara no vestibular de Engenharia Eletrônica da UERJ, intitulou-a: O ENGENHEIRO DO LOTAÇÃO.
CARO CHICO, (com vírgula e tudo), foi o título da reportagem da ISTOÉ quando do Caso MARKA, envolvendo o sr. Francisco Lopes, ex-presidente do Banco Central, e o sr. Alberto Cacciola, dono do Banco Marka, que teria escrito uma carta a Lopes, de próprio punho, comprometendo-o, já que pedia favorecimentos na época da desvalorização do real, em fevereiro de ´99.
Já quando o sr. Francisco Lopes se recusou a assinar documento atestando que falaria a verdade à CPI dos Bancos e recebeu voz de prisão, a FOLHA DE S. PAULO publicou quatro textos de opinião (editoriais) sobre o mesmo tema/assunto, sob pontos de vista diferentes, com quatro títulos diferentes, conforme o sentido global construído pelos jornalistas de acordo com os argumentos usados em suas análises sobre o fato político ocorrido. O editorial da FOLHA DE S.PAULO recebeu o título de A PRISÃO DE LOPES. A jornalista Eleonora de Lucena, correspondente de São Paulo, deu o título ESCÁRNIO a seu texto, pela atitude de Lopes ("Agora, Chico Lopes protagonizou um espetáculo de escárnio", diz ela na 1ª frase do 5º parágrafo). De Brasília, Eliane Cantanhêde intitula seu editorial: "TEJE PRESO!", famoso jargão policial. Carlos Heitor Cony, do Rio de Janeiro, cria um neologismo – O NEOPECENATO numa alusão ao reinado da corrupção comandado por PC Farias, tesoureiro da campanha política do ex- presidente Collor.
Na seção MÚSICA, também da ISTOÉ, Celso Masson, ao noticiar a vinda de um astro "country" americano à famosa festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, interior de São Paulo, assim intitulou a notícia: PEÃO DOS BÃO, numa "afronta" intencional à gramática normativa, mas perfeitamente explicável do ponto de vista discursivo.
Observe também os títulos dados a notícias curtas, retiradas da ISTOÉ:

GOSTOSA PORCARIA
O porco Tony moeu uma lata de cerveja dada a ele por um visitante do Clube Mont Pellier Hut Domino, na floresta tropical de Saint Croix (Ilhas Virgens). Furando a lata ele pôde beber a cerveja. Tony é
famoso justamente pela quedinha que sempre teve por bebidas. Detalhe: sem teor alcoólico.

O XOU DA XUXA
Em dez anos, Xuxa tirou do bolso cerca de 7 milhões de reais para gastar com obras sociais a média é de 700.000 por ano. Com certeza, é mais do que destina aos pobres a maioria dos sócios do Clube Harmonia ou do Country Club, só para citar dois clubes de ricaços em São Paulo e no Rio de Janeiro.

"Jay-too"
O jornal The New York Times publicou na terça-feira 6 um artigo sobre a crise brasileira afirmando que o País está em recuperação econômica. Na reportagem é relatado como o País se recupera: com o seu famosos "jeitinho brasileiro". A palavra jeito vem acompanhada da forma como se pronuncia: "jay-too". E o jornal explica o que é isso: "Habilidade dos brasileiros em achar soluções engenhosas para problemas legais, burocráticos ou financeiros."

Em síntese, os títulos dados aos textos a que me referi não são meros enfeites ou meras escolhas lingüísticas aleatórias, mas são enunciados polifônicos e plurissêmicos, discursivamente produzidos em situações de produção concretas, em outra esfera ou instituição social "pública" – a mídia. Esses títulos contemplam o significado global/total do texto produzido e foram elaborados, dialogicamente, na interação verbal e social real de uso lingüístico-enunciativo "vivo", sob uma forma de gênero específico. Assim sendo, tem-se o funcionamento da linguagem em situações concretas de comunicação, mas não artificiais, como acontece muitas vezes na instituição escolar, onde ainda predomina a concepção de que alfabetizar é aprender a ler e escrever enquanto aquisição ou apropriação de uma tecnologia. Ler e escrever vai mais além. É letramento. É letrar-se. E letrar-se implica ensino-aprendizagem de práticas sociais de leitura e escrita. É fazer uso freqüente e competente de leitura e escrita. Aquela, um processo de construção de interpretação de sentidos de textos escritos diversos. Esta, um processo de expressar e organizar o pensamento em língua escrita, ou seja, transmitir significados a um leitor, de forma adequada. É apropriar-se de um conjunto de habilidades lingüísticas e psicológicas (cognitivas e metacognitivas) e comportamentos que compõem um longo e complexo continuum que vai da capacidade de ler um simples bilhete, histórias em quadrinhos, romances, jornais, etc., ou escrever o nome, bilhetes, cartas, textos narrativos, argumentativos, ensaios, etc.. É ir além do gênero escolar ou do letramento escolar que não condiz com as práticas sociais de leitura e escrita fora da escola, o que inclui a construção polifônica e plurissêmica de títulos como um dos fatores operacionais no processo progressivo de complexificação discursiva de gêneros diversos em diferentes níveis ou esferas socio-institucionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bakthin, M. (1953) O gêneros do discurso. In (1979) Estética da Criação Verbal, p.275-326. SP: Martins Fontes, 1994.
________ (1959) O problema do texto. In Estética da Criação Verbal, p.327-358. SP: Martins Fontes, 1994.
Bortolotto, N. (1998) A Interlocução na Sala de Aula. São Paulo: Martins Fontes.
Coll, C. (1992) Psicologya y Curriculum. Barcelona: Papeles de Pedagogia, Paidos.
Dolz, J. & B. Schneuwly (1996) Genres et progression en expression orale et écrite: Eléments de réflexion à propos d'une expérience romande. Enjeux, 1996: 31-49. Genebra, Suiça.
Dolz, J.; A. Pasquier & J.-P. Bronckart (1993) L´acquisition des discours: Emergence d´une compétence ou apprentissage de capacités langagières? Études de Linguistique Appliquée, 102: 73-86.
MEC/SEF (1997) Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto - Secretaria de Educação Fundamental.
Pasquier, A. & J. Dolz (1996) Un decálogo para enseñar a escribir. Cultura y Educación, 2: 31-41. Madrid: Fundación Infancia y Aprendizaje.
Schneuwly, B. (1985) La construction sociale du langage écrit chez l'enfant. In B. Schneuwly & J.-P. Bronckart (eds) Vygotsky Aujourd'hui, p. 169-202. Neuchâtel: Delachaux & Niestlé.
__________ (1994) Genres et types de discours: considérations psychologiques et ontogénétiques. In Y. Reuter (ed) (1994) Les Interactions Lecture-Écriture, pp.155-174. Bern: Peter Lang.
Vygotsky, L.S. (1930) A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
___________ (1934) Pensamento e Linguagem. São Paulo:Martins Fontes, 1989.
Periódicos citados: (1999) VEJA, ISTOÉ, FOLHA DE S. PAULO e JORNAL DO BRASIL.



















Práticas de Formação de Professor



























(página em branco)

OS PCNs: UMA EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DO ENSINO FUNDAMENTAL

Berenice Wanderley POMPÍLIO, Cristiane Cagnoto Mori de ANGELIS,
Heloísa Amaral Dias de OLIVEIRA, Ivaneide Dantas da SILVA,
Marly de Souza BARBOSA & Rosana Helena NUNES (LAEL/PUC-SP)

Introdução
Os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs se propõem a estabelecer diretrizes curriculares para o ensino fundamental brasileiro e servir de apoio ao trabalho do professor, pretendendo contribuir para a melhoria da qualidade do ensino fundamental no país.
Pelo fato de serem documentos fundados em concepções teóricas determinadas e destinados a um público heterogêneo de educadores em todo território nacional, acabam, muitas vezes, por demandarem práticas mediadoras que permitam uma discussão sobre o que ali se propõe. Embora pareça, assim, ser necessário um programa de formação nacional, o que temos ainda são iniciativas isoladas, de repercussão limitada, que podem, desde que tornadas públicas, fornecer elementos para ações formadoras mais abrangentes.
Neste capítulo pretendemos apresentar e discutir os resultados de uma dessas experiências de formação com os PCNs de Língua Portuguesa. Essa ação de formação foi posta em prática por um grupo de pesquisa do Programa de Estudos Pós-Graduados em Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas - LAEL/PUC-SP (1), numa escola pública municipal da cidade de São Paulo e realizada como trabalho final do curso "Praticando os PCNs", ministrado no segundo semestre de 1998 pelas professoras doutoras Maria Antonieta Celani e Roxane Helena Rodrigues Rojo.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa
Nos PCNs de Língua Portuguesa, a intenção é que as propostas ali apresentadas venham a oferecer subsídios para um ensino que permita aos alunos o uso eficaz da leitura e escrita e dos benefícios decorrentes dessa apropriação, como a diminuição do fracasso escolar e a possibilidade efetiva do exercício da cidadania. Este grupo compartilha essa posição e fundamenta seu trabalho de pesquisa na concepção enunciativa de língua proposta por Bakhtin (1953).
Nessa concepção, a língua é viva, produzida na história e, ao mesmo tempo produtora da história dos homens. Ela é revelada nas diversas linguagens constituídas nas diferentes situações sociais, os gêneros do discurso.
"A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (...) cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso...A riqueza e a variedade dos gêneros de discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso" (Bakhtin,1953: 279).

Tal concepção de língua é diversa e, muitas vezes, oposta àquelas que circulam usualmente nas aulas de Língua Portuguesa. As correntes mais difundidas são as de língua como código ou sistema. A essas concepções acrescentou-se, mais recentemente, a de que o texto deve ser a unidade básica de ensino, ou seja, para ensinar o código ou o sistema deve-se sempre partir do texto.
Nessas diferentes concepções, leitura e escrita são vistas como habilidades diversas e seu ensino se dá de forma dicotômica. As aulas de gramática ocupam grande parte do tempo destinado ao ensino de língua. Embora pareça haver um consenso quanto ao fato de que se deve ensinar gramática a partir do texto, o que ocorre é uma "dissecação" do texto para que dele sejam retiradas, para estudo, as categorias gramaticais. Essas atividades de "dissecação" são indicativas da concepção de língua "morta" que aí fica explícita. Grande parte dos professores utiliza o livro didático como fundamento de sua prática. Os livros didáticos, usualmente, seguem a concepção de que o texto deve ser a unidade de ensino: suas unidades são iniciadas por um texto, seguido de exercícios de compreensão e gramática e, por vezes, de propostas de produção escrita.
Outras vezes, o texto é estudado a partir de sua estrutura e de seus tipos quanto às diferenças nessa estrutura. Essa concepção de ensino de língua, também esbarra na divisão do ensino em leitura/escrita/gramática e, além disso, fragmenta o texto nas partes de sua estrutura para ensiná-lo, repetindo a prática da "dissecação" nas escolas que privilegiam o ensino de gramática.
Na concepção que sustenta as propostas dos PCNs, língua é entendida como discurso e texto como sua manifestação verbal. A partir daí, os PCNs apontam os gêneros discursivos como objeto de ensino e os textos como unidade de ensino (PCNs, 1998: 23).
"Todo texto se organiza dentro de determinado gênero em função das intenções comunicativas, enquanto parte das condições de produção dos discursos, as quais geram usos sociais que os determinam" (PCNs,1998:11).

A partir dessa proposta, estudar o texto implica em estudar mais que seus elementos ou suas partes: implica em estudar sua gênese, "dentro de um determinado gênero, em função das intenções comunicativas" dos locutores envolvidos na interação, isto é, sua situação de produção. Adotar a posição dos PCNs, implica na necessidade de distinguir gêneros e textos: se os gêneros constituem os textos, onde estão as diferenças entre uns e outros?
De fato, em ações de formação anteriores com os PCNs, esta questão permeou as discussões, mostrando-se como central para a condução do trabalho. Ao planejar a ação de formação aqui apresentada, consideramos a distinção gênero/texto como foco, embora, como é evidente, o trabalho com gêneros no ensino de Língua Portuguesa exija uma reflexão teórica que possa abranger todos seus demais aspectos.
A noção de gênero como instrumento de ensino/aprendizagem de língua materna, central nos PCNs, por exemplo, que foi desenvolvida e experimentada em outros lugares, demonstrando sua eficácia na transformação da produção escrita escolar, não pode ser desenvolvida em razão do curto espaço de tempo reservado a este trabalho. No entanto, o desenvolvimento dessa noção é o que permite a mudança nos procedimentos de ensino, uma vez que ela possibilita a compreensão de que a escrita não é um processo que se realiza apenas pela apreensão do uso correto da gramática e da ortografia, pela manutenção de uma seqüência temporal (começo, meio, fim: primeiro aconteceu isso, depois aquilo, depois tal coisa finaliza a "história"), pela clareza do texto produzido para o leitor (ausência de repetições - que, aliás, podem ser um interessante recurso estilístico; ausência de discurso direto e da mudança de tempo verbal ou da mudança de foco narrativo, etc.), coerência (entendida como manutenção da linearidade e ausência de subjetividade).
Todos esses procedimentos usuais no ensino de escrita são dirigidos para a produção da redação modelar, que mantém os padrões esperados na escola, mas que não são suficientes para um efetivo domínio da escrita fora dela.

Praticando os PCNs - metodologia e resultados
A ação de formação objeto deste artigo foi realizada em uma escola municipal de São Paulo, que possui aproximadamente 2.000 alunos e cerca de 100 professores, incluindo suplência. O trabalho foi realizado em razão da solicitação de um grupo de professores da escola, na pessoa de uma de suas professoras, integrante deste grupo de trabalho.
A ação de formação em pauta foi realizada em dois encontros de três horas, com cerca de um mês de intervalo. Participaram dela 25 professores de diferentes áreas e séries do Ensino Fundamental. Partiu da direção da escola a decisão de colocar todos os professores em contato com a proposta de ensino de Língua Portuguesa trazida pelos PCNs, uma vez que o conceito de gênero de discurso como instrumento de ensino, tal como está aí colocado, poderia ser utilizado em todas as áreas de conhecimento do Ensino Fundamental.
Por se tratar de um trabalho acadêmico, realizado como parte das atividades da disciplina "Dos PCNs à Prática de Sala de Aula", a intenção era planejá-lo de tal forma, que a experiência pudesse contribuir para as discussões posteriores sobre as necessidades e problemas na transposição dos PCNs em projetos de formação de professores, especialmente no que se refere aos trabalhos com gêneros de discurso.
O grupo decidiu partir de uma situação prática, na qual os professores deveriam produzir diferentes textos. O que se propôs como atividade inicial foi que os professores se colocassem em situação de produção de escrita, tendo um assunto como objeto, condições espaço-temporais determinadas, papéis sociais definidos, interlocutores precisos, ou seja, condições semelhantes às das esferas onde são produzidos os gêneros de discurso, cujo objetivo seria tentar deslocar o professor da situação escolarizada de produção de escrita. Esta seria a atividade do primeiro dia. No segundo encontro, a proposta seria retomar os textos e, à luz das questões levantadas durante o processo dessa escrita, fazer uma breve exposição teórica sobre os conceitos de gênero e texto.
Sabendo-se que essa ação formadora se desdobraria numa reflexão mais aprofundada posteriormente, foi feito o registro das observações através de notas de campo, que serviriam de material para reflexões e eventuais reformulações no Projeto. Cada um dos pesquisadores deveria observar um grupo de trabalho e registrar, se possível, todas as discussões, no intuito de obter material suficiente para relacionar as questões levantadas pelos professores durante o planejamento da escrita com os textos que seriam produzidos.

Primeiro encontro
As formadoras dividiram-se em dois grupos. Um deles ficou encarregado de dar as instruções para a produção de texto e discutir os resultados dela; o outro, deveria observar sem participar ativamente, a elaboração dos textos em cada um dos grupos de professores. O assunto proposto foi o mesmo para todos os grupos, a violência contra a mulher; cada grupo de professores, porém, deveria produzir um texto num determinado gênero. Foram cinco os gêneros propostos: diário íntimo, conto de fadas, notícia de jornal, crônica, diálogo argumentativo.
Dadas as comandas, as observadoras passaram a anotar, a partir das discussões dos grupos, as falas que poderiam evidenciar o caminho traçado para a constituição do gênero proposto. Os grupos mostraram-se interessados no trabalho, embora inicialmente parecessem um pouco constrangidos com a presença dos observadores. Ao final do primeiro encontro, os professores expuseram seus trabalhos escritos em grandes painéis e colocaram, para todo o grupo, as dificuldades encontradas durante sua elaboração. As formadoras interferiram apenas o suficiente para organizar a apresentação e colocaram a seguinte pergunta: o texto produzido pertence ao gênero indicado? Os professores discutiram os textos produzidos a partir dessa questão.

Análise de duas produções escritas: conto de fadas e notícia
Embora o grupo de pesquisadoras tenha colocado em discussão cinco gêneros de discurso, como já foi exposto acima, decidiu-se, neste momento, pela análise de dois textos. Essa decisão foi tomada após a aplicação do trabalho, quando, analisando os textos produzidos, verificou-se a diferença entre eles: alguns mantiveram características do gênero proposto, outros não.
Esse resultado reforçou a hipótese da necessidade do professor ter consciência do gênero que pretende trabalhar com seus alunos. Se ele mantiver a idéia da "redação" como diretriz para a produção escrita (ver item 2 deste), com certeza obterá apenas uma "redação", com as características já descritas.
Neste momento, optou-se pela análise de dois textos produzidos no evento de formação aqui enfocado, como exemplo do que se disse acima: contos de fadas e notícia. O texto que deveria encaixar-se no gênero conto de fadas não apresentou marcas que o caracterizassem; já o texto notícia, ainda na discussão inicial dos professores encarregados dele, mostrou maior fidelidade ao gênero proposto.

Análise do texto Chapeuzinho Moderno
A instrução dada a esse grupo foi que, a partir do assunto violência contra a mulher, produzisse uma versão do conto Chapeuzinho Vermelho. A intenção era a de verificar se as professoras responsáveis por essa produção manteriam os aspectos definidores do gênero em questão em sua escrita.
As professoras, depois de momentos de natural hesitação, fizeram o planejamento da escrita, por meio de um roteiro constituído de tópicos, antes de passarem a produzi-la. Pareceu à observadora que acompanhava o grupo que a construção desses tópicos não se apoiava num conhecimento do gênero proposto: as professoras demonstraram uma preocupação com o assunto dado e não com o tema, o conteúdo composicional e o estilo próprios do conto de fadas. Dizendo de outra maneira, a situação de produção vivida pelas professoras não se aproximou daquela própria da escrita de um conto: não houve tentativa de ficcionalização. Além disso, as questões levantadas durante a produção não tocaram no problema da construção da esperteza, tema que define esse gênero. Pareceu, assim, ao grupo de pesquisa, que essas foram as razões que levaram à ausência de marcas literárias típicas desse gênero, bem como à construção de uma personagem cautelosa, pouco ingênua ou ousada, o que não se esperaria de um Chapeuzinho Vermelho.
As únicas marcas que podemos atribuir ao conhecimento do gênero e do conto em questão, foram a utilização da expressão "Era uma vez..." no início do texto e a manutenção dos tempos verbais tal como eles são empregados no gênero: pretérito imperfeito no primeiro parágrafo, marcando a situação inicial e pretérito perfeito ao longo do relato produzido, além do título "Chapeuzinho Moderno". Embora o título e a expressão "Era uma vez..." pareçam ter a intenção de acionar o conhecimento do leitor acerca do gênero, nada mais, ao longo do texto confirma essa hipótese.
Segundo a análise do grupo de pesquisa, a situação de produção que se criou no grupo responsável pela escrita levaria, necessariamente a uma produção escolarizada. Durante o planejamento, as professoras manifestaram preocupação com os possíveis leitores (no caso, o grupo de pesquisa proveniente de um centro de estudos de língua), buscando expressar-se com clareza e coerência e, principalmente, respeitar os aspectos que são ressaltados no ensino convencional da escrita, centrando-se na concordância verbo-nominal e no uso correto das regras de ortografia. Ao escrever, voltavam-se freqüentemente para a observadora buscando sua aprovação: "Tá bom?" ou "O que você acha?". Além disso, pretendiam fazer entender ao leitor que o texto que escreviam era uma versão de "Chapeuzinho Vermelho": "Isso está parecendo novela e não conto de fadas"; "Ah, mas o leitor leva para onde quiser, mas o bom é que perceba que é o lobo". Como se pode verificar abaixo, o texto resultante aproxima-se mais das "histórias" da literatura infantil produzida para uso didático, do que do gênero conto de fadas.

O chapeuzinho moderno
"Era uma vez uma garota chamada Simone. Ela tinha quinze anos, alta, magra, cabelos longos.
Numa tarde de domingo ela foi com seu grupo numa danceteria, Moinho Santo Antônio. Seu pais a orientaram sobre algumas atitudes e precauções.
Lá chegando todos procuraram se divertir ao máximo. Simone com uma colega observou o ambiente e percebeu um garoto diferente que lhe chamou a atenção. Trocaram olhares e ele veio ao encontro delas. Convidou Simone para dançar e mais tarde sugeriu que fossem para um lugar mais tranqüilo, fora da danceteria.
Simone não deu a resposta de imediato, procurou seu grupo para pedir opinião se deveria aceitar ou não o convite. Algumas colegas acharam que ela deveria ir, outras não, reforçando as orientações dadas pelos seus pais. Ela, então, decidiu "ficar" com o rapaz na danceteria.
No final da festa, se despediram e trocaram telefones.
Simone não deu a resposta de imediato, procurou seu grupo para pedir opinião se deveria aceitar ou não o convite. Algumas colegas acharam que ela deveria ir, outras não, reforçando as orientações dadas pelos seus pais. Ela, então, decidiu "ficar" com o rapaz na danceteria.
No final da festa, se despediram e trocaram telefones.
Alguns dias depois, indo ao curso de inglês, Simone reencontrou o garoto que era o mais novo aluno matriculado na turma, que por coincidência, morava numa rua próxima à sua."

Na análise do texto produzido, o grupo de pesquisa identificou marcas típicas de escolarização do gênero:
" Ela tinha quinze anos, alta, magra, cabelos longos".
Esse modo de descrever, enumerando características da personagem, pouco se aproxima das descrições feitas no conto original, que permitem ao leitor imaginar Chapeuzinho a seu modo:
"Havia, numa cidadezinha, uma menina que todos achavam muito bonita" (...) "Por causa dele, ela ficou sendo chamada, em toda parte, de Chapeuzinho Vermelho".

As professoras não fazem uso do discurso direto; no lugar do diálogo aparece o discurso indireto:
" Simone com uma colega observou o ambiente e percebeu um garoto diferente que lhe chamou a atenção. Trocaram olhares e ele veio ao encontro delas."

Perrault utiliza o discurso direto, bem marcado, para reforçar a expressividade e a presença de elementos emocionais e afetivos (Bakthin/Volochínov, 1929-1995: 159).
"Quando atravessava o bosque, ela encontrou compadre Lobo que logo teve vontade de comer a menina. Mas não teve coragem por causa de uns lenhadores que estavam na floresta. O lobo perguntou aonde ela ia. a pobrezinha, que não sabia como é perigoso parar para escutar um Lobo, disse para ele:
- Eu vou ver minha avó levar pra ela uma torta e um potezinho de manteiga que minha mãe está mandando."
Enquanto as professoras, sem matizar, descrevem por meio do discurso indireto o convite do "lobo":
"Convidou Simone para dançar e mais tarde sugeriu que fossem para um lugar mais tranqüilo, fora da danceteria."

Perrault matiza seu texto com o discurso direto:
- "Ela mora muito longe? - perguntou o Lobo.
- Oh! sim, - respondeu Chapeuzinho Vermelho. - É pra lá daquele moinho que você está vendo bem lá embaixo. É a primeira casa da cidadezinha.
- Pois bem, - disse o Lobo, - eu também quero ir ver sua avó. Eu vou Eu vou por este caminho daqui e você vai por aquele de lá. Vamos ver quem chega primeiro."

Simone é uma moça ajuizada e obediente, muito diferente de Chapeuzinho. O rapaz também não sabe seduzir como um "verdadeiro lobo":
"Simone não deu a resposta de imediato, procurou seu grupo para pedir opinião se deveria aceitar ou não o convite. Algumas colegas acharam que ela deveria ir, outras não, reforçando as orientações dadas pelos seus pais. Ela, então, decidiu "ficar" com o rapaz na danceteria.
No final da festa, se despediram e trocaram telefones."

O lobo de uma versão da tradição oral, recolhida por Darnton (1984-1986), num colorido discurso direto, envolve Chapeuzinho que, ingenuamente, cai na armadilha:
"(...) e perguntou-lhe para onde se dirigia.
- Para a casa da vovó. - ela respondeu.
- Por que caminho você vai, o dos alfinetes ou das agulhas?
- O das agulhas.
Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou seu sangue numa garrafa e cortou sua carne em fatias, colocando tudo numa travessa. Depois, vestiu sua roupa de dormir e ficou deitado na cama, à espera.
Pam, Pam.
- Entre, querida.
(...) - Sirva-se também de alguma coisa, minha querida. Há carne e vinho na copa.
A menina comeu o que era oferecido(...) Um gatinho disse: Comer a carne e beber o sangue de sua avó?
Então o lobo disse:
- Tire a roupa e deite-se na cama comigo.
- Onde ponho meu avental?
- Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele."

Na versão das professoras, a história tem um final feliz, que premia, de certa forma, o comportamento ajuizado de Simone, pleiteado por quem escreve:
"Alguns dias depois, indo ao curso de inglês, Simone reencontrou o garoto que era o mais novo aluno matriculado na turma, que por coincidência, morava numa rua próxima à sua."

Na versão em Darnton, Chapeuzinho tem sua ingenuidade contemplada de outra forma:
" - Ah, vovó! Que dentes grandes você tem!
- É para comer melhor você, querida.
E ele a devorou. "
Nesta versão, bem como na de Perrault, a atitude de Chapeuzinho é marcada pela ingenuidade e a do lobo pela astúcia e pela maldade. É nesse contraponto que se constrói a moral do conto, que não pode ser observado na versão produzida pelas professoras.
Nossa hipótese para a perda do gênero pelas professoras está na situação de produção, no nascimento do texto que se produziu. Como a sociedade espera que as professoras se encarreguem de transmitir os valores oficiais, seja na escrita, seja na construção de atitudes adequadas, elas parecem responder com seu texto à essa solicitação do social, preservando seus papéis. É, acredita-se, em função disso que as professoras utilizam o discurso indireto: na situação de professoras elas tinham que, necessariamente, assumir um papel analítico. De acordo com Bakthin/Volochínov:

"O discurso indireto ouve, de forma diferente, o discurso de outrem; ele integra ativamente e concretiza na sua transmissão outros elementos e matizes que os outros esquemas deixam de lado. Por isso, transposição literal, palavra por palavra, da enunciação construída segundo um outro esquema, só é possível nos casos em que a enunciação direta já se apresenta na origem como uma forma algo analítica. A análise é a alma do discurso indireto." (1929-1995:159)."

Notícia
O grupo ao qual foi proposta a escrita de notícia, apesar da indecisão inicial, logo começou uma discussão onde ficou clara a criação de uma situação de produção adequada ao gênero. Depois de terem conversado sobre o assunto proposto, violência contra a mulher, começaram surgir as primeiras questões relacionadas ao gênero:
"Pra que tipo de jornal vamos escrever?" "É um jornal sério ou um jornal sangrento?" "Ela tem que causar impacto, de qualquer forma." "Tem que decidir o conteúdo." "Vamos pensar no título?" "Não, não pode ser tão longo..." "Criança grávida...não, está muito subjetivo." "Vamos por as iniciais do nome da menina." "Vamos escrever, então, cada um de nós faz um rascunho." "Querida redatora, seu repórter fez a notícia." "Jornalista tem um grande poder na mão, ele pode contar o fato por seu ponto de vista."
O grupo decidiu produzir textos individualmente, para que depois fosse escolhido o mais semelhante a uma notícia. Escolhido o texto, o mesmo foi revisado coletivamente.



ESTUPRO OU VIOLÊNCIA SEXUAL?
"O caso da menina M.L.S., que realizou um aborto após decisão judicial tem agora um novo dado.
Em entrevista ao repórter enviado pela Folha de São Paulo, os homens envolvidos nesse caso dizem que tanto a menina, quanto a família estavam em comum acordo com o fato de estarem mantendo "relações sexuais" com a criança, pois eles colaboraram financeiramente com a família.
Surge, assim, um hiato nesse caso.
Aconteceu ou não um estupro? Segundo as autoridades responsáveis por esse caso, haverá um novo rumo para as investigações e isso será acompanhado por nossa equipe."

Percebe-se, neste caso, que o levantamento de dados próprios da situação de produção deu condições para que o texto escrito se aproximasse mais da fórmula típica do gênero notícia.
Após a análise, considerou-se que a atividade de produção escrita resultou, em um dos casos, em um texto mais próximo do gênero sugerido, no outro não. No caso da notícia, o objetivo parece ter sido atingido: além de uma forma final bastante adequada ao gênero, as questões colocadas eram todas relacionadas com a situação de produção de uma notícia: tipo de jornal, necessidade de causar impacto, brevidade da notícia, objetividade, detalhes como as iniciais do nome da vítima, que era menor, consciência do poder da imprensa. No caso do conto de fadas, por exemplo, o gênero sugerido não serviu de orientação para a construção de uma situação de produção adequada e, como já foi exposto acima, o grupo produziu um relato com marcas da típica "história" escolar.
Algumas hipóteses para esse resultado são: instruções pouco claras dadas pelo grupo de pesquisa; gênero conto de fadas já transformado pela escolarização3; a forma escolarizada que o conto de fadas já assumiu, poderia ser a mais familiar às professoras, que a reproduziram. É também interessante observar que o grupo que escreveu a notícia era formado por professores de história, geografia e ciências, que não "ensinam a escrever"; as professoras que usualmente ensinam a escrever parecem ter sido mais influenciadas pela escolarização do gênero.

Segundo encontro
No segundo encontro, duas das professoras formadoras, retomando os textos produzidos anteriormente, fizeram a ligação entre a produção realizada e os conceitos que se desejava colocar em discussão: texto, gênero, situação de produção, discurso, língua viva. Os professores parecem ter aproveitado a discussão e compreendido o objetivo do grupo de pesquisa: demonstrar que o estudo de gêneros e sua utilização como instrumento de ensino/aprendizagem de escrita traz avanços em relação aos procedimentos atuais.

Considerações finais
Foi possível detectar através da leitura dos PCNs, que os conceitos apresentados nesse documento são complexos e dadas suas condições de produção(número de páginas, ausência de referências bibliográficas, caráter nacional etc.) sentimos que algumas necessidades se colocam para a sua implementação:
produção de documentos intermediários, com o objetivo de esclarecer e aprofundar determinados conceitos;
divulgação de práticas de ensino, através de audiovisuais, artigos etc. que tratem da implementação das propostas dos contidas nos PCNs em diferentes aspectos;
aprofundamento do estudo das noções básicas: língua, linguagem, gênero, texto.
Uma das possíveis implicações das propostas acima é o risco de simplificação dos conceitos colocados no documento, porém, a partir dessa ação de formação constatamos que sem a utilização desses documentos intermediários, pode-se inviabilizar a interlocução com o conjunto de professores.
Tem-se pensado na produção de diversos materiais didáticos como seqüências didáticas(SD), livros didáticos e paradidáticos para o trabalho em Língua Materna. No caso de SDs, durante as nossas aulas de estudos apontamos que é necessário pensar seqüências com objetivos específicos para o professor e para os alunos e, no segundo caso, o desejável é que fossem produzidas pelo professor, considerando as necessidades de seu grupo de alunos.
Nesse sentido, avaliamos que o ideal seria colocarmos a disposição dos professores um banco de dados com variadas atividades sobre os gêneros das diferentes ordens (narrar, expor, relatar e argumentar) para que os professores possam selecionar o que é mais adequado, considerando o projeto da escola, os objetivos de ensino e as necessidades dos alunos. Finalmente pensamos também, que é necessário fazer um amplo investimento na formação dos professores, tanto na graduação, quanto em serviço.
O grupo de pesquisa avaliou esses dois encontros, inspirados na disciplina "Praticando os PCNs", como oportunos momentos de reflexão, tanto para a ampliação dos conceitos postos em discussão, como para a constituição de um novo olhar sobre o trabalho de educação continuada e de ensino de língua.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bakhtin, M. (1979) Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
MEC/SEF (1998) Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa —Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental. Brasília, DF: MEC/SEF.





















(página em branco)













OS PCNs E A FORMAÇÃO PRÉ-SERVIÇO: UMA EXPERIÊNCIA DE TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA NO ENSINO SUPERIOR
Cirlene Magalhães-ALMEIDA (UnB/LAEL-PUC-SP)

Apresentação da questão
O fato de os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) estabelecerem o gênero como unidade básica organizadora da progressão e da diversidade no ensino para o currículo de Língua Portuguesa, a partir de textos, impõe, de imediato, a necessidade de se atualizar tanto professores em exercício como futuros professores em formação, ensinando-lhes, simultaneamente, a teoria e a prática subjacentes aos PCNs.
Segundo essa nova perspectiva de ensino de língua, a unidade básica de significação e do processo de ensino-aprendizagem passa a ser o texto, em oposição a outras unidades menores da língua como o fonema, a sílaba, a palavra ou a sentença. Os gêneros, por sua vez, como formas relativamente estáveis de enunciados histórica e espacialmente determinados, opõem-se ao ensino organizado a partir de tipologias textuais como a narração, a descrição e a dissertação, invariavelmente adeptas à utilização de textos petrificados e fora do fluxo vital da organização e da vida social. Trata-se, portanto, de uma nova concepção de língua e de aprendizagem: língua viva, constituída e construída no discurso dos interlocutores e condicionada às transformações históricas e sociais; aprendizagem ativa e significativa do conhecimento, já que ligada às esferas de inserção social e interpessoal do aprendiz.
Uma das ações desenvolvidas, em curso de formação de professores na Universidade de Brasília para atender a essa demanda, diz respeito à orientação teórica e prática a alunos estagiários do curso de Licenciatura em Língua Portuguesa para se trabalhar com gêneros do discurso, segundo a perspectiva de Bakhtin (1992,1997).
Este relato apresenta resultados parciais de uma proposta de transposição didática realizada no período de outubro a janeiro de 1998 na Universidade de Brasília e baseia-se na ótica da pesquisa-ação (Brown e McIntyre apud Bell 1993:7), metodologia apropriada à investigação do próprio desempenho profissional no ambiente de trabalho e ao processo interacional dialético instaurado em sala de aula.
No estudo em questão, foram utilizados os mecanismos combinados de diários, observação e entrevistas. Os documentos da pesquisa constituem a produção de atividades de ensino, realizadas pelos alunos sobre gêneros do discurso para o ensino de Língua Portuguesa no terceiro e quarto ciclos.
O objetivo do estudo foi inspirado no projeto de formação-pesquisa "A circulação de textos na escola", de autoria de professores da USP e da UNICAMP, em especial, Lígia Chiappini, coordenadora geral da trilogia "Ler e aprender com textos (de alunos, didáticos e paradidáticos) e J. Wanderley Geraldi e Beatriz Citelli, coordenadores do Projeto.
O objetivo da transposição didática realizada com os estagiários do curso de Letras na UnB foi o de formar educadores pesquisadores jovens, independentes e criativos, capazes de produzir novas metodologias sintonizadas com as diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa do 3º e 4º ciclos do Ensino Fundamental.
Tal objetivo requeria uma mudança de atitude do professor responsável pelo estágio, no que se refere à própria condução de seu fazer pedagógico, forçando-o a uma monitoração na seleção e na elaboração de suas atividades didáticas.
Interessante registrar que, à medida que o trabalho das duplas ou trios evoluía, os estagiários tornavam-se cada vez mais independentes, autônomos e conscientes. Sentiam-se gratificados por saber estarem realizando um trabalho para ser lido e, possivelmente utilizado por outros professores. Enfim, mudando-se as condições de produção do discurso, altera-se qualitativamente o envolvimento e o comprometimento do aluno na tarefa a ser realizada. Comprovam tal suposição a qualidade e a profundidade com que os trabalhos foram feitos, se comparados aos elaborados nos semestres anteriores, com idêntico nível de exigência e, critérios de avaliação.
Para a elaboração das atividades, realizou-se um planejamento diagnóstico em turmas do terceiro e quarto ciclos de Língua Portuguesa. Tal diagnóstico da situação do trabalho com a linguagem foi feito por meio de pesquisa interpretativa, com base em Erickson (1990) e observação participante dos estagiários. Foi estipulado um período de 10 horas-aula de observação do processo interacional em salas de aula nas escolas públicas do Distrito Federal – Fundação Educacional do Distrito Federal , com registros de cunho etnográfico, incluindo triangulação. Esse procedimento, parte das atividades do estágio supervisionado, foi antecedido de estudos sobre concepções de linguagem, aprendizagem e educação, sobre planejamento escolar e gêneros do discurso.
A produção de atividades de ensino sobre os gêneros do discurso foi antecedida de numerosas leituras e discussões sobre a temática, com leituras de trechos das obras de Vygotsky e Bakhtin, além de traduções provisórias de Dolz /Schneuwly (1992), Pasquier / Dolz (1996). Foram também realizadas oficinas pedagógicas nas quais os estagiários puderam vivenciar a caracterização dos gêneros e esboçar o trabalho a ser posteriormente desenvolvido em duplas ou trios.
A minha atuação como professora da disciplina Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa 1 e 2 procurou seguir, em linhas gerais, os princípios e instrumentos da pesquisa-ação, com base em Moita Lopes (1996:187): (1) monitoração do processo de ensino/aprendizagem, por meio de notas de campo; (2) negociação, com os estagiários, da questão a ser investigada – o trabalho pedagógico com gênero do discurso ; (3) negociação dos instrumentos da pesquisa – notas de campo e entrevista - ; (4) pesquisa-ação na prática: coleta de dados no ambiente de trabalho (trabalho realizado pelos alunos); (5) análise e interpretação dos dados: acumulação de evidências para a teorização; (6) relatório da pesquisa – fase atual; (7) negociação de novas questões a investigar.
Os princípios que nortearam a minha ação pedagógica seguiram o preconizado por Zapalla (1998:165) relativamente às características de uma atividade didática: (1) valorização dos conhecimentos prévios dos alunos; (2) conteúdos significativos e funcionais; (3) adequação ao nível de desenvolvimento dos alunos; (4) criação de desafios e de zonas de desenvolvimento proximal; (5) incitamento a conflitos cognoscitivos e à atividade mental; (6) criação de atitudes favoráveis relativamente à aprendizagem; (7) estímulo à auto-estima e ao autoconceito; (8) aquisição da destreza de aprender a aprender e, da autonomia, as quais, em linhas gerais, são inspiradas nos doze princípios de Ratz (Ratz apud Zapalla 1998: 157).
O restante do trabalho organiza-se da forma a seguir. Primeiramente, apresentar-se-á o replanejamento feito das disciplinas Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa 1 e 2, diante da necessidade de os futuros professores trabalhar com e sobre os gêneros do discurso. Em seguida, serão apresentadas atividades de transposição didática desenvolvidas em sala de aula por mim., com base nos estudos e leituras feitas no período 2/98 na disciplina "Tópicos em Lingüística Aplicada: dos Parâmetros Curriculares à Prática de Sala de Aula e no minicurso oferecido pelo Profº John Homes no LAEL/PUC/SP. Finalmente, as estagiárias Daniele Leopoldino Silva (aluna do Estágio 1 ) e Amélia Cristina Cherilli e Renata Filippi da Silva (alunas do Estágio 2) ilustram, por amostragem, o grau de amadurecimento lingüístico alcançado por meio de reflexões feitas sobre a língua, a partir do trabalho realizado com os gêneros.
1. Replanejamento dos cursos Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa 1 e 2
As reflexões feitas na disciplina Tópicos em Lingüística Aplicada à Sala de Aula: dos Parâmetros Curriculares à Prática de Sala de Aula, ministrada pelas Professoras Doutoras Roxane Rojo e Maria Antonieta A. Celani, sobre as concepções teóricas que fundamentam os Parâmetros Curriculares Nacionais, tanto de Língua Portuguesa como de Língua Inglesa, propiciaram um novo direcionamento à disciplina Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa 1, sob a minha responsabilidade, na Universidade de Brasília. Além dessa disciplina, o curso ministrado pelo Professor John Homes O texto na sociedade, em novembro de 1998, apesar de direcionado a professores de Língua Inglesa como segunda língua, foi-me bastante útil.
A primeira providência tomada foi redimensionar os conteúdos a serem ministrados no semestre em três categorias distintas – conceituais, procedimentais e atitudinais - , de acordo com Zaballa (1998:160) e orientação contida na Introdução dos PCNs – terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental (1997: 64). Esse procedimento já era informalmente adotado. Passou, entretanto a fazer parte das atividades diárias em sala de aula e ser objeto de reflexão e de análise por parte dos alunos, quer na análise de material de ensino-aprendizagem, quer na própria elaboração das atividades de ensino.
Foram introduzidas duas novas unidades de ensino, cujos planejamentos vêm registrado a seguir: (1) Unidade 1- Gênero do discurso, intertextualidade e polifonia; (2) Unidade 2- Planejamento de atividades de ensino sobre os gêneros do discurso
Objetivo geral das duas unidades de ensino: Desenvolver nos estagiários as capacidades de ordem cognitiva, física, afetiva, de relação interpessoal e de inserção pessoal social, ética e estética, tendo em vista o desenvolvimento harmônico e amplo do indivíduo, a fim de que ele possa vir a intervir em uma gama ampla de campos e de fenômenos (conforme PCNs 1997a pág. 61ss) e que, desse modo torne-se mais humano e feliz.
Objetivos específicos da unidade 1: ao final dessa transposição didática, o estagiário deverá: (1) apropriar-se do conceito de gênero discursivo e de outros conceitos a ele relacionados como intertextualidade, dialogismo, polifonia, situação de produção e recepção do discurso, língua viva e língua morta; (2) diferenciar gênero de texto; (3) saber que a situação de produção — espaço, interlocutor virtual, intenção, época — interfere na forma do texto; (4) saber que os gêneros do discurso são caracterizados por três elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional.

1. Conteúdos

Atividades


1.1. Conceituais
(1) leitura de textos; (2) elaboração de resumo, com orientação de leitura (Anexo 1).

1.2. Procedimentais
(1) debates; (2) trabalhos em grupo; (3) oficinas de leitura com textos variados e autênticos, pertencentes a gêneros específicos da imprensa
jornalística e televisiva; (4) análise de gêneros diversos para determinar as especificidades do gênero no que se refere ao conteúdo temático, à
construção composicional e ao estilo, a partir de, no mínimo, três exemplares prototípicos.



1. Conteúdos

Atividades

1.3. Atitudinais
(1) respeito às normas de cada gênero, seja ele primário ou secundário, pertencente à variedade lingüística padrão ou à não padrão (como a literatura de cordel, por exemplo); (2) respeito ao revezamento da palavra nas discussões e nos trabalhos em grupo; (3) apreciação de valores específicos de cada gênero nas categorias do narrar, do relatar, do argumentar, do expor, do descrever ações, seja em seus aspectos estéticos, funcionais e formais; (4) formação do senso crítico dos alunos, tornando-os conscientes das condições de produção e recepção de cada enunciação.

2. Procedimentos metodológicos

2.1. Comparação entre textos vivos e textos mortos (Tradução provisória e adaptada de Holmes, 1998/ PUC/ LAEL)
Textos escolarizados mortos
2.1.1. Tipos de textos
Escrever uma carta endereçada aos pais

Dissertar sobre o dia do Índio

Relatar o que ocorreu nas férias
2.1.2. Intertexto prévio
(1) Exercícios gramaticais; (2) atividades de compreensão e interpretação de texto;

Atividades com o vocabulário;
Texto como pretexto para exercícios gramaticais e estruturais:
2.1.3. Objetivo
Identificar informações, praticar a gramática da língua, entrar em exposição com a língua escrita.
2.1.4. Intertexto do leitor
Anotar, compreender, executar tarefas escolarizadas
2.2. Texto como materialização concreta do gênero
Textos vivos , reais e concretos





Conversa informal entre amigos, conversa ao telefone, e-mail, fax, cartão postal, prospectos de viagem, aconselhamento de pais, planos futuros, notícia jornalística e televisiva, propagandas diversas, canções populares, hinos nacionais, crônica, conto, romance, cordel, poema lírico.
2.2.1. Perguntas baseadas no gênero
Em que sentido este texto é similar a outros que você já leu ou ouviu?

Qual é o objetivo deste texto?

3.Técnicas para tornar um texto "petrificado" em texto "vivo"
Fases da Leitura

Ler cuidadosamente o texto para responder questões sobre gênero do discurso e sobre intertextualidade, com o objetivo de compreender o ambiente natural do texto.
Fase anterior à leitura: como atividade anterior à leitura, levar em consideração o intertexto. Por exemplo, ouvir uma conversa sobre determinado assunto, ler outros textos, discutir um tópico, pode melhorar o desempenho da leitura..
Questões sobre o gênero: Assegurar-se de que os alunos sejam capazes de identificar gêneros de texto por meio do conhecimento anterior que eles têm da língua. Alguns itens específicos da língua são relevantes para a caracterização dos gêneros?
Questões sobre intertextualidade: garantia de que os alunos sejam capazes de identificar as fontes das idéias no texto e de criticá-las, se necessário. Ajuda do conhecimento anterior, caso necessário.
Fase do processamento textual: contemplar atividades que ajudem a promover a habilidade de identificar características, bem como as que identificar as idéias / características principais no texto. Se necessário, também ajudar os alunos a identificar o intertexto.

Objetivos específicos da Unidade 2: ao final desta unidade de ensino, após os estagiários terem concluído a observação na escola e terem vivenciado e participado ativamente de oficinas pedagógicas sobre a caracterização e descrição de gêneros do discurso, eles deverão evidenciar, no desempenho discente, crescente autonomia, criatividade e competência técnica na elaboração de novas metodologias de ensino sobre o trabalho com gêneros para ensino de Língua Portuguesa.



2. Esquema das atividades de ensino vivenciadas pelos estagiários em sala de aula
2.1. Atividade 1: (Desenvolvida no curso Tópicos em Lingüística Aplicada: dos PCNs à Prática de ensino em sala de aula e adaptada para os alunos do terceiro grau)
1. Clientela: estagiários do Curso de Licenciatura em Letras
2. Objetivo: diferenciar gênero e tipo de texto, criando textos vivos e ligados à realidade social do estagiário.
3. Tema a ser trabalhado em diferentes gêneros do discurso: a violência sexual contra a mulher
4. Material inicial: fita de vídeo com a entrevista concedida pelo maníaco do Parque Ibirapuera em São Paulo; a estória de Chapeuzinho Vermelho; textos relativo à violência sexual contra a mulher, nos gêneros crônica e entrevista; - comanda da atividade;
5. Atividade: breve discussão sobre a temática do vídeo e dos textos distribuídos; estabelecimento de diferentes situações de produção e recepção do gênero a ser trabalhado; alerta aos estagiários sobre: (1) a finalidade de cada gênero: (2) o ambiente social em que o texto no gênero circula; (3) o autor e o destinatário do texto; (4) a reação que o texto provoca nos leitores/ouvintes; (5) a intertextualidade presente nos textos.
6. Comanda da atividade: Dada a situação de produção e de recepção de cada gênero, desenvolva a temática proposta em grupos de 5 integrantes, sendo um eleito para fazer o registro etnográfico do trabalho desenvolvido pelo grupo.
7. Situações de produção:
mãe alerta a filha sobre os perigos de acompanhar estranhos a lugares ermos e perigosos (gênero: discussão argumentativa oral). Esta atividade deve ser gravada, não escrita.
pessoa re-escreve a estória de Chapeuzinho Vermelho, atualizando os elementos da narrativa para a sociedade moderna atual (gênero: estória infantil).
repórter escreve notícia sobre violência sexual cometida contra uma mulher em um determinado veículo de comunicação, dirigida a um determinado público (gênero notícia de jornal).
cronista (homem ou mulher) redige crônica sobre violência sexual cometida contra mulher em um determinado veículo de comunicação, dirigida a um público específico ( gênero: crônica).
mulher (jovem ou idosa) relata, em seu diário íntimo, violências sexuais sofridas por ela ou por alguém (gênero: diário íntimo)
8. Observação para a elaboração do trabalho: (1) considerar o conteúdo e a finalidade do gênero; (2) fazer as escolhas lexicais e sintáticas características do gênero; (3) estabelecer a situação discursiva de produção e de recepção do texto.
2.2. Atividade 2:

1.Clientela: estagiários do Curso de Licenciatura em Letras – Português
2. Conteúdo: gênero do discurso - propagandas da Revista Veja
3. Objetivo: ao final desta unidade de ensino, os estagiários deverão ser capazes de:
reconhecer, em propagandas diversas, o conteúdo temático – o tema da enunciação expresso por formas verbais e não-verbais como a entoação e o ritmo - , o estilo, ligado às condições de produção do locutor e a construção composicional - escolhas lexicais e sintáticas - marcas cristalizadas, também devido às situações sociais e históricas da produção dos mesmos. (Prototipicamente, este gênero emprega o uso do imperativo, de recursos pictográficos, de ambigüidade lexical e sintática, da função apelativa da linguagem.)
empregar as características específicas do gênero em textos publicitários produzidos para situações reais de uso nas dependências da universidade.
identificar a polifonia existente no texto.
analisar as informações subjacentes ao texto pictográfico, sob as formas de ilustração, montagem fotográfica e metaforização.
reconhecer o público-alvo a que determinadas mensagens publicitárias se destinam.
4. Material inicial: (1) exemplares da Revista Veja ou Isto é com propagandas dirigidas a executivos, a donas de casa, a adolescentes, etc.; (2) transparências coloridas de algumas propagandas; (3) comanda da atividade.; (4) cartolina, tesoura, cola.
5. Metodologia:
5.1 Em duplas ou em grupos pequenos, observar e analisar as características específicas do gênero, comparando, no mínimo, três exemplares da revista em análise.
5.2 Discutir com os colegas as condições de produção e de recepção dos textos publicitários.
5.3 Identificar tipos diferentes de mensagem verbal (como nos casos da especificação técnica de automóveis, por exemplo) e não-verbal (como nas propagandas de cigarro e outros bens de consumo.
5.4 Elaborar um texto publicitário com alguma finalidade prática no espaço da comunicação social nas dependências da UnB.
5.6 Expor o trabalho elaborado e distribuí-lo em locais de ampla circulação.
6. Cronograma da atividade
7. Avaliação – com critérios pré-estabelecidos
8. Bibliografia

3. Atividades de ensino produzidas pelos estagiários
3.1. Elaboração de material de ensino-aprendizagem pelos estagiários para se trabalhar com gêneros do discurso:
3.1.1. Gênero: crônica
Identificação do trabalho
Nome: Daniele Leopoldino Silva - Matrícula:93/22451
Disciplina: Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa 1
Nome do trabalho: Uma proposta de aplicação da progressão didática de gêneros no ensino da expressão oral e escrita
Caracterização do gênero:
narração que obedece à ordem do tempo;
ligada à atualidade, pode ser tendenciosamente crítica, mas sem agressividade;
costuma misturar sentimentalismo com humorismo;
caracterizada como "conto sem enredo" na visão do crítico formalista russo Viktor Chklovsky;
de acordo com Jorge de Sá ( 1987), opõe-se ao conto: enquanto neste a densidade específica da narrativa centra-se na exemplaridade de um instante da condição humana, sem que essa exemplaridade se refira à valoração moral, na crônica, conserva-se o registro circunstancial feita por um narrador –repórter que relata um fato não mais a um só receptor, porém a muitos leitores que formam um público determinado, a exemplo da carta escrita por Pero Vaz de Caminha a D. Manoel;
dirige-se a uma classe que tem preferência pelo jornal;
artigo de jornal que, em vez de relatar ou comentar acontecimentos do dia, semanticamente oferece reflexões sobre literatura, teatro, política, acidentes, crimes, processos, e sobre os pequenos fatos da vida diária;
caracterizado no agrupamento da ordem do RELATAR _ representação pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo;
precariedade presente nos textos jornalísticos (Jorge de Sá): (1) dirige-se a um público apressado, cuja leitura se detém em pequenos recortes do seu cotidiano a fim de manter-se informado; (2) a elaboração da crônica também se prende a essa urgência: o cronista, a fim de manter-se atualizado para também manter o seu público, é obrigado a manter um acelerado ritmo de escrita; (3) devido a 1 e a 2, a sintaxe na crônica lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais próxima da conversa entre amigos do que propriamente um texto escrito;
proximidade entre as normas da língua escrita e da oralidade, sem que o orador caia no erro de compor frases sem a magicidade de elaboração, já que ele não deve perder de vista o fato de que o real não é meramente copiado, mas recriado;
difere-se da matéria jornalística, pois não visa à mera informação e sim em transcender o cotidiano;
equilibra o coloquial e o literário, permitindo que o lado espontâneo e sensível permaneça como o elemento provocador de outras visões do tema e subtemas que estão sendo tratados numa determinada crônica;
a verdade da crônica é o instante, não os pequenos acontecimentos cotidianos.
Caracterizando e analisando o gênero escolhido:
Crônicas selecionadas: (1) Mendes Campos, Paulo. "Os diferentes estilos". Em: Para Gostar de Ler – Crônicas. São Paulo, Ática, 1979, vol.4, págs. 39-42 ( transposição didática); (2) Lara Resende, Otto. "A chave do mistério'. Em: Bom dia para nascer – crônicas . São Paulo, Companhia das Letras, Ed. Schwarcz, 1993, cáp. 1, pág. 18; (3) Veríssimo, Luís Fernando. "Hipóteses". Em: Novas comédias da vida privada – 123 crônicas escolhidas. Porto Alegre, L&PM, 1997, 11ª edição, cap, 1, págs. 11-14.
Conteúdo: (1) gênero crônica na categoria do relatar; (2) discurso direto e indireto como modos de citação da fala alheia; (3) tempos e modos verbais no gênero, reconstrução temporal, repetição como reforçador temporal; (4) sintaxe na crônica: predominância da coordenação - paralelismo de funções sintáticas, frases curtas.
Observação: o enfoque dado ao conteúdo dar-se-á na forma espiral, em que objetivos semelhantes serão abordados em níveis de complexidade crescentes ao longo da escolaridade e no sentido de que o mesmo gênero possa ser abordado de diversas formas, com graus crescentes de aprofundamento.

Proposta para uma atividade de ensino:
Conteúdo programático
características do gênero crônica;
qualidades do parágrafo e da frase em geral – unidade, coerência e ênfase.
Objetivos
O aluno deverá ser capaz de:
ler, interpretar e analisar textos jornalísticos, identificando mensagens implícitas, polifonia e intertextualidade nos três textos analisados;
reconhecer características temáticas, composicionais e de estilo – relacionadas à situação de produção específica de produção do gênero em questão;
reconhecer partículas de transição, uso de reforçadores textuais, bem como usá-los no sentido de criar uma estrutura mais coesa;
identificar mecanismos de coerência nos textos estudados.
Material inicial:
envelope, com vários pedaços de papel, colado do lado de fora da porta;
tema gerador para estimular a formação de frases, que serão usadas como forma de "pedágio", condição para o aluno adentrar a sala de aula;
jornais com crônicas para consulta dos alunos;
cartolina, cola, tesoura;
exemplares de crônicas publicadas em livros;
comanda da atividade.
Metodologia
Utilização da técnica "prática do pedágio". (Essa consiste na proposta de se colocar do dado de fora da porta um envelope, alguns papéis em branco e uma caneta. Cada aluno terá como condição para entrar na sala a formação de uma frase, de acordo com o tema proposto, o qual deverá estar também colado na porta, acima do suposto envelope.)
Formação de um grande círculo, com alunos sentados no chão ou em carteiras, de acordo com a faixa etária dos alunos.
Distribuição das tiras de papel escritas ao entrar na sala. Os alunos deverão reescrever a frase de que estiverem de posse, numa outra folha de papel, intitulada com o tema gerador, e que deverá circular na sala até que volte para o ponto de origem.
Recolhimento do texto final e leitura para a classe.
Trabalho em grupos pequenos para leitura de crônicas em jornais.
Elaboração de uma listagem com as características encontradas pelos alunos nas crônicas analisadas.
Atendimento do professor aos grupos no sentido de que reutilizem estas características em seus novos textos, para que eles não percam a configuração desse gênero específico.
Releitura do texto lido: reconstrução da mesma dentro de um determinado período de tempo, mudando-se as condições de produção do discurso – personagens, época, tempo, espaço, condições sócio-históricas e veículo a ser utilizado ( jornal ou livro).
Confronto da noção de texto e de não-texto ao pedir aos alunos que tentem compor uma crônica – em papel pardo o de cartolina - com as frases isoladas feitas anteriormente.
Ao final desta prática, o professor deve lançar os seguintes questionamentos: por que as frases colocadas e dispostas segundo orientação dos alunos não produzem o efeito de um texto? Quais são as características implícitas na produção de textos que nos fazem ser capazes de entender as idéias neles presentes e que não estão denotados no conjunto de coladas na cartolina? Por que essas características não puderam ser trabalhadas. Como trabalhá-las?
Avaliação
Como forma de avaliação, o professor poderá pedir os alunos que criem parágrafos de auto-avaliação, em que deverão julgar o domínio do gênero crônica que conseguiram demonstrar por meio da realização da atividade proposta.

3.1.2. Gênero - propaganda
Identificação do trabalho
Nomes: Amélia Cristina Cherulli – Matrícula 93/07265
Renata Filippi da Silva – Matrícula 94/07839
Nome do trabalho: Repensando as atividades didáticas
Disciplina: Estágio Supervisionado em Língua Portuguesa 2
Conteúdo
gênero do discurso: propaganda publicitária;
ambigüidade lexical e gramatical;
polifonia e intertextualidade;
função conativa da linguagem.
Objetivo
A partir da análise de textos publicitários prototípicos, os alunos deverão extrapolar e generalizar as características do gênero, a partir do conhecimento anterior e daquilo que eles observaram nos textos de publicidade por eles analisados.
Metodologia
Análise do gênero publicitário e dos quatros exemplos selecionados, retirados de revistas de ampla circulação, e de produtos bastante comuns e do conhecimento de todos – como a marca da esponja de aço Bom-Brll.
Divisão da turma em grupos de, no máximo quatro pessoas a fim de se levantarem as principais características do gênero percebidas pelo grupo.
Apresentação de cada grupo, sendo eleito um expositor para apresentação da propaganda criada pelo grupo, bem como a explicitação das características por eles utilizadas para se conseguir os efeitos pretendidos.
Apreciação das propagandas pelo grande grupo e escolha dos trabalhos que melhor se aproximam das características por eles estabelecidas como pertencentes ao gênero.

4. Reflexões finais
Creio que mudanças substanciais ocorreram em minha prática pedagógica depois que me tornei coadjuvante no processo de ensino-aprendizagem de meus alunos. Isto ocorreu devido ao fato de o trabalho realizado com os estagiários em Língua Portuguesa, na UnB, com e sobre os gêneros do discurso ter sido altamente instigante: cada aluno escolheu três gêneros que mais os atraíam para descrever. Grupos de estudos sobre literatura de cordel, do imaginário dos mitos, lendas, fábulas e contos populares, das cantigas populares e, as leituras e discussões para a descrição de gêneros específicos tornaram as aulas mais vivas e, segundo depoimento de alguns alunos, mais interessantes .
Ao final do semestre, estávamos cansados. Entretanto, era um cansaço gratificante pois tínhamos conseguido aprender e produzir muito, com criatividade e liberdade. A extensa bibliografia pesquisada, bem como o conhecimento que eles já tinham sobre Bakhtin e Vygotsky, no âmbito da literatura e da psicologia da aprendizagem, confluíram os conhecimentos adquiridos em áreas diferentes para um novo campo de saber, cheio de vida e de desafio, que tanto para eles quanto para mim tinham o sabor de novidade e de vida.
E como a vida é repleta de surpresas e de mudanças, também as aulas se tornaram muito mais atraentes, graças à atuação e ao empenho dos alunos na realização das tarefas. Parte das atividades foi feita em sala, sob minha orientação e fornecimento de material para a descrição dos gêneros. Entretanto, a maior parte do estudo foi feito por intermédio de atividades extraclasse , com realização optativa entre trabalho individual, em duplas ou em trios, de acordo com a preferência e a disponibilidade de tempo dos alunos.
Toda essa mudança deve-se, em grande medida, a dois acontecimentos principais em minha vida profissional. Em primeiro lugar, ter tido a oportunidade de ler, analisar e discutir a fundamentação teórica subjacente aos PCNs com um grupo de estudos altamente motivado e motivador, sob a coordenação da Profª Roxane Rojo.
Em segundo, ter aproveitado essa experiência para aplicar, em meu local de trabalho, a transposição didática que estava sendo feita a professores e a profissionais responsáveis pela formação de professores, em âmbito nacional na PUC/SP no semestre de 1998. A realização desta pesquisa-ação permitiu-me compreender o que estava realmente acontecendo em sala de aula, possibilitando o confronto entre a minha própria perspectiva e a dos alunos.
De acordo com a análise da transposição, os seguintes aspectos podem servir de indicação para futuras generalizações:
O trabalho realizado com os gêneros do discurso como unidade organizacional do currículo é mais produtivo que o estudo sobre tipologias textuais, já que leva em conta as situações de produções e de recepção do discurso;
a automonitoração constante do professor do estágio, fê-lo descobrir que a sua prática de ensino estava permeada de princípios da concepção tradicional de educação, apesar de seu discurso ser altamente dialético e inovador;
os gêneros do discurso são mais bem trabalhados fazendo-se o confronto entre tipos de textos pertencentes à mesma categoria de habilidade lingüística e que se diferem apenas por alguns aspectos. Desse modo, na categoria do narrar, a crônica opõe-se ao conto pelo registro circunstancial feito pelo narrador, enquanto que no conto, há o registro da exemplaridade de um instante da vida humana pelo narrador;
o mesmo gênero do discurso pode ser trabalhado em diversos níveis de profundidade, nos diferentes ciclos de escolaridade;
no terceiro grau de ensino, houve maior aprofundamento nos gêneros mais conhecidos e descritos em outras áreas do conhecimento como a teoria literária e disciplinas do curso de comunicação.
Finalmente, cabe aqui registrar que houve, durante todo o período da transposição, cooperação mútua entre professor e alunos. Além disso, a discussão profícua sobre o valor social da linguagem dentro e fora de sala de aula foi uma constante em todo o curso. Foi ainda enfatizado no curso, o papel tipicamente político que desempenha o professor ao formar cidadãos mais críticos e conscientes, contribuindo, assim, para a transformação da sociedade. O trabalho realizado com os gêneros do discurso, nesta transposição didática, mostrou que é possível ensinar língua portuguesa de um modo pedagogicamente interessante e politicamente eficiente para a formação crítica do cidadão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bakhtin, M./Volochínov, V. N. (1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
Bakhtin, M. (1979) Os gêneros do discurso. In M. Bakhtin (1979) Estética da Criação Verbal, pp. . São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Bronckart, Jean-Paul. (199?) Psychologie et problematiques éducatives. Anuário de Psicologia, Número monográphico: La Psicología en los Umbrales del Siglo XXI.
Dolz, J. & B. Schneuwly ( 1996) Gêneros e progressão em expressão oral e escrita. Tradução de Roxane Rojo.
Erickson, F. (1990) Qualitative methods. In Research in Teaching and Learning. Vol. 2. New York: Macmillan Publishing Company.
Garcez, L. (1998) A escrita e o Outro. Brasília: Editora da UnB.
Geraldi, J.W. (1991) Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes.
Holmes, John. (1998) Intertextuality and genre in EAP reading comprehension. Material distribuído no curso ministrado no LAEL-PUC/SP, novembro de 1998.
Moita Lopes, L. P. (1996) Oficina de Lingüística Aplicada. Campinas: Mercado de Letras.
Pasquier, A. & J. Dolz (1996) Um decálogo para enseñar a escribir. Cultura y Educacíon, 2: 31-41.
Schneuwly, B. (1994) Gêneros e tipos de textos: Considerações psicológicas e ontogenéticas. In Y. Reuter (ed.) Les interactions lecture-écriture (Actes du Colloque Théodile-Crel), pp. 155-173. Tradução de Roxane Rojo. Bern: Peter Lang.
Signorini, I. & M. Cavalcanti (eds.) (1998) Lingüística Aplicada e Transdisciplinaridade. Campinas: Mercado de Letras.
Vygotsky, L.S. (1934) Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
— (1978) A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
Zabala, A. (1998) Os enfoques didáticos. In C. Coll, E. Martín, T. Mauri, M. Miras, J. Onrubia, I. Solé & A. Zaballa (eds.) O Construtivismo na Sala de Aula. São Paulo: Editora Ática.




































(página em branco)



DO PROFESSOR SUPOSTO PELOS PCNs AO PROFESSOR REAL DE LÍNGUA PORTUGUESA: SÃO OS PCNs PRATICÁVEIS?

Jacqueline Peixoto BARBOSA (UMC/LAEL-PUC-SP)

Embora ainda haja muito a ser feito pela educação pública brasileira, sobretudo no que diz respeito aos níveis fundamental e médio, cabe ressaltar algumas ações políticas efetivadas na direção da busca da melhoria da qualidade de ensino e da diminuição dos índices de evasão. Dentre essas ações, vale destacar a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais e de outros documentos de referência curricular elaborados por estados e municípios, a implementação de sistemas de avaliação de ensino – SAEB, provões - e a criação de uma sistemática de avaliação pedagógica de livros didáticos no PNLD. Sem dúvida nenhuma, essas ações representam um avanço considerável, mas, até para que seus efeitos possam ser potencializados a médio e a longo prazos, fazem-se necessárias outras modalidades de intervenção. Dentre estas, consideramos que a formação continuada de professores e demais educadores deva ser privilegiada, sem o que, a prática de sala de aula não sofrerá mudanças substanciais na direção pretendida.
Nenhum dos documentos oficiais colocados como referências curriculares (PCNs e demais propostas curriculares de estados e municípios) pode ser transposto diretamente para a sala de aula, o que feriria a natureza desses próprios documentos e seria contraditório com alguns princípios orientadores da prática pedagógica nestes assumidos, por exemplo, o princípio de respeito à pluralidade de realidades culturais. Dessa forma, são necessários outros níveis de concretização, conforme apontado pelo próprio documento introdutório aos PCNs, tais como a re-elaboração de propostas curriculares no âmbito dos municípios e estados; a elaboração do projeto educativo de cada escola e a elaboração da programação de cada professor a ser desenvolvida em sala de aula, que deve estar respaldada por e integrada com os níveis anteriores.

Ora, esses níveis de concretização dependem também da implementação de políticas de formação de educadores, visto que as elaborações acima citadas não são tarefas prontamente factíveis na maioria das escolas públicas brasileiras.
Nesse sentido, o presente artigo tem a intenção de relatar e analisar uma experiência com formação de professores da rede pública estadual paulista (PEC-Polo 3), esperando, assim, contribuir para a reflexão sobre possíveis formas de garantir a efetivação dos níveis de concretização acima descritos.


Caracterizando o PEC – Pólo 3

O Projeto de Educação Continuada (PEC – Pólo 3) que será aqui apresentado e analisado foi elaborado pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) em resposta a um edital publicado pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo , que convidava para a participação em um projeto de formação de educadores do Pólo 3. O Projeto foi dirigido a professores de 5ª a 8ª séries e foi desenvolvido entre de maio de 1997 e outubro de 1998.
A elaboração do Projeto contou com uma equipe de gestão, que para ele definiu os seguintes princípios básicos:

A formação deve ser de fato continuada, ao contrário de alguns projetos de capacitação de professores que prevêem um determinado número de horas concentrado num curto espaço de tempo. Assim, o número de horas total do Projeto foi dividido ao longo do ano, de forma a possibilitar uma via de mão-dupla entre as discussões nas ações de formação e a prática da sala de aula. Isso porque, muitas vezes, o professor termina uma ação de capacitação disposto a mudar sua prática pedagógica, mas, ao voltar para sua sala de aula, encontra obstáculos, que sozinho dificilmente superará.

Melhorar a descrição do Projeto. Está ruim.Melhorar a descrição do Projeto. Está ruim.Um projeto de formação deve incluir todas as pessoas envolvidas no processo educacional e não somente professores. Isso porque, em primeiro lugar, ao se determinar que apenas os professores deverão passar por um processo de formação, deixa-se implícito que ele é, se não o único, o principal culpado do estado da arte da educação brasileira, o que seguramente não é verdade. Em segundo lugar, e em decorrência do primeiro, para que as mudanças necessárias à melhoria da qualidade de ensino sejam implementadas é preciso que todos envolvidos de alguma forma com o sistema educacional estejam dando suporte ao desenvolvimento do trabalho em sala de aula. Assim, foram envolvidos no projeto de formação os professores especialistas de 5ª a 8ª série das disciplinas de português, matemática, ciências, história e geografia, os professores-coordenadores, os diretores e vice-diretores, os assistentes técnico-pedagógicos e os supervisores, estes dois últimos alocados nas delegacias de ensino.
Melhorar a descrição do Projeto. Está ruim.
Melhorar a descrição do Projeto. Está ruim.
Segue abaixo um quadro que discrimina o número de participantes por função e por delegacia de ensino.
Quadro 1 : Quantidade de educadores - Situação em maio de 1997
Regionais
Educadores
Mogi das Cruzes
Itaquaque-cetuba
Suzano
10ª DE São Miguel
11ª DE Itaquera
21 ª DE Guaianases
Total
Lideranças
246
227
155
326
336
127
1417
Português
219
248
222
262
243
188
1382
Matemática
168
212
175
230
197
164
1146
Ciências
140
154
130
173
138
133
868
História
124
144
137
150
145
111
811
Geografia
100
142
129
140
120
111
742
Total
997
1127
948
1281
1179
834
6366

Para garantir a articulação entre as ações e a organicidade do Projeto, foram estabelecidos dois tipos de intervenção direta:
ações onde os participantes eram agrupados por área e/ou por função, que consistiram de: (a) encontros de professores envolvidos no Projeto com especialistas das diferentes áreas curriculares para formação teórico-prática em cada disciplina e para definição de programações e projetos de trabalho específicos; e (b) encontros de professores e demais educadores agrupados por função, com o objetivo de levá-los a uma reflexão sobre suas ações pedagógicas;
ações onde os participantes eram agrupados por equipes escolares, onde se buscou discutir problemas educacionais gerais e fornecer subsídios para que projetos educacionais de escola pudessem ser delineados.
O Projeto contou com uma equipe de gestão assim constituída:

COORDENAÇÃO GERAL



COORDENAÇÃO DE ÁREAS COORDENAÇÃO PEDAGÓGICA


À coordenação das áreas coube a responsabilidade pelo planejamento, desenvolvimento e acompanhamento das várias atividades no respectivo campo de conhecimento. A principal atribuição destes especialistas era garantir a competência científica e pedagógico-didática do Projeto.
À coordenação pedagógica coube os contatos constantes com os dirigentes regionais e demais educadores responsáveis pelo PEC/Pólo 3 e a análise e tomada de decisões conjuntas sobre todos os aspectos do planejamento, desenvolvimento e avaliação das atividades - desde os fundamentos educacionais e pedagógicos do Projeto até as inúmeras questões de infra-estrutura. Sua atribuição mais relevante era dar sustentação à competência político-educacional e organizacional do Projeto, no âmbito da respectiva região.

À coordenação geral coube a responsabilidade pela articulação entre os demais coordenadores, dando suporte para a competência político-educacional e organizacional do Projeto como um todo. Esses coordenadores responderam pela relação institucional junto aos órgãos da Secretaria da Educação que administraram o PEC e as outras unidades acadêmicas da Universidade de Mogi das Cruzes. Esses profissionais encarregaram-se ainda do planejamento, mobilização e utilização de todos os recursos necessários ao desenvolvimento do Projeto: execução e controle orçamentários, produção e distribuição de material didático, etc.
Essa equipe de gestão reuniu-se semanalmente durante toda a duração do Projeto, acompanhando e avaliando continuamente as atividades, tomando decisões conjuntas e responsabilizando-se solidariamente pelo caráter orgânico que a concepção original previa.
Além da equipe de gestão, mais de 100 capacitadores atuaram junto aos educadores do Pólo 3 envolvidos no Projeto.

A proposta de trabalho da área de Língua Portuguesa do PEC – Pólo 3:

O trabalho específico da área de Língua Portuguesa foi desenvolvido ao longo de três semestres - 2º semestre de 1997 e 1º e 2º semestres de 1998 -, perfazendo um total de 72 horas. Como forma de garantir um tipo de intervenção mais abrangente, dividimos o trabalho em duas frentes, descritas abaixo:

FRENTE 1: 48 horas de trabalho, dividas em módulos teórico-práticos de quatro horas que visaram a formação teórica necessária ao professor relativa ao objeto de conhecimento - a linguagem oral e escrita - e ao seu ensino aprendizagem.


FRENTE 2: Articulada em torno de oficinas temáticas, esta frente de trabalho teve como objetivo enfocar a escrita para além da escola, sem ter como objetivo imediato pensar seu ensino/aprendizagem escolar.
A intenção da Frente 2 era trabalhar com a leitura e escrita dos professores, buscando suas concepções de escrita, o uso que dela faziam, as funções sociais supostas, suas histórias enquanto leitores e escritores, etc. A proposta desta frente se deveu à constatação de que, muitas vezes, o professor não intervém adequadamente na leitura e produção dos alunos, não só porque lhe falta a teoria ou a forma mais adequada de ação, mas porque ele próprio, muitas vezes, vivencia poucas situações de leitura e escrita fora do contexto escolar. Dessa forma, por vezes, falta ao professor recursos para propor reconstruções de partes dos textos dos alunos, para recortar o estilo de um texto para mostrar aos alunos, etc. Um discurso oral ou escrito, tanto do ponto de vista de sua produção como de sua compreensão, envolve diversos aspectos, que aparecem como um todo indistinto para o aluno. Recortar esses aspectos e significá-los é papel do professor, que, para fazê-lo, necessita ele mesmo perceber esses aspectos, significá-los e poder apreciá-los. Esperávamos que ao trabalhar com as concepções de escrita e leitura do professor e com as formas de apropriação das práticas culturais da leitura e da escrita que este desenvolveu em sua vida, poderíamos fornecer mais condições para que este pudesse intentar um trabalho que possibilitasse a apropriação dessa prática por parte de seus alunos. Essa frente de intervenção contou com 24 horas de trabalho, divididas em oficinas de 4 horas.

A proposta de trabalho da Frente 1:


A partir de uma perspectiva de base enunciativo-discursiva no que diz respeito à concepção do objeto e de base socio-histórica no que diz à concepção de ensino-aprendizagem, o projeto de trabalho da Frente 1da área de Língua Portuguesa foi articulado em torno da noção bakthiniana de gêneros do discurso. Primeiramente, justificaremos essa escolha e, em seguida, relataremos o trabalho realizado.



Por que gêneros do discurso?


Atualmente, parece haver um consenso na área de ensino de língua materna - se não efetivado nas práticas escolares, pelo menos verbalizado teoricamente – de que é necessário trabalhar com uma diversidade textual, na medida em que não existe um tipo de texto prototípico que possa "ensinar" a ler e a escrever textos pertencentes a todos os tipos existentes.
Como decorrência desse consenso, coloca-se, então, a necessidade de se estabelecer critérios para a seleção de diferentes tipos de texto em circulação social, como forma de se garantir uma progressão curricular que os contemple ao longo das séries escolares. Em função disso, diversas tipologias têm sido propostas, tendo em vista critérios estruturais/formais (narração, descrição, dissertação, etc.) ou funcionais (textos informativos, textos literários, textos apelativos, etc.). Ora, baseadas só em aspectos estruturais e/ou funcionais, essas propostas ou deixam de capturar aspectos da ordem da enunciação ou do discurso, ou, quando consideram esses aspectos, fazem-no de maneira externa às classificações. Por isso, falham no que concerne a importantes elementos do processo de compreensão e produção de textos.
A noção de gênero do discurso tal como discutida por Bakthin - definida como sendo uma cristalização de formas de dizer sócio-historicamente determinada -, por incluir aspectos da ordem da enunciação e do discurso, pode contemplar de maneira mais satisfatória o complexo processo de produção e compreensão de textos. A noção de gênero permite incorporar elementos da ordem do social e do histórico (que aparecem na própria definição da noção); considera a situação de produção de um dado discurso (quem fala, para quem, lugares sociais dos interlocutores, posicionamentos ideológicos, em que situação, em que veículo, com que objetivo, finalidade ou intenção, em que registro, etc.); abrange o conteúdo temático e a forma de dizer, que não é inventada a cada vez que nos comunicamos, mas que está disponível em circulação social. Entender um gênero implica tratá-lo como algo vinculado ao seu contexto sócio-histórico-cultural de circulação.
Dessa forma, podemos então definir como ponto central, ao redor do qual se articulariam propostas curriculares da área de Língua Portuguesa, o trabalho com diferentes gêneros do discurso, em contraposição a um trabalho baseado em diferentes tipos de texto.
Dessa perspectiva, seria desejável que uma seleção variada de gêneros orientasse a elaboração de propostas curriculares, seja enquanto definição de princípios, seja enquanto delimitação de objetivos, conteúdos e atividades.
Tentando operacionalizar uma proposta semelhante, pesquisadores ligados à Universidade de Genebra (Dolz & Schneuwly, 1996) propuseram agrupamentos de gêneros, elaborados com base em três critérios: 1- o domínio social da comunicação a que os gêneros pertencem; 2- as capacidades de linguagem envolvidas na produção e compreensão desses gêneros e 3- sua tipologia geral. Dessa forma, propõem cinco agrupamentos que supõem a aprendizagem de capacidades e operações diferenciadas por parte dos alunos:
gêneros da ordem do narrar - cujo domínio de comunicação social é o da cultura literária ficcional, enquanto manifestação estética e ideológica que necessita de instrumentos específicos para sua compreensão e apreciação (exemplos destes gêneros seriam: contos de fadas, fábulas, lendas, narrativas de aventura, narrativas de ficção científica, romance policial, crônica literária, etc.);
gêneros da ordem do relatar - cujo domínio de comunicação social é o da memória e o da documentação das experiências humanas vivenciadas (exemplos destes gêneros seriam: relatos de experiência vivida, diários, testemunhos, autobiografia, notícia, reportagem, crônicas jornalísticas, relato histórico, biografia, etc.);
gêneros da ordem do argumentar - cujo domínio de comunicação social é o da discussão de assuntos sociais controversos, visando um entendimento e um posicionamento frente a eles (seriam exemplos de gêneros: textos de opinião, diálogo argumentativo, carta de leitor, carta de reclamação, carta de solicitação, debate regrado, editorial, requerimento, ensaio, resenhas críticas, artigo assinado, etc.);
gêneros da ordem do expor - que veiculam o conhecimento mais sistematizado que é transmitido culturalmente - conhecimento científico e afins: (exemplos de gêneros: texto expositivo, conferência, verbete de enciclopédia, texto explicativo, tomada de notas, resumos de textos explicativos, resumos de textos expositivos, resenhas, relato de experiência científica, etc.) e, finalmente,
gêneros da ordem do instruir ou do prescrever - que englobariam textos variados de instrução, regras e normas e que pretendem, em diferentes domínios, a prescrição ou a regulação de ações (exemplos de gêneros: receitas, instruções de uso, instruções de montagem, bulas, regulamentos, regimentos, estatutos, constituições, regras de jogos, etc.).

Essa não é a única possibilidade que poderíamos conceber para agrupar gêneros, mas acabamos adotando essa divisão pelo fato dela ter as vantagens de tematizar o contexto social e histórico – através do critério de domínio social de comunicação – assim como considerar aspectos relativos ao ensino/aprendizagem dos gêneros – capacidades de linguagem envolvidas. O importante em uma classificação de gêneros, seja esta ou outra qualquer, é permitir que se possa efetivar uma progressão curricular. Dessa forma, o interessante seria que, em todas as séries do Ensino Fundamental, gêneros orais e escritos pertencentes a diferentes agrupamentos fossem trabalhados mais aprofundadamente. Isso implicaria, por exemplo, trabalhar com gêneros da ordem do argumentar desde as séries iniciais e não somente nas séries finais do Ensino Fundamental. Pode-se, por exemplo, trabalhar com discussões e debates orais ou com carta de solicitação nas séries iniciais e trabalhar com editorial ou com resenha crítica nas últimas séries.
A progressão curricular exige também o estabelecimento de critérios que permitam sua construção e que não impliquem uma mera distribuição aleatória dos gêneros ao longo das séries ou ciclos escolares. Até porque um mesmo gênero pode ser enfocado em diferentes séries ou ciclos, desde que haja uma ampliação e um aprofundamento no tratamento do gênero em questão (progressão em espiral).
Em outras palavras, defendemos a adoção dos gêneros do discurso para a organização do ensino/aprendizagem da linguagem oral e escrita no Ensino Fundamental, pelos seguintes motivos:
os gêneros do discurso nos permitem capturar, para além de aspectos estruturais presentes num texto, também aspectos da ordem do social e do histórico, cuja consciência é fundamental para favorecer os processos de compreensão e produção de textos;
os gêneros do discurso nos permitem concretizar um pouco mais a que forma de dizer em circulação social estamos nos referindo, permitindo que o aluno tenha parâmetros mais claros para compreender ou produzir textos, além de possibilitar que o professor possa ter critérios mais claros para intervir eficazmente no processo de compreensão e produção de seus alunos;
um trabalho baseado em gêneros do discurso favorece uma integração entre as práticas de leitura, escrita e análise da língua (incluindo gramática, que pode ser aqui trabalhada mais contextualizadamente), na medida em que permite relacionar aspectos formais com aspectos enunciativos e discursivos;
os gêneros do discurso e seus possíveis agrupamentos fornecem-nos instrumentos para pensarmos mais detalhadamente as seqüências e simultaneidades curriculares nas práticas de uso da linguagem (leitura e produção de textos);
Resultados de pesquisa mostram que um trabalho baseado em gêneros do discurso acarreta uma melhoria considerável no desempenho dos alunos no que diz respeito à produção e compreensão de textos.

Relato do trabalho desenvolvido:

Como forma de introduzir significativamente a proposta de trabalho que pretendíamos desenvolver, partimos de uma análise de práticas que acreditávamos serem freqüentes no cotidiano das salas de aula da rede pública, tais como: atividades de leitura e produção de texto que desconsideravam as condições de produção e as características dos gêneros; práticas de gramática desvinculadas de situações de uso, orientadas mais pela normatização do que pela reflexão; etc. Essa análise permitiu que os professores da rede fossem reconhecendo os limites dessas práticas e foi preparando o terreno para a apresentação da perspectiva de trabalho pretendida.
O próximo passo foi, então, a introdução da noção de gêneros do discurso - em contraposição à noção de tipo de texto - e a discussão sobre critérios de agrupamentos de gêneros.
A partir daí, passamos para a análise de uma seqüência didática que enfocava o gênero narrativa de enigma, para que os professores da rede pudessem perceber, a partir de um modelo concreto, formas de desenvolver um trabalho com gêneros do discurso.
Em seguida, exploramos as características do gênero notícia, analisando suas condições de produção, seu desenvolvimento sócio-histórico, seu conteúdo temático, sua forma composicional e suas marcas lingüísticas e os professores, em grupos, produziram um projeto de trabalho e algumas atividades que pudessem vir a compor uma seqüência didática do gênero. O mesmo procedimento foi realizado com o gênero crônica.
Por fim, os professores avaliaram todo o trabalho desenvolvido ao longo do PEC.

Análise do trabalho desenvolvido:

Tanto os capacitadores, como a maioria dos professores da rede avaliaram positivamente o projeto de formação aqui descrito e ressaltaram a importância de sua continuidade.
Cabe enfatizar, entretanto, algumas dificuldades enfrentadas, como forma de buscar contribuir para a elaboração de futuros projetos de formação.
Com relação à já mencionada atividade de análise do que acreditávamos serem práticas freqüentes na salas de aula da rede, deparamo-nos com algumas dificuldades que merecem destaque. Uma delas diz respeito ao mito da criatividade arraigado em muitos professores, que avaliaram positivamente propostas como a apresentada abaixo - tomando por base um suposto desenvolvimento da criatividade propiciado pela atividade -, sem perceberem que a proposta não fornece nenhum subsídio para que o aluno possa efetivamente produzir um texto.




PROPOSTA DE PRODUÇÃO DE TEXTO

Em uma folha, escreva uma lista de todos os usos possíveis da "flor", pelo menos os que você conhece ou consegue imaginar.



Uma outra dificuldade que pudemos notar diz respeito ao fato de que muitos professores não entendiam efetivamente o que vem a ser um trabalho com gramática aplicada ao uso, ou, no dizer de muito deles, gramática aplicada ao texto. Todos pareciam unânimes em concordar com a necessidade de se trabalhar contextualizadamente com a gramática, o que nos pareceu ser fruto de ações de formação anteriormente realizadas. Mas, muitas vezes, isso figurava somente no discurso, já que, na prática, alguns entendiam que retirar palavras pertencentes a certas classes gramaticais de um texto ou localizar funções sintáticas em partes do texto seria trabalhar com gramática aplicada ao texto.
Outras dificuldades que merecem ser pontuadas dizem respeito à dificuldade do próprio trabalho proposto, baseado em seqüências didáticas que enfocam os gêneros do discurso. Isso porque, as descrições de gêneros são o ponto de partida para a modelização didática e a elaboração de seqüências didáticas e, à exceção de gêneros literários, existem muito poucas descrições de gêneros realizadas e accessíveis ao professor. Mesmo em relação aos gêneros que já foram descritos à exaustão, como alguns gêneros literários, nem sempre a perspectiva de descrição existente é compatível com um enfoque enunciativo e além disso, muitas vezes, os professores desconhecem estas descrições já existentes. Some-se a isso o fato, já conhecido e inúmeras vezes apontado, de que as condições de trabalho a que um professor da rede pública está submetido é completamente adversa, não possibilitando muito tempo para preparação de aulas e elaboração de materiais didáticos e de atividades.
Nesse sentido, vale salientar que a elaboração de descrições de gêneros e de suas conseqüentes transposições para seqüências didáticas é algo urgente de ser realizado, o que viabilizaria alguns níveis de concretização apontados nos PCNs, já mencionados no início do presente artigo.
Um último comentário diz respeito ao término do PEC: o projeto de formação continuada que não continuou. É lamentável ver como políticas públicas na área de educação são interrompidas, seja por falta de verbas ou por falta de vontade política. Cabe ressaltar que muitos professores participantes do PEC não tinham ainda passado por nenhum projeto sistemático de formação desencadeado pelas Delegacias de Ensino ou pela Secretaria de Educação e não se sabe quando participarão de outro projeto. Isso sem dúvida é um dos aspectos que compromete a tão almejada qualidade de ensino.
Os professores de Língua Portuguesa existentes na rede são ainda bastante distantes do professor pressuposto pelos PCN. Por essa razão, projetos de formação se fazem necessários, na medida em que sua concretização pode aproximar esses leitores reais do leitor virtual, fazendo, assim, com que os PCNs sejam praticáveis. Sem isso, corremos o risco de ver algo que, sem dúvida nenhuma, representou um avanço em termos de políticas educacionais públicas em nosso país se transformar numa mera carta de intenções.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bakhtin, M. (1979) Os gêneros do discurso. In M. Bakhtin, Estética da Criação Verbal, pp. 277-326. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Brasil (1998) Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa — Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental. Brasília, DF: MEC/SEF.
Dolz, J. & B. Schneuwly (1996) Gêneros e progressão em expressão oral e escrita: elementos para reflexões sobre uma experiência suíça (francófona). Enjeux, 1996: 31-49. Tradução de R. H. R. Rojo.
Pasquier, A. & J. Dolz (1996) Um decálogo para ensinar a escrever. Cultura y Educación, 2: 31-41. Madrid: Infancia y Aprendizaje. Tradução de R. H. R. Rojo.
Schneuwly, B. (1994) Gêneros e tipos de discurso: considerações psicológicas e ontogenéticas. In Y. Reuter (ed.) Les Interactions Lecture-Écriture. Paris: Peter Lang. Tradução de R. H. R. Rojo.
Volochínov, V. N. / Bakhtin, M. (1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. SP: Hucitec, 1981.



















(página em branco)















PRÁTICAS DE PROFESSORES: OS GÊNEROS ARGUMENTATIVOS























(página em branco)



CRITÉRIOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA SEQÜÊNCIA DIDÁTICA NO
ENSINO DOS DISCURSOS ARGUMENTATIVOS

Ellen ROSENBLAT (Escola Vera Cruz/LAEL-PUC-SP)

Por inúmeras razões os PCNs militam a favor de propostas pedagógica/curriculares que tomem como objeto de ensino/aprendizagem a pluralidade de gêneros discursivos. Entre elas, destaca-se a necessidade de se formar indivíduos com competência lingüística para que possam participar das mais diversas situações comunicativas.
Nessa linha, tomemos os discursos argumentativos como um tipo de texto que faz funcionar grande parte das relações sociais, já que, em última instância, são os argumentos (ditos e/ou implícitos) que parametrizam as regras e valores de grupos sociais e que, portanto, orientam os comportamentos dos indivíduos que os compõem. Ao mesmo tempo, e dialeticamente, os valores se constituem a base para a tomada de posição em situações sociais que envolvem temas controversos.
O exercício da cidadania é, portanto, bastante dependente da capacidade dos sujeitos compreenderem e atuarem nas situações que envolvem valores e posicionamentos. É também dependente da capacidade de se reconhecer as condições de produção, o que parametriza a produção dos discursos.
Ora, para tanto é necessário que se trabalhe com a diversidade de gêneros em suas especificidades desde os primeiros anos do Ensino Fundamental, pois não há protótipo de texto que permita generalizações capazes de promover a competência lingüística para as mais variadas situações sociais das quais participamos. Além disso é necessário que se promova um ensino sistemático e articulado no que diz respeito as intersecções e dicotomias entre os gêneros.
Para um ensino contínuo, são necessários, porém, critérios que garantam a continuidade dos projetos de ensino/aprendizagem e a especialização discursiva e lingüística dos aprendizes. Entretanto, a falta de descrições, sobretudo, descrições enunciativo-discursivas dos gêneros fazem dificultar uma possível progressão curricular que fundamente e viabilize as ações didáticas. É nessa lacuna que se situa o trabalho sobre Discursos Argumentativos em Três Situações de Produção, cujos resultados serão parcialmente apresentados a seguir.
O paradigma teórico articula a teoria vygotskiana no que diz respeito a concepção de ensino/aprendizagem, aos pressupostos de Bakhtin/Volochínov quanto à concepção de língua e linguagem e às contribuições do grupo de Genebra, sobretudo na tese defendida por Schneuwly sobre os gêneros como mega-instrumentos na construção dos discursos. Foram analisados quatro blocos de textos escritos em três diferentes gêneros: transcrição de diálogo familiar, carta de solicitação e ensaio argumentativo escolar, produzidos em situação escolar por alunos de uma classe de 2ª série de uma escola particular. A análise dos textos perseguiu, fundamentalmente, respostas para duas questões:
quando e como as crianças argumentam, buscando-se com isso evidências do desenvolvimento real (DR) (Vygotsky, 1930) dos alunos e
quais as transformações textuais decorrentes das intervenções do professor.
Para responder à primeira questão, três blocos de textos foram analisados quanto a:
as ocorrências de movimentos discursivos próprios da argumentação: justificativas/sustentações, refutações e negociações;
comportamento de aspectos relacionados à ancoragem enunciativa (ver quadro abaixo); e
a presença de operadores e organizadores textuais discursivos (argumentativos ou não).
Para responder à segunda questão, dois blocos de textos escritos no mesmo gênero - ensaio argumentativo escolar - foram contrastados, já que entre a produção de um e outro houve um período de intervenções dirigidas à especialização de vários planos lingüísticos concernentes a esse tipo de discurso. As categorias utilizadas para essa segunda análise foram as mesmas utilizadas na primeira.
O termo ancoragem enunciativa está vinculado à tese defendida por Schneuwly (1994) que toma o gênero como mega-instrumento porque regula a produção de textos em vários níveis da composição de um discurso.
Conforme Schneuwly (op.cit.), a produção de um texto é resultado de uma ou várias operações de linguagem efetuadas no processo de produção, sendo que essas operações dizem respeito à duas dimensões: relação com a situação material de produção e relação enunciativa com o dito.
Quanto à relação com a situação de produção, há um desdobramento onde configuram duas possibilidades: uma relação de implicação, o que significa que o sujeito que enuncia estará envolvido direta e concretamente na situação material de produção. A atividade discursiva remeter-se-á aos interlocutores em questão, aos lugares e tempos em que se dá a enunciação. A outra possibilidade, que se opõe a esta, é a relação de autonomia, o que quer dizer que o sujeito enunciador tenderá a apagar, em seu discurso, as referências à situação material de produção: marcas de pessoa, tempo e lugar.
No que se refere à relação com o dito, temos, novamente, duas possibilidades: a conjunção e a disjunção. A conjunção se aplica quando o mundo do dito coincide com o mundo do vivido na situação de produção, ou seja: eu falo do "aqui e agora"; posso, através de meu discurso, interferir no mundo imediato. Ao contrário disso, no discurso disjunto, a referência é um mundo deslocado do presente, sobre o qual não agimos mais (ou ainda) concretamente.

As crianças argumentam? Em que circunstâncias?
Sim, não há dúvida. Aliás, qualquer pessoa que tenha contato com crianças, ainda menores, sabe o quão difícil é fazê-las desistir de uma idéia diante de uma negativa. Em geral, exigem explicações e sabem bastante bem como contestá-las.
Partindo desse fato, a professora (da turma pesquisada) pediu aos alunos que transcrevessem um diálogo fictício entre uma criança e seu pai ou mãe, no qual houvesse discórdia sobre a compra de uma brinquedo, animal de estimação ou guloseima. Buscava-se com isso um desenho sobre o DR dos alunos. Mas mais do que delinear a capacidade argumentativa dos alunos, a análise dos textos revelou alguns outros pontos bem interessantes.

A possibilidade de se estabelecer um discurso argumentativo depende das relações sociais entre os interlocutores.
Foi curioso constatar, na maioria das transcrições, que os alunos argumentavam na voz do interlocutor que representava pai ou mãe. Atribuíam aos interlocutores adultos o papel de argumentadores enquanto que aos interlocutores representados pelas crianças coube um movimento de insistência ou apelo ao emocional. Vemos um exemplo disso no texto abaixo.

Tri dimencional
Pai compra o video game tri dimencional vai purfa.
-Não, é muito caro.
-O que que têm que e caro compra vai
-Nao nao e nao
-E porque nao
-Eu ja te espliquei
-A vai compra
-Tabom você venceu
-Você e super legal

A análise do conjunto de textos dessa primeira situação fizeram hipotetizar que quanto mais próximo se está de uma situação cotidiana familiar/íntima, menos a criança se vê no papel de argumentadora. As representações sobre os interlocutores e sobre a eficiência do argumento nem sempre levavam a sustentar opiniões, ou mesmo, a considerar as justificativas para, eventualmente, refutá-las, já que o que estava em jogo não é a força ou pertinência das justificativas, mas uma luta entre autoridade e persuasão (persistência ou teimosia).
Diante disso, foi provocada uma situação em que os alunos deveriam escrever uma carta para uma pessoa com quem tivessem uma relação social mais distanciada, o que, hipoteticamente, exigiria a explicitação de justificativas, refutações e negociações. Depois de um levantamento de demandas do grupo de alunos, chegou-se ao consenso de que precisavam de caixinhas de madeira (como as que existiam na biblioteca central da escola) para acomodar melhor os livros da biblioteca de classe. Em duplas, escreveram, então, uma carta para a responsável pela compra desse tipo de material.

São Paulo, 10 de abril de 1997
Cara, Marcia Lopes,
Nos da 2ª B agradeseríamos muito se você pudesse nos comprar 5 caixinhas iguais as da biblioteca. Porque os nossos livros estão disarromados e se tivese caixinhas estarião arumados. Você pode?
- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -
Prencha : sim____
não____
talves____
Por favor recorte onde esta a linha pontilhada e as tisouras e nos devolva.

Como era de se esperar, nesse exemplar e nos outros textos, houve uma significativa ausência de apelos, justamente porque a representação que se fez do interlocutor não permitiu esse tipo de movimento. Mesmo considerando que nesse caso também se estabeleceu uma relação assimétrica entre os interlocutores (alunos e encarregado pelo material de apoio), não poderia haver, dada a esfera de comunicação e o compromisso social de seus participantes, falta de justificativas, tanto para pedir como para negar o pedido.

2) A importância de se instanciar o discurso em situações reais e significativas.
Levantou-se, ainda, a hipótese de que os alunos elaboraram justificativas para o pedido porque estavam inseridos numa real situação de produção e não diante da ficcionalização de uma situação, criada artificialmente e exclusivamente para o exercício de produção, o que é característico das atividades escolares. A efetiva participação dos alunos enquanto enunciadores propiciou um melhor delineamento dos parâmetros da própria situação: o tema - a falta de caixinhas para acomodar os livros da biblioteca de classe - fazia parte do repertório do mundo do vivido e por isso puderam elencar as justificativas que apoiariam o pedido; o interlocutor estava situado, o que possibilitou uma antecipação das justificativas que fariam apelo ao seu perfil situacional. Organizar e preservar os livros da classe, assim como ter facilidade de acesso a eles etc., com certeza, são sustentações formuladas por quem está antecipando o ponto de vista de um outro: adulto que trabalha na escola, alguém que deve valorizar a leitura e os livros, assim como a preservação do material escolar.
A realidade da situação e a definição do interlocutor possibilitaram, ainda, para alguns alunos, a elaboração de refutações, pois conhecendo a rotina da sala de aula quanto à organização habitual dos livros, puderam antecipar a contrapalavra do interlocutor, supondo a não concessão do pedido. Isso pode ser visto no texto que segue, onde grifou-se o que está sendo considerado uma refutação ou um contra-argumento.
São Paulo, 10 de abril de 1997
Marcia Lopes,
Nós da 2ª perguntamos se você pode nós comprar 5 caixas iguais as da biblioteca Para melhorar a nóssa biblioteca de classe Porque os livros estão estragando. E além do mais não temos espaço nas casinhas e nem casinhas sobrando. E não dá para colocar os livros em pé porque se bagunsão. E não dá para por os livros deitados porque nós não achamos os livros.
cordialmente 2ªB

Um outro aspecto das cartas é a ausência explícita de negociação. Aparentemente isso deveu-se ao fato dessa situação não sugerir uma negociação, pelo menos, numa primeira carta quando se fazia o pedido. Talvez ela viesse a ocorrer na continuidade da interlocução, caso o destinatário negasse, efetivamente, o pedido ou propusesse uma outra solução para a organização da biblioteca de classe. Contudo, forma encontrados índices que marcam uma tendência à negociação, por exemplo, o uso de tempos verbais como o futuro do pretérito e pretérito imperfeito que funcionam como modalizadores dos pedidos e das próprias refutações.

"Nos da 2ª B agradeseriamos muito se você pudesse nos comprar (...)" (texto B2)
"Nos da 2ª B gostariamos que você comprasse (...)" (texto B3)
"Nós da 2ª B gostaríamos que ouvesse 5 caixinhas (...)" (texto B9); etc.

O contraste entre essas duas primeiras situações de produção nos fez, também, considerar que:

3) Elementos próprios da oralidade migram para situações de produção escrita.
Carta de solicitação é um gênero que se situa na fronteira entre o discurso interativo face-a-face e o discurso monologizado, pois se parece muito a uma conversa – só que por escrito. Resultado dessa proximidade entre a carta e o diálogo, algumas marcas da oralidade nos textos escritos provocam, como nas conversas, a verticalização da gramática, quando um turno é complementar a outro, apagando alguns operadores e conectores, nesse caso, específicos dos movimentos argumentativos.
Na tentativa de provocar um distanciamento das situações mais cotidianas e interativas, foi solicitado aos alunos que escrevessem um ensaio argumentativo sobre o direito dos índios brasileiros à posse de terra. Esperava-se, com isso, que não houvesse uma transposição da oralidade tão marcada, já que tratava-se de um gênero mais secundarizado (Bakhtin, .). Surpreendentemente, porém, os alunos transportaram para o ensaio formas que são próprias dos gêneros primários e essa transposição foi flagrada, sobretudo, pelo uso de sinais conversacionais (Marcuschi, 1996) como os que aparecem grifados no texto abaixo.
Opinião
Eu estou meio em dúvida seos indios podem ou não podem ter um pedaço de terra.
A icho que sim porque os indios não podem ficar porai andando como pobres.
A icho que não porque os indios ja tiveram muito tempo de terra só para eles.


4) Do enunciador privado ao público.
Na análise dos textos desse terceiro bloco (ensaios argumentativos escolares) quanto à presença de movimentos discursivos argumentativos, constatou-se, novamente, a ausência de apelos, o que pareceu ser conseqüência das características da situação de produção: por um lado, a relação distanciada entre interlocutores (leitores de um jornalzinho de classe); por outro, a finalidade do discurso, que não objetivava, exatamente, uma mudança da realidade imediata, mas sim a construção de uma opinião.
Em vários textos, os alunos fizeram ponderações, sustentando duas possibilidades em relação ao tema proposto, tomando, assim, duas posições.
Por um lado nos achamos que sim porque os índios são seres humanos como nós e merecem terra para caçar e para viver o modo de vida deles.
Por outro lado nos achamos que não porque os fazendeiros tiverão o trabalho de fazer a roça para eles e não para os ídios.
Mas dentre várias hipóteses a que pareceu mais relevante para explicar a tomada das duas posições foi a difícil relação com a amplitude e pluralidade de interlocutores, criada pela proposta "didática" de jornalzinho de classe, destinado a pais dos alunos da classe, colegas de outras classes de 2ª série e professores. Dado que estes interlocutores poderiam ter posicionamentos diversos em relação ao tema em discussão e, sabendo que deveriam polemizar o tema, tentaram buscar justificativas para se contrapor às duas possibilidades, o que dificultou, provavelmente, a construção de uma representação que permitisse as antecipações necessárias para se enunciar nos movimentos de refutação e negociação.
As características desse gênero não são próximas às dos outros dois, mais presentes na vida cotidiana e escolar das crianças. Foram, justamente, as semelhanças e a não dicotomia entre as diferenças, que provocam efeitos positivos no desenvolvimento nas manifestações lingüísticas dos discursos argumentativos. Tanto no diálogo como na carta, a interlocução estava bem definida e era singular (um único interlocutor) o que facilitou, provavelmente, ao enunciador, uma antecipação da representação do outro em relação ao objeto em discussão.
No ensaio argumentativo escolar, colocou-se o desafio de se estar em interlocução com um auditório mais amplo e diversificado, além da sobreposição de pelo menos dois planos enunciativos: escreve-se para o jornal e para o professor. O aspecto dialógico da produção se complexificou de tal maneira que os alunos já não alcançaram representar um auditório médio e antecipar a representação que este poderia ter do objeto em discussão.
A falta de repertório sobre o os direitos dos índios também incidiu na impossibilidade das crianças de contra-argumentarem/refutarem nesse gênero, pois o tema lhes era pouco familiar e ainda não estava em construção em contexto de aula. Assim, destacamos mais um ponto:

5) A discutibilidade dos temas como fator central na construção dos discursos argumentativos.
Em situações empiricamente dialógicas ou em discursos monologizados, observa-se que a discutibilidade dos temas não é apenas dada por sua natureza: social, mas se vincula à situação de produção, o que leva em conta vários fatores, dentre eles: interlocutores, tempo e espaço da enunciação.
Um tema como a demarcação da terra indígenas, embora seja de caráter social pode ou não ser discutível, seja devido a: a) a maturidade cognitiva dos interlocutores; b) o posicionamento ideológico dos mesmos; c) as características do espaço institucional em que se enuncia etc.
Se, por um lado, há linhas teóricas que consideram que a partir da somatória de capacidades, advindas de um amadurecimento neuro-cerebral, o indivíduo é capaz de realizar uma ou outra atividade, por outro, há as que pressupõem que a maturidade cognitiva - capacidade de realizar determinadas operações mentais - é fruto da interação social do sujeito. Naturalmente, à que se filia esse trabalho é a segunda vertente, o que não quer dizer, porém, que uma criança pode compreender a complexidade de um objeto sem antes ter tido a oportunidade de construir conhecimentos que a ajudem na elaboração de outros mais complexos.
Algumas questões de ordem social são encaradas por crianças pequenas como se fossem da ordem da lógica formal, porém as situações de comunicação podem estabelecer, através do discurso, a discutibilidade do objeto, cabendo ao locutor mais desenvolvido determiná-la.
Mesmo assim, há objetos mais ou menos discutíveis dependendo da faixa etária. Discutir a questão da legalização do aborto, por exemplo, com crianças de 7/8 anos (idade dos nossos sujeitos de pesquisa) na nossa sociedade, provavelmente, levar-nos-ia a concluir que esse objeto não é discutível, embora se caracterize como tema de ordem social. As crianças não teriam condições de tomar posição diante de uma polêmica em torno desse assunto, por não alcançarem compreender as complexas relações que essa discussão implica. Além disso, os interesses de uma criança dessa idade, não são, por aspectos culturalmente determinados, voltados para esse tipo de assunto e, sendo assim, a ausência de vontade enunciativa seria o primeiro fator que descaracterizaria o discurso argumentativo.
A relação entre o objeto em discussão e o posicionamento ideológico dos interlocutores, segundo fator determinante na determinação da discutibilidade do tema, também é fundamental na produção de um discurso argumentativo, pois, se podemos antecipar que nosso interlocutor não está minimamente disponível para uma negociação sobre um dado tema ou posição, não se estabelecerá uma comunicação de cunho argumentativo.
E, finalmente, um determinado tema também pode ou não ser discutível, dependendo do espaço em que se encontram enunciador e interlocutores. O preconceito e a discriminação racial, por exemplo, é sem dúvida um tema que gera polêmicas, mas o que institucionalmente se permite discutir, em países democráticos e civilizados, em torno dessa questão, refere-se à observação, descrição e punição de atitudes racistas. Numa conferência acadêmica, numa sala de aula, numa assembléia ou debate, o tema em si não pode ser objeto de um discurso argumentativo, pois o compromisso ideológico dessas instituições não permite que se argumente a favor da discriminação e do racismo. Então, não há, pelo menos de forma explícita, uma controvérsia em torno dessa questão.
Os discursos sociais dominantes constituem-se em parâmetros, portanto, que determinam a discutibilidade do tema. Assim, há temas menos absolutos. Temas permitidos numa instituição e não em outra.
A articulação entre essas três variáveis define, então, a situação como controversa (ou não), o que deve desencadear, se queremos manter um discurso argumentativo, uma tomada de posição diante das possíveis representações em torno do objeto em discussão.
A escrita de um ensaio escolar para a própria comunidade sobre o direito ou não à posse de terra não permitiu a construção de um texto argumentativo já que a escola, através de seus discursos e/ou ações, se posiciona a favor das causas indígenas. Como em tantas outras atividades escolares, pretendia-se criar um contexto de produção, só que a tal ponto forjado que pouco poderia contribuir para a aprendizagem/desenvolvimento dos alunos.
Partindo dessa crítica, foram oferecidas aos alunos novas condições de produção. Além de se ter buscado polemizar algo mais próximo da vivência dos alunos: a escolaridade (de crianças indígenas) foram oferecidos materiais de acordo com a faixa etária e promoveu-se discussões/aulas sobre os modos de vida e os problemas indígenas e sobre aspectos da discursividade e recursos lingüísticos dos ensaios argumentativos.
Analisando esse quarto e último bloco de textos, o diferencial mais marcante foi a presença de refutações e sustentações. Parece-nos que isso é um indicador de maior clareza sobre o aspecto dialógico da enunciação, pois refutar implica em prever um posicionamento diferente do que se assume e, conseqüentemente, a atitude responsiva (Bakhtin, 1974) de um outro/opositor.
Uma segunda diferença que apontou na mesma direção foi a presença de títulos e de introduções em grande parte dos textos que orientam o interlocutor.

Os indios e a escola
A questão do indio frequentar escolas como as nossas está sendo discutida até hoje.
Há muitas pessoas que pensãm que os índios não poderiam ter uma escola como a nossa de brancos pois seriam mal tratados por gente que acredita em preconseito.

Outra rasão para les pensarem assim é que eles se sentiriam presos em uma sala de aula (apesar do recreio) .
Mas existem pessoas que pensam que eles poderiam frequentar escolas (iguais) para terem mais contato com o homem branco. A escola deles poderia ser em uma tenda assim preservariam seu modo de vida e poderiam ter mais contato co-nosco (com um professor branco.)
Além disso esse professor poderia ensinar o modo de vida índigena para a gente e assim nos ficariamos mais proximos dos índios os índios mais proximos da gente e poderia ser o fim de muitos problemas com os índios.

Como pode ser observado no ensaio reproduzido acima, desaparecem as marcas de oralidade o que aponta para a especialização no gênero.
Em resumo, a cotidianidade da situação (familiar/ou não), o tema (que pode estar mais ancorado na situação (conjunto) ou num plano mais disjunto em relação à situação), que pode, ainda, estar próximo ou distante do repertório dos enunciadores; e a assimetria entre os papéis sociais dos interlocutores são elementos que, correlacionados, provocaram diferentes efeitos quanto aos movimentos próprios da argumentação e no uso de elementos lingüísticos próprios desses movimentos.

6. Outras considerações
É consensual, nos discursos de educadores, que a escola deva promover situações para que o aluno se constitua como sujeito participante ativo e crítico da sociedade, para que se torne cada vez mais consciente de sua cidadania e a exerça, buscando soluções que visem o bem estar pessoal e da coletividade.
No entanto, o que vemos ocorrer na prática de sala de aula, sobretudo nos ciclos iniciais, é uma ação propedêutica que dicotomia o adulto que vislumbramos formar da criança/aluno, pois, a partir de um discurso e de uma prática autoritários, fala-se sobre a formação de um ser democrático, crítico, ético, etc. Basta ver que não é comum a criação de espaços para se por em discussão as normas, as decisões, as opiniões que circulam, por exemplo, na própria sala de aula ou em outros contextos mesmo escolares dos quais os alunos são participantes.
Baseando-nos em Vygotsky, acreditamos que a aprendizagem só é possível quando o que se pretende ensinar materializa-se na interação social entre os sujeitos, mediada pela linguagem. Se queremos, então, "formar" pessoas críticas e democráticas, é na própria sala de aula que devemos instaurar essas possibilidades de aprendizagem. É, pois, permitindo a emergência das situações controversas, das polêmicas, das divergências, que nos cercamos de condições para a produção de enunciados que formarão a própria consciência crítica e ética dos sujeitos/alunos.
Dessas situações de produção, emergem os discursos argumentativos que, tomados como conteúdo de ensino-aprendizagem, não devem descolar-se de sua real função: a discussão e o debate de problemas sociais controversos.
Para viabilizar a discussão ou o debate de questões polêmicas ou controversas, pelo menos três aspectos ligados às situações de produção ressaltam como relevantes numa eventual seleção, elaboração e articulação de atividades didáticas: (a) o grau de cotidianidade da situação de produção; (b) a discutibilidade dos temas e posições em questão; e (c) o grau de acessibilidade e construção do próprio conteúdo temático.
Se por um lado, na extrema cotidianidade das situações familiares, não há lugar para os enunciadores crianças argumentarem, dado que a assimetria entre os papéis sociais entre os interlocutores mais prováveis (pais e filhos) leva à sustentações, por parte dos pais, irrefutáveis, porque tomadas como argumentos de autoridade pela criança; por outro lado, nessas mesmas situações, ela aprende que a controvérsia, caracterizada pelas negativas dos pais, leva à elaboração de um determinado tipo de discurso. Nesse caso, um discurso que comporta sustentações nas tomadas de posição, refutações, negociações e apelos.
Como vimos, as sustentações elaboradas nos registros de diálogos eram atribuídas aos enunciadores pais e escritas como que com palavras alheias (Bakhtin, 1974). As sustentações passam a ser construídas com palavras próprias quando a criança se encontra em situação de produção que lhe exige e, ao mesmo tempo, lhe permite a construção de um discurso parametrizado por aspectos que lhe são claros: finalidade comunicativa, interlocutor e tema.
Nesse sentido, vimos que na produção da carta de solicitação, os alunos conseguiram elencar sustentações para justificar o pedido, enquanto que na produção do primeiro ensaio argumentativo, a dificuldade em localizar o objetivo da produção para além da tarefa escolar; a dificuldade em respeitar a dimensão dialógica do texto, virtualizando um interlocutor; e a dificuldade em alcançar a complexidade do conteúdo temático dificultaram, sobremaneira, a elaboração de um texto que contemplasse as exigências do próprio gênero.
Vimos que nos gêneros mais secundarizados, monologizados, a intervenção escolar é o que, a princípio, garante uma especialização nas/das operações necessárias para uma produção comunicativa eficiente.
Portanto, na prática didática, não se trata de tomar os discursos argumentativos como conteúdo escolar apenas quando de sua manifestação espontânea por parte dos alunos, pois correr-se-ía o risco de instaurar a perpetuação de alguns poucos gêneros do discurso que já se encontram no desenvolvimento real dos alunos, ou então de se dar preferência - fora da ZPD - a alguns gêneros escolares já tradicionais, como o ensaio argumentativo escolar. Pensamos que, partindo de algumas situa ões cotidianas/escolares, onde se oferece a ocasião de tomar e defender posição, deve-se buscar o conhecimento do funcionamento da argumentação em outras situações de produção, portanto, em outros gêneros do discurso, no decorrer de toda a escolaridade, pois, como educadores, também concordamos que a mestria de um ou de outro gênero (como de qualquer outro saber) não se constrói sem idas e vindas, em novas rotas que re-significam aprendizagens anteriores.
Além disso, se o objetivo do ensino da língua é instrumentalizar o aluno para que possa compreender e participar de situações comunicativas relativas às diversas esferas sociais de atividade, não há como cumpri-lo, senão tomando as situações de comunicação como ponto de partida.
Se considerarmos que os alunos já são participantes de variadas esferas comunicativas e que delas depreendem alguma representação, podemos imaginar que há gêneros mais ou menos cotidianos e familiares que já começam a dominar ou que já dominam, por meio de aprendizagens cotidianas (gêneros primários).
Partindo-se, portanto, das construções já apropriadas, pode-se pensar a complexização dos elementos que caracterizam a situação de produção e que provocam diferenciações e especializações no discurso, tanto no nível da estruturação discursiva, como das funções e possibilidades das unidades lingüísticas.
No que diz respeito aos discursos argumentativos, se partimos de debates orais na sala de aula, como sugerimos acima, temos como condição de produção a interlocução face-a-face, que possibilita uma interação direta, parametrizadora dos discursos em construção. A explicitação empírica dessa dialogia pode ser vista como um dos facilitadores para a construção de discursos mais monologizados.
Uma das complexizações possíveis seria ou a institucionalização ou a pluralização da interlocução, ou seja, propor que o discurso seja dirigido a um grupo de colegas, por exemplo, provocaria a necessidade de se fazer uma representação média do auditório, conseqüentemente, uma representação mais ampla, também, sobre o tema, mesmo que este esteja em (re)construção na própria situação.
Por outro lado, promover situações de produção em que a esfera da dialogia seja publicizada, como ocorreu na produção das cartas de solicitação, é, igualmente, um fator de complexização, porque exige, por parte do enunciador, uma antecipação da representação do interlocutor e da que este faz sobre a temática em discussão.
Outros elementos que compõem a situação de produção e que podem ser tomados como fatores de progressiva complexização dizem respeito à esfera comunicativa (privada ou pública; institucionalizada ou mediatizada por meios de comunicação à distância (imprensa, rádio/TV, Internet, etc.)) e ao tema. A correlação entre esses e outros fatores da situação, é claro, definem o próprio gênero e as especificidades a serem trabalhadas na sala de aula.
Estamos, em resumo, propondo que se tome os gêneros mais primários, privados e cotidianos, muitas vezes empiricamente dialógicos, como ponto de partida para um trabalho que se organize no sentido da progressão em direção aos gêneros secundários, mais públicos e de ampla audiência (muitas vezes, monologizados e autônomos) e que sempre se procure estabelecer uma clara situação de produção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


Bajtín, M. (1974) "Hacia una metodología de las Ciencias Humanas". In: M. Bajtín (1992) Estética de la Creación Verbal: 248-193. México/España/Argentina /Colombia: Siglo Vinteuno Editores, SA de CV., 1995.
Dolz, J. (1995) Learning argumentative capacities: A study of the effects of a systematic and intensive teaching of argumentative discourse in 11-12 years old children. Argumentation, 10: 227-251. Netherlands: Kluwer Academic Publishers.
Marcuschi, L.A. (1996) Análise da Conversação. São Paulo: Ática.
Vygotsky, L.S. (1930) A Formação Social da Mente. SP: Martins Fontes, 3ª ed., 1984.


O ARTIGO JORNALÍSTICO E O ENSINO DA PRODUÇÃO ESCRITA
Rosângela Hammes RODRIGUES (UFSC/LAEL-PUC-SP)

Introdução

Uma das carências apontadas no ensino tradicional da produção escrita foi a desconsideração dos seus aspectos sócio-discursivos. A prática da redação escolar se transformou em meio para a verificação, avaliação da aprendizagem de aspectos gramaticais, ou para a avaliação da escrita em si (saber escrever sem erros ortográficos), desconsiderando-se as funções sociais da escrita, as suas condições de produção, os seus processos de produção. A análise dessa prática pedagógica leva à constatação de que a escola acabou produzindo nas atividades de produção escrita modelos de gêneros que não encontram referência nas práticas de linguagem escrita fora da sala de aula.
As novas propostas teórico-metodológicas, centradas nas funções sócio-discursivas da escrita, nas condições de produção das diferentes interações verbais, redimensionam a prática da produção escrita no contexto escolar. Assim, a consideração das diversas instituições sociais, dos diferentes gêneros com suas características constitutivas e de funcionamento singulares, das funções sociais da escrita, entre outros aspectos, reorientam as atividades de produção escrita: o texto se torna a unidade de ensino e o gênero o objeto de ensino; a escola se abre para textos autênticos, exemplares de gêneros que circulam nas diferentes esferas sociais.
Na implementação das propostas, junto com os avanços conseguidos, entre eles o fato de se estar trabalhando com a unidade real da comunicação discursiva, o enunciado (Bakhtin, 1985), de se estar lidando com a diversidade textual pela contemplação de diferentes gêneros, ausência tão cara à escola, novos desafios acabam se colocando aos educadores. Entre eles, como articular os objetivos a serem concretizados no ensino da Língua Portuguesa, a desejada abordagem da pluralidade textual diante da grande diversidade de gêneros que circulam socialmente? Considerando que um projeto pedagógico que contemple todos os gêneros se torna praticamente inviável, que gêneros deve a escola priorizar como objetos de aprendizagem? Por quê?

Critérios para a seleção de gêneros

A pertinência das questões acima levantadas se coloca pela análise de projetos de elaboração e implementação de currículos, de documentos oficiais de ensino, como as Propostas Curriculares, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), ou ainda pelos encontros pedagógicos que vêm se realizando em diferentes instâncias acadêmicas. Nos documentos, nos fóruns de debate coloca-se a questão de se buscarem parâmetros que possam fornecer indicações para a seleção de gêneros.
Dolz & Schneuwly, integrantes do grupo de pesquisa da Faculdade de Psicologia e Ciências da Faculdade de Educação da Universidade de Genebra (Suíça), no artigo Genres et progression en expression orale et écrite: éléments de réflexions à propos d'une expérience romande (1996), propõem a elaboração e progressão de um currículo para a produção oral e escrita para os diferentes ciclos do 1o Grau a partir de agrupamentos de gêneros, elaborados em torno de três critérios: os diferentes domínios sociais de comunicação, as capacidades de linguagem dominantes e os aspectos tipológicos. Dentro desses critérios propõem cinco agrupamentos, com exemplos de gêneros orais e escritos que os compõem:
agrupamento do narrar: conto, fábula, romance, adivinha, piada...
agrupamento do relatar: relato histórico, notícia, reportagem, crônica esportiva...
agrupamento do argumentar: texto de opinião, carta de leitor, editorial, resenha...
agrupamento do expor: resenhas, relato científico, artigo enciclopédico, resumo...
agrupamento do descrever ações: instruções de uso, receita, regulamento...

Nos PCNs – Língua Portuguesa – 3o e 4o ciclos do Ensino Fundamental (1998), a seleção de gêneros indicada como referência básica para a prática de escuta e leitura de textos, para a prática de produção de textos orais e escritos traz como critério de agrupamento a circulação social, destacando os gêneros das instâncias públicas considerados de domínio fundamental para a efetiva participação social.
Para a prática de escuta e leitura de textos:
literários: cordel, canção, conto, romance, crônica...
de imprensa: comentário radiofônico, entrevista, editorial, reportagem, artigo...
de divulgação científica: exposição, seminário, verbete, relatório, artigo...
publicidade: propaganda.

Para a prática de produção de textos orais e escritos:
literários: canção, texto dramático, crônica, conto, poema;
de imprensa: entrevista, debate, notícia, artigo, carta de leitor...
de divulgação científica: exposição, seminário, relatório, esquema, resumo...

No artigo As diferentes esferas sócio-discursivas como critério para a construção de currículos (1999a), apresentado no simpósio "Gêneros do discurso como base de uma progressão curricular no ensino básico", no 8o INPLA (LAEL, PUCSP, (1998)), defendi a proposta de que um dos critérios a serem levados em conta para a priorização de gêneros na elaboração de currículos fosse as diferentes esferas sociais. A defesa dessa orientação se norteou pelas considerações teóricas desenvolvidas por Bakhtin sobre a relação entre as esferas sociais e a constituição e funcionamento dos gêneros discursivos.
Em "¿Que és el lenguage?" (1993), "La construcción de la enunciación" (1993), "Marxismo e Filosofia da Linguagem" (1988), e "El problema de los géneros discursivos"(1985), Bakhtin aborda a relação entre enunciado, situação de produção (situação social, interlocutores), gênero, esferas sociais e ideologia. É nas diferentes esferas da práxis humana que se constituem os enunciados, que refletem as condições específicas de sua constituição pelo tema, pela composição e pelo estilo. Aos diferentes tipos de intercâmbio social correspondem diferentes enunciados, que, historicamente, constituem formas relativamente estáveis de enunciados, os gêneros. Como tipos de intercâmbio social há os da vida cotidiana, relacionados às ideologias do cotidiano, que englobam as comunicações ideológicas que não podem ser vinculadas a um sistema ideológico particular, e os das esferas relacionadas às ideologias especializadas e formalizadas (sistemas ideológicos). Assim, tem-se como esferas sociais, entre outras:
esfera cotidiana
esfera artística
esfera religiosa
esfera científica
esfera jurídica
esfera jornalística
esfera escolar.
Cada domínio social constitui e particulariza seu repertório de gêneros, que apresentam características constitutivas específicas segundo sua função sócio-discursiva dentro da esfera. Essas características particulares se manifestam na:
Abordagem do tema: Embora não seja empiricamente possível esgotar o objeto do discurso (aquilo de que se fala), discursivamente é possível dar um efeito de conclusividade (esgotamento do sentido), que varia de acordo com os gêneros e as esferas. Nas instituições científicas, o acabamento é mínimo, apenas o suficiente que permita ao autor dar ao seu enunciado um caráter de dixit conclusivo, para que possa fazer parte do diálogo acadêmico. Em outras esferas, na cotidiana, nos ambientes de trabalho, por exemplo, há uma possibilidade maior de esgotamento do objeto do enunciado.
Relações dialógicas: Todo enunciado se constitui a partir de outros enunciados e leva em conta os elos posteriores da comunicação discursiva (a reação do interlocutor), que se manifestam de maneira mais ou menos marcada no enunciado. Os gêneros das diversas esferas refletem diferentemente os matizes dialógicos: os gêneros da esfera científica se centram mais no princípio monofônico de construção do discurso, enquanto que os da literatura se constituem mais sobre o princípio polifônico.
Concepção de autor e destinatário: Os gêneros possuem sua própria concepção de autor, destinatário (interlocutor), determinada pelas posições sociais, pela esferas sociais. Palestra, tese, editorial, artigo, sermão, encíclica apresentam diferentes imagens sociais de autores ou destinatários.
Estilo: O estilo está vinculado ao enunciado e ao gênero. Todo enunciado, por ser único, individual, pode ter um estilo individual, mas essa possibilidade varia conforme o gênero, a esfera. Há gêneros mais suscetíveis de absorver um estilo pessoal, como os literários (nesses, o estilo pessoal faz parte do propósito do gênero), alguns gêneros jornalísticos. Já outros, cuja forma é mais padronizada, da esfera administrativa, por exemplo, apresentam condições menos favoráveis para refletir um estilo individual. As configurações lingüísticas também se marcam diferentemente nos gêneros: léxico, pontuação, etc.

Assim, dadas as particularidades de funcionamento, o domínio de determinados gêneros de uma esfera não garante a eficácia da interação em outros contextos discursivos. Ou seja, não há transferência de conhecimentos, de domínios entre gêneros. Bakhtin ilustra com uma situação em que um sujeito mesmo dominando os gêneros de uma dada esfera especializada, a da ciência, por exemplo, pode apresentar dificuldades de interação em uma situação cotidiana, como uma conversa de salão. No caso, o problema não está relacionado a questões de repertório vocabular, de estilo abstrato, mas ao desconhecimento das especificidades daquele gênero.
Em um raciocínio análogo, pode-se argumentar que um dos fatores para o bom desempenho lingüístico-discursivo nas diferentes esferas sociais está ligado à compreensão e ao domínio dos gêneros que nelas circulam. Esse perspectiva, associada à concepção de que cada instituição, dada as suas funções, produz discursos, constrói-os e modula-os a partir de gêneros próprios, mostra que as esferas sociais se apresentam como um critério pertinente na medida em que trazem indicações dos gêneros necessários para a efetiva participação social, que se constituirão em objetos de aprendizagem na escola.
A relação entre enunciado, gênero e esfera aponta para o fato de que a escola, enquanto instituição com função social específica, também tem seus próprios gêneros, através dos quais se constituem e se desenvolvem as interações escolares, as atividades de ensino e de aprendizagem. Esses podem ser legitimamente denominados de gêneros escolares, assim como se fala em gêneros literários e jornalísticos, não incluindo, no entanto, aqueles criados na escola como conseqüência de reduções das concepções da escrita (e da leitura), entendidos como gêneros escolarizados. O sucesso do aluno na escola passa pelo domínio dos seus gêneros, que também devem ser considerados objetos de aprendizagem.
Tendo em vista a função social de cada esfera e a singularidade de constituição e funcionamento de cada gênero, pode-se dizer que um projeto pedagógico para a produção escrita deve se orientar (sem excluir os demais) para aqueles gêneros cujo domínio é necessário para o bom desempenho escolar (saber tomar notas, fazer resumos, resenhas...) e para a plena participação social.

A produção do artigo: em busca da dimensão sócio-discursiva da escrita

Se a análise das propostas acima apresentadas aponta para a consideração de diferentes critérios para a elaboração de agrupamentos, também evidencia como aspecto comum, entre outros, a inclusão dos gêneros da esfera jornalística como objetos de aprendizagem, marcando o reconhecimento da força político-ideológica que essa instituição exerce na conjuntura social atual. Não é à toa que é muitas vezes denominada como o "quarto poder". Também não se pode deixar de observar que, atualmente, no jornalismo estão representadas, com maior ênfase, as posições político-ideológicas das classes dominantes.
Melo (1994, p. 76), ao abordar a pauta como um dos filtros no processo de seleção das unidades informativas, comenta que:
"Uma constatação é a de que os grandes jornais e outros veículos jornalísticos geralmente estruturam sua cobertura no sentido de legitimar os núcleos de poder. Dá-se cobertura à Presidência da República, ao Congresso Nacional e às Câmaras Estaduais e Municipais; aos Ministérios e Secretarias de Estado; aos Tribunais e instâncias judiciárias; às associações das classes produtoras, etc.
O fluxo noticioso rege-se pela atuação das instituições hegemônicas e marginaliza os núcleos de arregimentação e mobilização comunitária. Tais entidades, evidentemente mais próximas da vivência dos leitores, ficam excluídas do fluxo noticioso, passando a figurar apenas quando surgem problemas de grande repercussão (greves, acidentes, catástrofes)."

Assim, a entrada dos diferentes gêneros jornalísticos na escola como objetos de ensino/aprendizagem encontra seu respaldo na necessidade de compreensão e domínio dos modos de produção e significação dos discursos da esfera jornalística, criando condições para que os alunos construam os conhecimentos lingüístico-discursivos requeridos para a compreensão e produção desses gêneros, caminho para o exercício da cidadania, que passa pelo posicionamento crítico diante dos discursos.
Nas diferentes esferas sociais, dado o caráter sócio-histórico da constituição dos gêneros, há aqueles mais ou menos especificados, refletindo a dinâmica da sua formação. O artigo, enquanto gênero jornalístico, se apresenta menos especificado do que outros como notícia, editorial, notícia, crônica. Uma observação a ser feita é a de que o termo "artigo" também é utilizado muitas vezes para designar qualquer matéria que aparece no jornais ou revistas, não estando, portanto, vinculado à concepção de gênero.
A partir da sua função e suas condições de produção, o gênero artigo se situa no âmbito do que tem sido denominado na área jornalística como gêneros opinativos (editorial, artigo, resenha, carta, etc.), vinculados ao jornalismo opinativo. É característico do jornalismo impresso e digital. Encontrando-se nos jornais normalmente nas páginas junto aos editoriais, caracteriza-se pelo fato de o autor normalmente ser alguém de fora da instituição, muitas vezes na posição de colaborador do jornal, que ocupa papel de destaque na sociedade (escritor, pesquisador, político, professor, médico, advogado, empresário, jornalista...), que apresenta e sustenta seu ponto de vista sobre determinado fato, assunto da atualidade.
Em relação ao seu modo de composição, uma de suas características é o funcionamento hetero-genérico (de gênero) (Rodrigues, 1999b), isto é, na sua configuração composicional encontram-se, muitas vezes, fragmentos, mais ou menos marcados, de outros gêneros, por exemplo relatos, que funcionam no todo do gênero como estratégias discursivas de sustentação da argumentação.
O ensino/aprendizagem da produção do artigo justifica-se pela sua relevância sócio-discursiva, dada sua importância como um dos instrumentos para a promoção da efetiva participação social do aluno-cidadão, um dos objetivos gerais do Ensino Fundamental, bem como pelo resgate da função social da escrita. Sua relevância destaca-se ainda pela sua dimensão pedagógica, quer dizer, pela função que pode desempenhar no desenvolvimento de conteúdos específicos da área de Língua Portuguesa.
Um dos objetivos da área de Língua Portuguesa para a prática de produção de textos escritos é o ensino do modo de produção do "discurso argumentativo": os processos de argumentação, modos de composição textual, unidades lingüísticas, entre outros aspectos, que se constituem especificamente nos diferentes gêneros. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais - Língua Portuguesa - 1o e 2o ciclos (1997, p.47-48.), no tratamento da prática de produção de textos, salienta-se que:
"O trabalho com a produção de textos tem como finalidade formar escritores competentes capazes de produzir textos coerentes, coesos e eficazes.
Um escritor competente é aquele que ao produzir um discurso sabe selecionar o gênero no qual seu discurso se realizará escolhendo aquele que for apropriado a seus objetivos e à circunstância enunciativa em questão. Por exemplo, se o que deseja é convencer o leitor, o escritor competente selecionará um gênero que lhe possibilite a produção de um texto predominantemente argumentativo (...)".
Entre os gêneros possíveis, dadas as condições de produção, tem-se o artigo, com certas características: função discursiva específica na esfera jornalística, concepção de autor e destinatário, modo de abordagem do tema, estilo, formas composicionais.
A prática de escritura do artigo na esfera escolar, além de configurar nas atividades regulares de ensino/aprendizagem de produção escrita, pode ser desenvolvida também dentro de organizações didáticas especiais propostas pelos PCNs (1998), os projetos e os módulos didáticos. Os módulos didáticos, como "seqüências de atividades e exercícios, organizados de maneira gradual para permitir que os alunos possam progressivamente, apropriar-se das características discursivas e lingüísticas dos gêneros estudados, ao produzir seus próprios textos" (op. cit., p.88), criam condições pedagógicas apropriadas para a elaboração de atividades que enfatizem determinadas características do gênero, articuladas com as necessidades dos alunos e as condições de aprendizagem.
Outro investimento favorável dá-se através da criação do jornal da escola, citado nos PCNs como exemplo de projeto, dentro das organizações didáticas especiais. A instituição escolar se constitui como lugar social que produz e difunde conhecimentos, notícias, opiniões. Além de ser uma atividade que estimula o trabalho coletivo, possibilita aos alunos o contato com as várias etapas de elaboração do jornal, com os mecanismos da produção do discurso jornalístico. A escritura do artigo (e dos outros gêneros) se efetiva não apenas através de "simulações" da orientação social e da situação de produção, mas dentro de condições autênticas similares, que compreendem:
colocar-se discursivamente como autor;
construir a imagem dos interlocutores, seus pontos de vista (leitores);
considerar o lugar institucional e o momento social, de onde se enuncia;
estabelecer o objeto da enunciação;
pôr-se em uma relação valorativa (posicionamento) diante do objeto da enunciação.

A produção do artigo, articulada ao projeto do jornal escolar, também se constitui como possibilidade para o desenvolvimento de conteúdos de Convívio Social e Ética. A abordagem de assuntos controversos, estratégia usada para o exercício da dissertação escolar - em que muitas vezes o resultado se resume ao elenco de argumentos a favor ou contra determinado assunto, em que o texto final carece de feições genéricas, de engajamento enunciativo – assume outra dimensão quando são criadas as condições de produção para que o aluno se posicione discursivamente.
Uma análise, ainda que sucinta, mostra os gêneros jornalísticos de onde se é possível enunciar enquanto leitor-autor: carta, artigo ou ensaio. Os filtros jornalísticos, o espaço reduzido desse gêneros nos veículos vão reduzindo a possibilidade da enunciação para o leitor. Se "o artigo é o gênero que democratiza a opinião no jornalismo, tornando-a não um privilégio da instituição jornalística e dos seus profissionais, mas possibilitando o seu acesso às lideranças emergentes na sociedade" (Melo, op. cit., 122), essa democratização se limita às classes sociais hegemônicas, ou às "lideranças emergentes", sendo que as pessoas das classes menos favorecidas, sem destaque social, não se têm constituído como autores previstos para o gênero artigo (sua voz estaria contemplada nas cartas?).
O reconhecimento da relação constitutiva entre ideologia, linguagem e mundo social orienta para a observação de que os discursos, a constituição dos gêneros nos sistemas ideológicos estabelecidos e formalizados estão marcados pelo horizonte social de uma época e por grupos sociais determinados. Em uma sociedade caracterizada pela divisão de classes, o domínio dos gêneros, uma das condições para a interação discursiva nas diferentes instâncias sociais - uma vez que "nos expressamos unicamente mediante gêneros discursivos, quer dizer, todos os nossos enunciados possuem formas típicas para a estruturação da totalidade" (Bakhtin, 1985, p. 267) - se marca como um instrumento ideológico das classes dominantes para a manutenção das relações sociais estabelecidas.
A entrada do artigo como objeto de aprendizagem justifica-se, por essas razões, para além do ensino/aprendizagem do modo de construção do "discurso argumentativo" nos diferentes gêneros, pela sua relevância social. A consideração do artigo como gênero pertinente para o ensino da produção escrita adquire uma dimensão pedagógica especial para as classes excluídas. O conhecimento e o domínio do gênero se constituirá como um instrumento para a participação dessas classes na produção dos discursos na esfera jornalística, pois além de todos os filtros sociais, jornalísticos de exclusão, ainda há outro, o desconhecimento dos processos da produção escrita dos seus gêneros.
No desenvolvimento de um projeto pedagógico para a produção escrita a partir dos gêneros discursivos encarados na sua relação com as esferas sociais, a escola, enquanto instituição de promoção do letramento, estará se desvencilhando do letramento escolarizado (Soares, 1998): a produção de um conjunto de conhecimentos e de habilidades de escrita distantes daquelas habilidades exigidas nas práticas de leitura e escrita não escolares.
A argumentação no sentido de demonstrar a pertinência do artigo como objeto de aprendizagem está na compreensão de que o objetivo da escola para o ensino da produção escrita também não pode se limitar à promoção do letramento funcional. Nessa concepção, ser letrado se restringe a possuir conhecimento e domínio de gêneros considerados suficientes para que a pessoa possa funcionar adequadamente nos contextos sociais em que a escrita é prevista como necessária para ela e seu grupo social (na vida cotidiana, nas relações de trabalho...). Para Lankshear, (apud Soares, op. cit., p.76), o letramento funcional "designa um estado mínimo, essencialmente negativo e passivo: ser letrado é ser capaz de estar à altura das pequenas rotinas cotidianas e dos comportamentos básicos dos grupos dominantes na sociedade contemporânea".
A proposta aqui se orienta na concepção de que a instituição escolar precisa estar comprometida com um projeto educacional que crie as condições para a efetivação do letramento integral. O artigo é um dos gêneros através dos quais institucionalmente o leitor pode se colocar na posição de autor. Levar a público, quer no jornal da escola, do bairro, do sindicato, de circulação mais ampla, é tornar-se interlocutor, não espectador, dos acontecimentos sociais. O domínio da produção desse gênero pode se constituir como um dos instrumentos para o "exercício efetivo da cidadania" e para a "participação plena no mundo letrado" (PCNs, 1998), para a participação na esfera jornalística, principalmente para as classes populares, que passam à margem dos discursos nessa instituição.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bakhtin, M. (1979) El problema de los géneros discursivos. In.: ____. Estética de la Création Verbal. México: Siglo XXI, 1985, p. 248-293.
_____. ¿Qué es el lenguaje? In A. Silvestri & G. Blanck (eds.) Bajtín y Vigotski: La organización semiótica de la conciencia. Barcelona: Anthropos, 1993, p.217-243.
_____. La construcción de la enunciación. In In A. Silvestri & G. Blanck (eds.) Bajtín y Vigotski: La organización semiótica de la conciencia. Barcelona: Anthropos, 1993, p.245-276.
Bakhtin, M./Volochínov, V.N. (1929) Marxismo e Filosofia da Linguagem. 4ª ed. São Paulo: Hucitec, 1988.
MEC/SEF (1998) Parâmetros Curriculares Nacionais: Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF.
_____. (1997) Parâmetros Curriculares Nacionais: Primeiro e Segundo Ciclo do Ensino Fundamental: Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF.
Dolz, J. & B. Schneuwly (1996) Genres et progression en expression orale et écrite: Éléments de réflexion à propos d'une expérience romande. Enjeux, 1996: 31-49.
Melo, J.M. (1994) A Opinião no Jornalismo Brasileiro. 2ª ed. rev., Petrópolis: Vozes.
Rodrigues, R. H. (1999a) As diferentes esferas sócio-discursivas como critério para a construção de currículos. Intercâmbio,8: 93-100. São Paulo: LAEL/PUC-SP.
_____. (1999b) Gêneros discursivos e heterogeneidade. Comunicação apresentada no II Congresso Nacional da ABRALIN. Florianópolis, 25-27 de fev.
Soares, M. (1998) Letramento: Um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica.




















(página em branco)

















Trabalhando com Artigo de Opinião:
Re-visitando o eu no exercício da (re) significação da palavra do outro

Kátia Lomba BRÄKLING (LAEL/PUC-SP)

"Um rio precisa de muita água em fios para que todos os poços se enfrasem: se reatando, de um para outro poço, em frases curtas, então frase a frase, até a sentença-rio do discurso único, em que tem voz a seca que ele combate." (João Cabral de Melo Neto)"Um rio precisa de muita água em fios para que todos os poços se enfrasem: se reatando, de um para outro poço, em frases curtas, então frase a frase, até a sentença-rio do discurso único, em que tem voz a seca que ele combate." (João Cabral de Melo Neto)
"Um rio precisa de muita água em fios para que todos os poços se enfrasem: se reatando, de um para outro poço, em frases curtas, então frase a frase, até a sentença-rio do discurso único, em que tem voz a seca que ele combate."
(João Cabral de Melo Neto)
"Um rio precisa de muita água em fios para que todos os poços se enfrasem: se reatando, de um para outro poço, em frases curtas, então frase a frase, até a sentença-rio do discurso único, em que tem voz a seca que ele combate."
(João Cabral de Melo Neto)








Considerações iniciais

Este artigo tem como finalidade realizar um relato crítico-reflexivo sobre um projeto de escrita desenvolvido a partir da adoção de uma concepção enunciativa da linguagem na qual, entre outras, a noção de gêneros do discurso é orientadora das atividades didáticas organizadas.
O trabalho foi desenvolvido com alunos de uma 6ª série – ou 2º ano do terceiro ciclo – de idade regular para a série, numa escola cooperativa, de fevereiro a agosto de 1998.
Procuraremos realizar um relato abrangente onde se explicitem as articulações colocadas entre as concepções teóricas subjacentes, os objetivos decorrentes – tanto os mais amplos, quanto os específicos de área – e as atividades desenvolvidas.

Sobre as razões, os motivos e as escolhas

A proposta de trabalho organizada, foi baseada em algumas reflexões fundamentais. Quais sejam:
Um compromisso claro com a formação de um homem que possa e saiba compreender criticamente as realidades sociais, sabendo olhar para elas a partir de diferentes pontos de vista, comparando-os reflexivamente de maneira a constituir o seu próprio. Mais do que isso, este compromisso implica possibilitar ao aluno vivenciar situações nas quais possa apropriar-se desse modo de olhar para o real para organizar a sua ação para nele atuar, quer na direção de sua transformação ou não.
A compreensão do aluno com o qual trabalhamos como aquele que está num momento sensível de reconstituição de sua identidade – a adolescência – no qual valores são questionados, recusados, aceitos, abandonados, provocando uma re-significação das relações que as pessoas passam a estabelecer com o outro, com o mundo e consigo próprios.
A compreensão de que a escola é uma instituição social que tem como finalidade ensinar, educar. Na área de Português, considerando as referências anteriores, ensinar supõe, necessariamente:
criar uma situação comunicativa intra-sala de aula que possibilite a "colocação em contato" dos diferentes sentidos constituídos pelos diferentes alunos, nos diferentes círculos sociais de que participam – igreja, clube, círculo de amigos da escola, p. e.. Quer dizer, possibilitar que as diferentes posições sobre os diferentes assuntos discutidos se explicitem, bem como alguns (quiçá todos...) dos valores implícitos e ideologias subjacentes. Essa situação comunicativa – que resolvemos denominar de "conversa argumentativa", mais um gênero escolar da modalidade oral da linguagem – pressupõe, como em qualquer gênero, um aprendizado: que a palavra do outro pode, efetivamente, nos apresentar sentidos diferentes com os quais podemos ou não concordar; que, para que possamos entrar em contato com esses diferentes sentidos, é preciso ouvir de fato a palavra alheia; que, para que os outros possam conhecer os nossos sentidos é preciso que os explicitemos; que o comentário do outro sobre a nossa palavra pode introduzir elementos significativos que nos possibilitem rever valores e transformá-los ou consolidá-los.
oferecer aos alunos uma proficiência que suponha escrever de maneira analítica, reflexiva e crítica, explicitando suas próprias opiniões a respeito de diferentes temas, com consistência e de maneira muito bem sustentada. Conseqüentemente, para Português as atividades de escrita necessitam privilegiar o trabalho com um gênero no qual as capacidades exigidas do sujeito para escrever sejam, sobretudo, aquelas que se referem a defender um determinado ponto de vista pela argumentação, refutação e sustentação de idéias. Por isso, escolhemos ensinar escrever artigos de opinião. Circulam em portadores aos quais se pode ter fácil acesso – revistas e jornais diversos, p. e. – e sua leitura e escrita supõe uma mestria em realizar as operações citadas.
Dessa forma, a escolha pedagógica realizada foi por escrever, com a sexta série, artigos de opinião.
Esta, nossa primeira decisão tomada. A segunda, referiu-se à modalidade didática de organização do trabalho, da qual falaremos adiante.

Projetos de Linguagem e Seqüência Didática: por quê?

Dentre as modalidades didáticas de organização do trabalho que se colocavam para nós como possibilidades, escolhemos os projetos de linguagem. São compreendidos como uma forma de organização do trabalho de Português pela qual é possível a criação de um espaço intra-escolar de produção de linguagem que apresenta a possibilidade de aproximação das condições de comunicação intra-escolares das condições presentes nas instâncias públicas de enunciação que não a escola. O trabalho é desenvolvido visando a elaboração de um produto final – uma revista, um livro, um panfleto, um debate, uma mesa redonda, um folder, um jornal, uma almanaque – que tenha uma circulação social efetiva.
Constituem-se, assim, numa modalidade didática que cria condições favoráveis à interação verbal pela modalidade escrita da linguagem, de maneira a não descaracterizá-la enquanto objeto social.
Para o desenvolvimento dos projetos de linguagem, elaboramos também uma seqüência didática específica para o aprendizado de artigo de opinião. Esta modalidade de organização do trabalho é compreendida por nós tal como o propõem Dolz e Schneuwly. A ela nos referiremos mais adiante, em item específico.

A organização do trabalho

A partir das decisões tomadas quanto ao gênero de texto a ser abordado e quanto às modalidades de organização didática, o trabalho foi encaminhado a partir de:
Levantamento das condições de produção (ou parâmetros da situação enunciativa):
definição do interlocutor ao qual o texto se destinará;
explicitação da finalidade colocada para a produção dos textos;
definição do gênero no qual o texto se organizará;
definição do portador - ou suporte - no qual o texto será publicado;
definição do lugar de circulação do produto final.
A discussão das condições de produção – acreditamos – deve se dar a partir da explicitação da imagem do leitor construída pela classe (o que o interessaria, que relação têm locutor e interlocutor - de maior ou menor proximidade, determinada pelo lugar social que ambos ocupam no contexto enunciativo - que conhecimentos tem sobre o assunto que será discutido no texto, que conhecimentos tem sobre linguagem), articulando-a com a definição de temas a serem tratados, escolhas lexicais mais adequadas, exploração e introdução de recursos gráficos - no texto e no portador - coerentes com suas possíveis expectativas.
Planejamento das etapas e dos prazos do trabalho, prevendo:
Construção de repertório temático: coleta de textos referentes aos assuntos que serão tratados nos textos; organização de hemeroteca onde se arquive os textos encontrados; leitura e estudo dos textos coletados. A pesquisa pode ser realizada pela classe como um todo, de maneira que todos possam colaborar com todos.
Desenvolvimento de seqüência didática: organização de atividades seqüenciadas cuja finalidade é discutir as características fundamentais do gênero de texto priorizado para trabalho, de maneira a possibilitar ao aluno um aprendizado e mestria na escrita do mesmo.
Composição do portador: organização gráfica, montagem, impressão e reprodução.
Publicação (lançamento, distribuição).

Sobre as seqüências didáticas:

As seqüências didáticas são aqui compreendidas no interior da proposta de Dolz & Schneuwly. Trata-se de atividades planejadas para serem desenvolvidas de maneira seqüenciada com a finalidade de tematizar aspectos envolvidos na produção de textos organizados em um determinado gênero, de maneira a possibilitar aos alunos a mestria na sua escrita. São atividades que têm como objetivo a aprendizagem de características da "estrutura (comunicativa) particular dos textos pertencentes ao gênero" e "as configurações específicas das unidades de linguagem, que são sobretudo traços da posição enunciativa do enunciador e os conjuntos particulares de seqüências textuais e de tipos discursivos que formam sua estrutura".
A organização destas atividades prevêem uma progressão organizada a partir do levantamento dos conhecimentos que os alunos já possuem sobre o gênero. A partir desse levantamento, um mapeamento das necessidades de aprendizagem é realizado com a finalidade de possibilitar a priorização de aspectos a serem abordados progressivamente, adequando o grau de complexidade da tarefa e do objeto às possibilidades de aprendizagem dos alunos.
A desenvolvimento das atividades deve prever, ainda, a organização adequada do tempo de realização e seqüenciação das atividades, uma ordenação que permita a transformação das capacidades dos alunos, a colaboração com o outro e a avaliação das tarefas apresentadas.
Sobre o movimento metodológico:

O trabalho desenvolvido baseou-se num movimento metodológico orientado da observação para a análise, para o levantamento de regularidades, o registro, a sistematização do conhecimento e o uso deste em novas produções.
Mais detalhadamente, podemos dizer que as atividades foram planejadas considerando-se o seguinte movimento:
isolamento do aspecto a ser tematizado;
construção de um corpus representativo do aspecto a ser abordado a partir do qual se possa realizar uma análise do fato lingüístico priorizado, observando possíveis regularidades;
análise do corpus, promovendo o agrupamento dos dados a partir dos critérios construídos para apontar as regularidades observadas;
organização e registro das conclusões a que os alunos tenham chegado;
apresentação da metalinguagem e aproximação conceitual;
exercitação sobre os conteúdos estudados;
reinvestimento dos diferentes conteúdos tematizados na revisão e refacção do texto já escrito e em nova produção.

Sobre o gênero "artigo de opinião":

Para o desenvolvimento do trabalho tínhamos em mente que além das questões educacionais mais amplas e das questões didáticas, o conhecimento do objeto é imprescindível. Dessa forma, colocou-se para nós a necessidade de aprofundamento no conhecimento sobre o gênero priorizado e todos os aspectos e operações envolvidos na sua produção.
O artigo de opinião é um gênero de discurso onde se busca convencer o outro de uma determinada idéia, influenciá-lo, transformar os seus valores por meio de um processo de argumentação a favor de uma determinada posição assumida pelo produtor e de refutação de possíveis opiniões divergentes. É um processo que prevê uma operação constante de sustentação das afirmações realizadas por meio da apresentação de dados consistentes, que possam convencer o interlocutor.
Nessa perspectiva, acreditamos que trata-se de um gênero onde a dialogicidade e a alteridade se evidenciam no processo de produção: não é possível escrevê-lo se não se conseguir colocar-se no lugar do outro, antecipando suas posições para poder refutá-las – negociando ou não com ele – na direção de influenciá-lo e de transformar sua opinião, seus valores.
É, portanto, condição indispensável para a produção de um artigo de opinião, que se tenha uma questão controversa a ser debatida, uma questão referente a um tema específico que suscite uma polêmica em determinados círculos sociais.
Do ponto de vista das marcas lingüísticas do gênero, como o nosso corpus de análise foi todo levantado em revistas não técnicas e jornais não especializados, consideramos marcas relevantes: a organização do discurso quase sempre em terceira pessoa; o uso do presente do indicativo – ou do subjuntivo – na apresentação da questão, dos argumentos e contra-argumentos; a possibilidade de uso do pretérito numa explicação ou apresentação de dados; a presença de citações de palavras alheias; a articulação coesiva por operadores argumentativos.
Do ponto de vista da progressão temática, trabalhamos com possibilidades de organização diferenciadas a partir da análise de textos diferentes do mesmo autor ou de diferentes autores. Nessa análise observamos: a ordem de apresentação da tese, conclusão, argumentos, contra-argumentos; a ordem de apresentação dos argumentos no que se refere à sua maior ou menor força locucional.
Estes, nossos pressupostos iniciais e nossos conhecimentos subjacentes. Passemos, agora, ao relato do desenvolvimento do trabalho.

Relato do trabalho desenvolvido:

Tínhamos priorizado, portanto, o trabalho com o gênero artigo de opinião: esta a decisão pedagógica inicial. A questão seguinte seria a definição, junto à classe, das demais condições de produção dos textos e do desenvolvimento do projeto, que denominamos "Polêmicas de Agora".
O resultado da discussão foi o seguinte: escreveríamos artigos de opinião que seriam publicados numa revista. Debateríamos questões que pudessem interessar aos demais adolescentes alunos da escola, nosso leitor eleito. A revista seria organizada, montada e publicada pela 6a série, tendo seu lançamento previsto para a "Feira Cultural" que a escola realizaria.
O passo seguinte foi a discussão sobre os temas que seriam priorizados. Feito um levantamento inicial, tivemos como resultado: "a sexualidade na adolescência", "a questão do aborto e da gravidez na adolescência", "a doação de órgãos", "casamento homossexual", "a existência de vida inteligente alienígena", "o uso de drogas", "o desemprego no Brasil".
Escolhidos os temas, definimos também a necessidade de estudar sobre eles para poder escrever a respeito. A decisão tomada foi a seguinte: organizados em duplas, os alunos fariam um levantamento do material disponível sobre o tema a ser discutido, montando uma hemeroteca. Uma aula de Português da semana seria reservada para a leitura e estudo do material coletado.
Em seguida, começamos o desenvolvimento da seqüência didática organizada para o aprendizado do gênero.

As atividades desenvolvidas:

Orientados pelas finalidades e características dessa modalidade didática e pelos objetivos já explicitados, propusemos uma seqüência de atividades que acabaram por serem organizadas em três grandes blocos de atividades: o estudo inicial do gênero, o estudo para aprofundamento e o estudo para revisão.
O primeiro grupo trata das atividades que visam oferecer um suporte inicial aos alunos na sua primeira produção. Trata-se de introduzir uma noção preliminar dessa forma de organização discursiva com a finalidade de evitar que o desconhecimento completo do gênero funcione como um fator "perturbador" do desempenho do aluno.
O segundo grupo de atividades trata dos exercícios organizados com a finalidade de aperfeiçoar o desempenho do aluno na produção escrita, pela via do conhecimento mais aprofundado do gênero e das operações discursivas que implica.

Estudo inicial do gênero: Estudo das características discursivas específicas de um gênero a partir da comparação por estabelecimento de diferenças:
Tínhamos como objetivo a necessidade de possibilitar aos alunos uma identificação do gênero por aspectos que lhe fossem característicos e que o diferenciassem de outros gêneros.
Nessa perspectiva, propusemos aos alunos que apontassem as características discursivas de textos organizados em diferentes gêneros – uma notícia, um conto, um verbete enciclopédico e um artigo de opinião – orientados por questões que se referiam aos aspectos discursivos diferenciadores dos mesmos. Algumas delas:
Em qual dos textos foi apresentado ao leitor o relato de um fato que realmente aconteceu?
Em qual dos textos é apresentada uma definição ou explicação sobre uma questão específica?
Em qual dos textos o autor não se prende ao real para escrever?
Em qual dos textos o autor apresenta sua opinião sobre um assunto determinado?
À cada questão proposta, realizávamos uma articulação entre a resposta apresentada e as marcas lingüísticas presentes no texto (dados marcados lexicalmente, de maneira explícita ou não) que pudessem justificar a resposta apresentada.
Ao final da análise comparativa, organizamos o conhecimento abordado escrevendo uma caracterização inicial do artigo de opinião, a ser retomada posteriormente para aprofundamento.

Estudo das características próprias do gênero a ser estudado a partir da comparação por estabelecimento de semelhanças:
A partir de diferentes artigos de opinião, foi solicitado aos alunos que apontassem as características discursivas semelhantes entre eles e entre estes e o estudado anteriormente. Foram orientados por questões propostas com a finalidade de conferir as características levantadas na atividade anterior e aprofundar a análise. As questões referiam-se a aspectos como a localização da presença da opinião pessoal do escritor; a identificação da questão em debate; o reconhecimento da posição defendida pelo autor; a identificação da opinião à qual o autor se opunha; as formas de sustentação da sua opinião apresentadas; a localização de dados apresentados para a sustentação; a forma utilizada pelo autor para rebater as opiniões contrárias à sua.
Da mesma forma que na atividade anterior, a cada resposta apresentada, houve uma referência às marcas lingüísticas e discursivas que poderiam sustentá-la.
Ao final da discussão, foi proposta uma retomada da caracterização anterior do gênero realizada na ATIVIDADE 1, com a finalidade de aprofundá-la, a ela incorporando os novos elementos abordados.

Produção de um primeiro texto:
Considerando a caracterização do gênero já realizada, foi solicitada aos alunos a produção de um primeiro texto, a partir das condições de produção definidas.
Uma primeira questão levantada e discutida tão logo começaram a primeira produção foi a necessidade de formulação de questões polêmicas a partir dos temas levantados, dado que no levantamento inicial apenas os temas é que foram escolhidos. Da discussão, as seguintes questões polêmicas foram elaboradas:
"Mortalidade materna, infantil e o aborto: a legalização resolve?";
"Diante da crise do sistema de saúde e do perigo de corrupção sempre presente, deve-se ou não apoiar a doação de órgãos?";
O uso de drogas na virada do milênio: questão de prazer, necessidade ou para impressionar?";
"No Brasil não existe desemprego": conto de fadas do ministério?";
"O hábito faz o monge?";
"Vou votar no fulano porque está em primeiro lugar nas pesquisas". Você concorda?";
"Clonagem humana: o avanço científico e a ética.";
"Existe mesmo vida extraterrestre?";
"A legalização do casamento homossexual: moralidade e democracia.";
"A pena de morte pode ser a solução para o problema do alto índice de criminalidade e violência do país"".
Definidas as questões controversas, a primeira produção foi realizada. Depois disso, foi feito um levantamento dos aspectos que os alunos já haviam aprendido sobre o gênero, e daqueles que ainda precisariam aprender. Foi, portanto, um levantamento de necessidades – conteúdos que precisariam ser abordados – que orientaram a organização das atividades posteriores.
Estas necessidades referiam-se tanto aos conhecimentos discursivos e lingüísticos específicos do gênero, como também a outros aspectos gramaticais (ortografia, acentuação, morfossintaxe, semântica) ou procedimentais (revisão em processo, revisão posterior, utilização dos conhecimentos já sistematizados na revisão) mais amplos e gerais.
A partir desse levantamento, organizamos tanto a seqüência didática para aprofundamento nas questões próprias do gênero, quanto atividades seqüenciadas outras para o trabalho das questões mais gerais.

Análise coletiva das primeiras produções a partir da caracterização já realizada pela classe:
Para esta atividade, organizamos uma apostila com cópias das produções dos alunos e, tendo como parâmetro a caracterização já realizada, analisamos coletivamente algumas delas.
A análise dos textos esteve baseada na identificação de aspectos como:
existe uma questão polêmica que está sendo debatida?
o autor apresenta uma posição a respeito?
o que diz para sustentar sua opinião?
o que diz para descartar opiniões contrárias à sua?
pode-se dizer que este texto é um artigo de opinião?
falta alguma coisa para este texto ser considerado um artigo de opinião?
Os alunos cujas produções foram discutidas coletivamente realizaram anotações a respeito dos comentários feitos, anotações estas que deveriam orientá-los na refacção do texto. Os demais partiriam das orientações oferecidas na análise coletiva para a análise e refacção da produção própria.

Estudo para aprofundamento: Conhecendo a história do gênero:
A finalidade desta atividade é propiciar ao aluno uma compreensão mais aprofundada sobre as características do gênero, marcando a historicidade do processo de sua constituição: sua origem e as características do momento histórico de sua constituição, as transformações que já sofreu, fatos sociais que contribuíram para a constituição do gênero desta ou daquela forma, transformações em curso, etc.
Para este projeto, pouco material conseguimos obter, a não ser aquele que se referia à história da opinião no jornalismo em geral, e referências ao gênero constantes de manuais de redação de alguns jornais de grande circulação em São Paulo.
De qualquer forma, lemos e discutimos o material conseguido e ampliamos a discussão sobre a caracterização do gênero.

Trabalhando com diferentes aspectos discursivos e lingüísticos:
Iniciamos, a partir deste momento, o trabalho com os elementos e operações constitutivas do gênero, com a finalidade de aprofundamento da compreensão inicial dos alunos. Neste sentido, exercícios que tematizavam esses aspectos foram propostos, na tentativa de possibilitar aos alunos a apropriação desse conhecimento, que deveria, posteriormente, ser incorporado na revisão da produção inicial.
Alguns dos aspectos que foram abordados foram:
as operações de sustentação, refutação e negociação;
o "esquema" de organização textual utilizado por diferentes autores;
tipos de argumentos e efeitos de sentido produzidos no interlocutor;
seleção de dados relevantes para a operação de sustentação de argumentos;
identificação de contra-argumentos;
adequação entre argumentos e contra-argumentos e posição defendida e refutada pelo autor;
adequação de argumentos em relação à situação de enunciação e ao interlocutor presumido;
força dos argumentos selecionados e ordem seqüencial dos mesmos no texto.
estabelecimento da progressão temática;
operadores argumentativos e o estabelecimento da coerência e da coesão no texto;
tipos de operadores e função correspondente: marcar refutação, concessão, oposição;
a pessoa do discurso e a marca lingüística presente no texto (usos de 1a pessoa - plural e singular -, terceira e da indeterminação e efeitos de sentidos produzidos);
utilização adequada de verbos declarativos, apreciativos, depreciativos;
o uso dos tempos verbais na progressão temática.

Algumas atividades propostas:
dada uma lista de argumentos, selecionar aquele(s) que seria(m) mais adequado(s) para a defesa de uma determinada posição em relação a uma questão polêmica específica.
apresentados determinados argumentos, selecionar, em uma lista, dados adequados para a sua sustentação na defesa de determinada posição (considerando a especificidade da situação de comunicação).
apresentada uma situação enunciativa analisar, a partir de uma lista, que tipo de argumento seria mais adequado utilizar para convencer aquele interlocutor específico.
a partir de uma relação de dados - gráficos, tabelas, declarações - formular argumentos que pudessem ser sustentados pelos dados na defesa de determinadas posições, em determinada situação enunciativa.
Na abordagem de alguns dos aspectos selecionados, foi necessária uma discussão gramatical subjacente, que pudesse sustentar a discussão e funcionar como suporte para a reflexão coletiva. Colocaram-se nesta situação:
a discussão sobre a pessoa gramatical do discurso, sistematizada de maneira articulada com a discussão sobre os tempos verbais utilizados pelos autores na produção dos artigos;
a discussão sobre os operadores argumentativos, e a decorrente tematização sobre a quais classes gramaticais pertenceriam;
pontuação interna do período e a conseqüente abordagem de sintaxe;
concordância verbal e nominal, coesão do texto e os processos de anáfora;
acentuação e regularidades observáveis;
algumas questões ortográficas e as regularidades observáveis.

Estudo para revisão - Retomada dos aspectos abordados ao longo do trabalho:
Este foi o momento de retomada dos registros realizados em cada uma das oficinas ou atividades desenvolvidas, os quais sintetizavam os aspectos do conhecimento que haviam sido abordados. A finalidade dessa retomada é a organização de material de referência que possa auxiliar os alunos no processo de revisão dos seus textos, quando estarão produzindo a versão final dos mesmos. Estes registros orientam, ainda, a definição de critérios para a correção e avaliação das produções finais.
Neste momento, organizamos um material que era, na verdade, um "compilado" dos registros organizados pela classe sobre os aspectos discutidos, quer fossem registros próprios ou de outros autores (textos pesquisados que organizavam o conhecimento, retirados de materiais escritos de referência: gramáticas, por exemplo). Lemos, revisamos e realizamos anotações pessoais sobre aspectos importantes de serem considerados em função, também, das anotações realizadas nos processos de análise coletiva do primeiro texto e de análise e revisão de textos intermediários, produzidos no bloco referente às oficinas de aprofundamento.
Revisão final do texto, refacção e avaliação:
De posse do material teórico de apoio, bem como de suas produções iniciais, os alunos revisaram os seus textos no sentido de melhorá-los o máximo que lhes fosse possível: corrigiram erros, reescreveram trechos, reorganizaram os enunciados, redefiniram parágrafos, acrescentaram dados, mudaram linhas de argumentação, enfim, tudo o que lhes parecesse ser necessário realizar para tornar o seu texto mais adequado para o leitor eleito, para o portador definido e para a finalidade priorizada.
Depois da revisão e da refacção dos textos foi realizada uma auto-avaliação e uma avaliação pela professora, a partir de uma ficha elaborada com base nos aspectos discutidos, sistematizados no material de apoio. Essa ficha fazia alusão aos aspectos e elementos discursivos e lingüísticos abordados.

Reflexões - o trabalho revisitado:

"Que rio é este pelo qual corre o Ganges?" (Borges)"Que rio é este pelo qual corre o Ganges?" (Borges)
"Que rio é este pelo qual corre o Ganges?"

(Borges)
"Que rio é este pelo qual corre o Ganges?"

(Borges)


Pretendemos, a seguir, analisar o trabalho desenvolvido tomando como referência os resultados obtidos quanto ao produto apresentado efetivamente pelos alunos. Pretendemos, também, apontar algumas necessidades que se colocaram durante o desenvolvimento do trabalho como um todo.
Se tínhamos como objetivo verificar a pertinência e aplicabilidade de um trabalho organizado a partir dos pressupostos anteriormente colocados, bem como a adequação da organização e tratamento didático proposto pelo grupo de Genebra para o ensino de Línguas, os resultados parecem nos autorizar a confirmar a eficiência de um projeto como esse.
A análise da produção inicial e da produção final de um aluno podem ilustrar essa afirmação.
Saliente-se que a produção que apresentaremos não representa a média da classe em termos de qualidade. Ao contrário, é um texto considerado abaixo da média. Será aqui analisado porque, se comparado à produção final da aluna, fica evidente a melhora de sua proficiência, o que serve aos nossos propósitos. A produção final, no entanto, já se inclui dentro da média da classe, embora tenham sido produzidos artigos, por outros alunos, com uma qualidade bastante superior.


Produção Inicial


Os adolecentes estão preparados para ter uma vida sexual responsável?
A vida sexual representa grande coisa para alguns e apenas diversão para os outros.
A cada vez mais, adolecentes de idade acima de 15 anos até 18.
Esta é a idade onde eles acham que não há responsabilidade.
As vezes alguns adolecentes se preservam e seguem conselhos dos pais; outros acham que sexo é pura diversão e acabam tendo consequência - como se contaminar com o virus HIV, levando a aids, ou até mesmo uma gravidez.
As vezes o sexo se torna rotina e psicologos acham que não está tendo amor ou responsabilidade.
Este tema é polêmico por isso psicólogos e os próprios adolecentes dão o seu depoimento.
A psicóloga Rosely Sayão acha que o adolecente passou pela infância e estando na puberdade, ela acha normal que adolecentes sejam tão desesperados, e querem logo fazer sexo.
Um adolecente de 17 anos acha que hoje em dia a maioria dos adolecentes estão na fase "festa" que tudo é só diversão.
Outro adolecente acha que não que é uma coisa gostosa e que em alguns casos existem amor, e a maturidade depende da pessoa.
Estes foram depoimentos de 3 pessoas que tem opinião diferentes e preferem que cada um se identifique com cada pensamento.
Meninas que não sabem como falar para os pais que carregam camisinha na bolsa. E se elas não estão preparadas para dialogar com os pais não estão preparadas para usar.
propaganda MTV
Em fim definimos que o sexo se identifica com a pessoa e com a maturidade, não pela idade, mais sim pela cabeça que cada um tem.
- Nós fizemos uma pesquisa, para ver com quem foi a primeira vez de adolecentes alguns responderam
Fiquei com a menina e "rolou"
Foi um menino da praia que eu estava de "rolo"
Foi meu amigo do colégio
Foi com uma prostituta
Estas são frases de adolecentes que perderam a virgindade cedo de modo deságradavel.
- Perguntamos com que idade eles consideram um jovem preparado para relação sexual
13 anos - 1.1
14 anos - 5.3
15 anos - 13.7
16 anos - 22.1
17 anos - 36.8
- Uso da camisinha.
Sempre - 53.8
nem sempre - 38.5
nunca - 7.7
Adolecentes que acham que a 1 vez, foi frustrante e outros acham que foi inesquecível.
São adolecentes que acham que pensam e fazem o que querem e que nem sempre acontecera responsabilidades com eles, que já uma transa é uma grande responsabilidade.

Fonte: Revista "Pais e teens"
depoimento: Rosely Sayão
pesquisas: Eugênio Chipkevitch, diretor do instituto paulista de adolescência.
Rê (04/98)

Ao analisarmos o texto de Rê, logo nos chama a atenção a citação da fonte, uma marca que, certamente, não é de artigo de opinião. No entanto, mais do que classificar o texto como pertencente ao gênero tematizado no projeto, interessa-nos analisá-lo para que possamos identificar quais elementos discursivos típicos do gênero o texto apresenta, quais marcas lingüísticas podem ser identificadas como índices das operações enunciativas esperadas, que aspectos não se encontram bem resolvidos e necessitam, portanto, ser trabalhados mais detalhadamente. Uma análise como esta permite, portanto, a identificação: a) de quais aspectos envolvidos na produção de um artigo de opinião foram apropriados pelo produtor, quer isso se deva ao trabalho de estudo inicial, quer a contatos anteriores com o gênero; b) quais aspectos precisarão ser aprofundados ou introduzidos para discussão.
Para a reflexão que ora realizamos, uma análise dessa natureza possibilita a comparação da proficiência da aluna numa situação inicial de produção com a de uma situação final, o que permite a identificação de saberes transformados na direção de uma melhora de qualidade na produção do gênero. No entanto, a análise que pretendemos realizar não pretende esgotar todos as possibilidades e nem ser muito rigorosa; serão abordados os aspectos mais significativos para o objetivo da discussão colocada neste artigo.
A questão controversa que a aluna pretende debater está colocada explicitamente no título do texto. Sobre esta, assume uma posição que parece pautar-se na idéia de que a maior ou menor preparação do adolescente para uma vida sexual responsável não se relaciona diretamente com a idade, mas com a maturidade, a "cabeça" de cada um (parágrafo 13).
Para defender esta posição, a aluna apresenta atitudes e opiniões diversas a respeito do assunto num movimento de contraposição evidenciado nos parágrafos de 1 a 10, excetuando-se o 2 e o 3, onde parece que a autora quis localizar a faixa etária na qual a polêmica se localiza: o intervalo compreendido entre 15 e 18 anos.
Nos parágrafos 1, 4 e 5 a autora polariza seriedade e importância X diversão, seguir o conselho dos pais X diversão e conseqüências, rotina X amor e responsabilidade.
Para sustentar essa posição, nos parágrafos 7, 8, 9 a aluna apresenta depoimentos de três pessoas, os quais são introduzidos no parágrafo 6.
No parágrafo 10, há uma sinalização, pela fala do outro, da posição que defenderá a seguir. Para concluir a série de depoimentos que sustentam a posição explicitada no parágrafo 13, no 11 e 12 a autora se refere à propaganda veiculada na MTV, que parece confirmar a tese de que não é porque se carrega camisinha na bolsa, que se está preparado para assumir responsabilidades; alguns até podem estar, mas não são todos.
A partir do parágrafo 14, a autora relata dados de uma pesquisa que, a julgar pelo que foi colocado no parágrafo 14, teria sido feita pela dupla que pesquisou o assunto. No entanto, são dados que conseguiram a partir da leitura da fonte. Podemos, inclusive interpretar o travessão colocado neste e no parágrafo 20 como marcas de introdução do discurso de outrem no discurso próprio, do texto da reportagem no artigo de opinião.
Do parágrafo 13 em diante o que acontece é uma apresentação de dados que supostamente teriam maior credibilidade junto aos interlocutores, inclusive por alguns serem quantitativos (ainda que não tenham sido interpretados adequadamente), os quais poderiam estar conferindo maior "força" à posição defendida.
Considerando que a apresentação da tese da autora encontra-se no parágrafo 13, introduzida, inclusive, por um enfim – o que revela uma intenção de concluir, finalizar o texto – parece ser possível interpretar que esta, após a produção desse parágrafo, deu uma olhada em seu texto e achou que seria necessário introduzir mais dados, e dados de maior credibilidade, conseguidos, por exemplo, por meio de uma pesquisa, as quais costumam conferir um "caráter de verdade" a declarações.
Podemos concluir que a aluna sabe que um artigo de opinião organiza-se a partir de uma questão controversa, que nele há a defesa de uma determinada posição e que é preciso apresentar dados que possam sustentar essa posição, se se pretende, efetivamente, convencer o interlocutor. Mais do que isso, é preciso negociar com aqueles que possuem posições adversas: o tempo todo a aluna apresenta opiniões antagônicas, para concluir nem por uma ou por outra, mas por uma posição intermediária.
O que ela não sabe é como fazer a articulação adequada entre os enunciados de modo a garantir coesão ao seu texto, bem como a realização de uma progressão temática adequada à finalidade colocada: o convencimento do seu interlocutor. Precisa aprender a utilizar operadores argumentativos e articuladores textuais em geral, de modo a não provocar um efeito de fragmentação dos enunciados; precisa saber identificar os referentes para evitar problemas de concordância verbal e nominal; precisa resolver algumas questões de pontuação interna da frase, de acentuação e de ortografia.
Na produção final a aluna não manteve o mesmo tema. Optou (e foi possível, dada a organização do trabalho) por escrever sobre Pena de Morte, tema de uma produção intermediária, não previsto no levantamento coletivo inicial. A questão polêmica definida foi "A pena de morte pode ser a solução para o problema do alto índice de criminalidade e violência do país?".

Produção Final


Barbaridades dos novos tempos
Nos últimos anos, o índice de criminalidade vem aumentando muito nas grandes metrópoles brasileiras. Essa situação tem levado algumas pessoas a pensar na implantação da pena de morte no país. Essas pessoas pensam que se a pena de morte for aplicada no país tudo vai melhorar, mais não é bem assim.
Quem pensa que se com a aplicação da pena de morte a criminalidade vai diminuir, se engana. Acontece o oposto. Nos E.U.A., tudo mostra que isso é verdade, pois lá a pena capital está implantada desde 1976. E, como conseqüencia, o índice de criminalidade não diminuiu e as agressões a policiais aumentaram.
Quando o governo mata um condenado, está cometendo o mesmo crime que ele.
O que seria necessário é resolver os problemas de base, como a economia do país. Se esses problemas fossem resolvidos uma pessoa não roubaria para alimentar sua família. Casos como esse estão acontecendo agora no nordeste onde está acontecendo uma grande seca.



O governo tem que refletir muito na hora de condenar um preso à pena de morte porque pode estar acusando um inocente e, como essa pena é irreversível, não poderá corrigir possíveis enganos.
Se nas penitenciárias existissem trabalhos para os presos, eles poderiam ajudar a economia produzindo seu próprio alimento.
A pena de morte não é a solução. Se os problemas de base são os causadores de tudo temos que resolvê-los um por um começando pelos mais "difíceis", colocando na cabeça das pessoas que acreditam que a pena de morte á a solução, a solução correta.
Rê (08/98)

Analisando o artigo, podemos afirmar que a posição defendida pela aluna está explicitada na parágrafo 7: a pena de morte não é a solução para o problema do alto índice de criminalidade e violência do país; para resolvê-los é preciso atacar a causa dos mesmos: os problemas de base como a economia, a seca do nordeste, que geram a fome (parágrafo 4).
Para defender essa posição, a autora se utiliza dos seguintes argumentos: a comparação com os E.U.A., onde a pena de morte foi implantada em alguns estados há algum tempo, de tal forma que já se pode analisar os seus efeitos (parágrafo 2); o fato de a implantação da pena funcionar como uma autorização legal para o governo matar como um criminoso (parágrafo 3); a questão da irreversibilidade da pena e a impossibilidade de correção da ação, caso haja um engano no julgamento (parágrafo 5).
No parágrafo 6 há uma tentativa de negociação com quem afirma que manter um criminoso na penitenciária custa muito ao Estado, posição esta implícita no texto, possível de inferir pela afirmação de que eles – os presos – produziriam a sua própria alimentação e, dessa forma, contribuiriam para a economia.
Até agora, a análise mostra que os aspectos dos quais a aluna já tinha se apropriado, mantém-se. A diferença evidente está na forma de organização textual e do estabelecimento da progressão temática e na articulação dos enunciados, onde se pode perceber a utilização de operadores argumentativos vários e de maneira adequada.
A aluna inicia o texto localizando o leitor quanto à situação da qual a questão polêmica emerge e, ao mesmo, tempo, já sinalizando qual será a posição defendida no texto.
Apresenta, nos parágrafos seguintes, argumentos, em ordem decrescente de poder de convencimento: começou pelo mais forte, do qual possui dados objetivos, e foi decrescendo, até explicitar a sua conclusão final, justificada pela retomada de argumentos do parágrafo 4.
Nessa organização, é evidente a utilização adequada dos operadores argumentativos no estabelecimento de relações entre as frases e de concessivas; é evidente também a diminuição de inadequações quanto à concordância verbal e nominal (na verdade, inexistentes), bem como de pontuação, ortografia e acentuação.
Do ponto de vista do estabelecimento da coesão, apenas encontramos problemas em relação aos parágrafos 3 e 6, os quais não foram articulados adequadamente aos anteriores e posteriores. No sexto, esta articulação está falha, até pela omissão da posição que está sendo refutada.
Ainda que esta análise não tenha se esgotado, é possível que se perceba a evidente melhora da qualidade do texto e, conseqüentemente, a maior proficiência da aluna na escrita de artigos de opinião.
Diante de tais resultados, a única conclusão possível é a da adequação da proposta teórico-metodológica.
Durante o desenvolvimento do trabalho, no processo de organização das oficinas, algumas necessidades foram se colocando e, em função delas, a proposta inicial foi sendo reformulada. A seguir apontaremos algumas delas.
Em função da carga horária dada para o curso – seis horas-aula semanais – , e das demais atividades desenvolvidas paralelamente, o trabalho prolongou-se e, se o tempo inicialmente previsto era de quatro meses, acabou por se estender por mais dois meses. Há que se considerar, no entanto, que um mês foi julho (férias).
Foi necessário, em função das necessidades diagnosticadas a partir da produção inicial dos alunos, introduzir atividades que tematizassem aspectos não diretamente relacionados aos discursivos (questões ortográficas, de acentuação, e outras questões gramaticais). Dessa forma, se pensarmos na proposta original na qual esta inspirou-se, há diferenças significativas.
Na verdade, a proposta desenvolvida não foi um exercício de replicação da proposta de Genebra, mas uma articulação da proposta de Genebra com uma proposta de trabalho em desenvolvimento e recomendada pelos PCNs de LP. O que esta reflexão parece mostrar é que esta articulação é, não só possível, como necessária.
Ao termos que desenvolver um trabalho com as questões gramaticais, propriamente, houve necessidade de se realizar um descolamento das questões discursivas. Um cuidado que foi necessário, nesse sentido, foi o de promover o retorno à questão de origem para que esse conteúdo não se perdesse dos demais, ficando descontextualizado e sem finalidade evidente.
Durante o desenvolvimento do trabalho, entre a primeira versão do texto que seria publicado e a última, outros textos foram produzidos e de temas diversos. Isso mostrou-se especialmente interessante, dado que a manutenção da mesma discussão temática mostrou-se cansativa para os alunos, provocando um desinteresse generalizado no início.
De fundamental importância é a organização dos registros sistematizadores do conteúdo abordado em cada oficina/atividade: são instrumentos autonomizadores no processo de revisão e refacção dos textos e orientadores da avaliação.
É absolutamente fundamental o trabalho com a constituição de repertório temático. Esta não precisa se dar a partir, unicamente, de textos do mesmo gênero. Por outro lado, precisa acontecer paralelamente ao processo de constituição de repertório sobre o gênero. Esse processo possibilita a realização de um trabalho de leitura bastante profícuo.
Finalmente, vale considerar que este é um trabalho para o qual o professor necessita ter uma grande disponibilidade para pesquisa de material e organização das atividades, sobretudo se considerarmos que, por ser uma prática inovadora, organizada a partir de articulações teóricas recentes, pouco material de referência existe disponível, principalmente no que se refere à caracterização dos gêneros de texto.
No entanto, não consideramos isto como um problema específico da prática organizada no interior destas referências teóricas. Na verdade, toda e qualquer prática deveria prever momentos de produção de material, discussão, análise e reflexão sobre o trabalho, se a intenção for realizar um ensino de qualidade efetiva. É, sim, uma dificuldade que pode ser superada se um trabalho coletivo for realizado – o que possibilita a divisão e compartilhamento de tarefas – circunstanciado num projeto educativo claro, apoiado por assessorias específicas que desenvolvam um trabalho de apoio crítico constante ao professor. Um projeto que ofereça as condições objetivas e os recursos materiais necessários para o desenvolvimento de qualquer trabalho de qualidade: acervo temático (livros, revistas, jornais, internet), número de alunos por classe compatível com a qualidade da intervenção educativa que se pretenda, uma jornada compatível com a qualidade do trabalho que se almeja, pelo menos.
O resultado obtido com os alunos no desenvolvimento desse projeto, acredito, deve funcionar como uma justificativa que não se pode ignorar, se o que se deseja é a mestria dos alunos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa - Terceiro e Quarto Ciclos. MEC/SEF, 1998.
Dolz, J; Schneuwly, B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita - elementos para reflexões sobre uma experiência suíça (francófona). In: Rojo, R. H. R.; Cordeiro, G. S. (Orgs/Trads). Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução de trabalhos de Schneuwly & Dolz. Campinas: Mercado de Letras, 2004, pp. 41-70.


Praticando os PCNs: dos Parâmetros Curriculares
Nacionais à Prática de Sala de Aula

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.