A PRÁTICA DE REFORMULAÇÃO DE ENUNCIADOS COMO FUNDAMENTO PARA O TRABALHO COM A SIGNIFICAÇÃO NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

May 30, 2017 | Autor: V. Lima Trauzzola | Categoria: Linguistics, Language Teaching
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UNIVERSIDADE FERDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

VANESSA SANTANA LIMA

A PRÁTICA DE REFORMULAÇÃO DE ENUNCIADOS COMO FUNDAMENTO PARA O TRABALHO COM A SIGNIFICAÇÃO NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Guarulhos 2013

VANESSA SANTANA LIMA

A PRÁTICA DE REFORMULAÇÃO DE ENUNCIADOS COMO FUNDAMENTO PARA O TRABALHO COM A SIGNIFICAÇÃO NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da Universidade Federal de São Paulo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências.

Orientadora: Profª Drª Márcia Cristina Romero Lopes.

Guarulhos 2013

Lima, Vanessa Santana A prática de reformulação de enunciados como fundamento para o trabalho com a significação nas aulas de língua portuguesa / Vanessa Santana Lima. – Guarulhos, 2013 135 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2013. Orientadora: Márcia Cristina Romero Lopes Título em Inglês: The practice of statements‟ recasting of as a foundation for the work with meaning in Portuguese classes 1.Teoria das Operações Enunciativas 2. Atividade Epilinguística. 3. Estudo do Léxico. I. Título.

VANESSA SANTANA LIMA

A PRÁTICA DE REFORMULAÇÃO DE ENUNCIADOS COMO FUNDAMENTO PARA O TRABALHO COM A SIGNIFICAÇÃO NAS AULAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da Universidade Federal de São Paulo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências.

Orientadora: Profª Drª Márcia Cristina Romero Lopes.

Aprovado em:

de

de 2013.

Prof. Dr. Valdir do Nascimento Flores Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Prof. Dr. Clécio dos Santos Bunzen Junior Universidade Federal de São Carlos

Profª. Drª. Iara Rosa Farias Universidade Federal de São Paulo

Para Luiz Felipe, meu irmão amado, que muito tem me ensinado sobre a vida, e que, em meio a turbulências, tem se mostrado um homem de grande força e coragem.

Quando um objetivo é alcançado, muitos são os que participaram do processo e contribuíram de alguma maneira para seu êxito. A realização deste trabalho não foge a essa regra. Por isso, meus sinceros agradecimentos à minha querida orientadora Márcia Romero, cujos entusiasmo e amor pelos estudos da linguagem a todos contagiam e nos fazem querer saber sempre mais; por sua confiança e dedicação, mais uma vez, meu muito obrigado. Agradeço à minha mãe Maria por todo carinho, compreensão e incentivo. Sou muito grata ao meu esposo Marcus Vinicius, cujos amor e dedicação fazem minha vida transbordar de alegria. Agradeço ainda aos meus amigos Fernando Quiroga e Tiago Donoso, por toda discordância epistemológica e intermináveis discussões filosóficas, que sempre me estimulam a refletir sobre a importância de se saber ignorante e enxergar a beleza de uma busca que jamais encontra seu termo: o conhecimento. Por fim, agradeço à CAPES e à UNIFESP por todo apoio e confiança.

Criatividade é, pois, mais que um elo entre o conhecimento e a arte. Liga-os à própria vida e à ação do homem sobre o mundo. Mais que elo entre diversas atividades e projetos, é condição deles. Carlos Franchi

RESUMO

A palavra entendida como mero código e produto de uma decodificação têm dificultado, no ensino de língua materna, a existência de reflexões que abordam a produção e compreensão textuais como um processo que permite refletir sobre o próprio material verbal constituindo os enunciados. Nesta pesquisa, defendemos o estudo léxico-gramatical no ensino de língua materna sob a ótica enunciativa, visto este estudo encontrar-se no fundamento de toda e qualquer produção e compreensão textuais de natureza reflexiva, objetivo maior da aprendizagem de língua portuguesa. Assim, esse estudo implica, necessariamente, reconstituir o movimento sobre o qual se originam os usos linguísticos. Para tanto, toma-se como ponto de partida a manipulação do material verbal que compõe os enunciados a fim de nos aproximar da estrutura interna que rege e autoriza as possibilidades de construção de sentido das unidades lexicais quando em uso. Cabe ressaltar que esta pesquisa, inscrita no referencial da Teoria das Operações Enunciativas (CULIOLI, 1990, 1999a, 1999b, DE VOGÜÉ, FRANCKEL, PAILLARD, 2011), se constitui como uma proposta de atividade de reflexão sobre o funcionamento da língua que envolve operações linguísticas e cognitivas mobilizadas para produzir sentido. Para alcançar tal objetivo, partimos da análise de uma unidade linguística precisa, o verbo ROMPER. Isso porque, de acordo com nosso referencial teórico, uma unidade caracteriza-se como um elemento que, não fazendo parte de um “campo semântico” delimitado independentemente dela, estabelece um movimento enunciativo único e singular, cujo estudo diz muito a respeito do próprio funcionamento da atividade de linguagem em si. Mais precisamente, busca-se observar, na reconstrução da significação dos enunciados que o contenham, como se dá a integração entre as representações de natureza da linguagem oriundas de textos coletados em fontes variadas, tais como dicionários, jornais, revistas e internet, e as construídas a partir de produções literárias, contexto em que a liberdade de criação semântica permite evocar representações singulares, mas que dizem respeito ao verbo e aos termos por ele mobilizados para significar. Deste modo, a metodologia aqui proposta toma como base o conceito de “epilinguismo” (ROMERO, 2011), definido por Culioli como atividade metalinguística não consciente (1999a), mas que, pela prática de manipulação linguística de enunciados envolvendo a glosa, pode adquirir formas que tragam à consciência esse saber. Acreditamos que esta prática, ao favorecer o planejamento de situações didáticas que possibilitem “ensinar o aluno a pensar o seu pensar” (REZENDE, 2008, p.96), auxilia na promoção de atividades que viabilizem a aprendizagem reflexiva do

funcionamento da língua materna, contribuindo, consequentemente, para alcançar um dos maiores objetivos – se não o maior – da educação básica em nosso país, que é, por meio do desenvolvimento das habilidades leitora e escritora, proporcionar a afirmação do aluno como ser discursivo, envolvendo-o “com os processos sociais de criar significados por intermédio da utilização de uma língua” (BRASIL, 1998, p.19).

Palavras-chave: Teoria das Operações Enunciativas. Atividade epilinguística. Estudo do léxico.

ABSTRACT

The word understood as a mere code and product of a mechanical decoding has hindered, in mother tongue teaching, the existence of reflections that address the textual production and comprehension as a process that allows to reflect on the verbal material itself constituting the statements. In this research, we advocate the lexical grammar study in the teaching of mother language under the enunciative view, but from an expository approach, as this study lies at the foundation of any production and textual comprehension of reflexive nature, main goal of learning Portuguese. Thus, this study implies, necessarily, reconstruct the motion on which the linguistic usages are originated from. To do so, it is taken as its starting point the manipulation of verbal material that composes the statements in order to get closer to the internal structure that rules and authorizes the possibilities of construction of meaning of lexical units when in use. Note that this research, developed from the perspective of Theory of Enunciative Operations (CULIOLI, 1990, 1999a, 1999b, DE VOGUE, FRANCKEL, PAILLARD, 2011), is a suggested activity to reflect upon the functioning of the language involving linguistic and cognitive operations mobilized to produce meaning. To achieve this goal, we started from the analysis of a precise linguistic unit, the verb ROMPER. That's because, according to our theoretical framework, a unit characterized as an element that is not part of a "semantic field" bounded independently of it, establishes a unique and singular movement of enunciation, which study says much about the actual functioning of the activity of language itself. More precisely, we seek to observe, on a meaning reconstruction of the statements containing it, how is the integration between the representations of the nature of language derived from texts collected from various sources, such as dictionaries, newspapers, magazines and internet, and the ones built from literary productions, the context in which the creative semantic freedom allows unique representations, but which relate to the verb and the terms deployed by it to mean. Thus, the methodology proposed here is based on the concept of "epilinguism" (ROMERO, 2011) defined by Culioli as nonconscious metalinguistic activity (1999a), but which finds, in practice of linguistic manipulation of statements involving the comment, a means of making conscious a nonconscious knowledge. We believe that this practice, by making easier the planning of didactic situations that allow to "teach students to think about their thinking" (REZENDE, 2008, p.96), assists on the promotion of activities that make possible the reflective learning of the operation of mother tongue, contributing thus to achieve a major goal - if not the greatest – of basic education in our country, that is, through

the development of reading and writing skills, provide the affirmation of the student as a discursive being, involving him "with social processes of creating meaning through the use of a language "(BRASIL, 1998, p.19).

Keywords: Theory of Enunciative Operations. Epilinguistic activity. Lexical study.

SUMÁRIO Introdução ..................................................................................................................................................................................... 11 Capítulo I – Sobre a relação entre linguagem, língua e cognição ......................................................................... 21 1.1.

Considerações iniciais........................................................................................................21

1.2. A Teoria das Operações Enunciativas e os processos de significação na língua .......................36 1.2.1. Princípios fundantes........................................................................................................................................... 38 1.2.2. Sobre a construção da referência .................................................................................................................. 43 1.2.3. Os níveis de representação cognitiva, linguística e metalinguística .............................................. 50 Capítulo II – Concepções de sentido e linguagem no ensino de Língua Portuguesa .................................... 57 2.1. Gramática enquanto construto teórico .....................................................................................58 2.2. A abordagem semântica acerca da produção de sentido das unidades lexicais: polissemia, sinonímia e homonímia .................................................................................................................66 2.3. Análise de atividade proposta por livro didático ......................................................................75 Capítulo III – O estudo do léxico a partir da análise de sua dinâmica enunciativa ........................................ 81 3.1. A atividade epilinguística como fundamento para o desenvolvimento de uma abordagem construtivista da linguagem ...........................................................................................................83 3.2. O funcionamento enunciativo do verbo ROMPER ..................................................................85 3.2.1. Sobre a investigação do verbo em análise ................................................................................................ 85 3.2.2. Sobre a dinâmica enunciativa de ROMPER ............................................................................................ 88 3.3. A prática da reformulação controlada como proposta didático-pedagógica para o ensino do léxico em língua portuguesa ........................................................................................................ 102 3.4. Uma proposta para o estudo operatório e enunciativo do texto literário ................................. 105 Conclusão .................................................................................................................................................................................. 118 Bibliografia................................................................................................................................................................................ 121 ANEXO ...................................................................................................................................................................................... 126

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Introdução

Há certos mistérios que aguçam a curiosidade humana de tal forma que são capazes de transformar em definitivo a maneira de compreender o mundo e a própria existência, fixandose como palco para a pululação de infinitas teorizações acerca do objeto que lhe provoca o espanto. Assim é o caso das questões que envolvem o funcionamento das línguas naturais e a atividade de linguagem. Frequentemente nos espantamos e nos encantamos com criações linguísticas, muitas vezes inusitadas e sempre muito criativas, produzidas pelas crianças pequenas; assim também ocorre com as gírias juvenis, com os neologismos tão frequentes nos textos jornalísticos e, invariavelmente, nos vemos estupefatos diante das construções poéticas. Tais fenômenos costumam, por vezes, suscitar tamanha interrogação, que nos pomos a imaginar que mecanismos tão extraordinários e misteriosos circundam a mente humana para nos tornar capazes de eventos tão naturais, e ao mesmo tempo tão imprecisos, que nos permitem usufruir das artimanhas da linguagem. Este desejo de desvendar os mistérios da língua e da linguagem é, como podemos supor de antemão, bastante antigo. Os hindus, seis séculos antes de Cristo, motivados por questões religiosas, se puseram a estudar o sânscrito, especialmente em seus aspectos fonéticos e fonológicos, “para que os textos sagrados reunidos no Veda não sofressem modificações no momento de ser proferidos” (PETTER, 2005, p.12). Ainda no século IV a.C., Panini e outros gramáticos hindus empenharam-se na descrição minuciosa de sua língua, e muito embora suas motivações fossem religiosas e não científicas, tal empreitada figura entre uma das mais remotas tentativas de descrição de uma língua enquanto sistema, trabalho descoberto apenas no final do século XVIII por estudiosos do ocidente (PETTER, 2005). Foi, no entanto, na Grécia Antiga que surgiram os questionamentos acerca da linguagem – e que até hoje funcionam como o leitmotiv para diversas correntes da linguística e da filosofia que se ocupam do tema. Uma das questões centrais de Platão era entender de que maneira as palavras representavam de fato a realidade, o que instaura, assim, a discussão milenar acerca da convencionalidade ou não-convencionalidade entre as palavras e as coisas do mundo. Aristóteles, posteriormente, assume a convencionalidade do signo e passa a desenvolver teorias acerca do funcionamento da linguagem. Assim, para este filosófo, a linguagem

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consistiria em nomes que se articulavam com verbos para formar sentenças que, quando declarativas, descreveriam o real e poderiam adquirir o status de verdadeiras ou falsas em relação ao real que descreviam (MARCONDES, 2009). Inaugurou-se, deste modo, o estudo sistematizado acerca da relação entre linguagem, pensamento e a experiência humana. Desde então, a linguagem tem sido considerada como uma das qualidades fundantes para distinção entre os homens e os outros seres da terra. Sua existência mistura-se ao sentimento de humanidade e, justamente por isso, tem sido o centro de estudos que buscam compreender as leis que regem seus mecanismos, os fatores que permitem o surgimento das línguas naturais; e ainda, quais relações esses elementos estabelecem com o pensamento e com o mundo. As respostas encontradas ao longo dos séculos nem sempre se veem em consonância umas com as outras. Há, inclusive, consideráveis controvérsias entre elas, pois, como diria Borges, “é verdade que algumas milhas à direita a língua é dialetal e que, noventa andares mais acima é incompreensível” (2007, p.72). Há correntes que entendem a língua como expressão do pensamento, outras como um elemento constitutivo da biologia humana, para outras a língua seria a faceta essencial da linguagem, enquanto outras a definem como um dos agentes que estruturam o pensamento. De fato, não há consenso, mas do mesmo modo, é arriscado afirmar que haja verdades absolutas nesse campo. A distinção entre língua e linguagem, contudo, nem sempre é clara, antes disso, é quase sempre bastante difusa. Em certos momentos, a linguagem parece se assemelhar a uma nuvem, que paira sobre nossas cabeças e cuja presença se faz sentir, sendo a nós permitido conhecer apenas as suas nuances e algumas características estabelecidas sob um mar de controvérsias, pois, como bem definiu Saussure: [...] a linguagem é multiforme e heteróclita; o cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade (2006, p, 17).

Exatamente por isso, para desvendar-lhes as formas, seria irrevogável o distanciamento, contemplá-las de fora para iludirmo-nos com uma tangibilidade que nos parece inacessível em sua íntegra. E assim, as vislumbramos por meio de suas formas, sua materialidade só nos chega ao desabarem sobre nós em torrentes, de água ou de palavras. Neste sentido, a linguagem, ao se materializar nas formas linguísticas, nos autoriza uma

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aproximação, uma vez que, ainda nas palavras do mestre genebrino, a “língua, ao contrário da linguagem é um todo por si e um princípio de classificação” (2006, p.17, grifo nosso). Como vemos, para atingir o cerne dessas questões (ou, ao menos, aproximar-se dele), o homem tem, ao longo da história, se debruçado sobre os elementos que compõem esse mecanismo tão sofisticado, que nos singulariza dentre as outras criações da natureza, ao mesmo tempo em que nos permite construir um mundo não-natural e absolutamente humano: o mundo cultural, no qual a coesão social, política e econômica se dão pelo estabelecimento de contratos sociais, do qual a língua é o primeiro e o mais essencial. Sem sua existência, nenhum outro poderia ser estabelecido, o que, dito de outra forma, indicaria que “a língua contém a sociedade” (BENVENISTE, 2006, p.97), fato evidenciado por meio da análise de seu léxico, que “conserva testemunhos insubstituíveis sobre as formas e as fases da organização social, sobre os regimes políticos, sobre os modos de produção que foram sucessiva e simultaneamente empregados” (BENVENISTE, 2006, p.100). Quando pensamos que tipo de relação pode existir entre esses dois elementos – a língua e a linguagem – acreditamos ser imprescindível, antes, definir a que concepção de língua e de linguagem estamos nos referindo – e que recorte histórico e teórico embasa nossa argumentação. A língua, em seu aspecto social, pode ser compreendida como o idioma próprio de um povo, composto de um repertório lexical que permite estabelecer comunicação entre os indivíduos de uma mesma comunidade linguística. Dentro dessa perspectiva, a língua é o instrumento da comunicação, comportando em seu interior um grande número de variações, igualmente importantes para a efetivação da comunicação; desta forma, é possível identificar variantes linguísticas definidas a partir da utilização que os grupos sociais fazem da língua e do prestígio ou desprestígio que a sociedade atribui a essas variantes, falando-se em “língua familiar, elevada, técnica, erudita, popular, [gírias], próprias de certas classes sociais, a certos subgrupos [adolescentes, grupos profissionais, etc.]” (DUBOIS et al., 2006, p.378), além das variações características de certas regiões geográficas . Podemos falar, ainda, de língua enquanto código, ou seja, o meio através do qual a comunicação se estabelece, podendo se apresentar de forma oral, escrita ou por gestos visuais (língua de sinais). Em outra instância, sob o ponto de vista da linguística, que estuda a língua em seu nível mais abstrato, trata-se de um sistema de relações de natureza abstrata, cujos elementos –

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os signos linguísticos1 – se distinguem uns dos outros por meio da singularidade de suas funções no seio desse sistema. Neste sentido, o que está sob análise é um conjunto de regras que organiza esses elementos, e que se encontra “depositado” no cérebro de cada falante de uma dada comunidade linguística. Portanto, não são postas em relevo as variações linguísticas observadas em determinados grupos sociais, dado que cada variação é também regida por esse mesmo sistema gramatical, adquirido e internalizado por todos os falantes da língua, independentemente de sua idade, sexo, classe social ou profissional. No caso da linguagem, sua definição e até mesmo delimitação enquanto objeto de estudo configura um caso particular de grande complexidade. A linguagem, abordada de modo não específico, encontra-se amplamente associada a uma gama de noções que remetem às mais variadas formas de comunicação, que, em geral, têm em comum o fato de disporem de um conjunto de elementos – signos linguísticos ou símbolos ou sinais gráficos, gestuais e sonoros – por meio dos quais é possível exprimir informações, sensações e pensamentos, podendo, ainda, associar-se a atividades de origem humana, animal e a sistemas de inteligência artificial. Sob este aspecto, cabe fazer uma partição entre os objetos de interesse e as áreas que deles se ocupam. Quando nos referimos à investigação acerca da linguagem verbal humana, estamos no campo da Linguística; em contrapartida, quando o objeto de estudo engloba outros sistemas de comunicação, inclusive não-verbais, é a Semiótica que dele se ocupa (PETTER, 2005). Por essa razão, talvez o mais adequado, ao nos referirmos aos sistemas semióticos, seria falarmos em atividades comunicativas ou de comunicação, pois abarcam uma série de representações, muitas não necessariamente associadas à capacidade humana de se expressar, tais como: linguagem corporal, linguagem musical, linguagem das cores, linguagem artística, linguagem das abelhas ou dos golfinhos, linguagem de programação, linguagem matemática, linguagem infantil, linguagem jurídica, linguagem figurada ou figuras de linguagem, linguagem de sinais, linguagem oral, linguagem escrita, etc. Embora não partamos de uma análise profunda da questão, entendemos a linguagem como uma capacidade intrinsecamente humana, que nos permite simbolizar, ou seja, nos possibilita criar representações mentais por meio de signos ou símbolos, sendo a língua 1

Adotamos, aqui, a concepção de signo linguístico tal qual definida por Saussure em seu Curso de Linguística Geral (2006): uma entidade psíquica e arbitrária de dupla face. Em outras palavras, o signo linguístico é uma entidade que nos permite criar representações mentais, sem que por isso haja uma relação de necessidade entre significante/significado e o mundo exterior ao da linguagem. Assim, entendemos que o signo é arbitrário na medida em que as palavras não são as coisas, a imagem acústica não aprisiona o significado como sendo seu conteúdo intrínseco; da mesma maneira, o significado não é o objeto, mas apenas uma elaboração psíquica cunhada a partir da forma como percebemos o mundo.

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produto dessa capacidade. No entanto, notamos que há situações em que as noções de língua e linguagem se confundem e que, em outras, é demasiado custoso estabelecer qualquer tipo de relação entre linguagem, enquanto capacidade humana inata, e outros sistemas semióticos, como é o caso dos sistemas computacionais que não elaboram por si qualquer enunciado, mas reproduzem sequencias lógicas previamente estabelecidas. Sob um ponto de vista puramente especulatório, ousaríamos dizer que um pouco dessa falta de clareza conceitual (dos termos língua e linguagem) pode ser atribuída a problemas de tradução de textos teóricos, cuja língua em que foram originalmente elaborados não dispõe de termos particulares para tratar da língua e da linguagem – sem que, por isso, não haja uma distinção conceitual marcada nas reflexões e análises acerca desses fenômenos. Para exemplificar, trazemos as formas como se iniciam as definições de língua e linguagem apresentadas no renomado Dicionário de Linguística elaborado por Jean Dubois e colaboradores. Nele, a língua é compreendida como “um instrumento de comunicação, um sistema de signos vocais específicos aos membros de uma comunidade” (2006, p.378), enquanto a linguagem seria “a capacidade específica à espécie humana de comunicar por meio de um sistema de signos vocais” (2006, p.387). Não há dúvidas, aqui, sobre a proximidade entre as definições, o que reforça a dificuldade em se estabelecer os limites entre esses dois elementos. Partindo dessas considerações, nossa reflexão estará pautada na noção de língua enquanto sistema relacional composta por signos linguísticos, cuja arbitrariedade lhe é constitutiva; já a linguagem será tomada como a capacidade intrinsecamente humana que nos concede um potencial enunciativo, por meio do qual somos capazes de simbolizar e significar o mundo. Para além dessa diferença, é necessário pontuar que não estamos concebendo a linguagem como sinônimo de pensamento, já que assumimos a concepção de que pensamento e linguagem se caracterizam como capacidades humanas que convivem e se inter-relacionam de maneira indissociável. Assim, parece-nos pertinente cogitar a existência de uma rede de relações que se entrecruzam de diversas formas entre língua, linguagem e também pensamento. Incluímos, aqui, este último, por ser frequentemente associado à produção linguística, o que pode ser observado já nas proposições de Saussure, para quem o pensamento tomado em si mesmo “é como uma nebulosa onde nada está necessariamente delimitado” e por essa razão “não existem ideias preestabelecidas, e nada é distinto antes do aparecimento da língua” (2006, p.130). Todavia é preciso fazer uma ressalva, pois a afirmação saussuriana não pode ser interpretada sob a mesma perspectiva de certas correntes teóricas que entendem a língua como

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ferramenta de expressão do pensamento. Oposto a isso, língua, enquanto um dos mecanismos da linguagem, e o pensamento são concebidos com indissociáveis. Ora, se assim não o fosse, qual seria o papel da linguagem neste processo? Entendemos, assim, que a linguagem e o pensamento configuram a parte simbólica e inerente aos seres humanos, existindo em cada indivíduo, independente de ele se apropriar ou não de uma língua, que é um fator de caráter social. No entanto, não acreditamos ser possível a ocorrência de um sistema linguístico de fato ou a elaboração de pensamentos sem que haja a faculdade de linguagem. Visto desta forma, não é possível conceber os sistemas de comunicação animal e os relacionados à tecnologia da informação como elementos que possuam uma linguagem, dado que esta seria um potencial específico e inerente aos seres humanos. No caso específico dos animais, que desperta discussões mais acaloradas, não se pode refutar que há algum mecanismo de comunicação que lhes é inerente, mas não nos parece possível equipará-lo ao sistema de linguagem humano, que envolve aspectos cognitivos, culturais e articulatórios. Em suma, as faculdades de linguagem e pensamento associados ao uso de sistemas linguísticos é o que nos distancia das outras criaturas, essencialmente por estarem profundamente relacionados ao fato de nos constituirmos como seres sociais, históricos e culturais. A língua, sob esse enfoque, seria o meio através do qual acessamos os valores compartilhados que dão coesão às sociedades. Não queremos dizer com isso que, sem língua, não há pensamento ou possibilidade de significar o mundo e a própria existência, mas que sua ocorrência deve, muito provavelmente, se dar em outro formato, ao qual dificilmente teremos acesso. Com base nessas proposições, podemos conceber outro esquema relacional, no qual a língua funcionaria como elemento estruturante do pensamento, pois seu aspecto social é responsável pela entrada de cada indivíduo no mundo da cultura. É por meio da língua que delineamos nosso modo de ver o mundo. Aquilo que expressamos e que pode ser identificado como nossa visão de mundo não é passível de ser interpretado nem como tradução do nosso pensamento, nem como a materialização da faculdade de linguagem, nem como a língua enquanto sistema. O que produzimos linguisticamente configura-se mais como a face tangível das relações estabelecidas entre esses três elementos. Feitas essas considerações, o que de fato nos propomos neste trabalho, é refletir acerca de como a língua representa e constrói nossas simbolizações acerca do que nos rodeia, ou ainda de fatores que não são mais que frutos da nossa imaginação e criatividade, e, mesmo sem estabelecer uma estreita relação com a realidade observável e perceptível, nos são

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sensíveis de alguma forma, fazem parte do conjunto de nossas representações mentais, tornando-se passíveis de serem representados linguisticamente. Além disso, nos parece pertinente compreender de que forma sentido, língua e linguagem são concebidos por diferentes correntes teóricas, sem objetivar o aprofundamento em cada uma delas, mas apenas a título de compreender de que maneira elas se refletem no ensino de Língua Portuguesa, especialmente no que tange a seus aspectos semânticos e estruturais. Para tanto, fundamentamo-nos na Teoria das Operações Enunciativas (TOE), referencial teórico desenvolvido por Antoine Culioli (1990, 1999a, 1999b), e nos procedimentos metodológicos descritos por Jean-Jacques

Franckel (DE

VOGÜÉ,

FRANCKEL, PAILLARD, 2011) e que tomam por fundamento a atividade de manipulação e reformulação de enunciados. Esta prática de manipulação de enunciados encontra sua fundamentação na elaboração de glosas, processo que consiste em um modo específico de parafrasagem de enunciados, cujo propósito é o de reformulações controladas do material verbal2, com vistas à identificação dos processos de construção de sentido de unidades lexicais específicas e comuns a todos os enunciados selecionados; sendo assim, o “acesso à identidade de uma unidade pode ser constituído pela análise metodologicamente controlada do papel que ela desempenha nos enunciados em que é colocada em jogo, papel analisado frente ao contexto convocado” (FRANCKEL, 2011c, p.119). Consiste, portanto, em uma atividade reflexiva acerca dos fatos da língua, permitindo o acompanhamento da progressão do raciocínio lógico efetuado na ação, bem como a ativação de processos cognitivos específicos à atividade de linguagem. Nas palavras de Franckel, nesta metodologia da reformulação, “o que está em jogo é o estabelecimento de procedimentos controláveis, que passam por uma argumentação e que se apoiam em fatos da língua reproduzíveis [...]” (2011c, p.107).

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A reformulação controlada, uma operação fundamentada na atividade epilinguística constitutiva da linguagem, diz respeito a uma atividade de caráter metalinguístico realizada de forma consciente em que se busca entender a dinâmica enunciativa do léxico em análise e o papel que desempenha no jogo enunciativo. Para tanto, partimos de “um pequeno encadeamento de palavras contextualizável e inteligível” em que “cada unidade de uma sequência é considerada em um cotexto (o resto da sequência), e mais amplamente em um ambiente textual” (FRANCKEL, 2011, p.107, In. DE VOGÜÉ, FRANCKEL, PAILLARD, 2011). A metodologia promove, portanto, a possibilidade de estudo e análise dos possíveis efeitos de sentido produzido pela unidade, por meio da identificação dos contextos linguísticos que ela própria convoca para funcionar dentro da língua, bem como os argumentos que são ou não possíveis para a produção de sentido.

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Desta forma, ao estudarmos um único elemento léxico-gramatical, seu comportamento enunciativo nos diferentes contextos, os termos que convoca para produzir os diferentes valores semânticos, somos capazes de perceber as regularidades subjacentes a todo o sistema. Em função disso, partimos da análise de uma unidade linguística precisa, o verbo ROMPER, sem caracterizá-la como parte de um “campo semântico” delimitado independentemente dela, mas como uma unidade de língua que estabelece um movimento enunciativo único e singular, cujo estudo – minucioso – diz muito a respeito do próprio funcionamento da atividade de linguagem em si. A escolha por esta unidade específica se deve ao fato de esta pesquisa integrar um conjunto de estudos sobre unidades lexicais que a priori seriam classificadas como pertencentes ao mesmo campo semântico, em função de sua proximidade semântica em determinados contextos de inserção. Contudo, o que nos foi possível evidenciar é a efetiva singularidade de funcionamento de cada uma das unidades sob análise neste projeto, o que faz com que a concepção de “proximidade semântica” que englobaria verbos como quebrar, romper, partir e rasgar em um mesmo campo satisfaça apenas a uma análise menos profunda e detalhada de suas especificidades semânticas e enunciativas. 3 Tal investigação, centrada na observação do funcionamento enunciativo de sequências envolvendo o verbo ROMPER, busca analisar, por meio de práticas específicas e controladas de reformulação e de manipulação da materialidade linguística destas sequências, quais os processos de apropriação que sustentam a compreensão de textos nos quais este verbo se faça presente. Mais precisamente, busca-se observar, na reconstrução da significação dos enunciados que o contenham, como se dá a integração entre as representações de natureza da linguagem oriundas de textos coletados em fontes variadas, tais como dicionários, jornais, revistas e internet, e as construídas a partir de produções literárias, contexto em que a liberdade de criação semântica permite evocar representações singulares, mas que dizem respeito ao verbo e aos termos por ele mobilizados para significar. Considerando a perspectiva de análise enunciativa das unidades léxico-gramaticais que assumimos, o estudo ora proposto tem em seu cerne a busca por novas estratégias para o desenvolvimento do trabalho com o léxico nas aulas de língua portuguesa. Para tanto, trazemos uma breve análise de como o livro didático vem abordando a construção do sentido 3

Esta pesquisa, assim como as outras em desenvolvimento, integra os estudos do Núcleo Temático “Linguagem e Cognição” do programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência. Seu objetivo maior é trazer contribuições para o campo do desenvolvimento linguístico e cognitivo da criança e do adolescente em idade escolar que incidam sobre o estudo do sujeito em seus modos de agir e manipular a linguagem.

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na poesia, e como os métodos adotados acabam por deixar a significação ou significações por ela enunciada(s) em segundo plano. Em função disso, desenvolvemos algumas possibilidades de trabalho com o texto poético partindo da materialidade que o constitui, e que encontra sua justificativa no fato de entendermos o texto – e, aqui, nos referimos em especial ao texto literário e à poesia – como uma unidade semântica, produto de uma organização em que o funcionamento linguístico de cada elemento lexical desempenha papel crucial no processo enunciativo do texto, acarretando as variadas possibilidades de apreensão dos sentidos que lhe possam ser atribuídos. Como corpus de análise, utilizamos exemplos extraídos de fontes lexicográficas reconhecidas (BORBA, 1991, FERREIRA, 2009, HOUAISS, VILLAR, 2009) e de obras literárias, mais especificamente, poesias, além de consultas a fontes primárias, i.e bases textuais disponibilizadas na web em que o verbo ROMPER, objeto de nosso estudo, se faça presente4. Com esse vasto leque de exemplos, buscamos mostrar os mecanismos que norteiam a variação da unidade em análise por meio dos usos verificados nas diferentes situações enunciativas, possibilitando, inclusive, um novo olhar sobre a produção de sentido no texto literário, uma vez que assumimos um posicionamento frente à poesia que ultrapassa os ditames metafóricos: em nosso estudo, a criatividade poética não é um atributo constitutivo apenas da subjetividade do autor ou qualidade irrefutável do sentido figurado, mas configura, antes de tudo, possibilidades de significação previstas pelo potencial significante que caracteriza cada unidade lexical que compõe o texto. A posteriori, analisaremos o comportamento enunciativo de ROMPER na poesia Retrospectiva de Flora Figueiredo e apresentamos uma proposta didática de estudo do texto nas aulas de língua portuguesa. Desta forma, partindo do nosso pressuposto teórico, buscamos evidenciar que a possibilidade de significar advém da estrutura própria dos elementos léxico-gramaticais que compõem os enunciados, da maneira que se organizam e se auto-convocam para enunciar. Como consequência de uma proposta que parte da manipulação do material verbal que compõe os textos literários, não cabe, em nossos estudos, enfatizar a análise do contexto histórico social das produções literárias, nem mesmo as características subjetivas do autor. Que isso não signifique negar a importância desses estudos. O que buscamos é tão e somente apresentar mais uma possibilidade de se olhar para as construções linguísticas dentro do

A coleta da base de dados utilizada ao longo deste estudo foi realizada entre setembro de 2011 e dezembro de 2012. 4

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contexto literário, de se olhar mais detidamente para o papel da materialidade linguística na construção da significação do texto poético. Com o intuito de facilitar a visualização do trajeto percorrido para o desenvolvimento deste estudo, optamos por restringir sua organização a três capítulos e à conclusão. Desta forma, no primeiro capítulo “Sobre a relação entre linguagem, língua e cognição”, apresentamos de que modo a Teoria das Operações Enunciativas retoma e resignifica questões envolvendo a língua, a atividade de linguagem e o pensamento, questões essas há muito estudadas e pensadas por diversos autores de diferentes correntes, que, inseridas na escola de pensamento culioliana, fazem emergir novas maneiras de observá-las e compreendê-las. No segundo capítulo, “Concepção de sentido e linguagem no ensino de Língua Portuguesa”, apresentamos e discutimos a maneira como questões relativas aos estudos da significação das unidades léxico-gramaticais são abordadas em trabalhos teórico-gramaticais e um exemplo de atividades encontradas com frequência em livros didáticos destinados à educação básica5. Para que este objetivo seja alcançado, propomos uma reflexão acerca de conceitos arraigados na tradição do ensino do léxico e estabelecemos contraposições com a perspectiva defendida por nosso referencial teórico, evidenciando, desta maneira, sua contribuição para o desenvolvimento de práticas pedagógicas que favoreçam o exercício do raciocínio lógico acerca dos fatos da língua e seus dos processos de significação. Em nosso terceiro capítulo, “O estudo do léxico a partir da análise de sua dinâmica enunciativa”, concentramos o que julgamos ser o “coração” da pesquisa, pois, nele, apresentamos a análise do funcionamento enunciativo do verbo ROMPER, bem como uma proposta didática para o trabalho com a poesia em sala de aula. Tal proposta visa à aplicação dos pressupostos teóricos defendidos pela Teoria das Operações Enunciativas e a pôr em prática a metodologia de manipulação de enunciados concebida por Franckel no contexto educacional, em que estratégias que colaborem para o processo de aquisição da leitura e escrita são tão almejadas. Além disso, acreditamos que as propostas aqui apresentadas surjam também como uma possibilidade de fazer com que professores e alunos reflitam juntos e continuamente acerca dos encantos e mistérios que envolvem a língua materna, da qual não nos separemos nem mesmo em sonhos, mas em que dificilmente pensamos.

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Neste trabalho, optamos por não apresentar, nem analisar as diversas coleções didáticas às quais tivemos acesso, assim como por não expor as propostas de trabalho com o léxico observadas, e isso por julgarmos que uma abordagem profunda do tema exigiria a realização de um trabalho à parte.

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Capítulo I – Sobre a relação entre linguagem, língua e cognição Não é o homem que produz a linguagem, é a linguagem que produz o homem. Sarah de Vogüé

1.1.

Considerações iniciais As reflexões acerca da cognição, da linguagem e da língua, assim como seus atributos,

processos e a maneira como estão, de algum modo, interligados, têm suscitado, ao longo da história, inúmeras indagações, dando origem a uma extensa gama de teorias que pretendiam – e pretendem – solucionar certos impasses. Considerados, por grande parte das teorias que deles se ocupam, como fatores essencialmente humanos, esses elementos têm figurado entre os objetos de estudo que mais despertam o interesse entre as mais diversas áreas do conhecimento, suscitando inquietações ao espírito de filósofos, linguistas, antropólogos, psicólogos, biólogos e inclusive lógicos e matemáticos. Justamente por estar sob o olhar de perspectivas tão díspares, as conclusões encontradas, nem sempre convergentes e das quais decorrem, inclusive, profundos abismos entre si, culminam, inevitavelmente, em uma série de controvérsias sobre o tema. Com efeito, tais meandros referentes à linguagem, há séculos têm despertado a curiosidade humana, suscitando dispendiosos estudos e teorias que apontam para a compreensão das leis que regem seus mecanismos, dos fatores que permitem o surgimento das línguas naturais; e ainda, têm indagado sobre quais relações esses elementos estabelecem com a cognição (o pensamento) e com o mundo objetivo. As respostas – como já observamos – nem sempre estão em consonância, mas tais controvérsias apoiam-se em um ponto comum, que consiste, grosso modo, na busca pelo sentido e pela compreensão da maneira como o homem significa o mundo, a vida e a si próprio. Para atingir o cerne dessas questões (ou ao menos aproximar-se dele), o homem tem, ao longo da história, se debruçado sobre os elementos que compõem esse mecanismo tão sofisticado, que nos singulariza dentre as outras criações da natureza, funcionando como uma espécie de “título de nobreza da humanidade” (HJELMSLEV, 2009, p.1), pois nos permite construir um mundo não-natural e absolutamente humano: o mundo cultural, no qual a coesão social, política e econômica se dá pelo estabelecimento de contratos sociais, dentre os quais a

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língua é o primeiro e mais essencial. Sem sua existência, nenhum outro poderia ser estabelecido. Greimas (1973), linguista lituano que se dedicou ao estudo das questões da linguagem e da significação, afirma que “o mundo humano se define essencialmente como o mundo da significação. Só pode ser chamado „humano‟ na medida em que significa alguma coisa” (p.11). Essa importância que o homem passou a atribuir à palavra para significar a própria existência já aparece registrada no primeiro livro da Bíblia, literatura cuja relevância para a história da humanidade faz dispensar quaisquer comentários. No primeiro capítulo do Gênesis é narrada, de maneira bastante poética, a criação do mundo e da humanidade. Nele, Deus tem como único instrumento de criação a atividade de linguagem, e por meio dela faz surgir tudo o que existe, bastando que pronuncie a sequência “Que exista ... !”, para que qualquer substância passe imediatamente a existir, dando origem, assim, a toda criação e ao mundo natural. Trazemos isso à tona, não por motivações religiosas, mas por encontrarmos em um texto milenar, sem pretensões científicas, uma clara referência ao poder instituído à linguagem para construção da realidade, ao quanto é necessário atribuirmos sentidos ao mundo para que ele, de fato, exista. Outro exemplo que nos traz uma boa ilustração dessa necessidade humana em construir o mundo por meio da linguagem remonta ao princípio da era moderna, mais especificamente, ao período que sucedeu a Revolução Francesa. Nesta época, os revolucionários tinham como objetivo consolidar seus ideais na consciência de seus contemporâneos, para que assim fosse possível “construir uma nova sociedade baseada em novos princípios e relações sociais” (DARNTON, 2010, p.27). Para tanto, acreditavam que era imprescindível apagar as marcas do Ancien Régime, e tudo aquilo que lhe fizesse referência deveria ser renomeado. Como consequência, trocaram os nomes do que foi possível, as semanas passaram a ter dez dias – seus nomes agora seguiam a ordem numérica (primidi, doudi, tridi...) – e os meses, três semanas. Se os meses continuaram a ser doze, suas novas denominações faziam, entretanto, referência às estações do ano e aos estados da natureza durante esses períodos. Desta forma, janeiro passou a se chamar nivôse (o mês da neve), fevereiro, pluviôse (o mês da chuva), março, ventôse (o mês do vento), e assim por diante. De acordo com Darnton (2010), durante esta fase, os revolucionários trocaram os próprios nomes e renomearam 1400 ruas de Paris. Lançamos mão dessa particularidade de um momento histórico tão conturbado para salientar a complexa e íntima relação do homem com a linguagem, e o poder transformador que lhe atribuímos.

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Retomando a narrativa bíblica, Fiorin (2010) chama a atenção para outra passagem que evidencia não apenas o poder que atribuímos à linguagem, mas apresenta, de maneira implícita, a arquitetura das condições para a instauração do discurso, para inserção do homem na língua e a inserção das marcas da atividade enunciativa nesse processo. Ainda no livro do Gênesis, quando Adão e Eva desobedecem às ordens de Deus e provam do fruto da árvore proibida, tomando posse do conhecimento (ação que marca a transição do homem do mundo natural para o cultural), recebem como castigo o que entendemos fazer parte da própria condição humana: a manutenção da vida não se concretiza sem esforço – é preciso trabalhar para subsistir – e a mulher passa a conceber a vida em meio à dor; a passagem do homem pela Terra é marcada pela certeza de sua finitude; a convivência com o meio natural não se dá em plena harmonia, sofremos a hostilidade da força da natureza. Com isso, a entrada do homem na História é marcada pelos efeitos do tempo (a morte), do espaço (a natureza) e da actorialidade (o trabalho), e mostra que “o homem foi submetido às coerções dessas que são as três categorias enunciativas. Colocar o homem na História é enunciá-lo” (p.14). Assim, refletir sobre a linguagem é, antes de tudo, pensar a própria existência humana. De um lado, temos suas características histórica e social, dado que “nenhuma sociedade conhece nem conheceu jamais a língua de outro modo que não fosse como um produto herdado de gerações anteriores e que cumpre receber como tal.” (SAUSSURE, 2006, p. 86). De outro, a faculdade de linguagem sendo concebida, por muitas teorias, como um elemento constitutivamente humano, que nos imbui da capacidade de desenvolver uma língua e de nos expressarmos por meio dela, o que requer, para tanto, um potencial cognitivo específico e uma composição corpórea particular. Sob esse aspecto, a atividade de linguagem se apresenta como uma atividade articulada por excelência, não só por requerer certos atributos físicos para a sua execução, mas também por seu caráter de indissociabilidade ao pensamento e ao sistema linguístico, favoráveis às produções enunciativas. Ao identificarmos a linguagem como uma atividade, afirmamos, simultaneamente, tratar-se de uma capacidade de ação, mas um agir que se distancia do objeto de estudo da corrente Pragmática, a qual se dedica à investigação de fatores “que dizem respeito à ação humana realizada pela linguagem, indicando suas condições e seu alcance” (DUCROT, 1987, p.163), esforçando-se para compreender “porque é possível servir-se de palavras para exercer uma influência, porque certas palavras, em certas circunstâncias, são dotadas de eficácia” (idem). A proposta desta corrente visa, desta forma, a analisar os efeitos da enunciação dentro da cena enunciativa, do contexto situacional em que é proferido e sobre os sujeitos falantes.

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Em uma posição diversa, quando pensamos em linguagem como uma capacidade de ação, o fazemos em consideração aos seus aspectos enunciativos, estritamente ancorados nos níveis linguístico e cognitivo; ou seja, à maneira como somos capazes de articular as formas linguísticas, aos mecanismos da linguagem que sustentam essa articulação, ao pensamento e à experiência humana decorrentes da elaboração de enunciados, que constroem contextos linguísticos que não são quaisquer. Há, assim, sempre um eu, instanciado num aqui e agora, que se elabora por meio dos mecanismos próprios do sistema linguístico e que instaura um contexto que é sempre linguístico; temos, aqui, uma relação que parte do intralíngua para o extralíngua, na medida em que é o ato próprio de enunciar que instaura o contexto, ainda que esse contexto seja também responsável, como veremos adiante, por especificar e determinar a língua, o que, sem dúvida, aponta para um movimento dialético na base da integração língua/contexto. Trata-se, portanto, de um agir cuja apreensão se dá de maneira parcial, já que o que observamos da linguagem é sua face palpável, que se materializa por meio das produções linguísticas; é somente através dessas produções, do ato comunicativo, que acessamos, em certa medida, suas operações internas, produto da articulação entre pensamento, sistema linguístico e faculdade de linguagem. Nisto reside a peculiaridade das línguas, pois que o agir, com, sobre e pela a linguagem, vai permitir o estabelecimento dos contratos sociais que caracterizam cada sociedade, ao mesmo tempo em que nos permite observar a forma que seus falantes interpretam o mundo. De acordo com Bronckart, Sob esse efeito mediador do agir comunicativo, o homem transforma o meio (o mundo em si, que permanecerá eternamente como um limite jamais atingido) nesses mundos apresentados, que constituem, a partir daí, o contexto específico de suas atividades. Apesar de breve, essa análise mostra os níveis sucessivos (ou encaixados) do efeito do “social” sobre o humano. Desde que procedam da atividade, que é coletiva ou social em sentido amplo, todos os conhecimentos humanos apresentam um caráter de construto coletivo. O subconjunto dessas construções coletivas que se refere a processos de cooperação interindividual estrutura-se em um mundo representado específico: o mundo social. Como esse mundo social regula as modalidades de acesso dos indivíduos aos objetos do meio, ele condiciona as formas de estruturação do mundo objetivo e do mundo subjetivo. (2009, p. 34)

Consentimos, assim, que a possibilidade de um sistema linguístico só é possível pela existência da coletividade, funcionando como um contrato social instituído antes do nascimento de seus falantes, os quais estão incumbidos de transferi-lo às gerações vindouras.

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Este legado imaterial obedece a uma estrutura interna própria, que, em certa medida, orienta a forma como apreendemos a realidade a nossa volta, sem que com isso sejamos capazes de representá-la objetivamente; opostamente a isso, os sistemas linguísticos nos servem como aparato para a construção do que Bronckart (2009) denominou de mundos virtuais, uma vez que são constitutivamente engendrados pelos signos que compõem cada língua. Destarte, cada língua significa o mundo a sua maneira, cada sistema linguístico apresenta sua versão da realidade, o que, dito de outra forma, significa que: Entender uma língua não é apenas ter acesso a relações intralinguísticas, é mais: é ser capaz de relacionar esses signos linguísticos a uma experiência de mundo. Essa irredutibilidade da referência corresponde a uma externalidade essencial, pela qual é o próprio mundo quem participa da significação linguística. (AUROUX, 2009, p.64)

Afirmar que a língua é uma estrutura que permite significar não implica, contudo, tomá-la sob uma perspectiva reducionista, para a qual suas funções essenciais são nomear as coisas ou servir de ferramenta para expressão do pensamento. Na contramão desse pressuposto, essa compreensão remete à própria concepção de estrutura, pois o funcionamento da língua enquanto sistema estruturado obedece a uma organização interna, a uma organização enunciativa própria de seus elementos – os signos linguísticos – permeando seus usos e as suas possibilidades de significação. Esta estrutura se impõe como agente regulador das produções linguísticas: nada na língua é construído de forma ocasional ou à revelia, ou obedece apenas às intenções do falante ou ao contexto situacional. Toda atividade de linguagem está, sob esse ponto de vista, submetida às características internas do próprio sistema linguístico e de seus elementos, autorizando a elaboração de quaisquer enunciados que sejam à criação de neologismos e de efeitos de sentido criativos e, muitas vezes, inesperados. Nessa perspectiva, tomamos a língua como um sistema organizado composto por signos, cuja relação com o mundo objetivo é concebida arbitrariamente, visão para a qual as palavras não são as coisas, nem possuem um conteúdo intrínseco, dado que “se as palavras estivessem encarregadas de representar os conceitos dados de antemão, cada uma delas teria, de uma língua para outra, correspondentes exatos para o sentido; mas não ocorre assim” (SAUSSURE, 2006, p. 135). Essa compreensão de palavra como signo linguístico de caráter arbitrário se apoia na concepção saussuriana de signo, que o concebe como uma entidade psíquica e arbitrária de dupla face, como uma entidade que nos permite criar representações mentais, sem que por

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isso haja uma relação de necessidade entre este e o mundo exterior ao da linguagem. Assim, entendemos que o signo é arbitrário na medida em que as palavras não são as coisas: a imagem acústica não aprisiona o significado como sendo seu conteúdo intrínseco e, da mesma maneira, o significado não é o objeto, mas apenas uma elaboração psíquica cunhada a partir das próprias relações contraídas pelos signos entre si e da relação que temos com o mundo exterior e de como o percebemos. Para que se chegasse a essa concepção do signo linguístico, muitos foram os pensadores que se embrenharam na busca pela compreensão de seu funcionamento e da maneira como se articula com a realidade. Na antiguidade clássica, Platão inaugura a discussão acerca da significação das palavras e de sua ligação com a realidade. Em seu livro O Crátilo, Platão levanta a questão sobre a importância da linguagem para a construção do conhecimento, o que implicaria diretamente a compreensão acerca do quanto o homem é de fato capaz de saber sobre a verdadeira natureza das coisas. Assim, o diálogo entre os personagens Crátilo e Hermógenes gira em torno da naturalidade ou convencionalidade do signo linguístico. De um lado, Crátilo argumenta em prol da relação natural entre as palavras e as coisas significadas. Partindo deste princípio, “o signo deveria possuir uma natureza comum com a coisa que significa, contribuindo assim para o conhecimento desta” (MARCONDES, 2009, p.14). Em contrapartida, Hermógenes defende que a relação existente entre as palavras e as coisas se dá puramente por convenção, não havendo qualquer traço intrínseco na palavra que a ligue objetivamente ao mundo exterior, não havendo, por isso, “nada em comum entre elas: são apenas convenções estabelecidas em uma determinada sociedade” (MARCONDES, 2009, p.14). Embora o diálogo finde sem solução, pois que em ambas as posições identificam-se controvérsias, o texto platônico instaura uma discussão para a qual, até os dias atuais, não há um ponto pacífico. Aristóteles, discípulo de Platão, retoma a convencionalidade do signo linguístico ao afirmar que a relação entre as palavras e o mundo se faz de forma indireta, na medida em que sua significação passaria por representações mentais. Isso o leva a concluir que o signo linguístico apreenderia a essência das coisas, criando representações mentais que se impregnam em nosso espírito e se tornam a expressão dos nossos pensamentos e sentimentos. O estagirita faz ainda a distinção entre o signo falado e o signo escrito, em que ambos estão unidos por convenção, sendo que a significação evocada por eles se estabeleceria por meio de um processo composto por três etapas. Assim, os signos falados expressariam as impressões

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da alma, essas seriam um reflexo das coisas reais; já os signos escritos representariam os signos falados, e estes expressariam as impressões da alma, essas impressões, por sua vez, seriam um reflexo das coisas reais (WEEDWOOD, 2002). Já na era moderna, John Locke (1632-1704) defende o aspecto convencional do signo linguístico através de um processo inverso ao instituído por Aristóteles. Para ele, a linguagem teria em sua essência a função de estabelecer a comunicação, e seu princípio de arbitrariedade seria concebido de forma relativa. Isso devido ao fato de que as palavras estariam impregnadas de um conteúdo semântico relacionado, de forma unívoca, às representações mentais, uma concepção de significação de caráter mentalista. Dito de outra forma, São as ideias que dão conteúdo cognitivo às palavras, que são signos convencionais das coisas. As ideias representam as coisas porque se originam, em última instância, da experiência, da percepção sensível das coisas, dos processos de generalização, abstração e reflexão. (MARCONDES, 2009, p.57).

Foi apenas no século XX que o arbitrário do signo ganha a forma com a qual o concebemos até os dias atuais. Saussure, em seu Curso de Linguística Geral, deixa estabelecido que o signo linguístico é arbitrário, pois que ele não é a união de “uma coisa e uma palavra, mas [de] um conceito e uma imagem acústica” (2006, p.80). Isso equivale a afirmar que o signo é “uma entidade psíquica de duas faces”, que, embora intimamente relacionadas, não encontra, no mundo objetivo, nada que determine a relação entre sua imagem acústica (o significante) e aquilo a que se refere (o significado). O fato de ser arbitrário e por isso imotivado pela realidade objetiva, não significa, contudo, que o falante possa instituir por vontade própria um significado qualquer a um de seus elementos. Isso por que “a arbitrariedade do signo nos faz compreender melhor por que o fato social pode, por si só, criar um sistema linguístico” (SAUSSURE, 2006, p.132). Sob esse aspecto, seria, portanto, função da Linguística trabalhar “no terreno limítrofe onde os elementos das duas ordens6 se combinam; esta combinação produz uma forma (a unidade linguística), não uma substância (um conteúdo que reflexo do real).” (SAUSSURE, 2006, p.131), ou seja, a investigação do linguista deve se concentrar no limite entre o pensamento e 6

As duas ordens mencionadas por Saussure seriam o pensamento e a atividade de linguagem, essa última sendo por ele definida como “um articulus, em que uma ideia se fixa num som e em que um som se torna o signo de uma ideia”, o que é retomado em seguida, quando afirma que “o pensamento é o anverso e o som é o verso; não se pode cortar um sem cortar, ao mesmo tempo, o outro; assim tampouco, na língua, se poderia isolar o som do pensamento, ou o pensamento do som; só se chegaria a isso por uma abstração cujo resultado seria fazer Psicologia pura ou Fonologia pura” (2006, p.131).

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a atividade de linguagem, e os sentidos produzidos pelas unidades deveriam ser investigados no processo de elaboração dos enunciados, partindo-se da maneira como as unidades se organizam para a produção dos sentidos. Deste modo, a relação entre o pensamento e a linguagem cria uma representação linguística do mundo, e não uma descrição efetiva da realidade. Com isso, Saussure introduz a ideia de valor linguístico, da qual um dos aspectos é a propriedade que nos torna capazes de representar uma ideia. Levando em consideração, porém, todo o cuidado evidenciado ao longo do Curso de Linguística Geral (2006) em desfazer a visão de que há na palavra um conteúdo intrínseco, devemos entender o termo ideia como uma elaboração linguística compartilhada entre os indivíduos que utilizam o sistema linguístico, elaboração essa que nos permite falar sobre as coisas que nos são sensíveis ao toque, olfato e paladar, perceptíveis aos olhos e ouvidos, mas que, da mesma forma, nos possibilita criar realidades paralelas, universos invisíveis aos nossos sentidos, frutos da nossa imaginação, alimentados por nossa criatividade e nossos desejos. Assim, na leitura que fazemos, o valor se constrói na medida em que o signo compreendido como arbitrário e também socialmente compartilhado permite que as significações emanem a partir de um potencial enunciativo e relacional do signo dentro do sistema linguístico que o autoriza enunciar inúmeras significações, algo que não pode ser determinado pela simples vontade de um falante individual, mas que é construído pela comunidade linguística. Como bem diz Saussure, a “coletividade é necessária para estabelecer os valores cuja única razão de ser está no uso e no consenso geral: o indivíduo, por si só, é incapaz de fixar um que seja” (2006, p.132). Assim, a visão de língua como nomenclatura, em que a função do signo é dar nome às coisas, se desfaz, para dar lugar a uma postura que entende o signo enquanto unidade integrante de um sistema estruturado, que tem seu valor construído por meio das relações que estabelece no interior desse mesmo sistema. Desta forma, “o valor de qualquer termo que seja está determinado por aquilo que o rodeia: nem sequer a palavra sol se pode fixar imediatamente o valor sem levar em conta o que lhe existe ao redor; línguas há em que é possível dizer „sentar-se ao sol‟” (SAUSSURE, 2006, p.135). Romero e Del Ré (no prelo) evidenciam que os exemplos de contextualizações apresentadas por Saussure, tanto no Curso de Linguística Geral quanto nos Escritos de Linguística Geral, apontariam “para o fato de que é apenas na relação do signo com seu contexto de inserção que se constroem relações de paráfrases e, mais ainda, que é o signo em um dado contexto que evoca um sentido estabelecido por oposição ao que dele se aproxima naquele contexto” (p.4). Em outras palavras, nenhum signo pode ter seu valor confrontado a

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de outro signo sem que seja posto em um enunciado; para significar, o signo requer um contexto linguístico, um conjunto de elementos com os quais estabelece relações, elementos que não são quaisquer, mas requerido pelo próprio signo para significar. A compreensão do valor saussuriano acima apresentada diverge da leitura que habitualmente se faz desse conceito, para a qual o valor de um signo é determinado por outro signo, em uma relação negativa na qual um signo é tudo aquilo o que os outros não são. Dessa maneira, seria necessária a revisão de colocações que sustentam o princípio de que “[no] interior de uma língua, as palavras que exprimem ideias próximas delimitam-se umas às outras” (FIORIN, 2005, p.58), concepção que remete à perspectiva de que as palavras por si só, independente de seu contexto de inserção, possuem uma significação a priori que as distinguem negativamente dentro do sistema linguístico. Sob esse ponto de vista, os verbos romper, quebrar e partir, por exemplo, que são tomados por semanticamente próximos, teriam seu valor definido em função da similaridade semântica que apresentam e que, por ser parcial, os aproxima da mesma maneira que os opõe. Essa leitura traz implicitamente a ideia de que as unidades são dotadas de um conteúdo, reduzindo a análise do funcionamento das unidades linguística à detecção de seus traços semânticos, sem buscar compreender o que esses traços dizem a respeito do funcionamento das unidades, qual a sua relação com a impossibilidade de substituir uma unidade pela outra nos contextos em que surgem ou o porquê de cada unidade mobilizar diferentes contextos linguísticos para produzir sentido; a exemplo disso, para tomar uma única ilustração, é dito apenas não ser possível substituir quebrar por romper em “Ele rompeu com os valores morais” ou em “O vaso quebrou em mil pedaços” porque romper não faz o que quebrar faz, sem explicar os motivos dessa impossibilidade, ou ainda, sem explicar porque, frequentemente, o verbo romper mobiliza a preposição “com” e o verbo quebrar funciona de modo transitivo direto. Assim, sem a inserção do signo em um contexto linguístico, a compreensão do que vem a ser o valor saussuriano pode parecer vaga, sem consistência; por isso, quando Saussure afirma que “os valores correspondem a conceitos, [e com isso] subentende-se que são puramente diferenciais, definidos não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente por suas relações com os outros termos do sistema” (SAUSSURE, 2006, p.136), devemos entender que o valor é definido negativamente na medida em não é puramente o significado de cada unidade que determina a diferença entre elas, mas é a função que desempenham no interior do sistema, o jogo de ajustamento que estabelecem com as outras unidades que lhes permite ser identificadas como singulares.

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Afirmar que o valor de um signo está pautado no que o distingue dos outros, é buscar compreender seu valor por meio da descrição do modo como ele mesmo organiza seu contexto, a maneira como mobiliza diferentes elementos para compor um enunciado, e de que modo esses elementos o afetam. Esta compreensão do modo como cada unidade manifesta seu movimento enunciativo dentro do sistema linguístico está para além do postulado de que há, nas unidades linguísticas, um significado que lhes é intrínseco, pois remete às características muito particulares de cada signo, sendo o que lhes permite funcionar de uma maneira específica, o que lhes autoriza a produção dos mais diversos sentidos, os quais só são perceptíveis quando analisados a partir do conjunto de seus contextos linguísticos; é a soma dos sentidos que deles emerge que nos aproxima de seu valor. A introdução do pensamento saussuriano em nosso trabalho não se faz por mera necessidade de descrição de evolução histórica nos estudos da linguagem, mas pelo reconhecimento de que seus esforços deram margem à proposta teórica que embasa nossa argumentação. Saussure é considerado o pai da Linguística Moderna, isso porque introduziu a linguística no campo da ciência ao propor um método de investigação que parte de um estudo sistemático e controlável dos fatos da língua, permitindo a descrição de seu funcionamento. Colocou-se em evidência o estudo sincrônico das línguas e conferiu uma outra abordagem ao estudo diacrônico, evidenciando a pertinência de se fazer um recorte sincrônico para tornar possível a análise e observação dos fatos da língua dos quais se pretende conhecer os mecanismos. Essa nova maneira de olhar para a linguagem e para os sistemas linguísticos ficou amplamente conhecida como estruturalismo, termo que abarca uma série de escolas linguísticas, dentre as quais destacamos aquelas que se formaram ainda na primeira metade do século XX, como a Escola de Praga, da qual fazia parte Jakobson, e a Escola de Copenhague, que teve como principal integrante Hjelmslev (WEEDWOOD, 2002). Já na segunda metade do século XX, muitos foram os estudiosos que tomaram como ponto de partida a perspectiva de língua enquanto sistema apresentada no Curso de Linguística Geral. Destacamos, dentre eles, Emile Benveniste, que se dedicou, na França, à discussão e ao aprofundamento das ideias de Saussure. A abordagem estruturalista, assim como pudemos observar, deu origem a correntes de pensamento bastante distintas entre si, mas que têm em comum a busca pela definição da língua enquanto sistema estruturado. Para ilustrar o que implica estudar a língua enquanto estrutura, emprestemos a voz de um sociólogo que emprega este conceito aplicado à compreensão do que pode ser entendido como cultura. Dada a generalidade com que Bauman

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desenvolve sua argumentação, nos pareceu perfeitamente adequado tomá-la para melhor compreender o que vem a ser a estrutura do ponto de vista linguístico. De acordo com o sociólogo, é fundante a necessidade de se opor estrutura a um “estado de desordem”, estando ambas intrinsecamente relacionadas à noção de probabilidade. Assim, “um estado de desordem, afinal, é um conjunto de eventos em que as probabilidades de ocorrências concretas são distribuídas de forma totalmente aleatória; tudo é possível, tudo pode acontecer com o mesmo grau de probabilidade; em outras palavras, nada é previsível.” (2012, p.157). Desta forma, está na base da compreensão da língua enquanto sistema estruturado que há leis que regem seu funcionamento, que é possível prever a maneira como os elementos de seu sistema se relacionam, compreender de que maneira se articulam e se agenciam mutuamente para produzir sentidos, nos permitindo a produção enunciativa. Em prosseguimento à proposta saussuriana, Émile Benveniste busca articular sujeito e estrutura da língua, retomando questões anteriormente abordadas por Saussure, aprofundandoas, e, em alguns casos, dando-lhes um novo direcionamento. No que tange à estrutura da língua, Benveniste afirma que sua base é “composta de unidades distintivas, e estas unidades se definem por quatro caracteres: elas são unidades discretas, são em número finito, são combináveis e são hierarquizadas” (2006, p.95). Dizer que as unidades da língua são discretas, consiste em considerá-las em sua singularidade, pois são distintas entre si, característica que associada ao caráter articulado da linguagem tem a capacidade de “fazer-nos reconhecer, na [...] complexidade das formas, a arquitetura singular das partes e do todo” (BENVENISTE, 2005, p.127). São finitas, na medida em que cada um dos níveis linguísticos, organizados hierarquicamente – fonemático, morfológico e sintático – se dão em quantidades limitadas; a exemplo disso, temos, no nível fonêmico, aproximadamente 120 elementos que representam o conjunto de todas as vogais e consoantes que ocorrem nas línguas naturais, desse total apenas 33 pertencendo à língua portuguesa. Essas unidades mínimas distintivas, ao se combinarem de maneira específica dentro de cada língua, constituem o nível inferior em relação aos signos (ou morfemas) que ajudam a construir, elementos estes que, por comodidade, de acordo com Benveniste, pode-se entender por “palavras”. As palavras configuram o léxico de cada língua e, embora ocorram em abundância, são, ainda assim, limitadas. Essas unidades pertencem, em relação aos fonemas, ao nível linguístico superior, mas, ao entrarem em uma relação combinatória, passam a integrar um nível que lhes é ainda superior: a “frase”; dito de outra maneira, é com “as palavras, depois com grupos de palavras, [que] formamos frases” (BENVENISTE, 2005, p. 133). Assim, a palavra pertence a um nível superior ao do fonema, mas inferior ao da frase.

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Vale ressaltar que a definição de frase apresentada acima não faz jus a toda argumentação do linguista a seu respeito, dado que as relações entre os níveis inferior e superior são descritas por Benveniste de maneira minuciosa em seu texto Os níveis de análise linguística. Por reconhecermos a densidade de seu pensamento e ao considerarmos que a pretensão deste capítulo é tão somente apresentar uma síntese, a mais coerente possível, da corrente teórica da qual decorre aquela na qual nos inscrevemos, não vamos nos ater a detalhar conceitos e exemplificações que o autor apresenta para melhor elucidar sua perspectiva teórica. Por isso, selecionamos um excerto, que julgamos um bom exemplo daquilo que Benveniste traz como a relação existente entre os níveis, aqui, a palavra como representante do nível inferior e a frase como o do superior, o que nos permite também dar entrada em questões que estão no cerne de suas investigações: Uma frase constitui um todo, que não se reduz à soma das suas partes; o sentido inerente a esse todo, que não é repartido entre o conjunto dos constituintes. A palavra é um constituinte da frase, efetua-lhe a significação; mas não aparece necessariamente na frase o sentido que tem como unidade autônoma. A palavra pode assim definir-se como a menor unidade significante livre susceptível de efetuar uma frase, e de ser ela mesma efetuada por fonemas. Na prática, a palavra é encarada, sobretudo, como elemento sintagmático, que constitui enunciados empíricos. (BENVENISTE, 2005, p.132)

A frase é o nível em que Benveniste está particularmente interessado, e, ao contrário dos outros que lhes são inferiores, este não se caracteriza como um elemento finito do sistema linguístico, e isso por se caracterizar como uma “criação indefinida, variedade sem limite, [que] é a própria vida da linguagem em ação” (2005, p.139). Desta maneira, a frase não pertence ao “domínio da língua com sistema de signos”: com ela, entra-se “num outro universo, o da língua como instrumento de comunicação, cuja expressão é o discurso” (2005, p.139). Instaura-se, aqui, outra relação bastante discutida em Benveniste, e até certo ponto controversa, pois aponta para a existência de dois domínios na língua: o semântico e o semiótico. Neles, as formas materiais da língua (fonemas e signos) pertencem ao domínio semiótico, enquanto a semântica pertence ao “domínio da língua em emprego e em ação” (2006, p. 229). Deste modo, a semântica “resulta de uma atividade do locutor que coloca a língua em ação” (idem, p.230), dizendo respeito à esfera que permite observar a língua como mediadora das relações humanas e de suas experiências com o mundo e com as coisas; é por meio do funcionamento semântico da língua que é possível “a integração da sociedade e a

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adequação do mundo, por consequência a normalização do pensamento e o desenvolvimento da consciência” (2006, p. 229). O que nos interessa, nesse momento, é evidenciar que a noção de palavra, que inicialmente, no texto Os níveis de análise linguística (2005), Benveniste havia definido como sendo o próprio signo, passa por uma reformulação em A forma e o sentido na linguagem (2006), surgindo “como [a] unidade mínima da mensagem e como [a] unidade necessária da codificação do pensamento” (2006, p.230). A palavra é, então, assim como a frase, uma unidade semântica, visto que o “sentido de uma frase é sua ideia, o sentido de uma palavra é seu emprego [...]. A partir da ideia cada vez particular, o locutor agencia palavras que neste emprego tem um „sentido‟ particular (BENVENISTE, 2006, p.231)”. O signo, por sua vez, se mantém como unidade semiótica, cuja característica é ser “dotado de significação na comunidade daqueles que fazem uso de uma língua, e a totalidade destes signos forma a totalidade da língua” (BENVENISTE, 2006, p.227). Desta maneira, as “noções gêmeas de sentido e de forma” se mantêm separadas apenas do ponto de vista teórico, sendo a palavra o instrumento da expressão semântica e o signo, a parte material do repertório semiótico, “mas estes signos, em si mesmos conceptuais, genéricos, não circunstanciais, devem ser utilizados como „palavras‟ para noções sempre particulares,

específicas,

circunstanciais,

nas

acepções

contingentes

do

discurso”

(BENVENISTE, 2006, p.233). No centro das relações implicadas entre os níveis linguísticos, dos merismas e morfemas, e o nível do discurso, da frase, a questão do sentido é posta em relevo na medida em que, para Benveniste, é o sentido que “é de fato a condição fundamental que todas as unidades de todos os níveis devem preencher para obter status linguístico” (BENVENISTE, 2005, p.130). Em função disso, [...] a linguagem refere-se ao mundo dos objetos, ao mesmo tempo globalmente, nos seus enunciados completos, sob forma de frases, que se relacionam com situações concretas e específicas, e sob forma de unidades inferiores que se relacionam com „objetos‟ gerais ou particulares, tomados pela experiência ou forjados pela convenção linguística. (BENVENISTE, 2005, p.137)

Assim, a concepção saussuriana de que o sistema linguístico é composto por unidades de dupla face, pois apresentam um significante e um significado intimamente vinculados, é aceita e ampliada por Benveniste por meio de sua concepção de forma e o sentido na linguagem, que, de acordo com ele, são:

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[...] como propriedades conjuntas, dadas necessária e simultaneamente, inseparáveis no funcionamento da língua. As relações mútuas revelam-se na estrutura dos níveis linguísticos, percorridos pelas operações descendentes e ascendentes da análise e graças à natureza articulada da linguagem. (2005, p.136).

Com essa afirmação, discute também a questão do arbitrário do signo, pois se na relação entre forma e sentido há consubstancialidade, não é entre o significante e o significado que reside a arbitrariedade do signo, mas entre o signo e o objeto. Em outras palavras, o arbitrário do signo não está no nível linguístico, mas no que tange à “motivação objetiva da designação, submetida, como tal, à ação de diversos fatores históricos” (2005, p.58). Desta forma, o que Saussure defende acerca do conceito de arbitrariedade não é refutado por Benveniste, mas resignificado, pois o que há arbitrário na língua diz respeito à significação, não ao signo. De acordo com Romero-Lopes, ao deslocar a arbitrariedade do signo para o campo da referência, Benveniste “torna evidente a existência de uma ordem linguística independente da ordem do real, do extralinguístico” (2000, p.44). Com isso, pode-se inferir que “se essa ordem linguística [...] significa, é porque encerra em si mesma as condições que dão origem ao sentido, [...] é porque integra o próprio processo significativo” (ROMERO-LOPES, 2000, p.44). A partir dessa noção de como forma e sentido se articulam, Benveniste integra um terceiro elemento: o locutor. Cabe a este o papel de agenciar as unidades da língua para produzir os enunciados, produções a cada vez particular. Contudo, como bem lembra Romero-Lopes, isso não significa que o locutor seja a instância responsável pela construção da referência, já que este “privilégio [...] a língua o guarda para si” (2000, p. 54), cabendo-lhe, apenas, “tomar parte do jogo, reivindicando, eventualmente, a situação de enunciação para si” (id. ib. p.54). Como observa Dahlet (1997), o posicionamento por nós assumido não é evidente, sobretudo se considerarmos: [...] essa longa tradição linguística que, mesmo sensível às condições de enunciação, tende a tratá-la como uma função anexa, que não subverte a autonomia da semântica. De fato, se [...] o eu-aqui-agora a partir da qual Benveniste organiza sua perspectiva só se estabelece como fonte do enunciado conquanto que seja por este formulado, é precisamente porque a instância enunciativa não é separada da própria língua. (DAHLET, 1997, P.200, apud Romero-Lopes, 2000, p.54)7 7

Segundo discussão ocorrida na disciplina Linguagem e Cognição, ministrada por nossa orientadora no PPG em Educação e Saúde (2º semestre de 2012), o conceito de locutor deve ser entendido como um construto teórico associado a um EU, também construto teórico, que enuncia sua posição de locutor sem que esse enunciar esteja vinculado a ato de proferir “eu”. Haveria, assim, um EU que subjaz necessariamente a todo e qualquer

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Evidencia-se, assim, que Benveniste, para quem a língua é intrinsecamente enunciativa, concebe a referência como o que é nela e por ela engendrado: O sentido da frase é de fato a ideia que ela exprime; este sentido se realiza formalmente na língua pela escolha, pelo agenciamento das palavras, por sua organização sintática, pela ação que elas exercem umas sobre as outras. Tudo é dominado pela condição do sintagma, pela ligação entre os elementos do enunciado destinado a transmitir um sentido dado, numa circunstância dada. Uma frase participa sempre do „aqui e agora‟; algumas unidades de discurso são aí unidas para traduzir uma certa ideia interessante, um certo presente de um certo locutor. Toda forma verbal, sem exceção,em qualquer idioma que seja, está sempre ligada a um certo presente, portanto a um conjunto cada vez único de circunstâncias, que a língua enuncia numa morfologia específica. Que a ideia só encontre forma num agenciamento sintagmático, esta é uma condição primeira, inerente à linguagem. (BENVENISTE, 2006, p.230-231).

Em consonância com estas noções de língua e linguagem, trazemos a Teoria das Operações Enunciativas (TOE), que, em nossa opinião, aprofunda tanto a concepção de signo como elemento que obedece a uma estrutura interna para produzir sentidos, ou melhor, enunciar seus valores semânticos, quanto a questão da construção da referência por meio da língua. Isso porque propõe um estudo semântico da língua para o qual aquilo a que se costuma denominar “sentido” é compreendido como o resultado das relações que as unidades léxico-gramaticais operam para compor os enunciados. Após este breve panorama acerca dos estudos sobre a linguagem, que abarcou tão somente algumas concepções que dizem respeito ao campo da filosofia da linguagem e da linguística, passamos agora às questões que norteiam nossos estudos, antecipando que vamos nos ater às questões que tangem à língua, à linguagem e ao pensamento, e, essencialmente, à forma como esses elementos se articulam para produzir sentidos, sob o ponto de vista da linguística. Mais precisamente, sob a ótica da Teoria das Operações Enunciativas (TOE), inscrita na perspectiva da Linguística da Enunciação, vamos nos ater, em especial, ao funcionamento semântico das unidades linguísticas. Nesta abordagem, as unidades só adquirem valores semânticos quando analisadas em funcionamento, quando enunciadas. A enunciação, por sua vez, é o processo de construção do enunciado, resultado da articulação estabelecida entre as unidades léxico-gramaticais que, por enunciado, posto que este é fruto de uma apropriação formal da língua pelo locutor (esse EU é o do construto teórico, visto como CENTRO DA ENUNCIAÇÃO); e haveria um “eu” que seria o da marca linguística no discurso efetivo. A colocação feita por Dalhet e que fundamenta o que foi dito por Romero-Lopes rejeita a tentativa de se associar o conceito de locutor àquele que se introduz na sua fala por meio da instanciação do pronome “eu”. A nosso ver, isso traz um melhor entendimento à passagem de Benveniste citada na sequência.

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meio de seu comportamento, de suas características únicas, fazem emergir a significação em discurso. Não cabe aqui, portanto, a visão de que é a “palavra” isolada que, por si só, possui um conteúdo, um significado intrínseco que lhe possa ser atribuído fora do jogo enunciativo, já que a unidade linguística só significa, só adquire um valor semântico quando posta em uso. Vale dizer que, com isso, não nos colocamos em posição avessa às fontes lexicográficas, ao contrário, acreditamos que os dicionários são importantes fontes de consulta para verificação dos empregos correntes ou já em desusos de uma unidade linguística que se pretenda investigar; porém, o que apresentam são apenas possibilidades locais e cristalizadas de significação, uma vez que não faz parte de seus objetivos evidenciar de que modo as várias acepções ali listadas relacionam-se entre si, o que há de comum entre diversas acepções, muitas vezes contraditórias, atribuídas a uma palavra e que nos permite identificá-la como sendo a mesma, ainda que inseridas em enunciados tão dispares. Neste sentido, a teoria está voltada principalmente para as questões que envolvem o mecanismo enunciativo de cada unidade que compõe o sistema linguístico, ou seja, as unidades léxico-gramaticais, que, como vimos em Benveniste, têm, em sua natureza, a função de significar.

1.2. A Teoria das Operações Enunciativas e os processos de significação na língua A Teoria das Operações Enunciativas aborda a capacidade das unidades linguísticas de significar de forma adversa ao que tradicionalmente é proposto pelas gramáticas escolares, e isso porque a “questão essencial dessa teoria é a busca de regularidades na variação das unidades, envolvendo um desdobramento da própria noção de polissemia” (FRANCKEL, 2011a, p.26). Dentro desta perspectiva, a polissemia passa a ser concebida como algo inerente às unidades e não mais como a multiplicidade “de seus possíveis valores semânticos [abstraídos de] um núcleo sêmico, um conteúdo permanente que equivaleria a seu próprio âmago” (ROMERO-LOPES, 2000, p.7). Nesta abordagem, os sentidos das unidades só são passíveis de análise quando postas em funcionamento, quando enunciadas. Não cabe aqui, portanto, a visão de que a “palavra” isolada por si só possui um conteúdo, um significado intrínseco que lhe possa ser atribuído fora do jogo enunciativo, já que uma unidade linguística só significa, só adquire um valor semântico quando posta em uso. Sendo assim, a polissemia, na língua, passa a ter uma acepção diferente da verificada na tradição gramatical, que parte da premissa de que as

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unidades possuem um conteúdo, um sentido primeiro que lhes é intrínseco e permeia as mais variadas construções semânticas, dando origem aos sentidos chamados conotativos ou figurados. A proposta de análise exposta neste trabalho pretende evidenciar a prática reflexiva acerca dos fatos da língua, contiguamente permitindo o acompanhamento da progressão do raciocínio lógico efetuado nesta ação, bem como a percepção da ativação de certos processos cognitivos específicos à atividade de linguagem, mas cuja apreensão não abarca o desvelo de todos os seus mistérios. Acreditamos, ainda, que o fato de compreendermos a atividade de linguagem como algo intimamente imbricado às operações cognitivas, não nos aproxima de formulações teóricas, tais como na corrente cognitivista8, que em geral consideram os fatos do domínio linguístico como reflexos do domínio cognitivo e como motivado pela natureza, pelas estruturas e pelos processos da cognição geral (DE VOGÜÉ, 2011b, p.5). Oposto a isso, nosso posicionamento admite que “essas operações não são determinadas apenas pelas capacidades biológicas desse organismo” (BRONCKART, 2009, p.324), mas que são também regidas pela estrutura interna da língua e do funcionamento enunciativo de seus signos linguísticos. Em suma, nosso posicionamento ante a linguagem é contrário a uma concepção instrumental, que a compreende como instrumento do pensamento e não como parte integrante e constituinte dele, reduzindo-a ao papel de ferramenta social, por partir apenas da observação de sua face exterior. Embora o propósito da linguagem seja a comunicação, esta não é sua única função e nem a essencial, já que, segundo Franchi (2011) e com quem concordamos, a função primeira da linguagem é “permitir antes a reflexão e o pensamento” (p.56). A linguagem é, desta maneira, o que nos permite estabelecer os contratos sociais que caracterizam uma sociedade, assim como também o que deixa transparecer a forma como seus 8

De acordo com Delbecque (2008, p.8) “Não há nem poderia haver uma ilha da linguagem, uma vez que as categorias das línguas estão ligadas às experiências e do pensamento; a construção do sentido e a elaboração das estruturas são solidárias das funções cognitivas fundamentais: abstração, esquematização, activação, percurso, projecção, deslocamento, associação, substituição metafórica ou metonímica”. Essa forma de interpretar o funcionamento das línguas e da linguagem é atribuído, de acordo com Tamba-Mecz (2006), aos esforços empenhados aos estudos dos mecanismos cerebrais, que em função do desenvolvimento das neurociências, conduziu os linguistas a fundar uma hipótese cognitivista, que supõe a existência de um nível conceitual abstrato de cálculo simbólico do sentido; e, mais recentemente, sobre a hipótese conexionista, que explica o sentido como emergido da interação distribuída em várias redes simbólicas, assimiladas a „neurônios artificiais‟. De onde as tentativas de construir teorias semânticas que expliquem a partir de pressões perceptivas (especialmente visuais), as expressões espaciais, as derivações metafóricas, ou as categorias gramaticais (p.44).

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indivíduos interpretam o mundo. Assim, é ao mesmo tempo o elemento fundante da comunicação social e parte integrante e essencial de processos cognitivos. É por meio da linguagem que comunicamos nossas experiências, interagimos e nos compreendemos, estabelecemos laços contratuais e somos capazes de influenciar “os outros com nossas opções relativas ao modo peculiar de ver e sentir o mundo” (FRANCHI, 2011, p.55). Sob esse ponto de vista, a língua pode ser caracterizada como um “conjunto das convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o exercício da linguagem” (FRANCHI, 2011, p.35), o que, dito de outra forma, coloca que a língua é a face material das operações que estruturam o processo comunicativo. Defendemos deste modo, a existência da articulação entre língua, linguagem e pensamento para a produção de enunciados, para a construção da significação; estas, por sua vez, emergem autorizadas pelos recursos gramaticais da língua e as características próprias de suas unidades lexicais, nos permitindo usar a língua de forma criativa e imaginativa, nos valendo de seus recursos para construir diferentes formas de representar a realidade a nossa volta. 1.2.1. Princípios fundantes Antes de fazermos qualquer entrada nas características epistemológicas da Teoria das Operações Enunciativas, é preciso pôr em relevo que o estudo linguístico proposto por Antoine Culioli está pautado na observação e análise da diversidade das línguas e dos textos, propondo um sistema de representação da atividade de linguagem que parte do que construímos de forma não consciente, subjacente às práticas enunciativas dos sujeitos (DUCARD, 2000, p.11), para chegar a uma construção metalinguística do funcionamento enunciativo das unidades da língua, o que acaba por revelar traços do funcionamento da atividade linguagem e do sistema linguístico como um todo. O cerne da proposta da Teoria das Operações Enunciativas (TOE) está na promoção de um estudo semântico da língua em que o que se costuma denominar “sentido” é compreendido como o resultado das relações que as unidades léxico-gramaticais operam para compor os enunciados. Desta forma, o sentido é “inteiramente determinado e construído pelo material verbal que lhe dá corpo” (ROMERO, 2010a, p.341), fundamentado em mecanismos de organização próprios das unidades linguísticas efetuando os enunciados, o que faz, em contrapartida, com que os valores referenciais das unidades não sejam decorrentes de elementos externos à língua. Essa última característica, como veremos adiante mais detalhadamente, explica-se pelo fato de as próprias formas organizadas que materializam o

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enunciado remeterem a operações de constituição desse valor referencial (FLORES, 2009; ROMERO, 2010b). Como observamos há pouco, Culioli inscreve-se numa perspectiva considerada por muitos como sucessora dos estudos realizados por Benveniste, como o que dá continuidade ao projeto que busca compreender a estrutura da língua sem dissociá-la dos usos que dela são feitos. Os dois autores se debruçam sobre questões da linguagem propondo reflexões que remontam às dicotomias do Curso de Linguística Geral, mas, essencialmente, dedicam-se a compreender a invariância na linguagem, tema no qual Culioli vai além, investigando os mecanismos que a regem. Se partirmos de uma visão ingênua desse posicionamento diante dos estudos das línguas, podemos ser erroneamente levados a aceitar que o centro desta perspectiva é a prática da análise do discurso. Nesta corrente teórica, cujo interesse é essencialmente a manifestação material da língua em que se considera, além de sua estrutura, sua produção empírica pelos diversos grupos sociais que dela se apropriam – e, por meio dela, exibem suas marcas –, há um intercâmbio entre as Ciências da Linguagem e as Ciências Sociais, uma vez que consideram como parte constitutiva do sentido o contexto histórico-social e as condições em que o texto foi produzido (MUSSALIM, 2001, p.123). Para evitar que tal analogia possa ser realizada, De Vogüé (2011a) chama atenção para o fato de que o termo “discurso” sequer compõe o conjunto de termos que caracterizam a teoria culioliana, tratando invariavelmente de enunciados, ou eventualmente de textos. No caso deste último, é preciso salientar que a concepção de texto não se dá no sentido do material escrito que, habitualmente, se opõe ao falado, “mas como o que designa a materialidade formal do enunciado” (DE VOGÜÉ, 2011a, p.58). No que tange aos conceitos enunciado e enunciação, vale ressaltar que, nesta perspectiva, eles são abordados de modo bastante singular, diferindo do que usualmente apreende-se desses termos dentro das teorias linguísticas da enunciação. De modo geral, entende-se como enunciação o ato individual do falante que põe a língua em uso, tratando-se sempre de um ato singular, “de um acontecimento histórico [em que] é dado existência a alguma coisa que não existia antes de se falar e que não existirá mais depois” (DUCROT, 1987, p.168). Já enunciado é tradicionalmente concebido como o resultado desse ato de criação individual e momentâneo do sujeito enunciador. Dentro do quadro teórico-metodológico da Teoria das Operações Enunciativas, a enunciação não pode ser compreendida como ato de comunicação em que há uma compreensão/interpretação entre enunciador e coenunciador; ao contrário, de acordo com

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Culioli, há relações muito mais complexas envolvendo o processo de produção e compreensão de um enunciado. Destarte, ao abordarmos o conceito de enunciação, estamos tratando de uma atividade concebida sob outras bases. O processo enunciativo, ou a enunciação, compreende a presença de um sujeito produzindo textos orais ou escritos, o que não pode em absoluto ser interpretado com o ato de proferir alguma coisa. Por envolver um processo de agenciamento das unidades linguísticas, há uma operação interna que busca dentro do próprio sistema da língua as unidades léxico-gramaticais que melhor se ajustam à construção da significação pretendida, ainda que essa mesma “significação” não exista independentemente do próprio enunciado que a constrói. Estas unidades, por sua vez, possuem características próprias, responsáveis por reger sua regularidade de funcionamento e suas possibilidades de variação. Tais características são, na verdade, os traços das operações linguísticas e cognitivas que se articulam e movimentam o jogo enunciativo, permitindo a organização dos enunciados. O enunciado não é, portanto, associado a um ato de proferir algo, mas um construto teórico. Isso significa que ele é, sim, o produto da atividade de linguagem individual de um sujeito que não deixa de ativar modos de agenciamento específicos à língua, e que, por isso mesmo, caracteriza-se como “um arranjo de formas a partir das quais os mecanismos enunciativos que o constituem como tal podem ser analisados, no âmbito de um sistema de representação formalizável, como um encadeamento de operações do qual é vestígio” (FRANCKEL, 2011b, p.44). Assim, ao integrar e englobar ato e locução na língua e no enunciado, a proposta culioliana altera o estatuto de enunciado como produto da enunciação forjado apenas para o fim comunicativo, substituindo-o por uma atividade de linguagem complexa que fomenta o processo de construção de sentido. Deste modo, o que de fato importa na enunciação é compreender como se dá o processo que põe em jogo linguagem, cognição e pensamento e que permite a produção do enunciado, ou seja, seu foco de interesse “é um processo que se recupera a partir do enunciado”, é “a forma pela qual um enunciado se enuncia” (DE VOGÜÉ, 2011a, p.59). Em suma, a compreensão do sentido dos enunciados se manifesta de maneira muito particular quando comparada a outras abordagens que igualmente se interessam pelas questões semânticas da língua. O enunciado é tudo o que ele é capaz de significar. O objetivo não é, portanto, apreendê-lo enquanto produto da enunciação de um sujeito particular, cujos aspectos socioculturais devam ser levados em conta para atingir a compreensão de seu sentido, mas tomá-lo por objeto em sua materialidade formal, a partir das unidades linguísticas que o

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compõem. Ele é, assim, entendido como “um arranjo de marcas a partir do qual se organiza um certo efeito significante”, não sendo, consequentemente, “a codificação de um sentido que seria preexistente, mas [um objeto em] que sentido e forma são construídos correlativamente” (DE VOGÜÉ, 2011a, p.59). Tal operação não é determinada pelo locutor9, mas pelos mecanismos de linguagem, dos quais ele se apropria, colocando-os em funcionamento: o “locutor constitui-se somente como origem das orientações, e não como origem do mecanismo enunciativo enquanto tal” (DE VOGÜÉ, 2011a, p.61). Em síntese, o programa de Antoine Culioli “apreende a enunciação como processo de constituição de sentido, compreende que a significação de uma frase seja „efetuada‟ pelas unidades que a compõem” (DE VOGÜÉ, 2011a, p.81). O projeto culioliano confere, ainda, um olhar particular à relação do homem com o mundo, sendo esta apreendida a partir do viés linguístico e cognitivo, o que não significa que “o processo enunciativo tal como ele o reconstitui não conduza, finalmente, a estabelecer uma teoria do sujeito: esse indivíduo locutor que o ato da locução toma como completamente constituído é trabalhado pelo processo enunciativo” (DE VOGÜÉ, 2011a, p.82). Deste modo, para Culioli, não há um aparelho formal da enunciação 10, mas a língua como um todo comporta os mecanismos que organizam, estruturam e sustentam suas formas. Neste sentido, De Vogüé traz uma importante consideração para dissipar qualquer tentativa de inscrevê-lo no domínio do estruturalismo estrito: Daí, uma concepção da língua e de suas unidades que deve ser entendida como uma crítica ao estruturalismo estrito: a estrutura não está nas formas; e cada uma, em vez de tirar seu valor do sistema de formas no qual ela estaria inscrita e do qual seria solidária, pode se mostrar singular, irredutível a outra. Isso explica uma metodologia descritiva que não tem nada de estruturalista: podemos estudar unidades isoladas, sem levar em conta qualquer sistema que seja: e as estudamos por si próprias. Se utilizamos a técnica tradicional da comparação, não é em nome da distintividade dos valores, é somente para fazer sobressair a singularidade de cada unidade. (DE VOGÜÉ, 2011a, p. 64)

O que está em jogo nesta perspectiva é compreender o modo como as unidades da língua produzem sentidos, de que maneira elas se agenciam para construir os enunciados, que são, por sua vez, o meio pelo qual os mecanismos de linguagem podem ser restituídos. Como se há de presumir, o extralinguístico não entra nas considerações acerca do sentido das unidades da língua ou dos enunciados que elas engendram; por isso, em nossas 9

O locutor desencadearia um mecanismo próprio à linguagem. Vale dizer que, para Benveniste, como já apontamos, toda língua é igualmente enunciativa, embora haja quem o leia pensando que, para este autor, apenas algumas marcas seriam assim definidas. 10

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análises os termos cotexto ou contexto dizem respeito tão e somente à “sequência de enunciados na qual cada enunciado se insere” (DE VOGÜÉ, 2011a, p.65), estando, portanto, no nível estritamente linguístico. Isso se deve ao fato de entendermos que “o sentido não é função do contexto: é o contexto que é função do sentido” (DE VOGÜÉ, 2011a, p.66). Podemos observar, então, que há um deslocamento em relação ao objeto de estudo no centro das investigações de Saussure, Benveniste e Culioli. Para o primeiro, a linguística é essencialmente a ciência da língua, pois se configura como a face tangível e observável do fenômeno linguístico, sendo, portanto, um objeto científico por excelência. Ele a considera “integral e concreta” (SAUSSURE, 2006, p.15), passível de delimitação, descrição e segmentação como é próprio às práticas científicas. Saussure, sob esse aspecto, foi sem dúvida um homem de seu tempo e não sobrepujou o cientificismo pungente do início do século XX. A Benveniste coube, por sua vez, “ampliar o campo de investigações a todas as produções simbólicas que participam da condição humana” e, para, ele “a linguagem constitui o sujeito e as categorias da experiência humana” (DE VOGÜÉ, 2011a, p.68), o que lhe permite, por meio do viés antropológico, introduzir nas áreas de interesse da linguística os questionamentos acerca da linguagem. Mas vale salientar que ele não chega a se interessar por tudo o que envolve o estudo da atividade de linguagem, restringindo-se à compreensão do que a língua e a linguagem constroem do ponto de vista enunciativo, não chegando a argumentar sobre o que viria a ser a faculdade de linguagem e quais seriam os mecanismos que a envolvem, os elementos que a constituem ou que com ela se relacionam. Culioli é quem de fato se empenha nessa última questão. Para ele, a linguística tem por objeto a atividade de linguagem; seu programa está voltado, essencialmente, para o estudo dos mecanismos formais que as línguas desenvolvem, tratando-se, portanto, “de dar conta de uma faculdade humana, específica ao homem, [e ainda] de evidenciar as suas propriedades, que, de uma forma ou de outra, devem tocar no que faz a especificidade da condição humana” (DE VOGÜÉ, 2011a, p.68). Com isso, notamos que já não é mais possível considerar a existência de limites suficientemente bem demarcados, capazes de apartar a língua da linguagem, pois são categorias entrelaçadas, em que o estudo de uma recai sobre a análise da outra. Notamos, assim, que a Teoria das Operações Enunciativas articula língua, linguagem e cognição, muito embora esteja claro para Antoine Culioli que, ao linguista, não é possível acessar diretamente às operações próprias da atividade cognitiva. Por isso, elabora sua teoria pautada em três níveis de atividade de representação que se encontram intrinsecamente relacionados.

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Em uma primeira introdução ao tema, esclarecemos que o primeiro nível é o das operações cognitivas, das elaborações simbólicas às quais não nos é possível acessar diretamente. O segundo nível é das representações linguísticas; nele estão os vestígios das operações realizadas no nível 1, as quais apreendemos por meio dos enunciados. O terceiro nível é o das representações metalinguísticas. É neste nível que se encontra o trabalho do linguista, já que é por meio dele que tentamos reconstruir as operações realizadas entre os níveis 1 e 2, para compreender a maneira como as unidades linguística produzem seus sentidos, para compreender como estas são capazes de dizer o que dizem (DE VOGÜÉ, 2011c). Esse quadro bastante resumido da inter-relação desses níveis será retomado mais adiante a partir de um recorte do que, efetivamente, se relaciona ao nosso estudo; mais adiante, portanto, serão expostas suas características e implicações para a compreensão do funcionamento da atividade de linguagem enquanto atividade simbólica e enunciativa.

1.2.2. Sobre a construção da referência

Antes de adentrar a questão dos níveis de representação, acreditamos ser necessário tocar na relação entre linguagem e referência, relação essa que diz muito acerca do nosso posicionamento diante da língua, do modo como a concebemos. Ao levantar esse tema esbarramos, inevitavelmente, na já desgastada questão acerca de uma opacidade ou transparência entre as palavras ou unidades lexicais em face às coisas do mundo e ao pensamento. Se admitíssemos que há, aí, uma relação transparente, acabaríamos por nos filiar a abordagens para as quais é possível materializar efetivamente o mundo e/ou as ideias por meio da linguagem, em que a língua ora é dotada de conteúdo motivado pelo que lhe é externo, ora é concebida como instrumento de comunicação, cuja função é apreender e expressar o que vai em nosso espírito, reproduzir de forma estrita a atividade de nossos pensamentos. Entretanto, buscamos compreender e analisar o modo como a própria atividade de linguagem constrói a referência, a admitimos em sua opacidade em relação ao mundo empírico, e a compreendemos como uma das formas de elaborar o pensamento, não podendo ser, portanto, sua simples expressão. Sob esse aspecto, conceber as unidades do sistema linguístico como dotadas de um conteúdo, de um sentido que se lhes possa ser atribuído a priori, incorreria em erro um lógico. Assim como Franchi, entendemos que linguagem não é um produto, “mas um trabalho que

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„dá forma‟ ao conteúdo variável de nossas experiências, trabalho de construção, de retificação do vivido, que ao mesmo tempo constitui o sistema simbólico mediante o qual se opera sobre a realidade em que aquele se torna significativo” (2011, p.64). Essa concepção reforça o princípio para o qual língua e linguagem não são decalques nem da realidade, nem do pensamento; consequentemente, o que as palavras significam está atrelado ao seu modo particular de funcionar dentro do sistema, ou seja, o sentido é uma construção fundamentada no intralinguístico, “ele só existe desde que seja construído pela linguagem” (FRANCKEL, 2011b, p.40). Com isso, evidentemente, não refutamos a existência de uma relação entre pensamento e linguagem; ao contrário, a linguagem é ela mesma uma forma de pensamento, sendo, pois, uma atividade cognitiva entre outras – “e que, como todas as outras, apresenta propriedades relacionadas à sua organização própria” (FRANCKEL, 2011b, p.41). Eliminar a relação de necessidade entre a língua e o que lhe é externo ou recusar-se a concebê-la como decodificador de nossas elaborações cognitivas não implica considerar toda a significação por ela evocada como alheia ao homem e sua inserção em um tempo e espaço específicos, mas apenas que não há de se confundir tais fatores com a referência construída linguisticamente, pois esta consiste em “uma dinâmica da construção estabelecida nos enunciados e pelos enunciados” (FRANCKEL, 2011b, p.43). Franckel sintetiza essa noção ao afirmar que “pode-se convir que o referente provém de um domínio extralinguístico, por oposição aos valores referenciais, produzidos pelos enunciados da língua e cuja existência se faz apenas por meio deles” (FRANCKEL, 2011b, p.45). Com isso, nos aproximamos do que a teoria convencionou chamar de valores referenciais, terminologia que diz respeito às relações que fazem com que as unidades da língua adquiram sentidos quando postas em uso. Trata-se, assim, do resultado de um movimento integrativo das unidades em seus contextos enunciativos possíveis. Esta noção remete ao princípio benvenisteano de função integrativa, para o qual o sentido se constrói por meio da integração das unidades em um todo, efetuando o enunciado (FRANCKEL, 2011). Sob esse aspecto, é somente por meio da observação das diferentes possibilidades de emprego das unidades que somos dados a conhecer seus valores referenciais, é por meio das restrições impostas aos enunciados nos quais se inserem que nos aproximamos de seu potencial enunciativo. Dito de outra maneira, é o contexto linguístico que dá pistas sobre o funcionamento da unidade, é o modo como as formas se organizam para compor os enunciados que nos permite

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compreender o movimento enunciativo da unidade linguística em si, i.e. as condições contextuais por elas solicitadas para que seus valores possam emergir. Essa abordagem apoia-se, portanto, em uma visão construtivista dos mecanismos de linguagem, para a qual “o sentido é apreendido como proveniente unicamente do material verbal, consideramos que o contexto ou a situação não é exterior (a) ao enunciado, mas é gerado (a) pelo próprio enunciado” (FRANCKEL, 2011c, p.109). Deste modo, a evidência de uma disparidade conceitual entre referência e valor referencial é bastante clara. O sentido das unidades não é determinado pela representação do mundo, pelo que é externo à língua; sendo assim, “a significação de um termo não poderia se confundir com sua referência: ela só se constitui de uma dinâmica de construção estabelecida nos enunciado e pelos os enunciados” (FRANCKEL, 2011b, p.43). A referência é, assim, algo dado, estável e “equivale a uma correspondência estética dos enunciados às entidades externas à língua” (FRANCKEL, 2011b, p.48). Já os valores referenciais dizem respeito às operações enunciativas, ou operações de referenciação que são sempre instáveis e construídas no e pelo enunciado em decorrência da dinâmica própria da língua, “inscrevendo-se em jogos intersubjetivos de ajustamentos e de regulação que só resultam em pontos

de

equilíbrio

interpretativos

provisoriamente

e

localmente”

(FRANCKEL, 2011b, p.48). Por fim, podemos dizer que a presença da realidade do mundo na linguagem é algo para a qual não é possível fechar os olhos, ignorando-a simplesmente por consequência de sua complexidade; todavia, trazê-la à tona não é suficiente para alcançar a compreensão das arquiteturas próprias do sistema linguístico e dos processos cognitivos com quais se engendra. A prática a ser por nós promovida envolve, portanto, uma atividade reflexiva acerca dos fatos da língua, permitindo, nesse processo, o acompanhamento da progressão do raciocínio lógico efetuado nesta ação, bem como a percepção da ativação de certos processos cognitivos específicos à atividade de linguagem, mas cuja apreensão não o abarca por completo. Em suma, o agir por meio da linguagem é o que nos permite estabelecer os contratos sociais que caracterizam uma sociedade, assim como a forma pela qual seus indivíduos interpretam o mundo. Como vimos apontando, defendemos, aqui, que é por meio da articulação língua, linguagem e pensamento que produzimos enunciados e construímos novas significações, sempre autorizadas pela estrutura própria da língua, por seus recursos gramaticais e suas unidades lexicais, e esse agir que a linguagem nos permite “é responsável

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pelos deslocamentos no sistema de referências, pela construção de novas formas de representação do mundo” (GERALDI, 2003, p.43). Por outro lado, do acima exposto, afirma-se uma instabilidade enunciativa das unidades e do próprio enunciado, estes inscrevendo-se em uma dinâmica que tem, em sua base, uma estreita relação com o “mal-entendido”: a compreensão do enunciado, assim como sua construção, se dão em meio a um jogo linguístico constante. O fato de os valores referenciais das unidades se caracterizarem por uma instabilidade que lhes é própria não significa, no entanto, que eles surjam aleatoriamente, o que resultaria em contextos imprevisíveis, cuja significação seria produto do acaso. Ao contrário, dizer que as unidades possuem valores referenciais que emergem de uma dinâmica linguística é afirmar, ao mesmo tempo, que esse processo advém de um cálculo fundamentado em operações enunciativas e cognitivas que direcionam o movimento das unidades, autorizando-lhes e restringindo-lhes os contextos de inserção e as possibilidades de significação. Desse modo, lidamos com uma “teoria da deformabilidade”, que admite a presença do instável, mas de um instável que é igualmente previsível. Essa aparente contradição se dissolve ao percebermos que há uma estabilidade no processo de produção dos valores referenciais, sendo ela responsável pela “compreensão-interpretação” das produções linguísticas, mas que se trata, vale ressaltar, de uma “estabilidade conquistada” porque construída pelo próprio material verbal; e provisória, porque produto de uma dinâmica que não cessa (FRANCKEL, 2011b). Esse elemento variável, constitutivo de um conjunto de unidades morfolexicais, é concebido como identidade semântica ou forma esquemática. De acordo com De Vogüé (2011c), o que está em jogo é a noção de que as unidades, mesmo as aparentemente mais concretas, referem-se efetivamente a um esquema que mobiliza um contexto, e às relações entre os elementos e esse contexto. Mais precisamente, com a forma esquemática busca-se apreender o que há de invariante dentro de toda possibilidade de variação de uma determinada unidade. O conceito de forma esquemática é, portanto, bastante distinto do que se entende como sentido primeiro das palavras, assim como também não lhe cabe a ideia de campo semântico. A forma esquemática é, na verdade, uma espécie de fio condutor inerente a cada unidade, que lhe serve, digamos assim, como orientador de seu funcionamento dentro do sistema da língua, nas relações que estabelece com as outras unidades para compor os enunciados, nos dando uma visão dos contextos linguísticos que convoca para enunciar, para produzir seus valores referenciais.

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Isso ocorre em função de que “cada unidade de cada língua tem um comportamento, sendo associável a uma rede de valores que lhe é irredutivelmente específica” (FRANCKEL, 2011b, p.49). Estamos, assim, diante de uma abordagem para a qual a unidades da língua devem ser estudadas em sua singularidade, cada uma apresentando uma peculiaridade que merece ser descrita e apreciada, pois é singular em seu modo de se articular e produzir significação dentro da rede de relações que é o sistema linguístico. Somente a descrição dessas regularidades particulares, que se mostram por meio do modo “como se organizam e se constituem, [que] os valores observados podem ser delineados. A natureza dessas regularidades não é postulada a priori: essas regularidades são delineadas progressivamente na exploração dos dados.” (FRANCKEL, 2011b, p.49) Partindo desse pressuposto, “dois enunciados distintos produzem necessariamente valores referenciais distintos.” (FRANCKEL, 2011b, p.47). Para se chegar à forma esquemática de uma unidade, apenas observar os contextos que convocam para enunciar é, no entanto, insuficiente; é preciso ir além, e manipulá-los, atentando para a mudança de significação a cada instante em que um termo é alterado, observar que implicações acarretam a substituição de uma unidade por outra com a qual se perceba alguma proximidade semântica; atentar para as diferenças de feitos de sentido que surgem ao se inserir ou retirar uma preposição, por exemplo, e principalmente, ser sensível às mudanças contextuais que unidade não aceita para fazer emergir seus valores. Nas colocações acima, nos aproximamos do conceito de domínio nocional, que não deve ser equiparado ao de campo semântico, a relação passível de se estabelecer entre eles sendo sempre de disparidade, jamais de equivalência. Grosso modo, a noção de campo semântico leva em consideração as aproximações de sentido entre palavras e ou expressões, sem que haja necessidade de inserção em um contexto. Esse conceito mantém uma estreita ligação com a noção de polissemia, para qual as palavras possuem inúmeros sentidos e, entre eles, um sentido primeiro, responsável por orientar todos os outros ou aqueles que possam surgir. No que tange ao domínio nocional, não se trata de simples aproximação de sentido, mas de modos de funcionamento; a proximidade semântica entre as unidade é identificada por meio de seus valores referenciais; o que determina essa aproximação ou o distanciamento é o potencial enunciativo de cada uma das unidades, seus empregos e contextos de inserção, que nos dão pistas acerca de sua forma esquemática. Trata-se de uma relação estabelecida ao levar-se em consideração as operações desenvolvidas no nível cognitivo, pela atividade epilinguística, e pelos traços que esta atividade manifesta nos enunciados – ou que se manifestam pelas manipulações feitas.

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Com o intuito de apenas ilustrar o que acabamos de dizer, tomemos o verbo ROMPER no contexto Armando rompeu o noivado. Sem grandes pretensões analíticas, apenas com uma passada de olhos, somos capazes de perceber a diferença semântica que uma única unidade morfológica é capaz de empreender a todo um enunciado. Em cada elemento deste enunciado há um funcionamento que concorre para a sua compreensão geral. Iniciemos pelo tempo verbal. Se alterarmos apenas a desinência modo-temporal do verbo, notamos que toda a significação do enunciado também se altera. Assim “Armando rompeu o noivado”, “Armando romperá o noivado” e “Armando rompe o noivado”, não evocam a mesma significação. No primeiro, temos um sujeito que, em um passado acabado, pôs fim ao relacionamento. Já no segundo exemplo, a asserção diz que, embora ainda não tenha acontecido, o término do compromisso é uma certeza. O terceiro, porém, é o que nos parece mais intrigante, pois sua apresentação no presente do indicativo assemelha-se a uma notícia típica de mídias que se ocupam em promover enredos de telenovela, que procuram estimular o eleitor ou telespectador a acompanhar as cenas dos próximos capítulos. Curiosamente, temos um tempo verbal que supostamente instancia a ação no momento presente, mas sua significação, em uma das leituras possíveis para este enunciado, é de algo que “teoricamente” já aconteceu, pois o rompimento já é sabido, ainda que seja concretizado apenas no futuro, no capítulo em que a tal cena será exibida. Em primeira instância, Armando rompe noivado não nos soa como algo passível de ser dito, de forma natural, em um contexto familiar ou entre amigos, acerca de um parente ou conhecido em comum que desfaz um enlace eminente. Para causar tal efeito de sentido seria necessária a inserção de alguma outra unidade linguística, por exemplo, Armando rompe outro noivado. Neste caso, surge mais um dos funcionamentos usualmente atribuído ao presente do indicativo: remeter à ideia de algo que ocorre de forma habitual, constante. Contudo, devemos considerar que essa significação, qual seja, a de que Armando costumeiramente se envolve em noivados e com a mesma habitualidade os dissolve, não é evocado apenas pela presença do presente do indicativo, mas também, pela unidade “outro”, que exerce papel fundamental para a construção desta significação. Vale ressaltar que contexto é aqui entendido como um cenário construído textualmente. As diferenças de valores observados não dizem respeito apenas ao verbo ROMPER ou ao tempo verbal, mas a todas as unidades que compõem a sequência, pois cada manipulação realizada nos enunciados incorreu em alguma alteração semântica. Esse fato diz muito acerca do funcionamento enunciativo de cada uma delas. Tentar entender como e porque essas

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variações de sentido ocorrem, nos levaria ao delineamento de sua forma esquemática, à compreensão do que as formas linguísticas requerem para significar, da dinâmica enunciativa de cada uma delas. Evidencia-se, assim, que o valor referencial das unidades se constitui como uma variação resultante de suas interações contextuais: só é possível delinear a identidade de uma determinada unidade, sua forma esquemática, por meio da análise e manipulação da diversidade de seus empregos. Em suma, o que defendemos é uma concepção em que as relações entre forma e sentido se fundamentam nas operações enunciativas e na produção de valores referenciais em que o sentido não se configura como um dado definido a priori, mas é construído por meio de um jogo enunciativo, que, por sua vez, nos fornece um elemento cuja estabilidade autoriza a variação, a instabilidade. Nas palavras de Franckel, Essa abordagem [...] postula que a palavra não tem por si só nenhum conteúdo semântico estável a priori. Nunca observamos nos enunciados o valor próprio ou primeiro de uma unidade, visto só existirem unidades cujo sentido se constrói no e pelo enunciado. O instável é, aqui, primeiro, e a estabilização só se estabelece por meio das interações da palavra com o meio textual que a cerca, essas interações revelando, segundo hipótese que sustenta a teoria, princípios reguladores. [...] A unidade é definida não mais por um conteúdo preestabelecido, mas por propriedades passíveis de serem apreendidas pelo papel específico que ela apresenta nos diferentes tipos de interação nas quais ela entra, não sendo esse papel visto como um sentido próprio da unidade. Não se trata mais de se apoiar em uma problemática da metáfora, mas de buscar propriedades que resultam nos conteúdos (2011b, p.51).

Deste modo, a forma esquemática parte de uma construção cognitiva, é uma forma abstrata de pensar o mundo e funciona como um fio condutor para a produção de valores semânticos diversos. Ela deve descrever o conjunto dos empregos da unidade, sua variação, sem que, por isso, corresponda a algum de seus valores singulares. Trata-se de uma: [...] forma invariante elaborada a partir de manipulações nas quais se verificam, de um lado, as contextualizações desencadeadas pela unidade e o modo como a unidade as trabalha; de outro, em um movimento recíproco, o modo como essas contextualizações trabalham a própria unidade (ROMERO, 2010b, p.482)

Outrossim, para que se possa chegar ao delineamento da forma esquemática (para nominais e verbos) ou da identidade semântica (para preposições e marcas temporais) das unidades da língua, faz-se necessário investigar como suas formas de representação são construídas. Para que tal objetivo possa ser alcançado, Culioli definiu os três níveis de representações, já citados anteriormente, e que estão intimamente relacionados.

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Para tanto, vamos nos deter, a partir deste ponto, à exposição um pouco mais particularizada desses três níveis e suas inter-relações. A relevância desta descrição repousa no fato de que seu detalhamento consiste, ao mesmo tempo, na apresentação dos procedimentos metodológicos adotados em nossa pesquisa. 1.2.3. Os níveis de representação cognitiva, linguística e metalinguística 1.2.3.1. O nível das representações cognitivas e o conceito de noção

A relação entre linguagem e cognição como ponto de partida para compreender o funcionamento dos sistemas linguísticos não chega a ser uma novidade. Chomsky é um dos linguistas que mais se empenharam a buscar respostas para tal relação, dando origem, inclusive, a uma escola de pensamento bastante difundida ao longo da segunda metade do século XX, o gerativismo. Em linhas gerais, essa teoria defende a existência de universais linguísticos, que permitiriam identificar o que há de comum entre todas as línguas, especialmente no que tange a suas propriedades formais, regras de sintaxe que seriam verificáveis em todas as línguas naturais. Deste modo, para Chomsky: [...] existem várias propriedades complexas que são encontradas em todas as línguas, e que são, no entanto, arbitrárias, no sentido de não servirem a nenhuma finalidade e de não poderem ser deduzidas de nada do que sabemos acerca dos seres humanos e do mundo em que vivem (LYONS, 2011, p.172).

Para este linguista, estas “regras que determinam a produtividade das línguas humanas têm as propriedades formais que têm em virtude da estrutura da mente humana” (LYONS, 2011, p.171), o que explica o fato de os linguistas terem um importante papel a desempenhar na investigação acerca da natureza da mente. Ainda de acordo com autor, a linguagem é um caso particular do processo de aquisição do conhecimento, e por isso estaria a serviço da expressão do pensamento, tratandose de uma capacidade inata dos seres humanos que nos permite formar “alguns conceitos ao invés de outros; e que [esta] formação de conceitos é uma condição prévia para a aquisição do significado das palavras.” (LYONS, 2011, p.182). Para Chomsky, a ligação entre nossa capacidade de comunicar e a linguagem não se estabelece por meio de uma relação necessária, já que considera a linguagem como:

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[...] um sistema para expressar o pensamento, o que é bastante diferente. Ela pode, naturalmente, ser usada para a comunicação, assim como qualquer coisa que as pessoas fazem – a maneira de andar ou o estilo das roupas ou do cabelo, por exemplo. Entretanto, em qualquer sentido útil do termo, comunicação não é a função da linguagem, podendo não ter mesmo nenhuma importância específica para a compreensão das funções da natureza da linguagem (CHOMSKY, 2006, p.92-93).

Com estas breves colocações, buscamos apenas colocar em relevo algumas das principais teses deste autor, com o intuito de dissipar qualquer correlação que possa ser estabelecida entre o pensamento de Noam Chomsky e o de Antoine Culioli, pois as duas correntes teóricas, embora sejam contemporâneas e salientem a importância das funções cognitivas para o estudo das línguas naturais, não comungam das mesmas hipóteses acerca da tríade pensamento, língua e linguagem, bem como acerca das implicações para a compreensão dos processos de construção do sentido na e pela língua. Diferentemente da perspectiva mentalista de Chomsky, a Teoria das Operações Enunciativas não está engajada na investigação acerca dos mistérios que circundam as propriedades cognitivas; seu foco é a observação, estudo e análise das produções linguísticas, e do modo como se agenciam para enunciar: Le linguiste est obligé de travailler de façon plus rudimentaire : produire des observations, travailler sur des valuations [...]; théoriser pour pouvoir représenter ; retourner aux observations, dans ce va-et-vient indispensable entre l‟observation et la théorisation. [...] C‟est donc pouvoir décomposer les procédures de généralisation par lesquelles on passe d‟une classe de phénomènes à une autre classe, d‟une langue à une autre, n‟abandonnant jamais la variation empirique dans notre recherche de l‟invariance. Car c‟est bien d‟invariants qu‟il s‟agit et non pas de grammaire universelle, notion finalement assez obscure (CULIOLI, 1990, p.23).11

Isso se deve ao fato de as operações mentais não pertencerem ao campo investigativo dos linguistas. De acordo com Culioli, o nível das representações mentais diz respeito às representações que organizam as experiências que elaboramos desde nossa tenra infância, que construímos a partir das relações que estabelecemos com o mundo e as coisas a nossa volta, com as pessoas com as quais temos contato ao longo da vida, com a cultura a que pertencemos, assim como por meio dos interdiscursos aos quais estamos submersos desde que nascemos (1990, p.21). A essas simbolizações construídas por meio de um sistema de 11

O linguista é obrigado a trabalhar de modo mais rudimentar: fazer observações e trabalhar sobre o que delas avalia [...]; teorizar para poder criar representações; retornar às observações, neste vai-e-vem indispensável entre a observação e a teorização. [...] É portanto poder decompor os procedimentos de generalização pelos quais se passa de uma classe de fenômenos a outra, de uma língua a outra, sem jamais abandonar a variação empírica na nossa pesquisa sobre a invariância. Pois é bem de invariantes que se trata e não de gramática universal, noção, por fim, bastante obscura. (tradução livre).

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ajustamento e que são responsáveis pela elaboração de nossas representações mentais, Culioli denominou noções. As noções são sistemas de representação complexos, formadas por propriedades psicoculturais, ou seja, propriedades dos objetos e das coisas do mundo que apreendemos a partir de nossas experiências e que são necessariamente retiradas do interior da cultura a qual pertencemos. A língua é, assim, “a emanação irredutível do eu mais profundo de cada indivíduo [e] é ao mesmo tempo uma realidade supraindividual e coextensiva a toda a coletividade” (BENVENISTE, 2006, p.101), e em função disso é capaz de revelar “o uso particular que os grupos ou classes de homens fazem da língua e as diferenciações que daí resultam no interior da língua comum.” (BENVENISTE, 2006, p.102). Deste modo, consentimos que a produção do sentido é uma forma de pensar o mundo, de interpretá-lo, e por se tratar justamente “de uma configuração cognitiva construída pela língua, [é] através do sentido [que] a língua constrói conhecimento e cognição” (DE VOGÜÉ, 2011b, p.12). Sob esse ponto de vista, falar em noção é tocar em questões que são o foco interesse de outras disciplinas, tais como a psicologia e a antropologia, e por isso não podem ser remetidas unicamente aos estudos linguísticos (CULIOLI, 1990, p.50). Tais questões evidenciam, por outro lado, que o linguista carece de instrumentos necessários para acessar as operações e elaborações desenvolvidas neste primeiro nível de representação (DUCARD, 2000). Antes de tudo, o que nos cabe é identificar os rastros dessas operações mentais, aquilo que é possível identificar por meio do movimento enunciativo das unidades léxicogramaticais. A observação minuciosa das produções linguísticas é, assim, a atividade efetivamente capaz de nos oferecer os subsídios necessários para compreender o modo como o sentido é engendrado por suas unidades no interior de cada sistema linguístico. Em suma, as noções são elementos virtuais passíveis de deformações, cuja existência não se resume à própria unidade linguística, já que “as noções são captadas pelas unidades linguísticas, mas não se encontram jamais nelas aprisionadas.” (ROMERO, 2010b, p.492). Deste modo, o objetivo dos procedimentos metodológicos da teoria é captar os traços dos fenômenos que nascem da relação recíproca entre cognição, linguagem e sistema linguístico. Como já mencionamos anteriormente, dentro de nossa abordagem teórica, a linguagem não está a serviço da expressão do pensamento, assim como também não tem como única finalidade a comunicação; antes disso, linguagem e pensamento são concebidos como capacidades indissociáveis e intrinsecamente humanas, em que a linguagem é uma condição necessária para governo do pensamento, organizando-o e produzindo “ideias que se reiteram e

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compõem, passo e passo, o quadro de referências de toda a vida [dos sujeitos]” (FRANCHI, 2012, p.59).

1.2.3.2. O nível das representações linguísticas: linguagem e atividade A partir do que foi até aqui explicitado, notamos que a investigação acerca do funcionamento semântico da língua dentro da perspectiva da TOE supera a relação entre forma e conteúdo, na medida em que tem como fundamento um conceito de linguagem que a compreende enquanto um modo de construir experiências (REZENDE, 2008). A essa concepção da atividade de linguagem, Culioli denominou atividade epilinguística. O nível 2 é o das representações linguísticas. É por seu intermédio que identificamos traços das representações elaboradas no nível 1, da atividade de linguagem ou epilinguística, em que se observa uma “racionalidade silenciosa”, que dá contorno aos movimentos contínuos que orientam o agenciamento das unidades para a construção dos enunciados. Esses caminhos, como denominou Culioli, são aos poucos estabilizados, e convergem para a arquitetura de uma gramática subjetiva ao mesmo tempo em que se desenvolve uma gramática comum e transindividual. É, portanto, para este nível, único nível que nos é acessível, que as atenções dos linguistas devem se voltar. Nele encontram-se as bases para a investigação da realidade da língua e seu funcionamento, para o estudo minucioso acerca dos elementos que compõem o sistema linguístico, tornando possível a apreensão do movimento enunciativo das formas linguísticas e da atividade de linguagem. O trabalho da atividade de linguagem está, deste modo, pautado na relação entre a representação de mundo que construímos ao longo da vida e a maneira como esta representação se dá nos enunciados, i.e no jogo constitutivo que sustenta toda e qualquer produção linguística – e que, se apreende o “dizível”, nunca o apreende por completo – e no constante processo de ajustamento entre o dito e a recuperação do dizível. “É esse jogo, essa inadequação, que desencadeia a variação semântica de todas as suas formas” (ROMERO, 2010b, p.490). Há, portanto, uma atividade não-consciente, da ordem da linguagem e que se realiza intuitivamente, de forma contínua, denominada atividade epilinguística, atividade esta que pode ser entendida como que o avesso de toda produção linguística. Considerando que tanto as unidades linguísticas quanto os enunciados por elas construídos são dotados, ao mesmo tempo, de uma maleabilidade semântica e de um fator estabilizante, a ambiguidade evidencia-se como uma característica intrínseca da natureza

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própria da linguagem. A função dos constantes ajustamentos que se dão nos diálogos é desfazer os constantes malentendidos que surgem por consequência do potencial significante constitutivo da unidade linguística, levando-nos a construir e reconstruir nossas produções verbais até que julguemos ter encontrado o “formato” que traga uma “menor margem” de equívocos – se é que isto é possível. Verificamos, deste modo, que “enunciar é construir um espaço, orientar, determinar, estabelecer uma rede de valores referenciais, em suma, um sistema de orientação” (CULIOLI, 1999, p.44, apud ROMERO, 2010b, p.489). Isto significa que o nível das representações linguísticas está localizado “no caminho intermediário entre a realidade e a língua, as produções linguísticas dão origem a „ocorrências‟, dada a possibilidade de uma mesma unidade linguística construir valores referenciais diversos” (ROMERO, 2010b, p.490). Tal princípio serve de base para compreender a maleabilidade semântica das unidades, pois, quando instanciadas, quando postas em uso, tornam-se ocorrências, “constituindo um leque que vai de uma „entidade conforme à noção‟ a uma „entidade conservando suas peculiaridades‟” (ROMERO, 2010b, p.492). Em suma, podemos dizer que cabe às noções impregnar as unidades com o material semântico que as caracterizam, autorizando-lhes a contextualização. A ocorrência corresponde, por sua vez, às relações que as unidades estabelecem para compor os enunciados, por meio das quais constrói seus valores referenciais.

1.2.3.3. O nível metalinguístico e a prática da glosa como metodologia para análise de construção de sentido nos enunciados O nível das representações metalinguísticas, o nível 3, tem por finalidade permitir uma formalização abstrata dos fenômenos linguísticos, com vistas a explicitar o que há de invariante nos sentidos produzidos por uma unidade específica dentro de seus diferentes contextos. De acordo com Paillard, a diferença entre a atividade epilinguística e a atividade de representação metalinguística reside no fato de a primeira dizer respeito à racionalidade do locutor e a segunda caber à racionalidade do linguista. Além disso, se, por um lado, a atividade epilinguística não se dá de maneira totalmente consciente, a metalinguística é inteiramente racional, cuja meta é explicitar o movimento enunciativo das unidades linguísticas por meio de fórmulas. Outrossim, não se caracterizam como atividades opositivas, muito pelo contrário, a atividade metalinguística é constantemente alimentada pelas produções da atividade epilinguística (2006, p.176).

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Essa atividade metalinguística, cujo protagonista é o linguista, tem como principal característica um sistema de operações responsável por realizar a passagem do material linguístico empírico ao formal. Ancora-se na atividade epilinguística, nesse sistema de representação interno à língua, na observação das ocorrências, das restrições de inserção contextual das unidades, da variação de seus valores semânticos. Com esse sistema de representação formal, a glosa, almeja-se reconstruir os processos de representação realizados entre o nível cognitivo e o nível linguístico, percorrendo conscientemente o caminho que fazemos de modo não consciente, quando optamos por certas unidades para compor os enunciados em detrimento de outras. Por meio de um sistema de representação metalinguístico (as glosas), somos capazes de elaborar hipóteses que nos auxiliam na compreensão da maneira como as unidades constroem sua significação, apreendendo seus valores referenciais a partir de suas inserções contextuais. Por conseguinte, o conjunto dos valores referenciais fornece uma espécie de mapa do funcionamento enunciativo das unidades, pois corresponde aos modos como as unidades léxico-gramaticais constroem sua referência; tais valores associam-se, desta maneira, aos mecanismos que promovem a estabilização semântica das unidades e possibilitam o delineamento de sua forma esquemática, elemento puramente abstrato, resultado de um construto teórico, que nos possibilita uma aproximação, ainda que restrita, do funcionamento nocional. Nas palavras de Romero: A glosa constrói-se ao tentar tornar consciente um “saber inconsciente” – a “racionalidade silenciosa” – e tal tentativa passa, de um lado, por comentários, por explicações e percepções a respeito do papel desempenhado pela unidade linguística que se quer analisar nas interações que dela decorrem, de outro, por uma formalização desse papel por meio de uma metalinguagem (2011a, p.156).

Embora a glosa consista em um procedimento de reformulação aplicado à investigação do funcionamento enunciativo de uma unidade específica, não há de se confundir seu objetivo com o método. Assim, o objetivo da elaboração de glosas é antes de tudo “delimitar a parte estabilizável do sentido de um enunciado” (FRANCKEL, 2011c, p.109); para tanto, são efetuadas “transformações que se realizam nas sequências ou enunciados e que fazem emergir a dinâmica entre forma, contextualização e interpretação” (FRANCKEL, 2011c, p.111). Deste modo, a glosa não é aplicável a uma palavra isolada, pois o que se busca com essa prática de reformulação não é a simples identificação de sinônimos ou a elaboração de definições tal como encontramos nos dicionários; ao contrário, muito embora os sinônimos sejam parte importante do processo, sua presença se fazendo necessária a título de evidenciar

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aquilo que lhe distingue da unidade em análise. Não se trata, portanto, de “mobilizar uma ou outra unidade de sentido próximo em um contexto dado para estabelecer uma reformulação” (FRANCKEL, 2011c, p.121), o que caracterizaria a negação de sua identidade semântica, mas de lançar mão dos sinônimos como recurso para “caracterizar [a unidade] em sua especificidade irredutível” (FRANCKEL, 2011c, p.121). Para evitar qualquer tipo de malentendido a esse respeito, Franckel esclarece que devemos reservar o termo glosa essencialmente “para a reformulação de uma sequência, isto é, de um pequeno encadeamento de palavras contextualizável e inteligível” (2011c, p.107), podendo se tratar de um sintagma, ou uma frase simples. Isso se deve ao fato de que, sem a inserção contextual, não é possível apreender variação semântica das unidades, pois cada reformulação de um enunciado ou de uma sequência concorre para uma alteração semântica, por mais sensível que seja. Por conseguinte, a unidade mínima para a qual é possível elaborar uma glosa é a sequência, sendo esta interpretável apenas “a partir do momento em que a relacionamos a um contexto, ou a uma situação, ou seja, a partir do momento em que ela adquire o estatuto de um enunciado ou se integra a um enunciado” (FRANCKEL, 2011c, p.108). Notamos, assim, que há uma relação integrativa, fazendo com que uma sequência seja interpretável apenas quando inserida em um contexto, quando passa a ser a um enunciado contextualizado. Em suma, a reformulação controlada ou glosa situa-se “a meio caminho entre a explicação do texto e a teorização, entre a evidência e a abstração, entre a percepção epilinguística do sentido e uma formalização de sua construção, entre o particular e o regular”. (FRANCKEL, 2011c, p.121). Caracteriza-se como uma atividade metalinguística realizada de forma consciente, fundamentando-se nos mecanismos da atividade para compreender a dinâmica enunciativa das unidades da língua e o papel muito particular que desempenham no jogo enunciativo. Tais especificidades serão melhor evidenciadas no capítulo III, em que nos dedicamos à elaboração de glosas do verbo ROMPER, além de propormos uma atividade didática em que a manipulação de enunciados pode ser realizada em aulas de língua portuguesa destinadas aos alunos do ensino fundamental e médio. Antes disso, porém, no capítulo a seguir, trazemos uma breve reflexão acerca da abordagem semântica que a gramática, enquanto resultado do trabalho teórico realizado por estudiosos da língua, e o livro didático têm dispensado para o estudo do léxico.

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Capítulo II – Concepções de sentido e linguagem no ensino de Língua Portuguesa Sinônimos? Esses que pensam que existem sinônimos desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor. Mário Quintana

Durante muito tempo, observou-se um direcionamento do ensino de língua portuguesa à apresentação das formas “corretas” da língua, da norma culta, variedade linguística privilegiada e valorizada social e culturalmente. A linguagem vista como mero código e a compreensão como produto de uma decodificação mecânica negligenciaram, no ensino de língua materna, a possibilidade de reflexão, cujo principal intuito é permitir que se pense a linguagem como “uma sistematização aberta de recursos expressivos cuja concretude significativa se dá na singularidade dos acontecimentos interativos” (GERALDI, 2003, p.18). Isso conduziu, por outro lado, a negligenciar, ainda, a atividade de compreensão como um processo no qual se reflete sobre o próprio material verbal que compõe os enunciados. Criar estratégias que colaborem para que o aluno domine a norma culta e lhe ensinar a variedade escrita da língua é, sem dúvida, uma das funções do ensino de língua materna na escola, funções que vêm sendo levadas a cabo por outros meios a partir das diretrizes trazidas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais. Mas, tais funções não têm como ser separadas do objetivo maior do ensino de língua, que deve ser o de propiciar ao aluno “o conhecimento da instituição linguística, da instituição social que a língua é, o conhecimento de como ela está constituída e de como funciona” (TRAVAGLIA, 2009, p.20). Na base desta proposição está uma proposta de ensino de língua materna que deve abranger, além do estudo e análise de textos em seus diferentes gêneros, a de pensar sobre os elementos que constituem o texto, ou seja, sobre a gramática da língua, sem fazer distinção, nessa “gramática”, de elementos de natureza lexical, gramatical ou discursiva, posto que todos, conjuntamente, trazem orientações sobre seu modo de emprego. Com isso não queremos afirmar que o ensino de língua materna deva restringir-se à gramática, mas tão pouco é aconselhável negligenciá-la. Acreditamos que o ensino de gramática, nos moldes que propomos, remete ao estudo, à análise e à compreensão dos mecanismos que utilizamos inconscientemente e de modo ininterrupto, mecanismos que estruturam nosso pensamento, nos permitem criar hipóteses, imaginar, nos comunicar,

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participar da vida social e cultural de nossa sociedade, e criar novas formas de expressão agindo com e sobre esses mecanismos. Em outras palavras, o olhar curioso e a manipulação consciente do conjunto de elementos da língua são de suma importância para a formação linguística dos alunos, uma vez que não prima pela memorização de categorias ou nomenclaturas. Longe disso, o que se busca é a compreensão de como e porque nossas escolhas léxico-gramaticais (formas livres ou presas), assim como a ordem sintática que definimos para cada item de um enunciado, implicam resultados semânticos que jamais serão os mesmos se qualquer alteração for realizada. Assim, ao longo deste capítulo, buscamos apresentar e discutir a maneira como questões relativas ao estudo da significação das unidades léxico-gramaticais são apresentadas em trabalhos teórico-gramaticais, partindo de obras destinadas aos meios acadêmicos, passando por uma cujo público-alvo são os alunos do Ensino Médio, para atingirmos, então, o modo como esse conhecimento técnico e científico da língua chega aos alunos do Ensino Fundamental II via livro didático. Para tanto, propomos uma análise de conceitos clássicos à tradição do ensino do léxico – a saber, aos conceitos de polissemia, sinonímia e homonímia – a fim de estabelecer contraposições com a perspectiva defendida por nosso referencial teórico, que os aborda sob um ponto de vista um tanto distinto do tratado pela tradição gramatical. Antes, porém, de adentrarmos tais questões, julgamos necessária uma breve exposição acerca da função, características e objetivos de cada uma das obras escolhidas, bem como a forma como concebem a língua e a linguagem, pois entendemos que esses são fatores que nos dão pistas de como os autores abordam os temas que são focos de nossas análises. Por fim, pretendemos evidenciar a contribuição da Teoria das Operações Enunciativas para o desenvolvimento de práticas pedagógicas que favoreçam o exercício do raciocínio lógico acerca dos fatos da língua e seus dos processos de significação. Tal reflexão será feita a partir da análise de uma proposta de atividade retirada de livro didático destinado ao 6º ano do Ensino Fundamental II recomendado pelo Guia de Livros Didático (PLND 2011, 2012, 2013).

2.1. Gramática enquanto construto teórico Usualmente, quando nos referimos à gramática, podemos partir de diferentes concepções. Em termos gerais, podemos concebê-la como as “regras que definem o funcionamento de determinada língua” (SILVA, 2000, p.65), independentemente de suas

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variantes, ou como um construto teórico desenvolvido a partir de uma determinada perspectiva de estudo, que pretende apresentar ou descrever o modo de funcionamento da língua a partir da análise de uma ou mais variantes. Partindo desta última concepção, podemos ainda encontrar diferentes tipos de gramática, sendo que estes são, antes de tudo, “produtos científicos de natureza diversa, que recortam e abordam o fenômeno linguístico de maneira distinta” (SILVA, 2000, p.65). Deste modo, a gramática enquanto “instrumento linguístico”, assim como a denominou Auroux (2009), tende a seguir uma determinada perspectiva teórica e metodológica, a partir das quais passa a assumir um modo específico de compreender tanto a língua enquanto sistema, como seu uso pelos falantes. Assim, temos as gramáticas tradicionais, que seguem o modelo greco-latino ao descrever os fenômenos linguísticos por meio de categorias bem definidas; as gramáticas normativas, que pretendem apresentar as formas “corretas” de uso da língua a partir da variante padrão culta; as gramáticas descritivas, que se propõem a descrever o funcionamento da língua sem se prender, necessariamente, a uma única variante. Muitas outras gramáticas existem de fato, porém não nos estenderemos em tais definições, pois que não configuram o objetivo da discussão a ser apresentada. É ponto pacífico que “a gramática sempre foi relevante, do ponto de vista cultural e científico, por seu papel tanto no âmbito dos estudos linguísticos quanto no do ensino” (LEITE, 2006, p. 24), o que nos levou a entrever a necessidade de propor uma discussão acerca de três obras teórico-gramaticais de frequente utilização nos cursos de Letras, sendo elas: a Nova Gramática do Português Contemporâneo (NGPC), de Celso Cunha e Lindley Cintra (2001), a Moderna Gramática Portuguesa (MGP), de Evanildo Bechara (2009), e a Gramática Descritiva do Português (GDP), de Mário A. Perini (2011). Selecionamos, ainda, uma gramática destinada ao Ensino Médio, a Nossa Gramática Completa (NGC), eminentemente escolar, de Luiz Antônio Sacconi, o que se explica pelo fato de termos notado poucas obras desta natureza voltadas inteiramente para o público adolescente, e por constar, em sua bibliografia, referências às obras de Cunha e Cintra (NGPC) e de Bechara (MGP). Com isso, pretendemos verificar o modo como essas gramáticas concebem a língua, a linguagem e a produção do sentido, e de que maneira, ainda que de forma restrita, esses saberes se refletem no ensino de língua materna no Ensino Fundamental II, o que será analisado por meio da identificação de como o livro didático propõe atividades envolvendo a produção do sentido das unidades léxico-gramaticais. Iniciemos pela NGPC de Cunha e Cintra (2001), que, de acordo com Silva (2000), foi elaborada por dois autores que “são, certamente, dos maiores estudiosos e conhecedores da

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Língua Portuguesa nesta segunda metade do século XX” (p.11). Esta obra pode ser identificada como uma gramática tradicional, cujo principal objetivo é estabelecer “regras de um predeterminado modelo ou padrão da língua, para aqueles que já dominam outras variantes dessa língua e também algumas regras daquela variante que é a padrão.” (SILVA, 2000, p.12). Esta definição encontra-se em total conformidade com os objetivos propostos pela NGPC e que são assim definidos pelos autores: Trata-se de uma tentativa de descrição do português atual na sua forma culta, isto é, da língua como a têm utilizado os escritores portugueses, brasileiros e africanos do Romantismo para cá, dando naturalmente uma situação privilegiada aos autores dos nossos dias. Não descuramos, porém, dos fatos da linguagem coloquial, especialmente ao analisarmos os empregos e os valores afetivos das formas idiomáticas (CUNHA, CINTRA, 2001, p.xxiv).

Além disso, afirmam ainda que “[uma] gramática que pretenda registrar e analisar os fatos da língua culta deve fundar-se num claro conceito de norma e de correção idiomática” (CUNHA, CINTRA, 2001, p. 5). Embora essa última afirmação nos traga uma nítida sensação de normatividade, Silva (2000) chama a atenção para o caráter peculiar desta obra, considerando-se que, ao mesmo tempo em que os autores confirmam “a tradição de estabelecer uma determinada variedade da língua como a que deve ser seguida” (p. 58), adotam também uma visão de normatividade em que a norma é considerada “numa visão alargada, própria às orientações modernas da Dialetologia12” (p. 58), e isto ao incorporar elementos da sociolinguística por meio de certas considerações acerca dos dialetos sociais. Evidentemente, quanto a isso, é preciso guardar as devidas proporções, uma vez que um de seus objetivos centrais é o de “descrever o português contemporâneo, considerando-se, principalmente, as normas admitidas como padrão em Portugal e no Brasil” (LEITE, 2006, p. 33). Com relação às concepções de língua e linguagem, a Nova Gramática do Português Contemporâneo apresenta, em seu primeiro capítulo, seus conceitos gerais, explanação que evidencia a postura dos autores ante tais fenômenos. Em seus apontamentos preliminares, a língua é definida como:

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De acordo com o Dicionário de Linguística de Jean Dubois, este termo pode designar, entre outras coisas, a “disciplina que assumiu a tarefa de descrever comparativamente os diferentes sistemas ou dialetos em que uma língua se diversifica no espaço, e de estabelecer-lhe os limites”. É também “o estudo conjunto da geografia linguística e dos fenômenos de diferenciação dialetal ou dialetação, pelos quais uma língua, relativamente homogênea numa dada época, sofre no curso da história em certos pontos e de outra natureza noutros [...]. Então, a dialetologia, para explicar a propagação ou a não-propagação desta ou daquela inovação, faz intervir razões geográficas, políticas, sócio-economicas, sócio-culturais ou linguísticas.” (2006, p.185-186)

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[...] um sistema gramatical pertencente a um grupo de indivíduos. Expressão da consciência de uma coletividade, a língua é o meio por que ela concebe o mundo que a cerca e sobre ele age. Utilização social da faculdade de linguagem, criação da sociedade, não pode ser imutável; ao contrário, tem de viver em perpétua evolução, paralela à do organismo social que a criou (2001, p.1).

Ao analisarmos essas afirmações, notamos que o ponto de vista apresentado pelos autores pode dar margem à contradição, pois embora considerem as línguas naturais enquanto sistemas estruturados e regidos por regras que lhe são próprias, o que é posto em evidência é o caráter mutável da língua, isto é, a alteração que incide, de acordo com Saussure, sobre o “deslocamento da relação entre o significante e o significado” (2006, p.89). A contradição reside justamente no fato de que, se a língua é compreendida enquanto um sistema complexo composto por signos arbitrários – do qual não se tem consciência de seu funcionamento a não ser pela tentativa de refletir sobre suas características e buscar compreendê-las por meio de uma reflexão racional e sistemática –, sabe-se de antemão que as leis que regem esse sistema não podem ser alteradas deliberadamente por seus falantes. Com feito, como sabemos, estes não têm o poder de modificar-lhe a estrutura interna e o modo de funcionamento de seus signos, visto “a própria arbitrariedade do signo [pôr] a língua ao abrigo de toda tentativa que vise modificá-la” (SAUSSURE, 2006, p. 86). Desta maneira, seria inviável conceber as línguas naturais apenas em sua face mutável, pois sendo elas heranças sociais, característica que faz pesar sobre si as leis da tradição, tornase imprescindível considerar a existência de algo que lhe seja constante e lhe permita ser transmitida de geração para geração, pois que “nenhuma sociedade conhece nem conheceu jamais a língua de outro modo que não fosse como um produto herdado de gerações anteriores e que cumpre receber como tal” (SAUSSURE, 2006, p.86). Consequentemente, toda alteração sofrida, seja esta fonética ou semântica, tende a obedecer às normas internas da língua e ao funcionamento individual dos signos, de modo que, ainda que o léxico de uma determinada língua sofra mudanças ao longo do tempo, o que garantiria sua perpetuação é sua face imutável, já que sob este viés toda mutabilidade da língua é regida e autorizada pelo que, nela, é permanente. Outra gramática tradicional brasileira que figura entre as de maior destaque é a MGP de Evanildo Bechara (2009) (LEITE, 2006). Porém, apresenta características bastante peculiares ao assumir “[uma] estrutura da gramática greco-romana enxertada de linguística moderna” (LEITE, 2006, p.27-28), podendo ser considerada, desta forma, como uma gramática hibrida, já que autor tenta combinar a tradição gramatical com “a teoria

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funcionalista de Eugênio Coseriu, de quem é fiel seguidor.” (LEITE, 2006, p. 27). Assim, encontramos ao longo da obra muitas reflexões acerca das funções sociais da linguagem, da estrutura da língua portuguesa e conceituações acerca dos elementos que compõem a língua. Bechara (2009) dedica seu primeiro capítulo ao esclarecimento de conceitos gerais acerca da língua e da linguagem. Para o autor, a linguagem é “qualquer sistema de signos simbólicos empregados na intercomunicação social para expressar e comunicar ideias e sentimentos, isto é, conteúdos da consciência” (2009, p. 28). Já a língua é apreendida sob o ponto de vista histórico e funcional. Ela é histórica por ser um “produto cultural histórico, constituída de outras línguas, e praticada por todas as comunidades integrantes desse domínio linguístico” (2009, p.37); e funcional por ser compreendida enquanto “modalidade que de maneira imediata e efetiva funciona nos discursos e texto” (2009, p.38), cuja variedade emerge de acordo com as circunstâncias, fatores e intenções envolvidas na atividade comunicativa como, por exemplo, o destinatário da mensagem, o objeto de que se fala e a situação em que o discurso é produzido e proferido. No que está posto, identificamos uma visão referencialista da língua e da linguagem, pois ambas são consideradas como instrumentos por meio dos quais somos capazes de retratar a realidade, sendo seu o principal propósito descrever o mundo, expressar as ideias e sentimentos. A linguagem é tomada ainda como a “atividade humana de falar” estruturada sob cinco dimensões universais: a da criatividade, pois que constitui uma forma de cultura “que se manifesta como atividade livre e criadora”; a da materialidade, por configurar “uma atividade condicionada fisiológica e psiquicamente”, que exige do falante uma capacidade biológica para produzir signos fonéticos articulados; a da historicidade, “porque a linguagem se apresenta sempre sob a forma de língua”, tradição linguística de uma comunidade histórica; a da alteridade “porque o significar é originariamente e sempre um ser com outros, próprio da natureza político-social do homem”; e a da semanticidade, “porque cada forma corresponde um conteúdo significativo, já que na língua tudo significa, tudo é semântico” (2009, p.29). Essas categorizações da atividade linguagem acabam por reduzi-la à capacidade humana de expressar-se por meio de um sistema linguístico cuja principal função é a de estar a serviço do pensamento e funcionar como decodificador de nossos estados de espírito. Já a GDP de Perini (2009) é, como o próprio nome indica, uma gramática descritiva, cujo fundamento é descrever e registrar uma variedade da língua:

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[...] em um dado momento de sua existência (portanto numa abordagem sincrônica) as unidades e categorias linguísticas existentes, os tipos de construção possíveis e a função desses elementos, o modo e as condições de uso dos mesmos. Portanto a gramática descritiva trabalha com qualquer variedade da língua e não apenas coma a variedade culta e dá preferência para a forma oral desta variedade. Podemos, então, ter gramática descritiva de qualquer variedade da língua (TRAVAGLIA, 2009, p 32).

Ainda que autor enfatize em seu prefácio entender que a descrição da língua deve abranger a língua coloquial em sua variação social, geográfica e histórica, deixa claro que o objeto de seu estudo é a estrutura da língua padrão (PERINI, 2009, p.14). Ressalta ainda que, com esta obra, não pretende esgotar as noções sobre a estrutura da língua portuguesa, mas, antes, propor discussões acerca de “pontos relativamente bem compreendidos e ao mesmo tempo olhar para frente, identificando problemas a estudar”, isso por entender que “[é] definitivamente necessário começar a conceber a gramática como uma disciplina viva, em revisão e elaboração constante” (PERINI, 2009, p.17). No que tange às concepções língua e linguagem, não nos foi possível identificá-las diretamente na GDP; por isso, nos permitimos buscar outra obra do autor que possibilitasse, ainda que sem grande profundidade, identificar o modo como Perini concebe tais elementos. Assim, retiramos de “Sofrendo a Gramática”, obra também frequentemente utilizada nos cursos de Letras, as noções que julgamos necessárias para manter a coesão da proposta inicial deste capítulo. Neste livro, Perini (2005) se dispõe a identificar e apresentar uma série de equívocos conceituais normalmente encontrados nas gramáticas tradicionais ou normativas, expondo o que considera soluções para tais dificuldades. Acima de tudo, o autor defende a ampliação de pesquisas acerca da gramática da língua portuguesa, para que surjam propostas de gramáticas mais lógicas e eficientes, e que facilitem o estudo da estrutura da língua desde a entrada no ensino fundamental. No que nos foi possível identificar, Perini não faz grandes distinções entre as noções de língua e a linguagem, assim como podemos perceber na passagem abaixo Como se explica que tenhamos intuições tão definidas acerca de frases que nunca encontramos antes? Tudo provém do uso que fazemos a todo momento desse mecanismo maravilhosamente complexo que temos em nossas mentes, e que manejamos com admirável destreza. Esse mecanismo é nosso conhecimento implícito da língua, objeto principal da investigação dos linguistas. (PERINI, 2005, p. 16)

Deste modo, o autor traz definições sempre muito bonitas, e um tanto filosóficas, acerca do que entende como sendo o centro das investigações do linguista.

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De forma geral, Perini apresenta, ao menos nestas obras, uma concepção de língua e linguagem que não admite que a ele seja reduzida, afirmando que as “línguas, longe de serem meros sistemas de nomenclatura, são também sistemas de recorte da realidade; cada língua reflete uma organização própria imposta pela nossa mente às coisas do mundo” (PERINI, 2005, p. 98). Além disso, muitas de suas considerações culminam na perspectiva de que língualinguagem são constitutivas do ser humano, estando, por isso, intimamente ligadas à própria ideia de humanidade, em seus aspectos sociais, culturais e nos elementos que configuram a própria natureza humana. Nas palavras do autor, Uma língua é muito mais do que uma lista de nomes para as coisas – é, de certa forma, um sistema de organização do mundo, um dos instrumentos que nos servem para compreender a imensa complexidade da realidade que nos cerca. Estudar em profundidade a estrutura de uma língua é estudar a mente humana; é observar uma das maneiras que a mente criou de recortar e organizar a realidade, a fim de compreendê-la. (PERINI, 2005, p.98)

Assim, o estudo da língua e de seus mecanismos, a análise de suas possibilidades de construir enunciados e de produzir sentidos, permitiriam não só compreender a língua enquanto sistema de signos, mas também colaborar para o entendimento dos mistérios que cercam a mente e a natureza humana. Por fim, chegamos à NGC de Sacconi (2011), a qual se intitula eminentemente escolar, desenvolvida, de acordo com o autor, “numa linguagem própria do adolescente” para tratar “do português cotidiano, necessário no relacionamento do dia a dia – item completamente esquecido em todas as gramáticas” (SACCONI, 2011, p.3). A partir das considerações registradas na Apresentação de sua gramática, é possível inferir que Sacconi a considera uma gramática normativa, tendo como um de seus objetivos colaborar para que os alunos não mais concluam o “ensino médio dizendo ‘Acabou’ as aulas, ‘Começou’ as férias, ou seja, [saindo do ensino médio] sem conseguir distinguir o sujeito de orações simples” (p.3). Partindo deste princípio, a Nossa Gramática Completa enquadra-se na perspectiva normativa, cujo objetivo é estudar “apenas os fatos da língua padrão, na norma culta de uma língua, norma essa que se tornou oficial” (TRAVAGLIA, 2009, p.30), buscando apresentar e ditar as “normas de bem falar e escrever, normas para a correta utilização oral e escrita do idioma, prescreve o que se deve e o que não se deve usar na língua. Essa gramática considera apenas uma variedade da língua como válida, como sendo a língua verdadeira” (TRAVAGLIA, 2009, p. 30).

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Por assumir e defender o caráter normativo de sua obra, Sacconi desfere duras críticas aos linguistas, que, em sua opinião: [...] têm o desplante de afirmar aos quatro cantos do mundo que falar e escrever de acordo com a norma culta, com a gramática normativa, é uma aspiração reacionária, própria de gente conservadora, o que, já de per si, define-os como enganadores, falsos educadores, pseudoprofessores. (SACCONI, 2011, p.3)

Assim, por se posicionarem contrariamente ao ensino normativo da língua, estes estudiosos estariam colaborando para a permanência da carência educacional no Brasil que tem se mostrado avassaladora, fazendo com “que o nosso ensino alcan[ce] os piores índices de eficácia, detectados anualmente por organismos internacionais” (SACCONI, 2011, p. 3). Como exemplo, trazemos algumas reflexões sobre a abordagem apresentada por esta obra, que, tal qual verificamos na gramática de Cunha e Cintra, também se inicia com um primeiro capítulo dedicado à exposição conceitual acerca dos elementos da língua, da linguagem e suas funções sociais, além de tratar do que vêm a ser a gramática, o discurso e a variação linguística. Para Sacconi, a língua “é o instrumento social à disposição do falante” (2011, p.12), ou seja, a língua é, acima de tudo, instrumento de comunicação. Já a linguagem é “a faculdade que possui o homem de poder expressar seus pensamentos, sentimentos, experiências, etc.” (2011, p.12), concepção que a restringe à expressão do pensamento, tratando-se, portanto, de elementos independentes que se relacionam por meio de uma hierarquia, em que a linguagem está a serviço do pensamento. Considerando que muitos são os fatores que poderíamos discutir neste capítulo, escolhemos um que figura entre as questões clássicas dos estudos da linguagem: a concepção de signo linguístico. Em primeira instância, há a afirmação de que “todo signo é convencional” (2011, p.12), mas, na sequência, há uma ressalva que invalida a proposição anterior: “Daí por que a maior parte dos signos linguísticos é arbitrária, ou seja, não há nenhuma relação entre a representação gráfica ou som de bola e o objeto designado”, acrescentando ainda que “fogem a esse conceito as onomatopéias, que procuram imitar um determinado som: fom-fom, cocorocó, coaxar, tiziu, etc.” (grifo nosso, 2011, p.12). Como podemos notar, embora estejamos sob o advento dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais), documentos cunhados pelo Ministério da Educação com a finalidade oferecer às nossas escolas diretrizes e orientações acerca do ensino de língua materna, na tentativa de dissipar o ensino de língua calcado na descontextualização da metalinguagem,

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“normalmente associada a exercícios mecânicos de identificação de fragmentos linguísticos em frases soltas” (BRASIL, 1998, p.18) e na “apresentação de uma teoria gramatical inconsistente – uma espécie de gramática tradicional mitigada e facilitada.” (BRASIL, 1998 p.18), não é raro encontrarmos obras como a Nossa Gramática Completa – ou livros didáticos – que insistem em caminhar na contramão da história da educação, ignorando todas as boas contribuições que as pesquisas linguísticas têm a oferecer ao ensino de língua materna. Em linhas gerais, acreditamos que a função das gramáticas é colaborar para que os alunos adquiram o domínio da modalidade escrita da variante padrão de sua língua, sendo essencial oferecer-lhe as condições, instrumentos e atividades que os “façam ter acesso às formas linguísticas diferenciadas e operar sobre elas” (FRANCHI, 2008, p.29).

2.2. A abordagem semântica acerca da produção de sentido das unidades lexicais: polissemia, sinonímia e homonímia Detemos-nos agora na análise de como as obras supracitadas abordam o estudo do semântico das unidades léxico-gramaticais, mais especificamente no que tange à polissemia, sinonímia e homonímia. Abrimos parênteses para esclarecer que, neste tópico, o tema não é abordado pela Nova Gramática do Português Contemporâneo, pois muito embora constem, em sua introdução, generosas considerações acerca da comunicação, do que compreendem como sendo as funções da língua e da linguagem, bem como seus reflexos sobre a sociedade, não há, nos capítulos subsequentes, um que seja específico ao tratamento dos aspectos semânticos da língua ou mesmo de sua relação com as regras internas do sistema linguístico. De acordo com Leite (2006), nesta obra, “o ponto de vista estruturalista organiza os capítulos e, metodologicamente, cada classe é tratada por meio dos três critérios formal, funcional e semântico, na ordem que cada classe exigir” (p.32), não havendo, portanto, tópicos específicos que tratem do processo de significação das unidades lexicais. Já na MGP de Bechara (2009), é no capítulo Estrutura das unidades: análise mórfica que o estudo do léxico ganha destaque. Nele são apresentados, já de início, os três prismas sob os quais a palavra pode ser analisada: o primeiro diz respeito aos seus traços fônicos, ocupando-se em estudá-la a partir de suas características físicas, mantendo-se no plano do significante; o subsequente ocupa-se do estudo da palavra em seus aspectos gramaticais, ou seja, a partir das classificações determinadas dentro do sistema de normas da língua; e, por

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fim, a palavra analisada a partir de sua significação lexical, que diz respeito ao plano do conteúdo, aos sentidos atribuídos às unidades léxicas. Evidencia-se, assim, que, para esta perspectiva teórica, o estudo do léxico e o estudo gramatical pertencem a focos de interesse distintos, percepção que em muito se distancia da abordagem teórica que fundamenta nossa pesquisa, uma vez que tomamos o estudo da palavra sob a ótica léxico-gramatical por entendermos que a significação das unidades não se constrói apartada de sua função no sistema linguístico, suas características enunciativas só são apreendidas por meio das relações que estabelecem com as outras unidades da língua, sendo por meio dessas relações que seus valores semânticos emergem. Isso mostra que, ao contrário de posicionamentos que concebem o léxico como “pleno” – i.e. dotados de conteúdo – e outras unidades (as gramaticais, por exemplo), como relacionais, partimos do princípio de que, na língua, não há unidades “plenas”, toda definição semântica sendo, portanto, de natureza relacional (ROMERO LOPES, 2009). Em função do posicionamento adotado por Bechara diante das questões da língua e da linguagem, os estudos relativos à significação das unidades léxicas são concentrados no tópico Alterações Semânticas. Nele são abordados os elementos admitidos como responsáveis pela pluralidade de significados que as palavras podem adquirir de acordo com o contexto situacional ou linguístico, culminando na concepção de que as palavras possuem uma autonomia semântica, que são dotadas de um conteúdo próprio que determina o surgimento de outras acepções. Embora os termos denotação e conotação não sejam utilizados, as alterações semânticas sofridas pelas unidades lexicais são explicadas por meio das figuras de linguagem. De acordo com Bechara, as metáforas, metonímias, catacreses, abreviações e eufemismos motivam as mudanças semânticas das palavras, sendo produzidas por influência de um fato de civilização e etimologia popular ou associativa. Essas, por sua vez, provocam três formas diferentes de alterações semânticas: a extensão do significado, enobrecimento do significado e o enfraquecimento do significado. Desta maneira, ao serem submetidas aos efeitos das figuras de linguagem, as palavras passam a adquirir sentidos que extrapolam o que se considera seu uso normal. Entendemos que tais argumentos deixam entrever uma concepção de língua para a qual suas unidades lexicais possuem um sentido primeiro que lhes é mais “genuíno” que os demais, e nisto repousa, mais uma vez, a ideia de que a língua, mais do que descrever e representar a visão de mundo de um grupo social, mais do que organizar nosso pensamento, tem a função de nomear o mundo. Assim, os sentidos construídos são novamente atribuídos

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aos fatores externos à língua, em detrimento das representações mentais associadas às peculiaridades específicas de cada sistema linguístico e seus elementos. Outros aspectos semânticos tratados por Bechara (2009) se embasam na teoria dos campos semânticos. É a partir desse princípio teórico que ou autor disserta acerca dos conceitos de como polissemia, homonímia e sinonímia. Assim, polissemia é concebida como o “fato de haver uma só forma (significante) com mais de um significado unitário pertencente a campos semânticos diferentes” (BECHARA, 2009, p.402). Já a homonímia é entendida como “a propriedade de duas formas, inteiramente distintas pela significação ou função, terem a mesma estrutura fonológica, os mesmo fonemas, dispostos na mesma ordem e subordinados ao mesmo tipo de acentuação” (2009, p.402). Bechara aponta ainda a dificuldade histórica dos linguistas em estabelecer uma clara distinção entre polissemia e homonímia, uma vez que os critérios propostos para determinar quando estamos diante de uma mesma palavra com dois ou mais significados diferentes (polissemia), ou quando se trata de duas palavras distintas com idênticos fonemas (homonímia), estão sujeitos a críticas, já que critérios como fatores histórico-etimológicos, consciência linguística do falante, as ralações associativas e os campos léxicos não são amplamente aceitos por todos os estudiosos da área. Já no que tange à sinonímia, o autor a define como “o fato de haver mais de uma palavra com semelhante significação, podendo um estar em lugar da outra em determinado contexto, apesar dos diferentes matizes de sentido ou de carga estilística” (2009, p.404). Para ilustrar, são citadas as unidades linguísticas casa, lar, morada, residência, mansão, ilustração que não deixa de ser antecedida de mais uma ressalva sobre tal conceito: Um exame detido nos mostrará que a identidade dos sinônimos é muito relativa; no uso (quer literário, quer popular), eles assumem sentidos „ocasionais‟ que no contexto um não pode ser empregado pelo outro sem que se quebre um pouco o matiz da expressão. Uma série sinonímica apresentase-nos com pequenas gradações semânticas quanto a diversos domínios: o sentido abstrato ou concreto; o valor literário ou popular (fenecer, morrer); a maior ou menor intensidade de significação (chamar, clamar, bradar, berrar); o aspecto cultural (escutar, auscultar) e tantas outras. (2009, p.404)

Notamos, até aqui, que toda tentativa de atribuir ao extralinguístico funções que competem ao sistema linguístico e às representações mentais esbarram em questões de difícil solução, que acabam permanecendo sem respostas, configurando-se em buracos negros dos estudos da linguagem. Em a Gramática Descritiva do Português, Perini atribui à semântica um papel de maior destaque e dedica dois capítulos ao estudo de questões de cunho semântico, dando

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especial atenção aos fatores que, de acordo com sua abordagem, concorrem para construção da significação. Logo de início, o autor trata de expor a diferença entre a construção da significação a partir do ponto de vista da Semântica e da Pragmática. No entanto, seu objetivo não é marcar uma oposição epistemológica, mas evidenciar de que modo acredita que estejam essas duas correntes entrelaçadas para produzir a significação. Assim, para ele: O primeiro problema a enfrentar ao se encetar o estudo do significado das formas linguísticas é o de distinguir qual a porção do significado que é oriunda da interpretação das estruturas e dos itens léxicos e qual a porção que provém do conhecimento que o falante tem de fatores extralinguísticos, tais como: a situação de comunicação; as relações entre os interlocutores; o conhecimento prévio que eles possam ter do assunto, e assim por diante. (2011, p. 41)

Deste modo, tanto a produção de enunciados quanto sua compreensão não pertencem exclusivamente ao nível linguístico, mas também sofrem influência de “nossa percepção da situação em que nos encontramos, com quem nos estamos comunicando, aquilo que sabemos e aquilo que acreditamos que nosso interlocutor também saiba” (2011, p.41). Em outras palavras, a construção da significação é compreendida como o resultado de dois níveis, que, embora interdependentes, pertencem a campos distintos e dão origem a duas categorias diferentes de significado: o literal e o final. O primeiro diz respeito à semântica, pois é resultado de “um sistema que extrai do enunciado aquilo que é possível depreender a partir somente da estrutura formal” (2011, p.42); já o segundo seria consequência de “uma série de outros fatores, ligados ao contexto da comunicação e ao conhecimento prévio existente na memória do falante e do ouvinte” (2011, p.42). Com a ideia de significado literal, fica implícita a visão de que há um sentido primeiro para cada unidade lexical, estando o sentido final relacionado às outras possibilidades de significação, que emergem de acordo com o contexto situacional, intimamente associado aos elementos culturais de uma comunidade falante. De fato, não há dúvidas de que a língua é fundamental e também uma forma perceber a cultura de um determinado grupo, mas há de se relativizar uma relação que, à primeira vista, nos parece ser tratada de modo unívoco, enquanto que o esperado seria dizer que se a língua é apreendida por meio da cultura, ela também constrói a cultura. Em função disso, as possibilidades de enunciativas das palavras, os efeitos de sentido por elas produzidos quando postas em uso, são possíveis não por determinação do contexto extralinguístico, mas devido à estrutura da língua e às características particulares de cada uma das unidades linguísticas, que impregnadas de cultura, compõem os enunciados e autorizam as mais variadas possibilidades

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de significação. Entendemos, assim, que não é o contexto extralinguístico que define a significação das produções linguísticas, mas a maneira como o enunciador mobiliza as unidades da língua para compor os enunciados de acordo com o efeito de sentido que deseja produzir. Essa noção de significado construído a partir de um referencial extralíngua encontra outros fundamentos, como é caso do princípio que defende a existência de que as palavras são dotadas de “traços semânticos”, traços próprios às unidades lexicais que permeiam sua compreensão individual, fora da inserção no enunciado. Nessa perspectiva, o significado de uma palavra seria o resultado de um conjunto de traços semânticos. Para exemplificar, Perini (2011) utiliza a unidade linguística camelo, que, nessa vertente, é composta pelos traços semânticos “concreto” e “animado”, definição que, aliás, não abrange por completo suas possibilidade de significação, como nos mostram os seguintes enunciados: A.

O camelo é um animal muito bem adaptado ao clima desértico.

B.

Se encontraram então no parque da cidade/ a Mônica de moto e o Eduardo de camelo13 Em A, a definição apresentada se encaixa perfeitamente, mas não é possível aplicá-la a

B, pois não se trata, aqui, do animal, mas sim de uma bicicleta, que embora possa ser classificada como algo “concreto”, não possui o traço “animado”. Analisando os dois enunciados à luz da teoria defendida pelo autor, em A, camelo, evocado em seu sentido literal, é utilizado em seu sentido primeiro; já em B, o uso de camelo remete ao significado final, produto do contexto situacional. Essa definição nada mais faz do que categorizar as duas possibilidades de sentido, sem explicar porque é possível utilizá-los. Não há, portanto, uma proposta de investigação acerca das características enunciativas de camelo que evidencie o que existe de similar entre um uso e outro para esta que possa ser compreendida como a mesma unidade linguística. Ainda sob a perspectiva dos traços semânticos, o autor apresenta o conceito de má formação semântica, em que o sentido inicial ou final dos itens lexicais associados com suas funções sintáticas são responsáveis por frases semanticamente bem ou malformadas. Para melhor compreensão do conceito de frase semanticamente mal formada, é apresentado o seguinte enunciado: Meu vizinho bebeu todo o papel 13

Trecho da canção “Eduardo e Mônica”, da banda Legião Urbana.

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A impossibilidade de compreensão é justificada, neste caso, por se desobedecer “a uma das condições do significado de beber, a que estabelece que o paciente da ação de beber deve ser líquido (e a matriz semântica do item papel o descreve como sólido)” (PERINI, 2011, p.247). A explicação pode parecer coerente, mas se de fato a construção da significação segue esse esquema, como se justifica a construção “[ele] bebeu seu português nas aulas de Nascentes” (HOUAISS, 2009, p.271), em que português não pode ser apreendido como tendo a matriz semântica de algo que é líquido ou sólido? Ou ainda, como se explica a bela imagem criada pelo poema abaixo: Subi a porta e fechei a escada. Tirei minhas orações e recitei meus sapatos. Desliguei a cama e deitei-me na luz Tudo porque Ele me deu um beijo de boa noite14 Como bem podemos observar, nenhum verbo do poema corresponde ao uso ditado por seus traços semânticos, e isso porque o significado do poema não está nos sentidos isolados de suas unidades, mas “na forma como as coisas são ditas; melhor dizendo, está na desorganização da forma como as coisas foram ditas” (ANTUNES, 2011, p.175). Para Perini, essas construções, facilmente caracterizadas como malformadas, são passíveis de interpretação por se encontrarem em “contextos particulares”, próprios da linguagem figurada, recurso muito utilizado em poemas, fábulas, músicas etc. O autor acrescenta ainda que “nesses contextos, as violações semânticas são utilizadas funcionalmente, para causar certos efeitos estéticos, ou para ajudar a caracterizar um ambiente fora do normal” (PERINI, 2011, p.247). Isso talvez justifique a licença poética permitida para essas categorias textuais, mas não explica o que motiva a perfeita compreensão do sentido construído por um enunciado como este, que teoricamente é composto apenas por “frases semanticamente malformadas”. Ao ler o poema, acreditamos ser possível para qualquer falante de língua portuguesa compreender a desordem que a paixão é capaz de causar aos enamorados. Outro conceito bastante discutido por Perini é a sinonímia, cuja definição é engendrada a partir da noção de implicação mútua, o que explicaria a maioria das ocorrências dos sinônimos, mas não todos. O termo implica a existência de uma relação de verdade contígua entre dois ou mais elementos, ao que é exemplificado pelas unidades costume e hábito. Ambos tomariam como referente a mesma realidade, o valor de verdade de ambas são 14

Poema anônimo extraído do livro “Lutar com palavras, coesão e coerência”, de Irandé Antunes (2005).

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aproximados. Entretanto, o próprio autor reconhece a dificuldade em descrever o funcionamento dos sinônimos, uma vez que “a língua impõe certas limitações ao emprego dessas palavras, e essas limitações não são idênticas, de tal forma que nem sempre se pode substituir hábito por costume ou vice-versa” (PERINI, 2011, p.248). Outra característica questionável da implicação mútua é o fato de ser o resultado de “fatores não linguísticos [...]; e duas palavras que se implicam mutuamente podem, ainda assim, ocorrerem em situações diferentes, devido a imposições de uso que não tem nada a ver com o significado” (PERINI, 2011, p. 248). Concordamos com essa afirmação apenas no que tange à dificuldade de detecção de sinônimos perfeitos na língua, pois, como foi dito, palavras com valores semânticos aproximados dificilmente podem ser substituídas uma pela outra, ou por impossibilidade de construção de sentido ou por provocar sua alteração. Contudo, a afirmação de que esses eventos ocorram por motivos externos à língua torna, por fim, toda a argumentação inconsistente, pois se a significação engendrada fora dos parâmetros considerados intrínsecos à unidade for atribuída ao contexto extralinguístico, acaba por categorizar o que compõe o sistema linguístico – ou seja, suas unidades lexicais – como algo supérfluo no processo de construção do sentido. Talvez por haver tantos pontos de imprecisão, Perini arremata a noção de sinonímia como “intuitiva e bastante nebulosa” (PERINI, 2011, p.249). Com homonímia e polissemia também surgem pontos em que a conceituação se torna complexa, o que leva Perini a afirmar que “apesar de muitos esforços nesse sentido, até hoje não se conhece uma maneira de distinguir claramente esses dois fenômenos” (2011, p.250). A polissemia, a princípio, pode ser definida como uma palavra com vários significados; já a homonímia caracteriza a existência de duas palavras de mesma grafia com significados diferentes. Para ilustrar a dificuldade em discernir um do outro, é tomado como exemplo o termo verde, que pode remeter tanto a uma cor, quanto ao estado de maturação das frutas. O entrave se impõe, neste caso, pela impossibilidade de se posicionar com clareza e convicção se temos uma única palavra com sentidos diversos, ou se são duas palavras distintas que possuem a mesma grafia e pronúncia. A opção pela primeira hipótese configura um caso polissêmico; optando-se pela segunda, configuram-se palavras homônimas. Sem solução definitiva para o problema, a polissemia é posta em evidência ao ser definida como “uma propriedade fundamental das línguas humanas, que, sem ela não poderiam funcionar eficientemente” (PERINI, 2011, p.251), pois “confere às línguas a flexibilidade de que precisam para experimentarem todos os inumeráveis aspectos da

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realidade” (PERINI, 2011, p. 252). A homonímia, por outro lado, tem sua viabilidade questionada, uma vez que “seria impraticável dar um nome separado a cada „coisa‟, incluindo aquelas que nunca vimos” (PERINI, 2011, p.251). Embora as noções de Perini acerca dos elementos semânticos da língua não estejam em total consonância com a abordagem que nos embasa, são de grande relevância para a reflexão acerca da linguagem, especialmente para aqueles que se propõem a investigar a significação na língua. Sendo muitos os questionamentos e fundamentações teóricas levantadas pelo autor, estes não deixam de configurar pontos de partida instigantes para pesquisas acerca do processo de construção da significação na língua. Logo de início, Sacconi faz uma clara referência ao célebre princípio saussuriano da arbitrariedade do signo (SAUSSURE, 2001, p.81). No entanto, mais adiante, define o referente como sendo “a entidade (objeto, fato, estado de coisas, etc.) do mundo externo a quem um termo símbolo se refere (p.ex.: o referente da palavra livro é o objeto livro)” (SACCONI, 2011, p.13). Chegamos aqui a um entrave nas colocações feitas. Se o signo linguístico foi definido como o que não tem qualquer relação de necessidade com o objeto do mundo, como poderia, a posteriori, tornar-se seu representante fiel, conferindo à língua um caráter de nomenclatura das coisas do mundo? Considerando este posicionamento para o qual a unidade lexical livro remete ao objeto “livro” que o aluno tem em mãos, como seria possível explicar para este aluno a construção Minha vida é um livro aberto, em que não há um objeto de fato a ser aberto ou fechado? Com essas proposições, não estamos refutando as possibilidades que a língua nos oferece para falar sobre aquilo nos rodeia, mas, ao propor uma reflexão acerca do funcionamento semântico da língua, acreditamos que o mais coerente seria abordar o referente como algo construído na e pela língua, independente de sua existência material. Isso ajudaria os alunos a perceberem o papel da linguagem e a compreenderem o sistema linguístico para além de um sistema de nomenclaturas. Considerando-a como uma das formas de organizar o pensamento, toma-se a relação entre língua e linguagem como um meio de construir representações, estabelecendo, assim, uma ligação direta com a criatividade e imaginação que as próprias formas da língua nos autorizam, bem como ressaltando características que, pungentes nas crianças e nos adolescentes, configuram ainda recurso essencial para as criações literárias. Assim como em Perini (2011), na NGC há duas seções destinadas à Semântica, que, de acordo com Sacconi, é a área do conhecimento que estuda a “significação das palavras e

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das suas mudanças de significação através do tempo ou em determinada época” (2011, p.512), além de ocupar-se do estudo das “palavras em seu sentido normal, ou seja, estuda a significação das palavras, cuja maior importância reside na discriminação entre sinônimos e antônimos [...] e entre homônimos e parônimos” (p.512). Nota-se, por essa definição, que a significação é abordada a partir de uma concepção língua para a qual as palavras possuem um sentido que lhes é próprio, um sentido denotativo a partir do qual todos os outros sentidos, os conotativos, surgem. Deste modo, não se coloca em questão a necessidade de analisar a significação das palavras integrada ao contexto linguístico em que surgem, já que suas possibilidades de significação são dadas de antemão, desfavorecendo a reflexão acerca do potencial semântico das unidades e suas possibilidades de emprego criativo e muitas vezes inesperado. Esta obra, ao menos no aspecto semântico, não preza, portanto, pela promoção da reflexão acerta da construção do sentido na língua, encontrando-se, nesse aspecto, na contramão das propostas mais recentes para as práticas de ensino de língua portuguesa, que apontam para a necessidade de se partir de usos linguísticos possíveis de verificação pelos alunos, garantindo-lhes a aquisição de novas habilidades linguísticas. Nisto, configuram-se as práticas associadas à leitura e escrita, mas também as reflexões de ordem léxico-gramatical, pois a noção de texto perpassa as possibilidades de associação dos elementos que compõem a estrutura da língua. Justamente por isso, os PCN postulam que “as situações didáticas têm como objetivo levar os alunos a pensar sobre a linguagem para poder compreendê-la e utilizála apropriadamente às situações e aos propósitos definidos” (BRASIL, 1998, p.18) De maneira geral, as análises das gramáticas ora apresentadas mostram que questões acerca da significação das unidades linguísticas pautadas na existência de uma autonomia semântica das unidades lexicais esbarram em problemas que parecem sem solução. Ao que nos parece, grande parte da conceitualização nebulosa acerca de termos como polissemia, homonímia e sinonímia apoiam-se no princípio de que as palavras se constituem a partir de um conjunto de traços semânticos que regem e organizam sua variação semântica. Tal posicionamento teórico tem como objetivo “buscar um ponto de estabilidade semântica inerente à unidade, um valor central que funcione como princípio organizador do que é tido por seu semantismo [...], sendo este valor sua contribuição para a significação do enunciado” (ROMERO-LOPES, 2000, p.7). Desta maneira, toda a reflexão que se propõe está centrada na compreensão da significação da unidade como um dado prévio ao processo de construção de sentido nos enunciados nos quais se insere, o que bloqueia a possibilidade de levantar

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questionamentos que toquem nos mecanismos que estão na base desse processo e sustentam suas mais variadas possibilidades de significar. Este modo de compreender a significação das unidades linguísticas reprime um posicionamento mais reflexivo e investigativo no que tange à busca pela compreensão do que constitui sua verdadeira identidade semântica, pois ao admitir, por exemplo, que a polissemia se restringe à “pluralidade de sentidos de uma palavra” e que consequentemente o contexto é considerado “como responsável pela seleção (ou determinação) de um valor semântico preciso” (ROMERO-LOPES, 2000, p.6), toma-se como princípio fundante que as unidades da língua possuem um conteúdo semântico que lhes é inerente, impedindo deste modo, a efetivação de propostas para o estudo do léxico que exijam um esforço cognitivo, um debruçar-se sobre os fatos da língua que possibilite compreender os mecanismos que estão por trás das significações locais e instantâneas das unidades, que permita identificar, analisar e descrever seus valores semânticos construídos no e pelos enunciados. Evidencia-se, desta maneira, que nosso posicionamento teórico, definido por uma visão construtivista15 da produção do sentido, entende a significação como algo sempre construído e jamais ofertado de antemão, o que não significa, como veremos adiante, que as unidades linguísticas não sejam dotadas de uma matéria semântica. No âmbito do referencial teórico adotado, a variação é constitutiva da natureza semântica das unidades léxicogramaticais e seus sentidos emergem sob orientação de sua forma esquemática, conceito que especifica a matéria semântica da unidade e que é responsável, tanto por sua maleabilidade, quanto pelo que surge com repetível dentro da variação. O que existe, desta forma, são estabilizações do sentido sustentadas por uma “identidade lexical [que] deve ser buscada no próprio desenrolar do processo significativo, na interação que se verifica entre a unidade e seu (s) contexto(s)” (ROMERO-LOPES, 2000, p.7).

2.3. Análise de atividade proposta por livro didático Como dissemos na abertura do capítulo, nossa intenção é discutir o modo como o conhecimento linguístico, apresentado de formas tão variadas pelas diferentes gramáticas, chega à sala de aula. Para tanto, optamos por analisar um livro didático do 6º ano da coleção

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O termo “construtivista”, nesta teoria, diz respeito à construção do sentido pelo material verbal que compõe o enunciado; desta forma, qualquer relação que possa ser estabelecida entre este termo dentro da teoria culioliana e aquele ligado à perspectiva de Piaget não pode ser tomada de forma direta.

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“Para viver juntos” (editora SM), dos autores Cibele Lopresti Costa, Greta Marchetti e Jairo J. Batista Soares. A escolha deste material fundamentou-se no fato de que esta coleção integra o Guia Nacional do Livro Didático, fazendo parte do PLND16 2011, e encontrar-se disponível em escolas públicas, tanto municipais quanto estaduais de São Paulo, ainda que seja para simples análise do professor. Ressalte-se ainda que um dos elementos determinantes para a escolha se deve ao fato de que, em sua bibliografia, constam duas das quatro gramáticas aqui discutidas, sendo elas a Moderna Gramática Portuguesa e a Nova Gramática do Português Contemporâneo. Já a opção pelo exemplar destinado ao 6º ano deve-se ao fato de que este marca a passagem do ensino fundamental I para o ensino fundamental II, quando a criança se vê inserida em um contexto e uma dinâmica de sala de aula bastante diversos daqueles com os quais estava habituada, passando a conviver com um número maior de professores, de alunos e com uma organização curricular totalmente nova. No que tange à organização geral do livro didático sob análise, ele está organizado em nove unidades, sendo oito delas definidas a partir de gêneros textuais (romance de aventura, conto popular, história em quadrinhos, notícia, relato de viagem e diário de viagem, poema, artigo expositivo de livro paradidático e artigo de divulgação científica, entrevista) e a última unidade destinada à revisão de gêneros estudados anteriormente. Além disso, cada unidade conta com dois textos do gênero que dá nome à unidade, havendo ainda propostas de atividades de acordo com os seguintes tópicos: duas atividades de estudo do texto (interpretação de texto e identificação das características do gênero textual), duas de produção de texto (produção de texto de acordo com as características do gênero que está sendo estudado), duas de reflexão linguística (introdução de conceitos gramaticais e atividades de gramática apoiadas em textos diversos), duas de língua viva (trata do conceito estudado no capítulo aplicado em um contexto discursivo) e uma de questões de escrita (aborda questões de ortografia, acentuação e pontuação). Deste modo, escolhemos uma atividade de reflexão linguística da terceira unidade (p.98), cujo tópico gramatical em estudo é a classe dos substantivos. Como proposta de consolidação de aprendizagem, são elaboradas questões acerca da composição lexical do poema Imagem, de Arnaldo Antunes, como segue abaixo: 16

O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) tem como principal objetivo subsidiar o trabalho pedagógico dos professores por meio da distribuição de coleções de livros didáticos aos alunos da educação básica. Após a avaliação das obras, o Ministério da Educação (MEC) publica o Guia de Livros Didáticos com resenhas das coleções consideradas aprovadas. O guia é encaminhado às escolas, que escolhem, entre os títulos disponíveis, aqueles que melhor atendem ao seu projeto político pedagógico. Informação retiradas do Portal do MEC.

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Leia o poema a seguir, de Arnaldo Antunes. Imagem palavra



paisagem contempla cinema

assiste

cena



cor

enxerga

corpo

observa

luz

vislumbra

vulto

avista

alvo

mira

céu

admira

célula

examina

imagem

fita

olho

olha

a) O que indicam as palavras da coluna da direita do poema? b) Quanto ao significado, o que há de comum entre todas as palavras dessa coluna? c) O que indicam as palavras da coluna da esquerda do poema? d) Que relações de sentido há entre as palavras das duas colunas? e) Classifique as palavras da primeira coluna. Fonte: COSTA, MARCHETTI, SOARES, ano, p.98.

Como podemos observar, as questões b) e d) tendem a favorecer a reflexão acerca da significação e da função das palavras. Na questão b), o aluno pode facilmente notar a proximidade semântica existente entre as palavras da segunda coluna, assim como também pode ser capaz de identificar que se trata de verbos, embora nada seja dito em relação ao fato de que, para que sejam assim concebidos, deve-se levar em conta a sua relação com o outro termo da oração por ele construída. Afinal, mira e fita poderiam muito bem pertencer à classe dos substantivos. Já a questão d) exige que o aluno realize algumas tentativas de possibilidade de leitura para chegar à compreensão do poema e do(s) efeito(s) de sentido(s) que o poema pretende provocar. Se em um primeiro momento os alunos lerem a coluna da esquerda e, depois, a da

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direita, o texto será reduzido a listas de palavras. Porém, se em um segundo momento realizarem a leitura da esquerda para a direita, ou da direita para a esquerda, já seria possível inferir algumas possibilidades de sentido. Há, portanto, nitidamente, um problema relacionado à própria formulação da pergunta elaborada. Outra possibilidade seria a de sugerir aos alunos que realizassem paráfrases dos versos. Assim, se parafraseássemos o primeiro verso acrescentando o pronome “se”, teríamos “Palavra se lê”. Poderíamos ainda parafraseá-lo com a linguagem coloquial, inserindo o sintagma nominal “a gente” na posição de sujeito entre o substantivo e o verbo, e assim teríamos “Palavra a gente lê”, ou inserindo um pronome pessoal de fato, como em “Palavra ele/ela lê”. Poderíamos, por fim, ampliar nossas possibilidades de construções de enunciados e, com a introdução de um determinante, construir “A palavra lê o mundo”. Já na hipótese de realizarmos uma paráfrase partindo da leitura da direita para a esquerda, e acrescentando um sujeito (pronome pessoal, ou o sintagma nominal que exerce essa função, por exemplo) e um determinante, teríamos, no primeiro verso “Ele/ Ela lê a palavra” ou “A gente lê a palavra”, o que não nos impede de formar, com outros grupos nominais, “O mundo lê a palavra” etc. Com isso, poderíamos questionar os alunos acerca da mudança de sentido em cada uma das paráfrases elaboradas e compará-las ao que foi compreendido na leitura do texto original. Seria possível ainda chamar a atenção dos alunos para o uso corriqueiro que fazemos de “a gente” e fazê-los observar que, embora “ele” seja um pronome de 3ª pessoa e “a gente” exerça a função de um pronome de 1ª pessoa do plural, não só o verbo não sofre nenhuma alteração, como também “a gente” está longe de poder ser entendido como um “nós”. Por fim, poderíamos abrir para uma reflexão mais refinada envolvendo conceitos relacionados às estabilizações oriundas do próprio movimento sintagmático, uma vez que o poema brinca com elementos constitutivos das predicações, sem, no entanto, estabilizá-las. É essa nãoestabilização que nos permite construir, a partir de “palavra lê”, tanto palavra se lê, quanto ele lê palavra – com as interpretações que esse enunciado, a princípio, inusitado, produz –, ou então, a palavra se lê, ele lê a palavra ou o mundo lê a palavra, e por aí afora. Deste modo, notamos que, muito embora as duas questões tragam uma reflexão acerca da significação das palavras, que exijam do aluno algum esforço para compreender as possibilidades de significação do poema, esses questionamentos não abrem para a exploração de outras possibilidades de sentido que essas palavras podem assumir, exigindo que a iniciativa de realizar paráfrases para auxiliar os alunos a melhor explorar o texto e suas unidades lexicais venha do professor.

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Acreditamos, ainda, que outras propostas de atividade poderiam auxiliar os alunos a refletir ainda mais acerca das palavras que compõem o poema, fazendo-os explorar um pouco mais o potencial semântico de suas unidades lexicais. Em uma delas, poderíamos sugerir aos alunos que reescrevessem o poema mudando os verbos, ou os substantivos de posição, para verificar as mudanças de sentido que provocariam e se os versos por eles criados são ou não passíveis de interpretação. Assim, certamente surgiriam versos como “imagem lê”, “paisagem admira”, “céu olha”, ou outras ainda mais inusitada como “corpo lê”, “cinema mira” etc. Mais interessante ainda seria de lhes propor lidar com o que, a princípio, parece inusitado. Afinal, “corpo lê”, sem dúvida, pode dar margem a reflexões muito interessantes, assim como os outros versos criados. Com relação à questão a), entendemos que a resposta deva ser, provavelmente, que as palavras da coluna da direita se referem à verbos relacionados ao campo visual, assim como, na resposta da questão c), espera-se que os alunos respondam que se trata de substantivos “concretos” que também estariam relacionados a esse campo. Desta maneira, esta atividade pode acabar por sugerir, intencionalmente ou não, que os substantivos concretos são palavras que representam elementos que podem ser visualizados, reforçando a ideia de língua como nomenclatura, e ignorando outras possibilidades de composição de enunciados como “Você é meu céu” ou “Ela é a luz da minha vida” em que as palavras “luz” e “céu” não permitem a classificação em substantivos concretos, uma vez que seus significados, nesses contextos, se aproximam da ideia de sentimentos. Além disso, nos parece que tais perguntas ofereçam alguma dificuldade de interpretação, uma vez que não é evidente, nem para nós, inferir quais são seus objetivos. Já a questão e) exige pouco esforço cognitivo. Talvez fosse mais proveitoso se, ao invés de solicitar a classificação das palavras dessa coluna, os alunos fossem orientados a encontrar outros substantivos com significados semelhantes, a fim de verificarem a mudança de sentido que provocariam em cada um dos versos e no poema como um todo. É importante ressaltar que o fator que nos chamou a atenção nesta atividade em especial, em detrimento de muitas outras que, assim com esta, têm como foco o estudo de um elemento gramatical em seus aspectos estruturais e também semânticos, foi a possibilidade de propor uma abordagem que permita ao aluno exteriorizar o conhecimento intuitivo que possui da própria língua, uma vez que muitas das palavras que compõem o poema fazem, certamente, parte do repertório lexical dos alunos, ao passo que outras, ainda que possam parecer novidade, são de fácil assimilação. Deste modo, o objetivo central desta atividade não seria apenas ensinar a classe dos substantivos, mas o de fazer com que a criança pudesse

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trazer suas intuições sobre a língua para o nível da consciência, fazendo-a refletir e falar sobre elementos linguísticos. Mesmo não sendo uma atividade de fácil execução para o aluno não habituado ao trabalho metalinguístico, esse tipo de trabalho poderia proporcionar a realização de uma das mais importantes funções do ensino de gramática, se não a mais importante: a promoção da reflexão sobre a própria língua (KLEIMAN, SEPULVEDA, 2012), e, acrescentemos, sobre o modo como as próprias palavras orientam e constroem cenas enunciativas. De modo geral, a análise deste livro didático reforça a afirmação de Kleiman e Supulveda (2012) de que, “atualmente, a proposta de ensino em língua materna mais divulgada é aquela que se estrutura com base no ensino do gênero” (p.13), o que deixa a desejar no quesito referente à abordagem mais profunda e reflexiva acerca dos fatores léxicogramaticais da língua e, consequentemente, negligencia os efeitos positivos que o ensino gramatical pode trazer para o desenvolvimento intelectual da criança, assim como já afirmou Vigotsky a partir do resultado de suas experiências (KLEIMAN, SEPULVEDA, 2012, p.40). Além disso, entendemos que o estudo da produção de sentido por meio da análise e manipulação das unidades léxico-gramaticais e dos enunciados que integram é certamente capaz de promover “o desenvolvimento do potencial comunicativo do aluno, e o consequente fortalecimento de sua capacidade cidadã na sociedade moderna, essencialmente letrada” (KLEIMAN, SEPULVEDA, 2012, p.11), além de estimular a capacidade do raciocínio lógico, da associação e a reflexão permanente acerca do que constitui a materialidade de qualquer gênero textual, ou seja, as palavras e as funções que desempenham dentro do sistema linguístico. Com esta prática, muito defendida e em amplo desenvolvimento dentro da Teoria das Operações

Enunciativa,

enxergamos

um

grande

potencial

para

contribuição

do

desenvolvimento cognitivo da criança em idade escolar, uma vez que, de acordo com Vigotsky, em uma de suas colocações mais conhecidas, “as palavras desempenham um papel central não só no desenvolvimento do pensamento, mas também na evolução histórica da consciência como um todo. Uma palavra é um microcosmo da consciência humana” (VYGOTSKY, 1991, p. 132) e, sob esse ponto de vista, o estudo de uma palavra incorre na possibilidade de entrever lampejos dessa consciência em pleno funcionamento.

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Capítulo III – O estudo do léxico a partir da análise de sua dinâmica enunciativa Deixe a inteligência sempre aberta (atenção, espírito de observação, perspicácia) para que seja moldada pelo mundo; aí, a linguagem virá por si; o que não se consegue dizer é o que não se conseguiu ainda compreender e conhecer. Carlos Franchi (frase atribuída a um velho professor seu)

Os Parâmetros Curriculares Nacionais, documento elaborado com a finalidade de propor orientações que colaborem para a melhoria da qualidade do ensino em nosso país, apresenta como um dos objetivos centrais do Ensino Fundamental proporcionar condições para que os alunos sejam capazes de “utilizar as diferentes linguagens” (BRASIL, 1998, p.7), servindo-se delas para “produzir, expressar e comunicar suas ideias, interpretar e usufruir das produções culturais” (BRASIL, 1998, p.8). Desta maneira, o ensino de língua portuguesa assume um papel marcante neste processo, pois uma de suas atribuições mais relevantes é propor estratégias para que o aluno domine a linguagem enquanto atividade discursiva e cognitiva, assim como sua língua materna enquanto

sistema

simbólico

partilhado

por

sua comunidade

linguística,

oferecendo-lhe, deste modo, plenas condições de inserção social. Tal perspectiva está ancorada na visão de que é por meio da linguagem que produzimos cultura, construímos e partilhamos visões de mundo, nos comunicamos, temos acesso à informação, nos expressamos e defendemos nosso ponto de vista (BRASIL, 1998, p.19). Observamos, assim, que o ensino de língua portuguesa, enquanto parte de “um projeto educativo comprometido com a democratização social e cultural”, tem como função oferecer aos alunos condições para acessarem aos “saberes linguísticos necessários para o exercício da cidadania” (BRASIL, 1998, p.19). Para tanto, torna-se essencial que o ensino de língua esteja ancorado em uma prática pedagógica que estimule os alunos a refletirem e falarem sobre a própria linguagem, uma prática que utilize a metalinguagem como recurso capaz de colaborar para o desenvolvimento da capacidade intelectual e linguística dos alunos. Dentro desta perspectiva, nossa proposta para o ensino do léxico tem muito a contribuir para o alcance de tais objetivos, pois está pautada no desenvolvimento de situações didáticas que promovem a reflexão acerca do funcionamento da atividade de linguagem por meio da observação e análise dos mecanismos responsáveis pela produção da significação na

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língua. Trata-se de uma visão em que o sentido das unidades lexicais não é dado a priori, mas construído a partir do modo como se organizam para compor os enunciados, visão para a qual a simples categorização das palavras em classes gramaticais é insuficiente para definir sua função dentro do sistema linguístico; é preciso ir além e compreender o movimento enunciativo das palavras, desvendar-lhes a arquitetura interna, responsável por fundamentar sua variação semântica e orientar o uso que delas fazemos. Para tanto, é indispensável o estabelecimento de um trabalho embasado na pesquisa e reflexão acerca dos fatos da língua, cuja efetivação exige um levantamento de dados, uma busca pelos ambientes enunciativos nos quais a unidade léxico-gramatical sob análise se insere, identificando-lhe as características, as funções que exerce, as oposições semânticas que estabelece com unidades consideradas similares e, por consequência, a singularidade das significações que faz emergir. Para que tenhamos uma compreensão efetiva do funcionamento da língua e suas unidades, é preciso que a pesquisa se apoie na realidade viva da língua, em exemplos reais de uso, para que esses dados sejam elencados, comparados e manipulados, de tal maneira que nos seja possível visualizar os processos de construção do sentido de uma dada unidade. Em função disso, ao longo deste capítulo, vamos nos deter na explicitação da prática de reformulação de enunciados enquanto metodologia que propicia o desenvolvimento de estratégias para o ensino língua, e, mais especificamente, para a elaboração de atividades que oportunizem um ensino léxico-gramatical mais significativo e estimulante, passível de aplicação em diferentes estágios do aprendizado de língua, desde que adaptado aos diferentes níveis de abstração dos educandos. Desta forma, a metodologia aqui apresentada busca contribuir para a elaboração de práticas pedagógicas, especialmente voltadas para do ensino léxico no Ensino Fundamental e Médio, que sejam capazes de desenvolver nos alunos um olhar investigativo e científico acerca dos fatos língua e da linguagem, colaborando não só para a compreensão do funcionamento enunciativo de uma unidade lexical específica, mas fundamentalmente para a estrutura da Língua Portuguesa enquanto sistema de representação simbólico e discursivo.

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3.1. A atividade epilinguística como fundamento para o desenvolvimento de uma abordagem construtivista da linguagem Nossa proposta para estudo e análise da produção da significação pelas unidades lexicais está pautada em uma abordagem construtivista da língua, “para a qual o sentido é apreendido como proveniente unicamente do material verbal” (FRANCKEL, 2011c, p.109), ou seja, o sentido das unidades é gerado pelo próprio enunciado, não se trata, portanto, de algo herdado por fatores de natureza extralinguística, mas engendrado pelos elementos que compõem os contextos linguísticos. Deste modo, nosso maior desafio consiste em desvendar de que maneira “a variação dos sentidos de uma palavra se dá em planos de variações regidos por uma organização regular (FRANCKEL, 2011a, p.25), e identificar o elemento que estabiliza as possibilidades de emprego de uma unidade léxico-gramatical, chegando, desta forma, à sua forma esquemática, à estrutura que orienta seu funcionamento, e que descreve “o conjunto dos valores e dos empregos da unidade que ela caracteriza” (FRANCKEL, 2011a, p.26). Nisso repousa uma das características da atividade epilinguística, que consiste na construção e reformulação de enunciados envolvendo a unidade a qual se pretende conhecer, processos, esses, que agem como “princípio e instrumento que permitem apreender como a linguagem funciona” (ROMERO, 2011a, p.10). O princípio norteador do desenvolvimento de uma atividade de natureza epilinguística repousa na possibilidade de promover a reflexão constante acerca do funcionamento da língua e dos mecanismos da linguagem. Nesse sentido, entendemos a sala de aula como um espaço cujo potencial reflexivo deve ser explorado por todas as áreas do conhecimento e, no caso específico do ensino de Língua Portuguesa, tal como postulam os PCN, entendemos que a: [...] atividade mais importante, pois, é a de criar situações em que os alunos possam operar sobre a própria linguagem, construindo pouco a pouco, no curso dos vários anos de escolaridade, paradigmas próprios da fala de sua comunidade, colocando atenção sobre similaridades, regularidades e diferenças de formas e de usos linguísticos, levantando hipóteses sobre as condições contextuais e estruturais em que se dão. É, a partir do que os alunos conseguem intuir nesse trabalho epilinguístico, tanto sobre os textos que produzem como sobre os textos que escutam ou leem, que poderão falar e discutir sobre a linguagem, registrando e organizando essas intuições: uma atividade metalinguística , que envolve a descrição dos aspectos observados por meio da categorização e tratamento sistemático dos diferentes conhecimentos construídos. (BRASIL, 1998, p.28)

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A atividade epilinguística17 que defendemos neste trabalho consiste em uma prática de reformulação controlada, que se configura como o caminho de acesso para a percepção da dinâmica enunciativa da unidade lexical específica – em nosso caso o estudo recai sobre o funcionamento do verbo ROMPER – e consiste na tentativa de tornar conscientes mecanismos específicos da linguagem humana que operamos de forma inconsciente. É, assim, uma atividade metalinguística que tem por objetivo refazer sistematicamente os percursos linguísticos que traçamos mentalmente para produzir os enunciados, para dizer o que queremos e provocar os efeitos de sentido que desejamos. Cabe ressaltar que essa reformulação não é aplicada à unidade isolada para qual se busca uma definição ou identificação de proximidade semântica com outros termos da língua, mas sua aplicação está voltada para a unidade inserida em seus diferentes ambientes textuais; ou seja, só é possível reformular “um encadeamento de palavras contextualizável e inteligível” (FRANCKEL, 2011c, p.107). Isto se deve ao fato de que é somente obsevando os contextos de inserção de uma determinada unidade que somos capazes de identificar os diferentes efeitos de sentido que provoca, nos permitindo vislumbrar paulatinamente os padrões que regem sua variação e identificar quais elementos requer para enunciar. Trata-se, portanto, de uma metalinguagem que primeiro experimenta os possíveis usos de uma determinada unidade léxico-gramatical e seus valores semânticos para depois descrever suas regularidades. Com este procedimento, chegamos à elaboração da glosa, que nas palavras de Franckel (2011c) Trata-se de um dispositivo de linguagem que passa por um longo percurso – na verdade, um processo de usura da linguagem por si mesma, mas que não se limita a isso. O que está em jogo é o estabelecimento de procedimentos controláveis, que passam por uma argumentação e que se apoiam em fatos de língua reproduzíveis para além das hesitações que, forçosamente, o simples recurso à intuição epilinguística implica (p. 107).

Mais especificamente, a glosa diz respeito a uma atividade abstrata cujo resultado é a formalização entre aquilo que elaboramos de forma inconsciente e as produções linguísticas propriamente ditas, sendo seu principal objetivo “delimitar a parte estabilizável do sentido de um enunciado” (FRANCKEL, 2011c, p.109), partindo sempre das transformações neles realizadas e que fazem emergir “o jogo entre forma, contextualização e interpretação” (2011b, p.111). Desta maneira, busca-se elucidar o papel que a unidade desempenha dentro do

17

A atividade epilinguística enquanto proposta didática diz respeito à tentativa de tornar consciente o conhecimento não consciente próprio à atividade de linguagem.

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sistema linguístico, bem como suas características enunciativas, aquilo que a distingue das outras unidades da língua, oferecendo-nos pistas de sua identidade semântica, de sua face invariável responsável por orientar todas as suas possibilidades de variação semântica.

3.2. O funcionamento enunciativo do verbo ROMPER 3.2.1. Sobre a investigação do verbo em análise

Ao assumirmos um posicionamento que entende a significação como produto das relações

estabelecidas

entre

as

unidades

para

construir

enunciados,

estamos,

consequentemente, refutando a existência de uma autonomia semântica, de uma referência ancorada no contexto extralinguístico e desconstruindo a noção tradicional de polissemia. Deste modo, a referência também não é entendida com algo dado, mas como elemento igualmente construído. Trata-se, mais precisamente, do que está posto, no âmbito de nosso referencial teórico, pelo conceito de valor referencial, termo que diz respeito ao produto de operações abstratas vinculadas aos mecanismos da atividade de linguagem. Assim, o valor referencial é determinado a partir das estreitas relações estabelecidas entre o nível das representações cognitivas e o nível das representações linguísticas, pois corresponde ao: [...] espaço fundamentado num jogo entre noções, material semântico configurado pela unidade linguística no seu contextualizar, e o que denominamos “ocorrências”, e que são essas mesmas noções instanciadas, situadas espaçotemporalmente por meio das unidades linguísticas, isto é, consideradas em relação aos outros termos que constituem o enunciado (ROMERO, 2010, p. 490)

Mais especificamente, os valores referenciais representam os modos de estruturação dos enunciados, são os vestígios das operações realizadas entre a atividade de linguagem e nossas elaborações cognitivas, as noções. Isso significa que a identificação do modo como as unidades constroem a referência, seus valores referenciais, será sempre uma construção teórica, uma atividade de natureza metalinguística, produto do empenho cognitivo, da observação e análise minuciosa do material verbal que compõe os textos, enunciados e sequências. Sob essa perspectiva, a polissemia, tradicionalmente entendida como a multiplicidade de sentidos atribuídos a uma unidade lexical específica, dá lugar à busca pela identidade semântica das unidades, elemento identificável apenas por meio da observação dos contextos

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que estabilizam seus valores semânticos. Estes contextos, por sua vez, não dizem respeito à referência extralinguística, à situação de produção linguística ou simplesmente às intenções do enunciador, mas, como já enfatizamos anteriormente, ao material verbal que compõe os enunciados. Com isso, entende-se que a significação das unidades lexicais é analisada por meio da investigação de como o conhecimento implícito que o falante tem da própria língua o leva a mobilizar as unidades léxico-gramaticais, bem como sua estrutura sintática, de modo mais adequado aos propósitos discursivos. Neste caso, não é o contexto situacional ou as intenções do falante que determinam o significado, mas a própria dinâmica da língua e as características internas das unidades que autorizam ou não sua inserção para composição dos enunciados. Deste modo, o trabalho com a significação proposto nesta pesquisa parte da elaboração de nossas representações abstratas, do que está na base do processo de construção do sentido, isto é, das regularidades calculáveis que regem o funcionamento das unidades e que são responsáveis por sua variação semântica. Essa regularidade calculável é denominada, no que se refere a unidades lexicais, forma esquemática e corresponde a uma: [...] forma invariante elaborada a partir das manipulações nas quais se verificam, de um lado, as contextualizações desencadeadas pela unidade e o modo como a unidade as trabalha; de outro, em um movimento recíproco, o modo como essas contextualizações trabalham a própria unidade. (ROMERO, 2010, p. 482)

Para melhor compreender os conceitos abordados acima, propomos o estudo do verbo ROMPER. Para tanto, consultamos, em primeira instância, três fontes lexicográficas, Borba (1991), Ferreira (2009) e Houaiss (2009), isso porque os dicionários são importantes instrumentos linguísticos que funcionam como um banco de dados dos empregos correntes e também dos que já caíram em desuso do nosso léxico. Desta maneira, nos fornece, ainda que de forma restrita, a história semântica das unidades lexicais de uma determinada língua, ou seja, um compilado estático das significações identificadas no uso que os falantes fazem do “conjunto relativamente extenso de palavras à [sua] disposição [...], as quais constituem as unidades de base com que construímos o sentido de nossos enunciados” (ANTUNES, 2009, p. 42). Nesta fase inicial acerca da investigação do verbo em análise, identificamos que a primeira acepção indicada nas fontes lexicográficas já citadas, coloca ROMPER como um verbo transitivo direto que implica a ação de criar abertura ou passagem à força, tendo por sinônimos os verbos quebrar, partir, rasgar, atravessar, infringir, raiar e surgir; além das

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outras acepções que lhe são atribuídas na sequência, tais como dilacerar, abrir sulcos ou caminhos, atravessar (barreiras, fronteiras), dar a conhecer (um segredo), rescindir, anular, extinguir, não cumprir, transgredir, violar (contrato, acordo), reagir, opor-se, resistir (a valores, preceitos, regras etc.), começar a crescer, a brotar, nascer (flores, plantas), despontar, surgir (o sol, o dia), desfazer, terminar relação afetiva. Ressaltamos que essa busca pelos sentidos dicionarizados do verbo ROMPER, que acaba por reduzir seu funcionamento a esses empregos, consiste em uma tarefa preliminar no processo que visa a compreender seu funcionamento, pois, embora a relação de multiplicidade de sentidos que lhes são associados seja insuficiente para descrever sua identidade semântica, ela oferece subsídios que nos dão pistas acerca do potencial significante da unidade e que, consequentemente, nos ajudarão a descrever a sua forma esquemática, mecanismo invariante que regula e organiza seus diferentes usos. O ponto crucial do levantamento de dados é a realização de uma pesquisa dos ambientes textuais em que unidade lexical se insere, ou seja, identificar os usos efetivos que dela fazemos e os contextos linguísticos que convoca e que trazem à tona as diversas acepções que lhe são atribuídas. Essa identificação traz ainda contextos inesperados, que se tornam fundamentais para a compreensão do funcionamento da unidade. Deste modo, além da busca realizada em fontes lexicográficas reconhecidas como os dicionários Borba (1991), Ferreira (2009) e Houaiss (2009), realizamos também uma vasta pesquisa no ambiente virtual, acessando sites e páginas de diferentes segmentos – de jornalísticos aos religiosos, de científicos aos literários, passando por blogs e redes sociais – a procura de enunciados efetivos em que o verbo ROMPER se fizesse presente. Tal investigação teve por finalidade trazer para nossos estudos exemplos retirados da “língua viva”, que nos dessem pistas dos ambientes textuais em que a unidade em análise é mais frequentemente requerida. Este propósito foi plenamente alcançado, pois nos foi possível identificar que o verbo ROMPER é uma unidade linguística cujo emprego é predominante em contextos formais, como textos jornalísticos, científicos e literários, não tendo sido identificado usos em ambientes textuais que pudessem ser considerados informais, tais como bate-papos, comentários descontraídos entre amigos virtuais, etc. Desta forma, compusemos inicialmente um corpus com 890 enunciados, em que as variadas possibilidades de construções sintáticas do verbo foram contempladas, havendo exemplos de construções transitivas diretas, cf. (a) O filme acabou se tornando um clássico

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porque rompe narrativas [209]18; transitivas indiretas, cf. (b) os soldados romperam pela mata agreste [88]; intransitivas, cf. (c) No verão, o sol rompe cedo [197]; acompanhadas da partícula se, em uma construção pronominal, cf. (d) As nuvens se rompem em trovoadas [75]; acompanhadas da preposição com, cf. (e) Ela rompe com a dualidade entre o abstracionismo geométrico e o informal [232]. Posteriormente, excluímos as sequências com contextos equivalentes, como, por exemplo, (f) Dirigente rompe silêncio e se irrita por veto ao Morumbi [170] e (g) Assad rompe silêncio, fala em reforma, mas renova ameaças [160]. Para restringir ainda mais o campo de estudo, foram especialmente excluídas sequências em que ROMPER é seguido pela preposição com, assim como todas as construções transitivas indiretas, dado que, tanto com como as outras preposições, acarretam em desdobramentos semânticos que exigiriam um estudo à parte para que seus efeitos sobre o verbo ROMPER fossem apresentados de maneira adequada19. Tais procedimentos reduziram o corpus para 232 enunciados. Deste modo, as análises consistiram em buscar termos que substituíssem X nas sequências “X rompe(u)”, “rompe(u) X” e “X se rompe(u)” por configurarem as estruturas mais recorrentes no corpus levantado. Assim, nos foi possível observar as propriedades dos termos passíveis de ocupar a posição X, uma vez que para chegar à descrição do funcionamento enunciativo do verbo em questão é imprescindível identificar as unidades da língua com as quais estabelece relações, bem como os valores semânticos que emergem do jogo estabelecido entre elas e os mecanismos de estabilização semântica evocados pela unidade em seus contextos de inserção.

3.2.2. Sobre a dinâmica enunciativa de ROMPER A dinâmica enunciativa da unidade em análise pôde ser evidenciada após uma minuciosa atividade de reformulação, i.e da realização de glosas que propõem: [...] para cada exemplo, uma análise que não seja uma simples reformulação local e conjuntural, mas uma reformulação que comporte os princípios de um reinvestimento possível na descrição de outros exemplos na falta

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Identificamos, entre colchetes, o número recebido pelo exemplo no corpus que apresentamos em anexo.

Ver, a esse respeito, Franckel e Paillard (2007), que abordam as relações entre verbos e preposições a partir de um conjunto de preposições em língua francesa, e Romero (2011b), este último tratando especificamente do funcionamento enunciativo da preposição POR no português do Brasil, e que mostra as diferentes formas de interação entre verbo/nomes e sintagma preposicional na construção dos enunciados.

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eventual de toda relação interpretativa inteligível. (FRANCKEL, 2011c, p.122)

Desta forma, nos foi possível identificar o modo como a identidade do verbo ROMPER é atualizada a cada novo enunciado e, ainda, observar o comportamento enunciativo das unidades que ele mesmo requer para compor seus contextos de inserção, e isso porque as “glosas não decorrem de palavra por palavra, já que só há glosas de sequências e de enunciados, e que uma glosa apenas se focaliza em uma unidade na interação particular por meio da qual nós a observamos.” (FRANCKEL, 2011c, p.129) Para tanto, tomamos como ponto de partida a análise de enunciados em que ROMPER integra construções intransitivas, transitivas diretas e pronominais. Tal procedimento se justifica em função de a organização sintática do enunciado e posição que a unidade ocupa no sintagma dizerem muito acerca de seu funcionamento enunciativo e dos contextos que requer para produzir significação.

3.2.1.1. Estudo analítico

Construções intransitivas A) Os noivos romperam sem ressentimentos [150]20 Neste enunciado, o termo “os noivos” é apreendido como duas pessoas ligadas por um relacionamento afetivo em que ambos assumem um compromisso, um para com o outro e com suas famílias21. Evocam-se, portanto, um envolvimento sentimental e, também, um compromisso social, fato que os obriga a agir dentro dos parâmetros do que a sociedade a que pertencem entende como comportamentos aceitáveis para quem desempenha o papel social de noivo e noiva.

20

Como já observado, os números entre colchetes correspondem à sequência dos enunciados relacionados no Anexo. 21 É importante ressaltar que essa apreensão do termo “os noivos” se dá nesse enunciado e graças ao verbo ROMPER. Basta ver que, em um enunciado como “Os noivos quebraram”, temos “os noivos” como evocando uma representação que remete a uma peça (de porcelana ou outro material quebrável), por exemplo, ao enfeite que se coloca em cima de um bolo de casamento. Há ainda a possibilidade de apreendermos “os noivos” como estando falidos, e isto significa que este termo é delimitado como uma unidade socioeconômica (para análise detalhada do verbo QUEBRAR, ver ROMERO, 2010b e ROMERO, VÓVIO, 2011). Em suma, nos exemplos ora mencionados, a representação que faz com que “os noivos” remeta a “envolvimento sentimental/compromisso social”, ao contrário do que se passa com ROMPER, não é decisiva. Veremos, mais adiante, que o mesmo termo adquire outros contornos em “Os noivos terminaram”.

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Neste caso, ROMPER marca o fim de uma relação, cuja existência estava condicionada a uma série de atitudes recíprocas que delimitam o modo de agir de ambos, tanto no que diz respeito ao trato de um para com o outro, quanto no que tange ao meio social do qual fazem parte. Uma vez o laço desfeito, todos os envolvidos encontram-se desobrigados das regras e compromissos envolvendo este tipo de relacionamento. Poderíamos pensar que, para esta sequência, o verbo TERMINAR seria um possível sinônimo (ou um sinônimo “perfeito”), sob o pretexto de ser mais usual, em termos de enunciados produzidos em ambientes informais, como é comumente o caso das situações familiares. Porém, notaremos que, devido ao modo de funcionamento específico a esses verbos, a opção por ROMPER ou TERMINAR implica alteração de sentido, desencadeando representações distintas. Comparemos, então: A1) Os noivos romperam A2) Os noivos terminaram Como dissemos, com ROMPER, de saída, são evocados um envolvimento sentimental e um compromisso social que deixam de existir. Por sua vez, com TERMINAR, a representação construída está mais relacionada à interrupção de um processo que conduziria ao casamento: se esperávamos ver algo acabado, realizado – no caso, o casamento efetivado – , isso não ocorre. Não se evoca, com este verbo, o compromisso com a família, o compromisso de um noivo para com o outro, visto que “os noivos” são representados como característicos de uma etapa (a etapa do “noivado”) cuja única função é a de levar à etapa seguinte, o casamento22. Isso explicaria porque A1) Os noivos romperam é mais impactante do que A2) Os noivos terminaram: em A1, temos um compromisso que não mais se verifica, com todo peso que essa ruptura traz; em A2, é uma etapa à qual não se deu continuidade. Essas diferentes naturezas também se mostram nos exemplos abaixo, que abordam uma construção transitiva admitida por ambos: A3) Eles romperam o contrato A4) Eles terminaram o contrato

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É interessante observar que em “O casamento terminou”, o esperado continua a se fazer presente, mas ele é de outra natureza: é o “até que a morte nos separe” que cessa. Isso tende a mostrar que, com TERMINAR, há sempre algo visado, esse visado podendo não ser atingido ou ser atingido, como nos mostram exemplos como “Ele terminou a lição”, em que a lição que havia para ser feita foi concluída.

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É interessante observar que, em A4, o termo “o contrato” pode ser apreendido como um documento que acabou de ser elaborado, o que marca, portanto, que a redação inicialmente prevista chegou a seu fim. O enunciado pode ainda remeter ao seu cumprimento dentro do prazo esperado: o acordo ali estipulado foi concluído até a data determinada para seu término. Já em A3) Eles romperam o contrato, o termo “o contrato” é apreendido como um conjunto de regras que determina as funções, direitos e obrigações de cada uma das partes nele envolvidas. Deste modo, suas ações passam a estar condicionadas às regras nele estipuladas. Neste caso, “romper o contrato” pode estar relacionado tanto à violação dessas normas por uma das partes, quanto ao pedido de sua suspensão. Em qualquer uma das possibilidades, o contrato não chega a seu termo. B) Cano d’água rompe e causa transtorno na Zona Leste de Manaus. [15] Neste enunciado, temos a oração “Cano d‟água rompe”, em que “cano” é apreendido como o elemento responsável por conter e conduzir a água, ou outros elementos tais como gás, combustíveis ou qualquer outro material fluído, de um ponto a outro. O que se representa é, antes de tudo, sua função de englobar e delimitar um dado conteúdo, neste caso, a água, impedindo que o que lhe é interno entre em contato com o meio externo. Pode-se dizer que estão garantidos tanto o represamento deste conteúdo quanto a eficácia de seu percurso até o destino final. ROMPER, neste enunciado, marca a perda da capacidade do “cano” em manter seu conteúdo dentro de seus limites e em um curso determinado. O que provoca o rompimento, geralmente, não são agentes externos. Não há um sujeito “agente” provocando o dano, sendo este consequência de uma pressão interna sofrida por seu conteúdo. Bons exemplos disso são os enunciados B2) A força da correnteza rompe represa Lago Delhi [38], B3) A barragem rompeu com as ultimas cheias [73], ou B4) Chuva rompe barragem de lago no interior de São Paulo [106], em que é o aumento no volume de água que excede a capacidade de contenção da represa e da barragem. Em outras palavras, os exemplos evocam cenas enunciativas em que o conteúdo, ao sofrer um nível de pressão que ultrapassa a capacidade de sua contenção pelo “cano”, provoca, nele, uma fissura. Isso faz, por fim, com que “cano” seja descaracterizado do ponto de vista das funções que exerce. Quando, porém, temos um sujeito que causa essa ruptura, este é, via de regra, identificado como uma força inesperada que incide sobre o elemento continente, fato que

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podemos observar no enunciado B5) Estrutura de prédio desaba e rompe tubulação de gás [3]. Neste caso, a estrutura do prédio, que acondicionava a tubulação de gás, ao perder sua integridade, ao ter sua estrutura desfeita, exerce pressão sobre a tubulação de gás do prédio, fazendo com que esta perca também suas funções. De ponto de vista do papel atribuído ao sujeito, este seria muito mais um sujeito causativo do que um sujeito agente propriamente dito. Funcionamento idêntico foi observado na maioria dos enunciados que envolviam unidades cujas características são semelhantes às de cano, i.e unidades que poderiam, quando enunciadas com o verbo ROMPER, remeter à função de armazenamento, de condução de energia ou de elementos fluídos (gás, combustível, água), tais como tubo, cabo elétrico, fibra óptica, represa, adutora. Vale ressaltar que, no rompimento ocorrido, independente da causa, evidencia-se o inesperado, o que traz como consequências transtornos, prejuízos e dificuldades a serem superadas por todos que são atingidos pelos efeitos do rompimento (interrupção do abastecimento ou fornecimento do conteúdo, danos provocados pelo escape do conteúdo ao seu redor etc.). Para evidenciar de que maneira ROMPER se distingue de outros lexemas verbais, sugerimos confrontar ROMPER a QUEBRAR nos seguintes enunciados: B1) O cano d’água rompeu B6) O cano d’água quebrou23 Em B1, como já observado, o foco está na perda da capacidade de cano enquanto continente, i.e. enquanto capaz de manter sob seus limites o que deve manter contido e conduzido até determinado ponto. Isso deve-se à pressão do conteúdo exercida sobre seu delimitador, causando-lhe um dano. Já em B6, o termo “o cano” é apreendido de modo totalmente diferente, uma vez que o verbo QUEBRAR faz com que ele seja delimitado por meio de suas características sólidas, de inteireza. A ênfase recai, portanto, sobre o próprio cano, que, ao ser quebrado, perde sua solidez ou sua integridade. Na representação desencadeada por QUEBRAR, o que se entendia por “cano” deixa de existir, pois há algo que não pode ter sua integridade recuperada, diferente do que ocorre em B1) O cano d’água rompeu, em que o reestabelecimento das funcionalidades do cano não apenas é possível, como é o esperado.

23

Remetemos, uma vez mais, a Romero (2010b) e Romero, Vóvio (2011) para análise do verbo QUEBRAR.

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Construções transitivas

C) O amor eterno rompe estados humanos, dura-se com a alma, ama-se puramente. [146]

Consideremos, por sua vez, os enunciados: C1) O amor eterno rompe estados humanos C2) O amor eterno transforma estados humanos

No enunciado C1) O amor eterno rompe estados humanos, temos estados humanos apreendido como um conjunto de elementos que constituem a essência do que se compreende como tipicamente humano, como o que determina a condição humana e norteia o comportamento e as ações dos seres humanos. Assim, estados humanos remete a todo tipo de atitudes, sentimentos, posturas passíveis de serem desenvolvidos pelos seres humanos em geral, pois faz parte do que o caracteriza como tal, o que abarca fatores considerados positivos e negativos, atitudes louváveis e outras abomináveis. Já o constituinte nominal o amor eterno remete a uma concepção de amor ideal, completo e inalienável, que beira a perfeição e o divino. Por isso mesmo, seria impraticável entre os seres humanos, cuja existência estaria atrelada à contradição e à imperfeição, uma vez que são capazes de cometer erros e acertos na mesma proporção. O verbo ROMPER, contudo, constrói uma cena enunciativa na qual o amor eterno é visto como capaz de modificar os estados humanos, porém, não em sua totalidade, visto que esta mudança incide apenas em uma parte das características dos seres humanos, na parte considerada negativa ou obscura. O amor eterno tal como é apreendido (um sentimento puro, divino e perfeito) tem o poder de eliminar dos seres humanos seus defeitos, apagando-lhes as imperfeições, ao mesmo tempo em que intensifica suas boas qualidades, elementos que os constituem e que os aproximam da perfeição, do que é divino. Em suma, neste enunciado, o verbo ROMPER constrói a ideia de que o sujeito o amor eterno é capaz de fazer com que o homem vá além do que lhe é próprio, inclusive de sua finitude, uma vez que o eterno jamais encontra seu termo. Desta maneira, o homem passa a ser capaz de superar os limites que lhes são impostos por sua condição natural, reduzindo, assim, a distância que existe entre o divino e o humano, entre o etéreo e o terrestre.

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Essa representação é reforçada pelas orações que compõem o exemplo C como um todo: dura-se com a alma e ama-se puramente. Observamos, assim, que, na primeira, o tempo não é mais apreendido cronologicamente; o tempo próprio do homem social e historicamente localizado deixa de existir e dá lugar ao tempo dos sentidos, das emoções, ao tempo que não pode ser mensurado pelos instrumentos humanos, pois não pertence ao mundo, é um tempo particular e individual daquele que desenvolve, que sente o amor eterno. Já a oração ama-se puramente reafirma a capacidade que o amor eterno tem em fazer desaparecer do homem o que nele possa haver de impureza e imperfeição. Sendo assim, ao romper os estados humanos, o amor eterno imputa ao homem o poder de amar divinamente. Se buscássemos por outros lexemas verbais que pudessem ocupar a posição de ROMPER em C1, poderíamos escolher como um possível verbo a substituí-lo o verbo TRANSFORMAR, o que nos daria C2) O amor eterno transforma estados humanos. Neste enunciado, a representação construída passa a ser outra, pois se em C1 compreendemos que o amor eterno elimina do homem suas imperfeições, faz com que ele supere os limites de sua própria condição sem deixar de ser o que é, em C2, o amor eterno descaracteriza os estados humanos, tornando-os efetivamente outra coisa. Consequentemente, o homem que desenvolve esse amor deixa a condição humana e passa a adquirir outras características.

D) A austeridade é perigosa porque rompe o crescimento. [165]

Neste enunciado, o termo o crescimento pode ser apreendido como um processo contínuo de desenvolvimento econômico empreendido por uma nação ou instituição. Sob este aspecto, o crescimento é mensurado a partir de um momento em que a economia encontravase em um dado patamar e entra em processo de desenvolvimento, o que se mantém ao longo de um determinado período. Deste modo, ROMPER marcaria a interrupção do que está “em curso” (o processo contínuo) ao mesmo tempo em que determinaria o início de um período de estagnação. Assim, o crescimento, ao funcionar como um elemento de proteção, é a garantia da permanência de um processo evolutivo. Por outro lado, se a perpetuação desse ciclo harmonioso de desenvolvimento for rompido, tem-se como consequência a vulnerabilidade de todo sistema econômico e político de uma nação ou instituição. O termo a austeridade, por sua vez, funciona como sujeito causativo do rompimento, sendo apreendida como a postura política capaz de fazer cessar o crescimento econômico de um país ou instituição.

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Comparemos, agora, o enunciado D1, em que temos o emprego de ROMPER, com outros enunciados elaborados com a presença de outros verbos: D1) A austeridade rompe o crescimento D2) A austeridade limita o crescimento D3) A austeridade impede o crescimento Embora os verbos LIMITAR e IMPEDIR apresentem alguma proximidade semântica com ROMPER nestes contextos, ao analisarmos os efeitos de sentidos produzidos em cada um desses enunciados, somos capazes de evidenciar o que os diferencia, tanto do ponto de vista do funcionamento, quanto no que tange à significação que evocam. Como vimos, em D1, ROMPER marca a cessação de um processo contínuo, de um movimento que, por parte da economia, pode ser visto como “linear” porque ininterrupto, porque se desenrola no tempo, porque “em curso”. Esse movimento lhe servia de proteção, pois impunha um certo limite aos possíveis problemas desencadeados por questões diversas que pudessem respingar no desenvolvimento de um país ou instituição, impedindo-o de prosseguir em seu curso habitual. Já em D2, LIMITAR tende a construir uma significação em que a austeridade faz com que o crescimento se dê de forma previsível, limitada, inferior ao que poderia ser se a austeridade não existisse, ou seja, o crescimento não cessa, é apenas reduzido. Com isso, é a austeridade que passa a representar um obstáculo a ser superado para que o crescimento mantenha seu curso costumeiro. Por fim, em D3, IMPEDIR faz com que o termo a austeridade seja apreendido como fator que torna o crescimento impraticável, impossibilita sua existência.

Construções pronominais

E) Australiana escapa da morte depois que corda de bungee jump se rompe. [5]

No enunciado E1) Corda de bungee-jump se rompe, o termo corda funciona como um elo entre dois pontos: a plataforma de onde se realizam os saltos e a pessoa que salta. Dada sua função, é o elemento que estabelece o limite da profundidade que esta queda pode atingir, pois, ao mesmo tempo em que garante a segurança de quem pula, impõe um limite para a queda, impedindo a colisão do corpo contra o solo.

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Desta maneira, notamos que a representação construída evoca, antes, a função de a corda poder garantir que o limite de segurança estabelecido para a queda seja cumprido, o que configura o sucesso do salto. Por isso, neste enunciado, ROMPER marca a descaracterização da corda, do ponto de vista da função que exerce enquanto parte do equipamento para a realização do salto de bungee-jump, visto o limite que deveria estabelecer ter sido ultrapassado e a segurança que deveria fornecer a quem pula não se confirmar. Percebemos ainda que, neste enunciado, a construção a corda se rompe não pode ser efetivamente caracterizada como reflexiva 24, uma vez que o pronome “se” não indica o objeto do verbo. A significação construída é a de que há uma tensão exercida sobre a corda, e o nível dessa tensão excede sua capacidade de absorvê-la, a energia produzida pelo salto é superior à sua capacidade de resistência; deste modo, suas funções enquanto elemento de ligação, fator limitador e de equipamento de sustentação se desfazem, construindo uma representação na qual “a corda” é paciente e, ao mesmo tempo, agente via tensão que nela se manifesta (um “pseudo-agente”, diríamos). No enunciado E1, é, portanto, o pronome “se” que colabora para a significação construída por ROMPER, o que pode ser evidenciado quando analisamos a significação evocada pela máxima E2) A corda sempre rompe do lado mais fraco [12], em que a corda diz respeito à disputa de interesses existente entre dois polos divergentes, dotados de forças distintas. O termo a corda, neste caso, apresenta uma dupla função: marcar o distanciamento esses dois polos e servir de medidor para a força de ambos. Assim, o rompimento da corda marca até que ponto o polo mais frágil é capaz de manter a disputa com o polo mais poderoso; além disso, o romper da corda faz com que o elo, que de alguma maneira os mantinha ligados, se desfaça e as consequências desagradáveis desse rompimento sejam sentidas apenas por aqueles que pertenciam à extremidade mais fraca. A diferença de significação construída com o pronome “se” e sem ele diz respeito ao elemento que causa a ruptura, já que, em E1, o que a motiva é a tensão produzida no momento do salto e que está além da que a corda é capaz de suportar. A ruptura ocorre, portanto, como um fato inesperado, uma vez que faz parte das características dessa corda suportar tal tensão. Já em E2, a ruptura é esperada, havendo ainda dois potenciais causadores, pois tanto o polo mais forte quanto o mais fraco provocam intencionalmente uma tensão sobre a corda com o objetivo de rompê-la. 24

Nos termos de Pezatti (1993), seria uma “pseudo-reflexiva”.

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Ao pensarmos na noção que temos de “corda”, notamos que uma das representações mais usuais é de que cordas não possuem lados, mas extremidades opostas. Assim, a significação construída pelo enunciado E2 diz respeito ao poder que um grupo mais forte é capaz de exercer, em quaisquer circunstâncias, sobre indivíduos de um grupo mais vulnerável. A corda é então entendida como elemento capaz de medir a força de ambos, demonstra uma tentativa dos mais fracos de se sobressaírem sobre os mais fortes, empreendimento que acaba por evidenciar a supremacia dos mais fortes que jamais saem prejudicados quando entram em uma disputa contra os mais fracos. A ruptura da corda do lado mais fraco representa, desta maneira, a incapacidade do polo mais fraco sair “de pé”, ileso e vitorioso em qualquer disputa empreendida contra o polo mais forte.

F) De tanto amor sinto que meu coração vai se romper. [4]

Neste enunciado, o termo coração é apreendido como o órgão responsável por conter o amor, que, dele, está repleto. Porém, a quantidade ou intensidade deste é amor é superior à capacidade de contenção do coração e, por isso, o amor torna-se capaz de atravessar “paredes coronárias” e se espalhar por todo o ser daquele que ama tão intensamente. SE ROMPER, neste enunciado, marca não apenas a perda da função do coração, que, neste caso, é conter o amor, mas também a capacidade que o amor tem para transpor barreiras, compreendidas, aqui, como os tecidos que constituem o coração. Para melhor visualizarmos o funcionamento enunciativo de ROMPER neste contexto, sugerimos comparar os enunciados abaixo: F1) De tanto amor sinto que meu coração vai se romper F2) De tanto amor sinto que meu coração vai se explodir Como podemos notar, o uso do pronome “se” com o verbo EXPLODIR causa estranheza, sendo muito mais usual, nesse contexto, um emprego puramente intransitivo: F3) De tanto amor meu coração vai explodir. Notamos também que a significação evocada em F3 se torna mais agressiva, fazendo como que o enunciado seja apreendido como a liberação súbita e violenta do amor que conduz à explosão do coração. O amor, neste caso, é compreendido como uma força avassaladora capaz de provocar danos irreparáveis ao elemento responsável por contê-lo. Deste modo, em F1 temos o amor que, compreendido como uma força capaz de ultrapassar as barreiras do coração, parece se derramar por toda a extensão do ser. Já em F3, o

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amor e sua força se apresentam como elementos que não podem ser contidos. Sua intensidade faz com que sua liberação seja entendida como necessária, e, como consequência, é capaz de provocar atitudes e transformações radicais naquele que ama.

3.2.1.2. Grupos de funcionamento e Forma Esquemática

A realização dessa atividade permitiu observar que o uso do verbo ROMPER determina três grupos de funcionamento, grupos estes que nos parecem estar relacionados a princípios que ordenariam a variação. Grupo I –

No

primeiro

grupo,

por

nós

apreendido

metalinguisticamente

como

, o verbo remete à perda da capacidade de delimitar, proteger, conter, englobar de determinados elementos com relação a outros. ROMPER marca, assim, a descaracterização de elementos que desempenham a função de continente ou que se impõem como barreiras, obstáculos ou limites, que não deveriam ou não poderiam ser ultrapassados, tal como podemos observar em enunciados como: I.

A parede da estação de tratamento rompeu na tarde deste domingo. [20]

Neste exemplo, o termo parede é apreendido como o elemento cuja função é manter a água retida sob seus limites. II.

O dólar rompeu a marca dos R$ 1,60. [21]

O termo R$ 1,60 representa o limite máximo que havia sido atingido até o momento, funcionando como um teto que não deveria, mas foi superado. III.

É uma atitude de vanguarda que rompe barreiras acadêmicas. [8] Neste caso, o termo barreiras acadêmicas funciona como o que impede a mudança, se impõem como um obstáculo para o que é novo.

IV.

Quando a casca se rompe é hora de tirar o amendoim do fogo etc, [40] O termo a casca, neste enunciado, representa o elemento responsável por englobar o amendoim, protegê-lo do meio externo. Notamos, assim, que, nestes casos, o verbo marca a impossibilidade de se manter

demarcações, fronteiras e limites estabelecidos (sejam eles espaciais ou ideológicos e comportamentais), bem como a impossibilidade de exercer algum tipo de proteção que

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impeça que algo quebre, arranhe, suje, vaze (um cano rompido perde a propriedade de abrigar o elemento que ele contém); funciona ainda como o que retém o outro: sem ele, o outro entraria em um curso livre ou em queda. Em uma corda rompida, a corda, que apresentava como função manter algo retido, com os movimentos condicionados ao limite estabelecido por sua extensão, perde essa função, pois o que se encontrava preso a ela passa a adquirir outras possibilidades de movimento, podendo seguir em outras direções, atingir outras distâncias, adotar um novo curso.

Grupo II -

No segundo grupo, o verbo marca a em relação a compromissos antes estabelecidos entre indivíduos, entidades, instituições ou governos. Deste modo, as regras que antes não apenas norteavam, mas também limitavam as ações dos envolvidos, perdem o efeito, desobrigando-os de permanecerem sob suas condições. Esse funcionamento se observa em enunciados como: V.

E se você rompe um preconceito, isso ajuda a acabar com outros. [120] O termo preconceito diz respeito, aqui, a um conjunto de convicções préestabelecidas, que orientam o modo de agir dos que o possuem diante de determinadas circunstâncias.

VI.

Na África do Sul, a China também rompe velhas alianças. [129] Neste contexto aliança funciona como um conjunto de resoluções firmadas entre África do Sul e China que as mantinham em uma relação de recíproca harmonia.

VII.

Coréia do Norte rompe pacto de não-agressão com o Sul. [138] O termo pacto funciona como um conjunto de determinações acordadas entre os dois países, que os impediria de agir de modo agressivo um para com o outro, ou mais precisamente, impossibilitando a instauração de uma guerra entre eles.

VIII.

A pesquisa rompe alguns mitos sobre o tema. [145] O termo mito é apreendido como um conjunto de saberes que norteia o modo de pensar acerca de determinado assunto; uma vez o mito rompido, pode-se pensar de outro modo.

Em suma, nestes exemplos, ROMPER desobriga, identifica o fim de compromissos estabelecidos por meio de contratos formais ou informais, explícitos ou implícitos (um noivado ou namoro, por exemplo, são relações que, ao se estabelecerem, passam a orientar o

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comportamento dos noivos ou namorados, mas também dos amigos, familiares e outros que possam com eles conviver; romper uma relação é também desvincular-se de certas obrigações e comportamentos socialmente esperados), marcando a extinção de vínculos existentes entre pessoas, instituições, fatos, etc.; identifica, ainda, o fim de convicções ou saberes que mantêm os que nelas se fundamentam sob determinadas amarras (romper o preconceito, os mitos, a tradição etc.)

Grupo III -

Por fim, o terceiro grupo marca a cessação de um processo, de algo que, de natureza espaço-temporal, vinha mantendo seu curso em uma determinada direção ou nos impedia de agir, o que pode ser observado nos enunciados cujo funcionamento denominamos, simplesmente, : IX.

Isso pelo menos rompe o imobilismo da ONU e cria um precedente.[163] O termo o imobilismo é apreendido como período em que não há movimento; é o que se mantém estagnado por um determinado tempo e nos impede de agir.

X.

Ainda bem que de vez em quando surgem essas opções e o circulo vicioso se rompe. [167] Neste enunciado, círculo vicioso determina um movimento contínuo, algo que permanece sempre do mesmo modo, que vai em uma mesma direção, impedindo que fatos ou ações ocorram de modo diverso do que vêm se mantendo por algum tempo.

XI.

Um violento ataque de aviação rompeu a guerra. [183] Neste enunciado, o termo guerra é aprendido como uma situação conflituosa, um período histórico em que nações se enfrentam em uma luta armada. ROMPER marca, portanto, o momento em que a situação se encontrava de uma determinada maneira e passa a ter outra característica. Assim, um violento ataque de aviação pode tanto ter posto fim ao período de conflitos, quanto ao período de paz. O mais interessante é que a guerra é vista ora como estando “incubada” (ela está prestes a eclodir, faltando apenas um fator para que seja desencadeada, no caso, um violento ataque de aviação), ora como algo que estava acontecendo (e, portanto, cercando e reprimindo a todos), e um violento ataque de aviação faz com que ela cesse.

XII.

Tua luz rompeu minha noite trazendo alegria. [201]

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Aqui, o termo noite é apreendido como um período de tristeza que se manteve – que aprisionava alguém – até que a luz o transformou em alegria, fazendo com que um novo período se iniciasse. Neste último grupo, notamos que ROMPER marca a interrupção de algo que se desenvolve obedecendo uma certa regularidade espaço-temporal, ao mesmo tempo em que define um estado de coisas que se estabelece de forma contínua. Assim, ROMPER marca também a passagem de algo que costumava ter um certo aspecto e passa a ter outro, ocorrendo, frequentemente, com unidades tais como madrugada, que encerra o período da noite e inicia o da manhã; o silêncio, que passa do estado de quem se mantinha calado, sem se pronunciar acerca do que quer que seja durante um determinado período e passa a falar; o processo, que passa de uma ação contínua, que se desenrola dentro de um determinado tempo, para a estagnação.

Forma esquemática

Preliminarmente, entendemos que ROMPER funciona como elemento que marca a dissolução do que tem a função de estabelecer limites ou que se mantém em um determinado curso; sua ação incide sobre elementos que se configuram como determinantes para o estabelecimento de limites, obstáculos, proteção ou contenção para indivíduos, instituições, governos, territórios, elementos fluídos, corpos sólidos ou fatores de caráter estado-temporal. Deste modo, ROMPER nos parece ser mobilizado sempre que buscamos evocar a dissolução de um elemento (X) que funciona como uma retenção para que um outro – no caso, o elemento (Y) –, se mostre, tome outra forma, siga outro rumo etc. A forma esquemática do verbo ROMPER é o fio condutor que orienta suas possibilidades de variação. Desta forma, como primeira hipótese para explicar o funcionamento enunciativo deste verbo, diríamos que:

Dado um elemento X que funciona como retentor de Y, ROMPER conduz a dissolução de X fazendo com que Y siga outro curso.

Sua forma esquemática é a descrição de sua função singular dentro da língua portuguesa: ela resume as particularidades da unidade, restringe seus empregos, determina seus contextos de inserção. Essa é, assim, a face invariante da unidade, é o que está por trás da

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regularidade do verbo que se manifesta por meio dos inúmeros valores que adquire em contexto. Já os três grupos de funcionamento do verbo ROMPER descritos anteriormente correspondem aos modos como a unidade lexical em análise constrói sua referência, sendo, portanto, concebidos como seus valores referenciais, i.e. como os cenários enunciativos construídos sob a influência de sua forma esquemática, do material semântico de ROMPER que carrega consigo as características de nossas elaborações cognitivas, da dinâmica incessante que se dá entre a realidade empírica, a maneira como a apreendemos e o sistema de representação linguístico. O valor referencial é, assim, construído a partir dos rastros que as noções deixam quando se instanciam nas unidades da língua, quando se materializam nas produções linguísticas, tratando-se, sempre, de um construto teórico que retrata parcialmente as operações que realizamos internamente. Como vimos, a construção da glosa consiste na realização de uma prática de natureza epilinguística, efetuada de forma consciente por meio da observação, manipulação e análise das produções linguísticas. Como resultado, obtemos uma representação metalinguística dos contornos de nossa atividade epilinguística não-consciente, dos reflexos dessas elaborações internas identificáveis através da forma esquemática das unidades. Esta é que é o elemento responsável pela organização dos valores referenciais, que, por sua vez, têm a incumbência de orientar a estabilização semântica das unidades, fazendo emergir seus valores semânticos, propriedades que residem no final do processo de construção da significação.

3.3. A prática da reformulação controlada como proposta didático-pedagógica para o ensino do léxico em língua portuguesa Usualmente encontramos, nos livros didáticos, propostas de atividades para compreensão do texto literário, e em especial, da poesia, que partem da suposição de que é próprio deste ambiente contextual a desconstrução do sentido “denotativo” das palavras. Nessa visão, tais textos constituem-se como fundamentalmente “conotativos”, produtos da imaginação inspirada dos poetas. Seguindo essa linha de pensamento, o trabalho com a compreensão do texto poético se vê atrelado à percepção subjetiva de cada um, reduzindo as possibilidades de desenvolver uma prática que privilegie o estudo do texto partindo da exploração das múltiplas possibilidades significantes das palavras que compõem essas produções linguísticas, de

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oferecer aos alunos a oportunidade de entrever as consequências semânticas acarretadas pelas escolhas lexicais que fazemos ao produzir um enunciado. Em outros casos, como evidenciamos no capítulo anterior, a poesia serve de pretexto para identificação de classes de palavras, todo seu potencial significante acaba por ser quase inexplorado, e, deste modo, toda magia, encantamento e surpresas que o texto poético poderia revelar é colocado em segundo plano. Como vimos observando, nosso posicionamento diante da compreensão do sentido das unidades linguísticas está para além dos conceitos de denotação e conotação, pois nos filiamos a uma corrente que entende que cada unidade possui um funcionamento enunciativo próprio, responsável por reger seu funcionamento dentro do sistema linguístico. Isso nos permite vislumbrar os contextos linguísticos que convoca para produzir sentidos, as relações que estabelece dentro do sistema por meio das quais é possível verificar seu padrão enunciativo, suas características intrínsecas que permeiam todas as suas possibilidades de significar. Para tanto, torna-se fundamental a prática reflexiva e analítica acerca das relações que as unidades estabelecem umas com as outras, relações essas que se mostram ao mesmo tempo colaborativas e opositivas, na medida em que deve haver uma “aceitação” mútua entre os elementos para que engendrem uma cadeia significativa, mas, ao mesmo tempo, devem desempenhar funções diferentes, ainda que minimamente, para que ocupem sua posição singular dentro do sistema linguístico e torne possível a variação semântica. Essas relações, no entanto, não ocorrem à revelia, não são quaisquer; elas ocorrem autorizadas pela característica própria das unidades, por uma identidade que lhes confere ao mesmo tempo o potencial de significar e de constituir certos contextos enunciativos, e de lhe impedir a inserção em outros. Esta identidade é apresentada por Franckel (2011) como uma unidade que se define “não por algum sentido de base, mas pelo papel específico que ela desempenha nas interações constitutivas do sentido dos enunciados nos quais ela é posta em jogo. Esse papel é apreensível não como um sentido próprio da unidade, mas através da variação do resultado dessas interações” (FRANCKEL, 2011a, p.22-23). Retomamos brevemente esses princípios norteadores de nossa pesquisa para evidenciar a necessidade de promover a análise da significação dos textos literários e, sobretudo, do texto lírico, em sala de aula de modo que seja possível aos alunos extrapolarem a atividade de compreensão de texto embasada na identificação de possíveis intenções do autor e seus dados biográficos, do momento histórico em que o texto foi produzido, da influências de outros autores em sua obra na identificação.

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Com isso, não queremos desprezar a relevância do olhar mais técnico e teórico sobre a produção literária, mas abrir para propostas de análises que possibilitem o desenvolvimento da sensibilidade poética dos alunos por meio da investigação das características das unidades léxico-gramaticais que compõem o texto poético, criando estratégias que aproxime a criatividade linguística natural dos adolescentes e a intuição linguística inerente a todos os falantes da língua ao caráter imaginativo e lúdico típico da poesia. Assim como Todorov (2012), entendemos que a produção linguística no contexto literário tende a ser mais denso e mais eloquente do que o da vida cotidiana, porém ela não é radicalmente diferente, pois se a literatura é capaz de ampliar nosso universo, incitando-nos a imaginar outros modos de apreendê-lo, isso se deve ao fato de que: Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de se um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de se humano. (TODOROV, 2012, p.23-24)

Com essa afirmação, queremos apenas ressaltar o quanto as simbolizações construídas desde o nascimento por meio das experiências vividas, dentre elas o contato com o universo literário, e o modo como são apreendidas pela atividade de linguagem estão diretamente ligadas às nossas habilidades em manipular a língua que falamos. Essas simbolizações são essenciais para fazer aflorar a criatividade linguística que nos ampara tanto na atividade criadora, quanto no momento de reflexão, quando nos dispomos a interpretar ou reconstruir o discurso/enunciado criado por outrem. Deste modo, as construções poéticas, que por vezes parecem inusitadas e de difícil compreensão, são fontes riquíssimas para a prática de refletir sobre a linguagem e a produção de sentido na língua, pois, como já enfatizamos, a significação é uma construção linguística e cognitiva que imprime os vestígios dessas operações contínuas nas unidades da língua, configuram suas características, as tornam singulares dentro do sistema linguístico, norteiam o modo como essas unidades se agenciam e se organizam dentro dos enunciados lhes permitindo dizer o que dizem. Ressaltamos, assim, a urgência do desenvolvimento de práticas para estudo e compreensão de texto que se desprendam da premissa que entende a significação do texto lírico como produto apenas das características pessoais e intelectuais do poeta, características essas que seriam as responsáveis pela extensão, enriquecimento ou empobrecimento dos

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sentidos tidos como primeiros das unidades linguísticas. Em contrapartida, nossa proposta traz à tona a possibilidade de um estudo semântico do texto poético partindo das unidades linguísticas que o constituem, enfatizando o princípio de que um texto só diz aquilo que a organização lexical que o compõe lhe permite dizer. Desta maneira, se a significação por elas enunciadas permite identificar características de movimentos literários, momentos históricos ou especificidades de um dado autor, isso se deve às propriedades semânticas e enunciativas das unidades agenciadas para sua constituição, e não o contrário. Neste ponto, nos damos a liberdade de tomar por empréstimo uma das muitas passagens intrigantes do livro Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, para parafrasear nosso posicionamento diante do estudo da significação nas produções linguísticas de modo geral: Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. - Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan. - A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – Responde Marco -, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: - Por que falar das pedras? Só o arco me interessa. Polo responde: - Sem pedras o arco não existe. (2009, p. 79)

Assim, do mesmo modo como não é possível apreender a ponte descrita por Marco Polo sem compreender as características das pedras que a compõem, acreditamos que também não é possível compreender como um sistema linguístico funciona sem entender a arquitetura de suas unidades, sem identificar-lhes as características e as funções, pois é jogo estabelecido entre elas que nos permitem produzir os arcos que sustentam os processos comunicativos, ou seja, as produções linguísticas, os enunciados, os textos em seus mais variados gêneros.

3.4. Uma proposta para o estudo operatório e enunciativo do texto literário Nosso propósito, aqui, é o de compreender, ainda que minimamente, de que maneira a poesia se vale da identidade das unidades da língua para construir significações quase sempre obscuras, que nos causam estranhamento e encantamento, despertam nossa sensibilidade e nos fazem refletir acerca da experiência humana, e por isso, quase que inevitavelmente, nos instigam a decifrar-lhes certos efeitos de sentido, nos fazem querer compreender a magia que há por trás da trama poética.

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Antônio Candido defende que a literatura comporta as mais diversas “criações de toque poético, ficcional ou dramático”, independentemente dos níveis sociais e das disparidades culturais, e compreende “desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações” (CANDIDO, 2011, p.176). Sob essa perspectiva, trata-se de uma manifestação humana e universal, desenvolvida por todos os povos e em todas as línguas, uma vez que não “há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação” (CANDIDO, 2011, p.176). Entendemos ainda que a produção poética, assim como a literatura de modo geral, é um dos artifícios que encontramos para exercer nossa capacidade de agir criativamente com e sobre a linguagem, nos permitindo usar a imaginação para construir a expressão de um modo particular de apreender o mundo, as ações e os sentimentos que permeiam nossa noção de humanidade. A poesia, assim como toda produção linguística, se configura como o produto da interação “entre a língua como sistema de signos arbitrários e a língua como visão de mundo de uma comunidade linguística” (COMPAGNON, 2012, p.120). Seu diferencial reside, porém, na possibilidade de criar mundos imaginários, despertar emoções, nos fazer refletir sobre nossa própria existência e tudo o que a envolve. Para tanto, a poesia vale-se da arquitetura de universos linguisticamente construídos que fazem com que todo potencial semântico e enunciativo das unidades léxico-gramaticais seja posto à prova, provocando-nos admiração, espanto e encantamento. Muitos autores já se mostraram preocupados com o uso, muitas vezes inadequado, que a escola e especialmente o livro didático fazem dos textos líricos. Lajolo (2000), por exemplo, observa que muitas atividades sugeridas estão focadas em elementos externos ao poema, e por isso negligenciam as estruturas internas do texto “e transformam a leitura numa atividade reprodutora e repetitiva, em tudo homóloga às funções que a escola, como instituição social, tende a cumprir.” (LAJOLO, 2000, p.50) Já o poeta e ensaísta José Paulo Paes afirma que, por ser o objetivo da poesia: [...] mostrar a perene novidade da vida e do mundo; atiçar o poder da imaginação das pessoas, libertando-as da mesmice da rotina; fazê-las sentir mais profundamente o significado dos seres e das coisas; estabelecer entre elas correspondências e parentescos inusitados que apontem para uma misteriosa unidade cósmica; ligar entre si o imaginado e o vivido, o sonho e a realidade como partes igualmente importantes da nossa experiência de vida. (1996, apud PINHEIRO, p.60, 2001),

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ela deve ser considerada em primeira instância “como primeira visão diante das coisas”, e, em um segundo plano, tomada “como veículo de informação prática e teórica”, para que, desta maneira, seja possível preservar “em cada aluno o fundo mágico, lúdico, intuitivo e criativo, que se identifica basicamente com a sensibilidade poética” (PAES, 1996, apud PINHEIRO p.71, 2001). Não restam dúvidas que os objetivos da poesia e da literatura variam ao longo do tempo, e mesmo, sincronicamente pensando, de acordo com a visão teórica que se tem dela. De acordo com Compagnon (2012), na tradição clássica, o objetivo da literatura, enquanto elemento que estabelece uma relação de verossimilhança com a realidade, era o de proporcionar a compreensão do comportamento humano e da vida social, ao mesmo tempo em que permitia regulá-los. Sob esse aspecto, ela funcionaria como um “aparelho ideológico do Estado”, contribuindo para a preservação de uma ordem social existente entre dominantes e dominados. Porém, faz-se necessário salientar o caráter subversivo da literatura, pois se é verdade que ela “confirma o consenso”, é também verdadeiro afirmar que ela produz “a dissensão, o novo, a ruptura” (COMPAGNON, 2012, p.120). Com um mínimo esforço, somos capazes de elencar um cem números de obras e escritores que contestaram a ordem social, os costumes de sua época e a própria natureza humana, causando com isso grande indignação entre os indivíduos das classes dominantes. Dentre os grandes agitadores da literatura, podemos citar François Rabelais, com as “pantagruelices” de Gargantua e Pantagruel que escandalizaram os clérigos do século XVI, Jonathan Swift, com seu diário das Viagens de Gulliver desferindo ataques pontuais contra seus compatriotas ingleses sem isentar o resto da humanidade de suas mazelas e defeitos, Marques de Sade, o mais libertino dos escritores, cujo nome deu origem ao termo médico sadismo e que dispensa comentários, além é claro, de Charles Baudelaire que, em As flores do mal, traz a corrupção para dentro da natureza, fazendo florescer uma legião de poetas malditos como Rimbaud, Verlaine e Marllarmé, que, assim como ele, influenciariam toda a lírica moderna. Notamos, deste modo, que a tentativa de delinear a função ou os objetivos da literatura é no mínimo um trabalho difuso que tende a cair na contradição e esbarrar com numerosas concepções, mas não nos restam dúvidas de que, se por um lado ela pode adotar um tom disciplinador e educacional, uma vez que: [...] tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera

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prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática (CANDIDO, 2011, p.178),

por outro, ela é também capaz de transformar e humanizar, de fazer refletir, de nos levar a questionar os valores socialmente estabelecidos. Por isso, a “literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas” (CANDIDO, 2011, p.177). Entre regular e compreender a funcionamento da sociedade, as produções literárias são, sem dúvida, capazes de colaborar para sua transformação. Neste ponto, concordamos inteiramente com Candido (2011) quando afirma que um dos principais papéis da literatura é humanizar, pois ela é, em síntese: [...] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. (p.182).

Dentro de uma concepção preocupada com o desenvolvimento de habilidades linguísticas e cognitivas de crianças e adolescentes em idade escolar, nossa proposta de trabalho com a poesia diz respeito à possibilidade de abordá-la a partir da materialidade que a constitui, ou seja, entrever as possibilidades de significação que enuncia por meio de sua composição linguística, uma vez que vemos na poesia mais que um jogo ingênuo de palavras, mais que um emaranhado de classes gramaticais e estruturas sintáticas dispostas para simples identificação e classificação, ou ainda, uma produção cuja interpretação fica a cargo da intuição individual do leitor. Compreendemos que o trabalho com a poesia pode ser transformado em uma possibilidade de desvendar o potencial semântico das unidades que a compõem, partindo da observação de que o modo como se agenciam, os efeitos de sentido que produzem, as significações que fazem emergir em um contexto tão particular, são capazes de nos fornecer pistas de seu funcionamento interno. Esse trabalho nos possibilita vivenciar os mecanismos da atividade de linguagem em ação, ao mesmo tempo em que privilegia a interação entre o aluno e o texto de uma maneira mais instigante, uma vez que não se trata de encontrar respostas previamente definidas, mas de enxergar, na atividade de interpretação, uma possibilidade de desvendar, ou ao menos entrever, os mistérios que a linguagem oferece à criatividade dos poetas, aproximando-se mais de um jogo cujo objetivo é desvendar as regras do jogo de

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palavras ali apresentado. É a possibilidade de despertar o interesse do aluno pelos encantos de sua própria língua e do que é possível fazer com ela que move nossa prática. Embora voltemos nosso olhar para uma produção linguística específica que conta com uma vasta gama de especialistas e estudiosos que se empenham em compreender-lhes as minúcias, em explicar-lhe as fases, compreender estilos e tendências, nosso propósito, no que tange estritamente à poesia, é bem mais modesto. Partindo de uma concepção puramente linguística, nosso foco é observar o jogo enunciativo que se estabelece entre as unidades léxico-gramaticais que compõem o texto poético e de que modo o verbo ROMPER, nosso elemento de estudo, suas características e sua identidade se manifestam e colaboram para a produção de sentido do texto poético um todo. Para o desenvolvimento deste trabalho com adolescentes, entendemos que a problematização de conceitos tradicionalmente abordados nos livros didáticos e em diferentes obras gramaticais é essencial. Questionar e desconstruir conceitos como conotação e denotação, que carregam em sua base a perspectiva de que há, na “palavra”, um sentido intrínseco que pode ser expandido, empobrecido ou enfraquecido, assim como promover uma atitude reflexiva acerca dos fatos da língua, é função latente de nossa abordagem. A ocorrência da variação na língua é um fato, porém a Teoria das Operações Enunciativas, indo para além de uma simples observação dessa variação, propõe-se a analisar as regularidades que caracterizam o leque das variações possíveis de uma dada unidade linguística. Por entendermos a linguagem como uma propriedade cognitiva capaz de “produzir e reconhecer formas como traços de operação simultâneas de representação, referenciação e regulação, que se resume em uma reconstrução de enunciados” (FLORES, 2009, p.64), propomos a realização de uma atividade de investigação e reflexão sobre a linguagem e seus processos de significação na língua, partindo dos efeitos de sentido provocados pelo verbo ROMPER no texto lírico, mais especificamente, na poesia Retrospectiva de Flora Figueiredo (p.22-23, 2011). A escolha do texto deve-se essencialmente à beleza de sua composição e à infinidade de emoções e sensações que é capaz de fazer aflorar. No que tange aos interesses da pesquisa, a opção por este poema deve-se, mais especificamente, às características léxico-gramaticais apresentadas, que possibilitam o desenvolvimento de um rico trabalho de análise semântica, que, por meio da manipulação dos versos em que o verbo ROMPER se faz presente, nos foi

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possível confirmar as peculiaridades acerca de seu funcionamento dentro do sistema linguístico, como veremos a seguir 25.

Retrospectiva

1

Porque a vida é feita de proibições,

2

eu não compus todas as canções,

3

não percebi a brisa suspirar,

4

eu esqueci cantigas de ninar,

5

dei chances demais à voz dos credos,

6

não rompi de vez todos os medos*,

7

roubei do tempo um tanto de carinho,

8

não vi a flor amar o passarinho,

9

perdi o trem na curva da vertente

10

e não deixei o mel melar completamente.

11

Porque a vida é feita de proibições,

12

larguei o fio, soltaram-se os balões,

13

deixei que o pião revirasse sozinho,

14

mandei que o zangão se zangasse baixinho,

15

desprezei a bruma que baixou o véu,

16

permiti à palavra dormir no papel,

17

evitei o desvio que atravessa a estrada,

18

não quis o desafio da ronda embriagada,

19

não li o poeta maldito

20

e não tive o dilema do beijo infinito.

21

Porque ainda há tempo para o encantamento,

22

quebre-se o vidro do sermão absoluto,

23

rompa-se a teia*, reveja-se o estatuto,

24

que a primavera quer amar o chão de vento.

A análise a seguir retoma o texto “Dinâmica enunciativa e os processos de construção de sentido no contexto literário” apresentado no GELNE 2012, sendo apresentada, aqui, porém, com outros desdobramentos. 25

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O poema é dividido em três momentos distintos: as duas primeiras estrofes, carregadas de melancolia, que estariam voltadas para um passado de arrependimentos por tudo o que não pôde ser realizado em função da obediência aos ditames da vida cotidiana; já a última estrofe está voltada para o a partir de agora, marcando a esperança no por vir. As duas primeiras estrofes apresentam características similares, pois, em ambas, notase a prevalência de verbos no pretérito perfeito, além de seus versos iniciais serem idênticos (“Porque a vida é feita de proibições”) e funcionarem como causas das ações ou não-ações do eu lírico expressas nos versos posteriores como consequências das proibições sofridas. O eu lírico inicia o poema enfatizando ações não realizadas, marcadas nos versos por meio do “não” (“eu não compus”, “não percebi” etc.), ou pelo uso de verbos no pretérito perfeito, cuja significação remete a situações em detrimento do próprio sujeito, a algo que não se deseja que aconteça (“esqueci”, “perdi”, “roubei”). No quinto verso, no entanto, o que marca seu potencial negativo é o advérbio de intensidade “demais”, nos levando a compreensão de que algo oferecido em excesso pode ser tão ou mais prejudicial do que o não ofertado. No sétimo verso, “roubei” surge não como uma ação de fato praticada, mas como algo que o eu lírico não se permitiu viver, de modo que o verso “roubei do tempo um tanto de carinho” pode ser entendido como “não me permiti todo o carinho que a mim foi dispensado”, tendo implicitamente a noção de negação como indicação do que não se realizou. Na segunda estrofe, os versos 12 a 17 são construídos por períodos compostos. No conjunto de versos, a oração que o inicia caracteriza-se como a ação realizada pelo eu lírico, a oração seguinte funcionando como um desdobramento da ação primeira. Essa organização sintática e léxico-gramatical converge para a construção de uma imagem melancólica de fatos que poderiam representar boas lembranças, caso tivessem sido realizados de outra forma, ou mesmo de uma forma contrária. Já os versos 18, 19 e 20 são construídos por períodos simples, iniciados com advérbio de negação, enfatizando ainda mais as possibilidades de momentos felizes, mas que foram abnegadas pelo eu lírico. A última estrofe destoa das anteriores, surgindo como a esperança no por vir: “ainda há tempo para o encantamento”, nem tudo está perdido ou acabado, pode-se esperar por momentos de grande prazer e alegria. Essa representação de que há esperança para gozar de experiências repletas de deslumbramento é reforçada por meio da inserção do termo “ainda”, marcando a possibilidade de um futuro a ser vivido da maneira que se deseja. Embora a relação de causa (estabelecida pelo primeiro verso) e consequência (estabelecida por todos os versos seguintes) seja mantida tal como se verifica nas estrofes anteriores, as construções,

112

agora, são de natureza passiva, conjugadas no presente do subjuntivo nos versos 22 e 23. Neles, “quebre-se”, “rompa-se” e “reveja-se” evocam, de fato, tomadas de consciência em relação ao que deve ser feito, expressando necessidades e, mais do que isso, desejos de mudança de postura diante da vida e das imposições sociais, o que pode ser entendido como marco zero na trajetória do eu lírico, que, apagado no conjunto de versos que compõe a estrofe, passa a ser igualmente estendido a todo e qualquer sujeito. O último verso do poema apresenta-se como uma oração subordinada às orações anteriores, funcionando como o motivo que impulsiona mudanças de atitude. Isso porque “a primavera” é entendida como o desabrochar para a vida, dada as representações que rotineiramente lhe são associadas, como, por exemplo, quando a tomamos como a estação do amor e/ou das flores. Já em “chão de vento”, tem-se uma construção antagônica, em que “chão” tende a ser associado ao que nos dá sustentação, ao que nos permite andar sobre, remetendo, por isso, à representação de algo firme e regular. Opostamente a isso, tem-se “vento”, que evoca instabilidade, algo que pode mudar de direção e intensidade a qualquer momento, bem como o que é invisível. Assim, “chão de vento” pode ser lido como o que remete a um caminho cheio de possibilidades, que não está preso a regras ou imposições. O verso “a primavera quer amar o chão de vento” constitui a síntese da expectativa para com o futuro, para o qual a mais bela fase da existência vai desabrochar assim que se for capaz de viver de maneira mais livre, sem se deixar prender ou cercear pelas amarras impostas pelas convenções e/ou instituições. Como veremos, o verbo ROMPER desempenha um importante papel para a construção dessa interpretação ao longo do texto, sendo mobilizado em momentos cruciais, na primeira estrofe e na última. Isso mostra que o verbo colabora tanto para a construção dos argumentos iniciais, que remetem à ideia de um passado de possibilidades não realizadas, como é também fundamental para construir a ideia de esperança, do que se espera para o futuro. Na primeira estrofe, ROMPER surge no sexto verso, conjugado na primeira pessoa do singular no pretérito perfeito, antecedido pelo advérbio de negação e tendo como elemento passível de ruptura “todos os medos”. Para buscar entender a forma como verbo se articula neste enunciado para produzir sentido, o colocamos em uma relação paradigmática que permite reformulá-lo. Para tanto, buscamos unidades lexicais com as quais ROMPER estabelece, no mesmo ambiente em que se encontra, relações semânticas aproximadas:

Não|

rompi | de vez todos os medos.

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Não| eliminei | de vez todos os medos. Não| superei

| de vez todos os medos.

Não| abandonei| de vez todos os medos.

Com essa delimitação dada pelo ambiente textual, percebe-se que as possibilidades de reformulação se tornam bastante restritas, já que, se este enunciado poderia ser também reescrito por unidades como “acabei”, esta, ao mobilizar necessariamente a preposição COM (“não acabei de vez com todos os medos”), encontra-se excluída, pois, no contexto em que ROMPER aparece, a preposição não se faz presente, embora pudesse, sim, ser com ela construída: “não rompi de vez com todos os medos”. Este pequeno detalhe, que a princípio não chamou nossa atenção, mostrou-se posteriormente decisivo para compreender a maneira como a unidade funciona dentro do sistema linguístico. Em nossos estudos acerca de seu funcionamento, notamos que ROMPER mobiliza a preposição COM sempre que se relaciona com unidades que se configuram como um conjunto de elementos que, de alguma forma, orientam ações humanas, tal como se observa nas ocorrências abaixo:

Ele rompeu com o sistema. Ele rompeu com preconceitos. Ele rompeu com a tradição.

Essa manifestação do verbo identifica um padrão de funcionamento, uma vez que no exemplo “não rompi todos os medos”, é possível compreender “medos” como um conjunto de sentimentos que causam inquietações, que provocam dúvidas acerca de como se deve agir, mantendo aquele que está sob sua influência em um estado de resignação, em uma situação de estagnação. Sendo assim, somos levados a inferir que “romper os medos” remete a capacidade de superar um obstáculo, de atravessar uma barreira imaginária que impede a ação. Em outras palavras, o enunciado “não rompi de vez todos os medos” agrega ao poema a ideia de que o eu lírico passou pela vida dominado por pressões de ordem psicológica que o impediram de agir livremente, o que reitera e justifica a noção de que teve uma existência limitada, agindo de acordo com as regras a ele impostas, sendo incapaz de infringi-las. Na última estrofe, ROMPER está presente no penúltimo verso, conjugado no presente do subjuntivo: “rompa-se a teia” (i.e. “que a teia seja rompida”). Com o apagamento do eu lírico, temos, neste excerto, um convite à libertação que excede o universo intimista deste

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mesmo eu lírico, abarcando a todos aqueles que se entendam, de alguma maneira, em condição de oprimido ou limitado por fatores de origem cultural ou derivados da estrutura própria das organizações sociais. A significação enunciada pelo verbo neste verso remete àquela verificada na estrofe inicial, uma vez que mostra ser necessário se desvencilhar das tramas das instituições para que se possa viver plenamente. Neste contexto, “teia” constrói a representação de algo que atrai e aprisiona, impedindo os movimentos daquele que é por ela capturado e pode ser interpretada como sendo a própria sociedade, vista como uma malha constituída por inúmeras instituições, que funcionam como fios que se interligam e se inter-relacionam, organizando toda a estrutura social e envolvendo os indivíduos em sua dinâmica própria. Essa possibilidade de interpretação é reforçada pela sequência “reveja-se o estatuto”, em que “estatuto” evoca, neste enunciado, uma lei orgânica que expressa formalmente os princípios que regem a organização da sociedade (ou de uma instituição etc.) ou, melhor, que o conjunto de regras que organiza coletividades e instituições, as leis que disciplinam as relações jurídicas que incidem sobre as pessoas e as coisas (HOUAISS, 2009, p. 830) sejam examinadas cuidadosamente com o objetivo de mudá-las ou melhorá-las. Desta forma, a opressão está prestes a ter fim, pois, ao ser rompida a teia e revisto o estatuto, constrói-se a recusa para seguir, de forma estrita, um conjunto de valores, princípios e costumes com os quais não há identificação, podendo-se, no futuro, agir de acordo com sentimentos próprios e com uma visão particular de mundo. Com essa análise, notamos que o funcionamento do verbo ROMPER nesta poesia corresponde à dinâmica já observada em tópicos anteriores, prestando grande contribuição à nossa pesquisa, uma vez que, nos exemplos aqui analisados, o verbo traz à tona alguns de seus usos mais corriqueiros, qual sejam, exercer a função de marcador de superação de obstáculos e de ruptura para com regras estabelecidas, com princípios que ditam o modo de agir, cuja finalidade é a de nortear práticas e comportamentos de um grupo de indivíduos. Propomos agora uma sequência didática destinada a alunos do 9º ano do Ensino Fundamental II 26, organizada em três etapas distribuídas em seis aulas de 45 minutos cada. A primeira e a segunda aulas são destinadas ao desenvolvimento da sensibilidade poética do aluno com relação ao texto, as quatro aulas posteriores buscam aprofundar as sensações despertadas nas preliminares por meio do estudo da constituição lexical do texto.

26

Sem dúvida, a atividade poderia ser desenvolvida em outros anos, já que tudo depende do encaminhamento dado às aulas pelo professor.

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I.

Apreciação do texto

A primeira etapa é destinada ao deleite, à contemplação do texto. Os alunos recebem uma cópia do texto e realizam a leitura individual e silenciosa, para, na sequência, o professor ou aluno voluntário recitar o poema para a classe. Os alunos podem ser convidados a recitar aleatoriamente o verso ou versos que mais apreciaram, sem a obrigação de explicar o que motivou a escolha.

II.

Inferência intuitiva

Os alunos são solicitados a escrever individualmente acerca das sensações, emoções, ou imagens que a leitura ou a audição do poema tenha lhes suscitado. Em seguida, eles se organizam em trios para compararem suas primeiras impressões sobre o texto. Neste primeiro momento, não há necessidade de consenso; o objetivo é apenas fazer com que os alunos pensem sobre os efeitos que o texto tenha causado em cada um deles. Na sequência, um aluno de cada grupo pode ficar responsável por apresentar um apanhado geral do que foi conversado entre o grupo, apresentado frases curtas ou palavras que sintetizem as primeiras impressões que tiveram acerca do texto. O professor, por sua vez, fica incumbido de realizar o registro dessas palavras ou frases na lousa. Ao término desta dinâmica, haverá um “mapa” das impressões da classe estampado na lousa, sendo possível visualizar as que foram mais constantes, as que menos se repetiram, as que foram singulares, ou ainda, as que podem ter suscitado emoções ou imagens consideradas próximas ou muito díspares entre si. Caso o professor tenha a sua disposição um data-show, é interessante que digite as informações dadas pelos alunos e as grave em arquivo para serem retomadas em aulas posteriores, ou ainda tirar fotos da lousa com esse mesmo objetivo.

III.

Análise da materialidade do texto – parafrasagem e glosa

Na primeira aula desta etapa, a proposta é dar início à interpretação do texto, partindo das palavras que consideramos como chaves para a compreensão do texto como um todo. Assim, a atividade consiste em solicitar aos alunos, organizados em trios, que reflitam e escrevam o que entendem por retrospectiva, proibição, encantamento e não apresentando ao menos três enunciados que ilustrem os diferentes usos que podemos fazer dessas palavras. Optamos por deixar a unidade não por último, por ser a que provavelmente apresente o maior grau de dificuldade para os alunos, em função dos vários usos que dela fazemos e que ultrapassam a ideia de negação, como por exemplo, na expressão “quando não” construindo a

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significação de contrariedade, a interjeição “Pois não”, que expressa gentileza, colocando o enunciador à disposição do outro, ou em expressões com valor de afirmação como ocorre em “não é?” posicionada ao final da oração (O time do São Paulo não anda jogando bem, não é?)”, além de integrar palavras compostas como “não-agressão”, “não-ficção”, “nãofumante,”, “não-verbal”, entre outros usos. Logo após, as conclusões dos grupos são socializadas oralmente e o professor apresenta – oralmente ou com auxílio de data-show – a definição dicionarizada dessas palavras com seus respectivos exemplos. Nesta fase, acreditamos ser de grande relevância questionar os alunos acerca das relações que se podem estabelecer entre proibição e não. Fazê-los refletir também acerca do que, na opinião deles, são as proibições que a vida, as pessoas ou nós mesmos nos impomos, como acreditam que seria a vida em sociedade se elas não existissem; qual o objetivo de se fazer uma retrospectiva, para que serve pensar em nossas ações passadas; ou, ainda, fazê-los pensar sobre quais seriam os encantamentos que a vida pode nos proporcionar. As aulas subsequentes são dedicadas à interpretação de cada um dos versos do poema; sugerimos para tanto a análise de uma estrofe por cada aula. A atividade consiste em solicitar aos alunos que elaborem paráfrases e glosas dos versos que contenham metáforas mais elaboradas, como em “não percebi a brisa suspirar”, “dei chances demais à voz dos credos”; “não rompi de vez todos os medos”, o que pode ser realizado oralmente, tendo o professor como mediador das discussões e escriba para transcrição das conclusões a que os alunos chegarem. Desta maneira, para o verso “não rompi de vez todos os medos”, por exemplo, os alunos seriam questionados sobre em que enunciados o verbo ROMPER pode ser empregado, que tipo de significação ele constrói. Na possibilidade de os alunos fazerem associações com verbos tradicionalmente considerados sinônimos de romper, como quebrar, ultrapassar, etc., ou outros como superar, acabar com, o professor escreve o verso na lousa ou tela e faz uma lista de versos em que ROMPER é substituído por aqueles indicados pelos alunos e os questiona sobre a significação construída nas paráfrases por eles sugeridas. O mesmo deve ser feito como a unidade medos. Por fim, poderíamos chegar a uma reformulação próxima de: deixei de viver momentos agradáveis, de fazer coisas de que gostava por não ter tido coragem suficiente para enfrentar os problemas e desafios que a vida me impôs, de me arriscar mais. Ao término de cada aula desta etapa, o professor retoma as impressões que alunos tiveram no primeiro contato com o texto e solicita que estabeleçam relações entre elas e as

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conclusões a que chegaram após um olhar mais detido sobre a poesia, que criem hipóteses do que ou de quais versos teriam suscitado tais impressões. Os momentos finais da última aula são destinados às conclusões as quais os alunos tenham chegado acerca da significação, ou significações produzidas pela poesia como todo, e acerca da importância e influência que as escolhas lexicais que fazemos para compor enunciados, sejam eles da natureza que forem, exercem sobre a significação que se pretende enunciar. Além disso, pode-se solicitar aos alunos que avaliem o processo de aprendizagem ao longo do desenvolvimento da atividade, apontando quais foram as dificuldades encontradas durante o processo, em que momentos se sentiram mais motivados e instigados, bem como aqueles que lhes tenham causado sensação de monotonia. Acreditamos que esse retorno será de grande valia para o professor, pois pode funcionar como uma avaliação de seu próprio trabalho, que, partindo do ponto de vista do aluno, será capaz de detectar o que funcionou da forma esperada, o que superou as expectativas, o que poderia ser aperfeiçoado, etc. Esta proposta didática certamente não prima pelo silêncio, uma vez que agrupar adolescentes

para

compartilhar

ideias

quase

sempre

gera

burburinhos,

risadas,

desentendimentos mais acalorados, exigindo do professor maior atenção, perspicácia, dinamismo e uma pitada de tolerância. Sabemos, ainda, que para colocá-la em prática, há de se haver estudo e dedicação do docente, pois, como se trata de uma atividade da qual o docente não tem o controle total sobre os resultados, imprevistos podem acontecer, respostas inesperadas certamente surgirão. Mas acreditamos que é justamente isso o que a torna motivadora, instigante e prazerosa, tanto para os alunos quanto para os professores.

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Conclusão Com a realização deste estudo, defendemos que a Teoria das Operações Enunciativas e a prática de manipulação de enunciados, que sustentam nossa pesquisa e análises, mantêm estreitas relações com a gramática, uma vez que mecanismos próprios à língua são integrados ao funcionamento das unidades lexicais. Portanto, as atividades aqui apresentadas não devem ser entendidas apenas como a aplicação de uma teoria linguística que busca superar modelos dela distintos de se olhar para a língua, mas como mais uma possibilidade para o desenvolvimento de elementos capazes de colaborar com a melhoria da qualidade de vida dos alunos, já que se refere, antes de tudo, ao ensino de um: [...] conjunto de conhecimentos linguísticos que um usuário da língua tem internalizados para uso efetivo em situações concretas de interação comunicativa, então, sem dúvida, a gramática tem tudo a ver com a qualidade de vida, pois quanto mais recursos, mecanismos, estratégias da língua o usuário dominar, melhor desempenho linguístico terá. [Em outros termos], as condições de existência sociocultural são grandemente dependentes da língua; assim, quanto mais domínio dos recursos e mecanismos desta tiver, melhor a pessoa se movimentará dentro desta sociedade e, portanto, melhor qualidade de vida terá. (TRAVAGLIA, 2011, p.15)

Sob essa perspectiva, acreditamos que é possível abandonar uma concepção de linguagem enraizada em nossa cultura escolar, para a qual o trabalho envolvendo a compreensão textual teria muito pouco a contribuir para a formação cognitiva do aluno. Acreditamos que nossa principal contribuição para esse campo é a possibilidade de uma prática de ensino que evidencia reflexões mais efetivas acerca dos fatos da língua, cujo principal intuito é fazer com que a compreensão passe a ser abordada como um processo que permite refletir sobre o próprio material verbal que compõe os enunciados e, assim, sobre o modo como o sujeito se vê por ele constituído. Se, nesta pesquisa, nos valemos do texto poético para o desenvolvimento de uma proposta pedagógica que prima pela análise das características enunciativas das unidades que compõem os enunciados, isso se deve ao fato de entendermos que linguagem possui recursos diversos para promover a interação do homem com outros homens e com mundo, sem que haja, por isso, níveis de valoração ou pertinência, mas tão somente mecanismos que permitem construir representações variadas do que vivemos, sentimos, observamos, intuímos.

119

Desta forma, concordamos com Adolfo Casais Monteiro ao afirmar que “[o] mais estranho poder da poesia é que torna o mundo mais verdadeiro, exatamente porque, nela, as palavras não funcionam como sinais, ou como rótulos, mas como substitutos de alguma coisa que permanece por trás delas.” (1965, p.31). Não que com isso estejamos afirmando que, em outros contextos linguísticos, haja a correspondência entre língua e realidade, ao contrário, já que, como já foi inúmeras vezes observado, a língua não é uma nomenclatura, nem tem a função de expressar a verdade do homem e do mundo. Estamos apenas reafirmando uma constatação, feita por tantos autores, de que a poesia mexe com as representações que temos do mundo e de nós mesmo, aguça a imaginação e estimula o desejo de compreender o que até então parecia inimaginável. Ressaltamos ainda que, para o trabalho em sala de aula, não se faz necessária uma pesquisa ampla e profunda nos moldes aqui apresentados acerca do funcionamento de uma unidade linguística que se pretenda estudar, pois o que consideramos um dos méritos desta proposta de trabalho é a possibilidade de incentivar os alunos a se posicionarem de modo mais crítico e reflexivo diante dos fenômenos da linguagem. Em nosso caso, um dos objetivos da pesquisa consistia justamente em atingir o âmago do funcionamento enunciativo do verbo ROMPER, o que explica a necessidade de um corpus vasto e variado. O maior número de usos possíveis é fundamental para que suas particularidades sejam desvendadas, bem como para detalhar os processos de elaboração da glosa e das operações linguísticas e cognitivas nela envolvidos. Para o trabalho em sala de aula, entendemos que o mérito da prática de reformulação e parafrasagem fica a cargo do estímulo à prática de refletir sobre o universo da linguagem. É, simplesmente, fazer pensar acerca dos elementos da língua partindo do conhecimento intuitivo que professores e alunos dela já possuem. Dar continuidade às investigações iniciadas neste trabalho é, sem dúvida, um de nossos anseios para trabalhos futuros, cuja pretensão, neste momento, está centrada no desenvolvimento de uma proposta de prática pedagógica sistematizada com fins de aplicação em sala de aula. Sabemos que a Teoria das Operações Enunciativas encontra-se em fase de expansão dentro dos estudos da linguagem desenvolvidos no Brasil. Com esta pesquisa, desejamos contribuir para que ela se torne mais conhecida e, quem sabe, posta em prática. Que nossos estudos sirvam de estímulo para que outros pesquisadores descubram, em seus postulados, a gama de possibilidades de estudo acerca da língua, da linguagem e seus mecanismos, que tanto nos instigam e nos fazem enxergar nela um grande potencial para o desenvolvimento de

120

práticas pedagógicas e desdobramentos para outras formulações teóricas envolvendo o fascinante universo da linguagem. Acreditamos, ainda, que o trabalho envolvendo a manipulação de enunciados e a glosa em muito podem contribuir para a melhoria da qualidade de ensino de língua portuguesa em nosso país.

121

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126

ANEXO 1)

Mais um dique se rompe no Rio; cerca de mil são removidos

2)

Nome de ave canora: Chorão Paracambi Rompe Nuvem.

3)

Estrutura de prédio desaba e rompe tubulação de gás [B5]

4)

De tanto amor sinto que meu coração vai se romper [F]

5)

Australiana escapa da morte depois que corda de bungee jump se rompe. [E]

6)

Adutora rompe em Santos e 3 carros caem em cratera.

7)

As contrações continuam, a placenta é expelida e somente depois o cordão umbilical

se rompe ou é cortado pela mãe. 8)

É uma atitude de vanguarda e que rompe barreiras acadêmicas e ideológicas que só

alguns são capazes de alcançar.[III] 9)

Quando a trapa rompe, há vazamento.

10)

Essa atitude do ministro mostra apenas que a corda sempre rompe pelo elo mais fraco.

11)

O estalido indica que a barreira do som foi rompida.

12)

A corda sempre rompe do lado mais fraco. [E2]

13)

O ozônio contém três átomos de oxigênio e o do planeta estudado se forma quando a

luz do sol rompe as moléculas de dióxido de carbono da atmosfera e permite a liberação de átomos de oxigênio. 14)

Quem agora rompe limites de fato é o holandês Willem van Ekeren.

15)

Cano d‟água rompe e causa transtorno na Zona Leste de Manaus. [B]

16)

Aproximadamente 40% dos pacientes não operados morrem quando o aneurisma

rompe. 17)

A questão é saber como se rompe a barreira que impede a reversão desse quadro.

18)

Fibra óptica se rompe e causa pane na rede da Intelig.

19)

Adriano rompe tendão de Aquiles, opera na quarta e fica pelo menos cinco meses

fora. 20)

A parede de uma das sete estações de tratamento de esgoto da concessionária Águas

de Niterói, no Rio, rompeu na tarde deste domingo, deixando feridos, segundo informações iniciais do Corpo de Bombeiros. [I] 21)

(O dólar) só não rompe a marca (de R$ 1,60) se a trajetória no exterior for no sentido

oposto. [II]

127

22)

Em seguida, as nozes são levadas para outra máquina que rompe a segunda camada e

retira a amêndoa. 23)

A água se expande e se rompe. Então, talvez, parte do que está dentro se quebre.

24)

Um cabo da rede elétrica se rompeu na tarde de hoje na Rua Ipanema, nas

proximidades da Estação Bresser do Metrô, na zona leste de São Paulo. 25)

As células foram então danificadas com um químico que rompe seu DNA.

26)

Tubulação rompe e carro fica coberto de gelo em NY.

27)

Ele ataca e rompe uma proteína que ocorre naturalmente no corpo e que normalmente

impede a difusão das células cancerígenas. 28)

Dólar rompe piso psicológico, mas volta e fecha a R$1,70.

29)

Ao aproximar o jovem do ancião que virá a ser, o avatar rompe esse distanciamento.

30)

Um caminhão desgovernado rompe a proteção de concreto que separa as pistas de

uma estrada no Canadá. 31)

Seus salvadores são os pequenos pássaros sambistas, amigos de um buldogue

serralheiro, que rompe as correntes do casal de aves preso. 32)

O primeiro dia de uso de tornozeleiras eletrônicas no Estado de São Paulo terminou

com um preso rompendo o lacre para escapar do monitoramento e outros 12 casos suspeitos. 33)

Uma adutora no rio Canoas, em Franca (SP), rompeu-se na noite de ontem e deixa

parte da cidade sem abastecimento de água. 34)

Ele terá de passar por uma cirurgia para reconstruir o ligamento cruzado do joelho

esquerdo, após rompê-los na vitória de sua equipe diante do Palermo, por 3 a 1, na última quarta. 35)

Polícia rompe bloqueio de uma das maiores refinarias da França.

36)

Puxada por Nova York, Bovespa sobe e rompe os 71 mil pontos.

37)

O indie rompe a estratosfera do sucesso.

38)

A Força da correnteza rompe represa Lago Delhi. [B2]

39)

Milho para pipoca é duro, de grão pequeno, redondinho e abundante - outras

variedades como milho-verde, roxo e amarelo não estouram bem como o milho-pipoca. O melhor, que se rompe bonito e vira uma flor branca, é o que tem umidade natural próxima de 13,5%. Na dúvida, escolha os de embalagens bem vedadas, com grãos inteiros, amarelinhos, de tamanho parecido. 40)

Quando a casa ficar com o perfume do amendoim assado, a casca se rompe e é hora

de tirar o amendoim do fogo. [IV] 41)

Para mim, ver Jada dessa maneira rompe o coração.

128

42)

Matar alguém é um ato que rompe a tela de proteção que separa o indivíduo de um

gozo excluído da consciência, da lei dos homens, da linguagem. 43)

O teatro se torna significativo como espaço de memória quando surpreende o

espectador e rompe a proteção do encanto. 44)

Cracker só rompe códigos de proteção de programas.

45)

Galeria rompe asfalto e faz região da Avenida 9 de Julho, em São Paulo.

46)

Na Hungria, a Cortina de Ferro se rompe em pedaços em 19 de agosto de 1989.

47)

Fã abraça Mulher Melancia e rompe pontos de implante de silicone.

48)

Corintiano emprestado ao Bahia rompe joelho e ficará 6 meses fora.

49)

Irã rompe os lacres de várias instalações de pesquisa nuclear.

50)

Médico ainda explica que os pacientes que tem uma obstrução pequena na artéria

morrem porque a placa se rompe e ele infarta. 51)

Inflação rompe o limite máximo da meta.

52)

Dilma Rousseff rompe nesta terça-feira o isolamento a que se submeteu na Granja do

Torto. 53)

Seus salvadores são os pequenos pássaros sambistas, amigos de um buldogue

serralheiro, que rompe as correntes do casal de aves preso. 54)

Em certa hora do dia, rompe as paredes da célula para invadir novos glóbulos

vermelhos. 55)

Certas verdades só vêm à tona, as máscaras só caem, quando se rompe o cordão

protetor de um pacto ou acordo. 56)

Preso no pavilhão de isolamento, ele rompe a lei do silêncio.

57)

Estados Unidos x Grã-Bretanha (sic) ser transmitido ao vivo em um estádio cheio de

torcedores quando o som de uma explosão rompe nas arquibancadas. 58)

O papelão se decompõe, depois que o plástico se rompe.

59)

Rompeu-se a guia de todos os santos (Gilberto Gil)

60)

Soberano Rei dos Céus!! / Rompeu o Antigo Véu!! (Ceremonya)

61)

Rompeu do céu uma nova esperança/ Nasceu Jesus, a nossa eterna luz (Leonardo

Gonçalves) 62)

Cabecear uma bola de futebol não tem um impacto que vai romper fibras nervosas no

cérebro. 63)

Agora o fruto de tão maduro parece que se rompe, vai apodrecendo. (Carlos

Drummond de Andrade) 64)

...amor de verão/ pipa rompeu a linha/ fugiu com o vento (Alonso Alvarez)

129

65)

Anatiné rompeu uma cabaça cheia de água.

66)

Num acesso de raiva, a mulher começou a romper suas vestes.

67)

Jandiro nem sentia os espinhos que rompiam sua carne.

68)

O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam.

69)

Um guincho alto rompe o ar.

70)

A paixão rompeu os limites de lealdade devida ao amigo.

71)

Na confusão rompeu-se uma alça do vestido de tafetá branco.

72)

O vaso rompeu-se com a queda.

73)

A barragem rompeu com as últimas cheias. [B3]

74)

A secção contendo vapor superaquecido rompeu-se.

75)

As nuvens se rompem em trovoadas. [d]

76)

O barco rompe a correnteza.

77)

Caminhões rompem estradas quilométricas.

78)

A queda rompeu o precioso vaso.

79)

A vegetação agreste rompeu a roupa dos excrusionistas.

80)

A charrua rompe o terreno.

81)

Vasos de guerra rompem o Mediterrâneo.

82)

Os bandeirantes rompiam as selvas.

83)

As tropas aliadas romperam o exercito inimigo.

84)

O punhal rompeu-lhe o coração.

85)

O tiroteio rompia os ares.

86)

Pés civilizados jamais haviam rompido a região.

87)

A água rompeu da terra.

88)

Os soldados romperam pela mata agreste. [b]

89)

O sapato rompeu-se.

90)

A montanha rompeu-se com a chuva.

91)

Com o seu largo carão holandês, e o riso derramado pela boca fora, como um vinho

generoso de pipa que se rompeu. 92)

Navio que rompe os mares.

93)

O velho jipe rompia as estradas poeirentas.

94)

O touro rompeu o laço a que se prendia.

95)

A faca rompeu-lhe as entranhas.

96)

Rompeu as botinas nas caminhadas.

97)

As meias romperam-se.

130

98)

Eu quero ouvir a voz da criação. Que rompeu as trevas.

99)

O sol rompeu as nuvens que se dispersaram.

100)

Ela rompeu os empecilhos que a impossibilitavam de alcançar seus objetivos.

101)

O índice de ações norte-americanas Standard & Poor's 500 rompeu sua média móvel

de 200 dias nesta sexta-feira. 102)

O cordão rompeu antes que pudéssemos notar.

103)

A bolsa não rompeu não conseguiu infectar seu filho.

104)

Paraquedista que rompeu a velocidade do som, Felix Baumgartner, aterrissará no

Laureus World Sports Awards no Rio de Janeiro. 105)

O preservativo rompeu, e agora?

106)

Chuva rompe barragem de lago no interior de São Paulo. [B4]

107)

Funk, o ritmo que rompeu fronteiras.

108)

Fecho do vestido de Sofia Vergara rompeu minutos antes do Emmy.

109)

A médica que realizou o exame disse não saber se o cisto que rompeu é hemorrágico

ou de endometriose? 110)

PM recaptura detento que rompeu tornozeleira eletrônica em BH.

111)

Niemeyer rompeu as amarras da arquitetura.

112)

E reconstruir a ponte que rompeu.

113)

Defesa Civil diz que rodovia se rompeu por falhas.

114)

O Ibovespa rompeu e continua no canal de alta.

115)

De tanto imaginar, um dia rompeu o elo que o prendia à realidade.

116)

Rompeu-se o denso véu do atroz marasmo .

117)

Voo 447: avião não se rompeu no ar, aponta relatório.

118)

Argentino rompe impasse de cardeais.

119)

Seu projeto diz que a proibição da cobrança da taxa de agendamento rompe o

equilíbrio das relações de consumo. 120)

E se você rompe um preconceito, isso ajuda a acabar com outros. [V]

121)

A presidente Dilma Rousseff foi muito aplaudida ao assegurar para a plateia que o seu

governo não rompe contratos. 122)

Estamos rompendo muitas barreiras com uma proposta que rompe esquemas.

123)

O surpreendente plano para um referendo na Grécia rompe o acordo.

124)

O retorno da estratégia rompe a hegemonia do partido de Chávez.

125)

Em geral, o homem se ofende quando a mulher rompe o relacionamento.

131

126)

Líder republicano rompe negociações sobre dívida com Obama.

127)

O republicano John Boehner, rompeu negociações com o presidente norte-americano,

Barack Obama. 128)

A partir do momento que a harmonia se rompe, ele agride seu portador. (harmonia

como uma relação de pertinência, conformidade entre pessoas ou coisas, concordância, acordo.) 129)

Na África do Sul, a China também rompe velhas alianças. [VI]

130)

Quem vive nesse meio pode até discordar, mas não rompe a roda-viva.

131)

Equilíbrio de poder repõem continuamente a ordem democrática cada vez que a

desordem, a opressão e o abuso de poder tentam rompê-la. 132)

É uma coisa de vanguarda e que rompe padrões.

133)

O trabalhista mostrou-se compreensivo e disse "entender e respeitar" a posição do

liberal democrata, que rompe a convenção constitucional. 134)

A cerca de 190 metros, a equipe detectou e fotografou o crustáceo que, apesar de seu

pequeno tamanho, rompe os princípios estabelecidos até hoje sobre as condições extremas nas quais pode haver vida. 135)

Assim, o estadão.com.br rompe o conceito de portal, ainda em voga no Brasil, porém

já ultrapassado no exterior. 136)

Após se apaixonar em "Crepúsculo", lançado há exatamente um ano, o casal rompe em

"Lua Nova". Bella se consola na sua amizade com o lobisomem indígena Jacob Black. 137)

Também advogava por falar com o movimento islamita que governa Gaza em uma

tendência que rompe abertamente o consenso entre os principais partidos com representação no Parlamento. 138)

Coreia do Norte rompe pacto de não-agressão com o Sul. [VII]

139)

Revoltas no mundo islâmico Ditador líbio Muamar Kadafi desafia resolução da

ONU, rompe cessar-fogo e ataca rebeldes em Bengasi. 140)

Apoiamos a reforma do ponto de vista administrativo, mas ela rompe a estrutura

democrática. 141)

A desintegração da Iugoslávia Após 1991, rompe-se a unidade da Iugoslávia

comunista, composta de seis repúblicas e duas regiões autônomas. 142)

Crise rompe unidade de políticos e intelectuais de esquerda, tradicionais críticos da

guerra e das grandes potências. 143)

Gutiérrez rompe padrões e cria um estilo próprio nestes tristes trópicos.

144)

A eleição do próximo presidente, contudo, rompe a norma.

132

145)

A pesquisa rompe alguns mitos sobre o tema. [VIII]

146)

O amor eterno rompe estados humanos, dura-se com a alma, ama-se puramente.

(Letícia Beppler) [C] 147)

O silêncio rompe a noite/ O dia rompe o silêncio/Rompo à plumas, como à foice

(Olívia Lopes) 148)

Os comunistas foram os primeiros a romper este velho princípio.

149)

Teria ela amado Alberto tanto assim, para romper todas as conveniências?

150)

Os noivos romperam sem ressentimentos. [A]

151)

Os amigos romperam.

152)

União abanou e petróleo rompeu o pacto federativo

153)

Regina Volpato não rompeu contrato com a RedeTV!

154)

Mas foi nas capitais conflituosas, onde as duas legendas romperam alianças de muitos

anos. 155)

Ela rompeu os padrões das revistas femininas.

156)

Dilma diz que país rompeu conflitos ao aliar desenvolvimento e distribuição de renda.

157)

Complementando esse conjunto de medidas pró-Estados Unidos, o governo rompeu

relações diplomáticas com a União Soviética. 158)

Martini rompeu as fronteiras rígidas de sua instituição.

159)

Rompeu o casamento cinco dias antes da data marcada e foi punido pela justiça.

160)

Assad rompe silêncio, fala em reforma, mas renova ameaças. [g]

161)

Alan ainda não rompeu romance com ex.

162)

Nicolas Sarkozy rompe um tabu e declara que a adesão de Atenas ao euro foi "um

erro" e que o país "não estava pronto" para a moeda única. 163)

A suave crítica do CS, um tapinha na mão de Assad, pelo menos rompe o imobilismo

da ONU e cria um precedente. [IX] 164)

A partir do momento que a harmonia se rompe, ele agride seu portador. (combinação

perfeita entre coisas ou seres distintos) 165)

A austeridade é perigosa porque ela rompe o crescimento. [D]

166)

O ministro Celso Mello afirmou que a decisão rompe paradigmas históricos e culturais

e é um passo significativo contra a discriminação. 167) [X]

Ainda bem que de vez em quando surgem essas opções e o círculo vicioso se rompe.

133

168)

Quando deixa as ruas e migra para as galerias, esse suporte urbano rompe o processo

comunicativo contido nos grafites que integram a cidade polifônica. 169)

Inter rompe série invicta do Vasco e cola na ponta.

170)

Dirigente rompe silêncio e se irrita por veto ao Morumbi. [f]

171)

Tucano rompe ciclo de solidão.

172)

Luiza Nagib Eluf (Por trás do "bom comportamento", 28/4, A2) rompe a inércia e

pronuncia corajosamente. 173)

Isso rompe a cadeia de vinganças privadas que amontoava corpos de jovens nas vielas

há dez anos. 174)

PSOL rompe conversas com Marina Silva por parceria PV-PSDB no RJ.

175)

Às vezes conhecemos sua ira, às vezes vemos como ele é humano e rompe tradições.

176)

Não pretendemos declarar terminado o diálogo, nem rompê-lo.

177)

Proclamado filho de Deus, Jesus rompe o terceiro milênio cercado da fé que não

admite dúvidas e da curiosidade que não se curva aos dogmas. 178)

Rompe a manhã da luz em fúria arder (Caetano Veloso)

179)

E a me dizer sem voz/ Que o sonho se rompeu (Teófilo Lima)

180)

Manhã que rompe/ Primeiros raios/ Primeiro canto (Guilherme Arantes)

181)

Mal rompe a manhã/ E há traços de sol pelo chão (Uns e Outros)

182)

Já o sol da manhã que rompia, era outro homem.

183)

Um violento ataque de aviação rompeu a guerra. [XI]

184)

A chegada das visitas rompeu a tranquilidade da casa.

185)

Estavam os dois abraçados... quando... um ai dolorido rompeu o silêncio da noite

enluarada. 186)

A meia noite rompeu a serenata.

187)

Correram-se as cortinas da tribuna real. Romperam as músicas. Chegou El rei.

188)

E a madrugada rompia.

189)

Pela manhã romperam os sinais da terra próxima.

190)

Na primavera rompem as flores.

191)

As lágrimas rompiam dando vazão à tristeza.

192)

A boa-nova rompeu logo.

193)

Rompeu-se a calma com a entrada das crianças.

194)

O boato rompeu imediatamente na cidade.

195)

O telefone rompeu o sossego.

196)

Rompeu-se o falatório com a chegada do decano.

134

197)

No verão, o sol rompe cedo. [c]

198)

Os gerânios rompiam ao redor da casa.

199)

A briga pelo comando de Furnas, uma das estatais mais cobiçadas do setor elétrico,

rompeu a trégua entre PMDB e PT na disputa por cargos do segundo escalão. 200)

O STF rompeu um histórico de decisões favoráveis à libertação de presos.

201)

Tua luz rompeu minha noite trazendo a alegria. [XII]

202)

Diego Boneta rompeu sua dieta semanal.

203)

... a violência na infância e na adolescência é prejudicial porque rompe a confiança das

crianças em relação àqueles que deveriam cuidar: os pais. 204)

Buraco na Navegantes “rompeu ano”, reclama leitor.

205)

Do grupo analisado, 155 pacientes, 62% do total, fumavam regulamente quando

apresentaram o problema, caracterizado pela dilatação anormal de uma artéria cerebral, que pode se romper, provocar hemorragia, e levar à morte. 206)

Seu projeto diz que a proibição da cobrança da taxa de agendamento "rompe o

equilíbrio das relações de consumo, interferindo no exercício da atividade das empresas". Desde que a lei entrou em. 207)

O casal que deseja um filho e, na impossibilidade de tê-lo nos limites conjugais, rompe

convenções. 208)

A declaração pública de Raupp rompe esse estilo e expõe a dificuldade do vice-

presidente Michel Temer 209)

O filme acabou se tornando um clássico porque rompe narrativas. [a]

210)

Ela alegou que essa peça rompe as regras estabelecidas pela Conar e caracteriza um

"sexismo atrasado e superado". 211)

O retorno da estratégia rompe a hegemonia do partido de Chávez.

212)

Todo dia, alguma roupa arrebenta, ou zíper se rompe.

213)

Aproximadamente 40% dos pacientes não operados morrem quando o aneurisma

rompe. 214)

Médico ainda explica que os pacientes que tem uma obstrução pequena na artéria

morrem porque a placa se rompe e ele infarta. 215)

Se o Observatório já causa tanta reação é porque ele rompe o monopólio da

informação. 216)

Quando o cobre rompe os níveis de suporte, as pessoas ficam estressadas.

217)

...o oceano alenta e dilata seus alvéolos, põe em marcha seu sangue renovado

que rompe raivoso nos abrolhos...

135

218)

Quando alguém morde uma pimenta, ela se rompe e libera a capsaicina, seu composto

químico ativo mais importante. 219)

Paraquedas se rompe e filha vê pai cair para morte em voo duplo.

220)

Após a folia, o repouso à beira-mar Raul Cortez é um habitué do Réveillon baiano:

pela sétima vez, rompe o Ano-Novo em Salvador. 221)

Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto.

222)

O matrimônio é um sacramento indissolúvel para os católicos. Quem o rompe peca.

223)

O encanto rompe-se lentamente.

224)

Crime é algo muito sério e algo com que o Estado e todos nós precisamos nos

preocupar porque rompe e ameaça o tecido social. 225)

Em certa hora do dia, rompe as paredes da célula para invadir novos glóbulos

vermelhos. 226)

Estados Unidos x Grã-Bretanha (sic) ser transmitido ao vivo em um estádio cheio de

torcedores quando o som de uma explosão rompe nas arquibancadas. 227)

Porque o ferrão é um prolongamento do abdômen, que se rompe no momento em que

a abelha abandona a vítima. 228)

Existem dois tipos de navios quebra-gelo criados a partir do século XIX: um grande e

potente com a proa em forma de cunha, que sobe no gelo e o rompe com seu peso; e outro, menor e menos potente, com a proa reforçada, que abre passagem cortando o gelo. 229)

Quando o Vínculo se Rompe trata de um tema que, apesar de continuar como tabu, é

realidade nas igrejas evangélicas. 230)

É a luz que rompe as trevas.

231)

Meu bem já vou embora/Vou e voou/No romper d'aurora...

232)

Ela rompe com a dualidade entre o abstracionismo geométrico e o informal.

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