A pré-história do choro: a transição das orquestras europeias ao ar livre para os regionais de choro carioca e a criação dos bailes de gafieira e da escola nacional de arranjos.

July 26, 2017 | Autor: O. Estevam Júnior | Categoria: Trombone, Música Popular Brasileira, Choro and Samba, Musica classica, Composição E Arranjo Musical
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A pré-história do choro: a transição das orquestras europeias ao ar livre para os regionais de choro carioca e a criação dos bailes de gafieira e da escola nacional de arranjos.

Por Osmário Estevam Júnior. Texto escrito em 2008 para a Pós Graduação (especialização) em MPB da FAP (Faculdade de Artes do Paraná) - Curitiba-PR.

Resumo: Este texto fala sobre a transição da música de concerto para a música popular devido à riqueza interpretativa de “clássicos populares” de Mozart e Verdi, e devido à versatilidade das “orquestras ao ar livre” (dirigidas inicialmente pelos músicos da família Strauss), e das bandas musicais ligadas a instituições privadas ou governamentais. Este texto trata da popularização da música do período dito clássico e romântico, através da prática de arranjos, transcrições e adaptações para formações diversas, em especial para banda de sopros, sendo que os primeiros "chorões" do século XIX eram músicos inseridos neste contexto. Aqui também se mostra a adaptação que os brasileiros fizeram para unir a linguagem das “orquestras ao ar livre” com a do "choro", criando assim as orquestras de baile, tendo no “choro de gafieira” um novo estilo com trombonistas no comando. Palavras Chave: música clássica, música popular, orquestras ao ar livre, choro, trombone e gafieira.

Abstract: This paper discusses the transition from concert music to popular music because of the interpretative wealth of "popular classics" of Mozart and Verdi, and due to the versatility of the "outdoor orchestras" (originally directed by the Strauss family musicians) , and musical bands linked to government or private institutions. This text deals with the popularization of the classical and romantic period music told through practical arrangements, transcriptions and adaptations for various formations, especially for wind band, and the first "chorões" of the nineteenth century were musicians inserted in this context. Here also shows the adaptation that Brazilians made to unite the language of "outdoor orchestras" with the "choro", creating the dance orchestras and the "choro de gafieira", a new style with leading trombonists. Keywords: classical music, popular music, outdoor orchestras, "choro", trombone e “gafieira”.

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A PRÉ-HISTÓRIA DO CHORO. Para Henrique Cazes, o Choro nasceu de um processo de mistura, entre estilos e sotaques, ocorrido de forma similar em diferentes países.

Se observarmos o maxixe brasileiro, o beguine da Martinica, o danzon de Santiago de Cuba e o ragtime norte americano, vemos que todos são adaptações da polca. A diferença de resultados se de vê ao sotaque inerente a música de cada colonizador (português, espanhol, francês e inglês) e, em alguns casos, a uma maior influência da música religiosa. A região da África de onde vinham os escravos também influiu, pois foram trazidas diferentes tradições musicais e religiosas por negros de tribos distintas. (CAZES, 1998, p.17)

A origem do nome “choro” ainda é discutida, mas é constantemente relacionada à maneira do músico tocar o seu instrumento, como se estivesse “chorando”. Por isso, pode-se dizer que a expressividade da interpretação recebe grande importância para definir os estilos. Estes, são definidos pelas danças populares européias que se popularizaram no Brasil, unidas aos ritmos e canções africanas trazidas pelo povo africano. A “mistura brasileira” é a grande responsável pela formação da identidade nacional, seja na música ou em qualquer outra arte. A polca, uma dança de casais de origem boêmia, estilo que agradava muitos casais europeus no século XIX, encontrou um perfeito complemento no lundu africano para definir alguns estilos típicos brasileiros.

1. POPULARIZAÇÃO DA MÚSICA CLÁSSICA Segundo Vasco Mariz (2005), renomados compositores e orquestradores europeus influenciaram os músicos brasileiros dos séculos XIX e XX. Desde o período dito “barroco”, encontram-se fortes influências européias no choro. Exemplo disso é Johann Sebastian Bach1 que escreveu várias peças curtas de grande riqueza contrapontística,

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Johann Sebastian Bach (Eisenach, 21 de março de 1685 - Leipzig, 28 de julho de 1750).

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muitas das quais poderiam ser tocadas por diferentes instrumentos. Em geral, pode-se dizer que estas peças exigiam uma boa capacidade técnica do instrumento e uma forma de executar cada vez mais virtuosística, sendo que em alguns casos apresentavam variações e liberdade de articulação. Com essas características, séries como as Sinfonias, Invenções, Suítes, Arte da Fuga e Variações Goldenberg, se espalharam pelos estudantes de música, sendo largamente tocadas por profissionais e amadores de vários instrumentos. Os Concertos para Trompa K412, K417, K447 e K495 e o Concerto para Clarinete K622 de Wolfgang Gottlieb Mozart2, são também exemplos do contato próximo entre compositor e instrumentista. O clarinetista e intérprete de “basset-horn”, Anton Stadler3 e o trompista e “fabricante de queijos” Joseph Ignaz Leutgeb4 eram grandes amigos do compositor. A amizade entre os músicos auxiliou para que Mozart os provocasse e os desafiasse, com composições que exigiam o máximo do domínio técnico instrumental. Este espírito fraternal, com desafios e uma certa competição, mas também de parceria musical, entre Mozart e seus amigos, apareceu de forma similar, durante a virada do século XIX para o XX, no ambiente do choro, com compositores escrevendo para seus companheiros músicos, os desafiando com diversos graus de dificuldade técnica instrumental, ao mesmo tempo em que desenvolvem as suas habilidades composicionais. O compositor austríaco também demonstrou grande versatilidade ao escrever um concerto que poderia ser para flauta ou oboé, por exemplo. Além de tudo, sua escrita para sopros era perfeita e sempre os explorou ao máximo, sejam nas obras orquestrais ou em suas diversas serenatas, divertimentos, duos e movimentos variados que Mozart escrevia livremente, desenvolvendo a sua técnica composicional e livre do compromisso com encomendas, já que muitas vezes o gosto limitado de seus clientes limitava sua audácia e criatividade. Seu pai, Johann Georg Leopold Mozart5, também escreveu um dos primeiros concertos para trompa, sendo notável o progresso técnico que ocorreu entre as obras do pai e do filho, para o mesmo instrumento. O mesmo serve para o Concerto para trombone de Leopold Mozart, em comparação ao excerto no Tuba Mirun, da Missa Réquiem” de Wolfgang, em que o solo do trombone apresenta uma fluência melódica e capacidade de ornamentação muito mais desenvolvida.

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Wolfgang Gottlieb Mozart (Salzburgo, 27 de janeiro de 1756 - Viena, 5 de dezembro de 1791). Anton Stadler (Bruck na der Leitha, 28 de junho de 1753 - Viena, 15 de junho de 1812). 4 Joseph Ignaz Leutgeb (Salzburgo, c.1745 - Viena, 27 de fevereiro de 1811). 5 Johann Georg Leopold Mozart (Augsburgo, 14 de novembro de 1719 - Salzburgo, 28 de maio de 1787). 3

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Outra influência europeia, que pode ser mencionada, vem dos músicos da família Strauss, que escreveram inúmeras polcas, além de marchas e outros gêneros de música popular, para serem tocados em salões e eventos populares. Os Strauss foram os precursores da “orquestra ao ar livre” e deram à valsa vienense a sua expressão clássica. Johann Strauss I6 foi um grande regente e violinista, tendo liderado as orquestras de dança em viagens pela Europa, apresentando danças originais, paráfrases das obras sinfônicas e operísticas da época, marchas, polcas e pot-pourris. Isso exigia grande versatilidade para fazer arranjos, transcrições e adaptações. Sua Marcha Radetzky, op.228 é uma das peças ditas clássicas mais populares do mundo, sendo quase que obrigatória em qualquer evento cívico, esportivo e comemorativo da Europa, sempre contando com as palmas da platéia participando. Os filhos de Johann Strauss I deram continuidade ao seu trabalho, popularizando a música de concerto e expandido os seus recursos expressivos. Seu primogênito, Johann Strauss II7, é considerado o “rei da valsa”. Representou a Áustria em suas turnês pelo mundo, espalhando suas obras primas por todos os cantos do planeta. Muitas de suas músicas, a exemplo do Danúbio Azul, op.314, estão plenamente inseridas no contexto da música popular brasileira. Há décadas ela é consumida no Brasil, especialmente nos bailes de debutantes, com inúmeras versões arranjadas e adaptadas por grupos do mundo todo. Muitas dessas composições eram facilmente adaptáveis para diferentes formações musicais, variando das orquestras até as bandas de sopro. O mesmo aconteceu com Giuseppe Verdi8, sendo que ele mesmo fazia os arranjos de suas músicas para uma banda de sua cidade natal. A música de Verdi tem uma forte ligação com o espírito de luta e liberdade. São inúmeras as árias românticas em suas óperas, geralmente carregadas de expressividade e recursos líricos. Melodias como a do Coro dos escravos Hebreus, de sua Ópera Nabucco (Va, pensiero, sull'ali dorate, "Vai, pensamento, sobre asas douradas"), são daquelas obras que sempre surgem na mente das pessoas. Devido ao aspecto romântico da canção, “Va, pensiero” se toca com uma grande carga de emoção, talvez por isso tenha-se popularizado tanto pelo mundo.

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Johann Strauss I (Viena, 14 de março de 1804 - idem, 25 de setembro de 1849). Johann Strauss II (Viena, 25 de outubro de 1825 - idem, 3 de junho de 1899). 8 Giuseppe Verdi (Roncole, 9 de outubro de 1813 - Milão, 27 de janeiro de 1901). 7

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2. PRIMEIRAS INFLUÊNCIAS MUSICAIS EUROPÉIAS NO BRASIL Além de Verdi e dos Strauss, são inúmeros os músicos europeus que influenciaram a música brasileira. Desde o tempo da música colonial mineira se escrevia músicas ao estilo clássico, porém, elas pouco se relacionavam com as classes populares. Porém, com o crescimento de centros urbanos, especialmente do Rio de Janeiro, alguns músicos de origem mais humilde e popular tiveram acesso aos estudos musicais, muitos devido a sua ligação com a igreja. O padre José Maurício Nunes Garcia9 foi um respeitado compositor brasileiro, bastante influenciado pelos moldes clássicos europeus, sendo um dos poucos a não chegou a ser esquecido em momento algum da história musical brasileira. Apesar de sua música estar fora da esfera popular, sendo influenciada por Joseph Haydn10 e Mozart em sua música sacra e de concerto, chegou a escrever duas modinhas catalogadas (Beijo a mão que me condena; No momento da partida). Nunes Garcia tinha os avós maternos escravos e era mulato. Sua qualidade musical se revelou num período crítico de transição da história brasileira, mesmo assim, ele conseguiu se destacar, desenvolvendo a prática sempre comum no Brasil de ter que se adaptar às dificuldades de conseguir os instrumentos adequados para determinados estilos de música. Com a vinda da corte portuguesa ao Brasil, muitos músicos europeus virtuoses tiveram contato com a cultura popular brasileira, em especial com a música dos escravos. A presença da flauta foi marcante, muito devido a atuação do belga Mathieu-André Reichart, contratado pelo imperador, em 1859, para apresentações na corte. Este chegou a escrever uma polca influenciada pelos primeiros chorões, em especial pelo grande flautista Joaquim Antônio da Silva Callado, chamada de La Coquette, também conhecida como As Faceiras. Dando continuidade a tradição de compositores do Brasil, dentro de uma banda feita de irmãos, organizada por um pai viúvo na tentativa de dar um sustento a família, surge em Campinas um jovem compositor de valsas, quadrilhas e polcas: Antonio Carlos Gomes11.

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José Maurício Nunes Garcia (Rio de Janeiro, 22 de setembro de 1767 – 18 de abril de 1830). Joseph Haydn (Rohrau, Áustria, 31 de março de 1732 — Viena, 31 de maio de 1809). 11 Antonio Carlos Gomes (Campinas, 11 de julho de 1836 — Belém, 16 de setembro de 1896). 10

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Desde os 15 anos de idade, Antonio Carlos Gomes impressionava as pessoas por suas habilidades, pois dominava muito bem todos os instrumentos. Isso, todavia, pode ajudar a explicar a sua qualidade como orquestrador. Carlos Gomes foi um dos pioneiros do nacionalismo brasileiro, apesar de seus recursos “a moda italiana”, muitas vezes criticados pelos próprios nacionalistas. No entanto, ele levou ao mundo das óperas algumas temáticas latino-americanas e trouxe ao Brasil uma técnica de orquestração apurada. A abertura de O Guarany, é objeto de desejo dos músicos de todas as bandas do país, e a sua modinha Quem sabe, foi eternizada e tocada por inúmeros artistas da música popular brasileira. É bem possível que Carlos Gomes seja o músico que mais inspirou a primeira geração dos chorões do Brasil. Além disso, com a chegada do gênero popular “quadrilhas” ao Brasil, trazidas por orquestras francesas na década de 1830, Carlos Gomes que se deixou influenciar, escrevendo algumas destas músicas com qualidade. Segundo Jucinato Marques (UFRJ, 1996), por suas características românticas e sendo considerado um “gênio” nacional, Carlos Gomes foi fundamental para que a atividade musical no Brasil deixasse de ser vista como uma espécie de artesanato, sendo também aceita como atividade “espiritual”.

Anacleto tinha grande admiração por Carlos Gomes, maestro e compositor do século XIX, considerado um dos principais músicos das Américas. Nos últimos anos de vida do autor de O Guarani, encontrou-o na ilha (Paquetá/RJ). A noite já ia caindo quando, de repente, o criado irrompeu pela porta da sala de jantar do paquetaense Júlio Tavares, avisando que o senhor Anacleto, sabedor da presença do maestro Carlos Gomes, gostaria de homenageá-lo com algumas peças musicais. Com a permissão do dono da casa e de seu ilustre convidado, Anacleto organizou seus músicos sob a batuta trêmula. Alguns minutos após o início da melodia, o regente, que já era conhecido na capital, confirmou seus principais atributos: segurança, comando e delicadeza. Nos compassos finais da “Protofonia do Guarani”, Carlos Gomes já estava com os olhos cheios d’água e queria abraçar o mestiço Anacleto. Dizem que ficou tão comovido com sua musicalidade que lamentou muito não ter tido a oportunidade de levar o “seu caboclo”, como passou a chama-lo, para aperfeiçoar seus estudos na Itália. (Diniz, 2007, p.25)

André Diniz destaca a admiração que grandes chorões do século XIX, em especial o Maestro Anacleto de Medeiros, tinham por Carlos Gomes. Nesta citação, matéria do

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jornal Gazeta de Notícias, do dia 13 de julho, de 1906, lembra-se da estada do maestro na casa de Júlio Tavares, em 1894, ratificando o apreço de Carlos Gomes por Anacleto de Medeiros.

3. A HERANÇA AFRICANA NA MÚSICA BRASILEIRA Paralelamente a influência européia, a alma africana faria do Brasil a extensão de seu continente. As pessoas vindas de Angola, Congo, Moçambique, Nigéria, Daomé e Costa da Mina (Golfo da Guiné), trazidas a força ao continente americano pelos europeus colonizadores, começavam a se libertar destes preconceitos raciais e culturais através da inserção na sociedade brasileira. Paralelamente ao resguardo moral, que muitos escravos receberam do Império Brasileiro após terem lutado na guerra contra o Paraguai12, a música é reconhecida como um dos meios mais fortes de inserção social dos negros na elite urbana da época. Segundo José Ramos Tinhorão (1990, p.146), as bandas de música do Rio de janeiro executavam principalmente polcas influenciadas pelo Lundu, agradando aos visitantes estrangeiros e a juventude das classes urbanas em ascensão. Aos poucos a linguagem musical das bandas se adaptaria ao violão. Isso possibilitou a criação das sociedades musicais e dos primeiros grupos carnavalescos. Vale a pena destacar uma passagem ocorrida nos jardins do palácio presidencial, em torno de 1910. Nair de Teffé, mulher liberal, porém casada com o marechal Hermes da Fonseca, promoveu “com honrarias de Wagner” o maxixe Corta Jaca, de Chiquinha Gonzaga. Este fato chocou os mais conservadores da época e essa divertida história é até hoje lembrada no próprio Museu da República, antigo Palácio do Catete, onde este fato aconteceu. Muitos escravos, além de demonstrarem enorme talento e facilidade musical ao dominarem os instrumentos, tocando de ouvido, com precisão rítmica e afinação precisa, começaram a frequentar as casas de seus senhores. Assim, alguns deles passaram a estudar música e etiqueta nos moldes ocidentais, sendo respeitados e admirados, a ponto de conquistar a alforria de seus donos.

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Guerra do Paraguai (dezembro de 1864 a março de 1870).

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A partir da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, deu-se o fim da escravidão no Brasil, proporcionada pela dificuldade do exército em pegar escravos fugitivos, e pela exploração do trabalho dos imigrantes italianos e do leste europeu. Com isso, muitos negros foram trabalhar em empresas do governo que patrocinavam grupos musicais, sendo que a função de músico poderia lhes garantir algum tipo de benefício a mais. Não demorou muito para que a mistura entre todos os povos presentes no Brasil gerasse um país de grande miscigenação O amor foi uma das principais influências do povo nativo da região entre os homens brancos, povo chamado de índio por conquistadores que diziam ir as Índias, “chegando ao Brasil por um acaso”, como se acreditava há alguns anos, mas atualmente sabe-se que os navegadores da época tinham conhecimento sobre a existência de terras do outro lado do oceano atlântico. Sendo assim, não houve descobrimento, houve uma tomada de posse do território do Brasil por portugueses, visando inicialmente a extração dos recursos naturais da região. Os nativos do Brasil sofreram, por séculos, uma grande exploração e quase desapareceram, por outro lado, os africanos foram escravizados e trazidos à América para trabalharem para os europeus colonizadores. Para preservar as suas culturas, os povos explorados descobriram caminhos para disfarçar as suas crenças e costumes, através de um sincretismo cultural e religioso, onde a luta é dança e a dança é luta, como na capoeira, onde os santos católicos são orixás africanos e seus rituais já tem influências indígenas, como nas religiões afro-brasileiras. Até no futebol, a falta, que sempre favorecia aos brancos, originou os dribles e todo o “jogo de cintura”, baseado no movimento dos capoeiristas e com muita persistência a nação foi aceitando suas cores. Porém, alguns fatos, como o incentivo do governo brasileiro ao promover a mistura entre os imigrantes europeus e os africanos, influenciaram bastante a miscigenação entre as ditas três raças (branco, negro e índio), sendo que acreditava-se que essa alternativa poderia branquear a população, o que de fato não ocorreu. Por um lado, temos os cantos e ritmos africanos ajudando a soltar as amarras da música européia, de forma sensual e despojada. Pelo outro lado, temos a teoria musical e instrumentação ocidental, dando formas menos limitadoras de organizar os novos estilos que começam a aparecer e que serviriam futuramente como representantes da identidade nacional. Isto ocorreu em todo o continente americano de forma parecida, as diferenças e

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nuances entre Estados Unidos e Brasil, por exemplo, se devem às culturas específicas de cada um dos povos nativos espalhados pelo continente americano (Guarany, Apaches, Maias, etc) na cultura dos escravos trazidos de regiões diferentes da África (Nigéria, Angola, Guiné, etc), e dos tipos de colonizadores de diversos países europeus que desembarcaram por todo o continente (portugueses, franceses, ingleses, espanhóis, etc). Na música, o resultado desta herança africana é percebido na complexidade dos ritmos, na expressividade das melodias e na maneira de tocar, sendo visível no choro e no samba brasileiros, mas também o é em outros lugares, em especial no Blues e Jazz norte americanos.

4. O NASCIMENTO DO CHORO O “Choro”, como ambiente urbano de encontro social, surgiu num Rio de Janeiro modernizado, desenvolvido durante as décadas que medeiam o século XIX, incentivados pelos investimentos trazidos com a família real de Portugal a partir de 1808. Na segunda metade do século, o fim do tráfico de escravos e a infra-estrutura de serviços públicos e estradas de ferros, tentavam colocar o Brasil na trilha dos países civilizados. Por isso, quando os investimentos aumentaram, muitos instrumentos musicais chegaram ao país e bandas foram criadas junto a empresas do governo, como os correios, fábricas e indústrias, formando inúmeros instrumentistas. Neste contexto, é que surgiu um músico, flautista e compositor, chamado Joaquim Antônio da Silva Calado Júnior13, que foi aluno de Henrique Alves de Mesquita14, e recebeu forte influência da música francesa e do flautista belga Mathieu-André Reichert15. Devido ao seu pioneirismo na arte da improvisação e ao seu caráter competitivo, visto em desafios onde enfrentou Reichert, Callado pode ser considerado o “pai” do Choro. Seu grupo tinha flauta, dois violões e cavaquinho, e todos eram livres para

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Joaquim Antônio da Silva Calado Júnior (Rio de Janeiro, 11 de julho de 1848 — Rio de Janeiro, 20 de março de 1880). 14 Henrique Alves de Mesquita (Rio de Janeiro, 15 de março de 1830 — Rio de Janeiro, 12 de julho de 1906). 15 Mathieu-André Reichert (1830 – 15 de março de 1880).

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improvisar. Seus principais discípulos foram os flautistas Patápio Silva16 e Viriato Figueira da Silva17. Como marco da criação do “choro”, segundo o que pontam a maioria dos livros lançados a este respeito, está a polca Flor Amorosa, de Calado e Catulo da Paixão Cearense18, composta na década de 1880. Vemos com isso que parcerias sempre fizeram parte das características dos chorões. Além de Calado e Catulo, Chiquinha Gonzaga19, Ernesto Júlio de Nazareth20 e Anacleto Augusto de Medeiros21, deram ao “choro” as suas principais características, sendo que este só foi considerado como estilo musical no começo do século XX, após o avanço da indústria fonográfica. Inicialmente, “choro” é um ambiente musical e um espaço cultural onde os músicos “chorões” tocam polcas, tangos, valsas e lundus. Segundo Henrique Cazes, em 1845, a polca foi dançada pela primeira vez no Brasil no Teatro São Pedro. Nesta época, as danças estavam se desenvolvendo, passando de coreografias coletivas, como nas quadrilhas e minuetos, para a dança de par enlaçado, influenciada principalmente pela valsa, atingindo uma maior liberalidade com a polca francesa.

Em resumo: Choro foi primeiro uma maneira de tocar. Na década de 10, passou a ser uma forma musical definida. O choro como gênero tem normalmente 3 partes (mais modernamente duas) e se caracteriza por ser necessariamente modulante. Mais recentemente, Choro voltou a significar uma maneira de frasear, aplicável a vários tipos de música brasileira. A obediência à forma rondó (em que se retorna à primeira parte) aos poucos tem sido flexibilizada. (CAZES, 1998, p.21)

Anacleto foi um grande incentivador das Bandas de música no Brasil. Ele desenvolveu uma linguagem específica para estes grandes grupos, trazendo variações de dinâmicas e recursos expressivos que não eram muito comuns em formações militares da

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Patápio Silva (Itaocara, 22 de outubro de 1880 — Petrópolis, 24 de abril de 1907). Viriato Figueira da Silva (Macaé, 1851 — Rio de Janeiro,1851 a 24 de março de 1883). 18 Catulo da Paixão Cearense (São Luís do Maranhão, 8 de outubro de 1863 — Rio de Janeiro, 10 de maio de 1946) 19 Chiquinha Gonzaga, (Rio de Janeiro, 17 de outubro de 1847 — Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1935). 20 Ernesto Júlio de Nazareth (Rio de Janeiro, 20 de março de 1863 — Jacarepaguá, 1º de Fevereiro de 1934). 21 Anacleto Augusto de Medeiros (Rio de Janeiro, 13 de julho de 1866 — Rio de Janeiro, 14 de agosto de 1907). 17

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época. Em suas mãos, a banda do Corpo de Bombeiros conseguia uma grande coesão e demonstrava musicalidade. Ao mesmo tempo, a linguagem “chorística” se propagava bastante, devido a ponte realizada por Anacleto entre a cultura das bandas, que instruíam músicos para objetivos cívicos e sócio culturais, e a cultura das rodas de Choro, quem tinha um caráter mais informal. Por seu forte trabalho e compromisso com a música Brasileira, Anacleto de Medeiros foi extremamente admirado por Carlos Gomes e por Heitor Villa Lobos22. Este último dedicou em seu Choro N.10, obra prima da música sinfônica brasileira, uma bela citação ao schottisch Iara, de Anacleto. A linguagem musical do maestro de Paquetá, ao trabalhar com bandas, foi seguida por discípulos como Irineu de Almeida23, conhecido como Irineu Batina, Cândido Pereira da Silva24, conhecido como Candinho Trombone e Alfredo da Rocha Viana Filho25, conhecido como Pixinguinha.

5. O TROMBONE ENTRA NO CHORO Para entendermos o contexto em que o trombone se insere no choro, temos que analisar o desenvolvimento das bandas e orquestras no Brasil. A popularização do trombone foi apoiada pelas bandas de sopros e orquestras de música popular. As famosas “Bandas de Coreto”, como eram chamadas as Bandas Musicais da época, se apresentavam em praças públicas, onde o Coreto figurava como construção central adaptada para fins musicais. Estas bandas se espalharam pelo país, formando inúmeros músicos. Muitos desses músicos viam no choro o seu grande desafio. Isso fez com que a linguagem e técnica de execução se desenvolvessem em vários estilos novos para a época. As primeiras gravações ocorridas no Brasil, pela Casa Edson, foram fundamentais para a popularização do repertório de choro. Inicialmente, a formação de banda de sopros era a preferida, devida a intensa sonoridade que facilitava a captação das vibrações

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Heitor Villa Lobos (Rio de Janeiro, 5 de março de 1887 – Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1959). Irineu de Almeida (Rio de Janeiro, 1873 — Rio de Janeiro, 1916). 24 Cândido Pereira da Silva (Rio de Janeiro, 1879 – Rio de Janeiro, 1960). 25 Alfredo da Rocha Viana Filho (Rio de Janeiro, 23 de abril de 1897 — Rio de Janeiro, 17 de Fevereiro de 1973). 23

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sonoras. A própria Casa Edson tinha a sua banda, na qual vários músicos da época atuaram em gravações e transmissões ao vivo. Atualmente, temos o privilégio de poder acessar algumas destas gravações, como as feitas pelo Grupo Carioca, tendo Pixinguinha em suas primeiras gravações na flauta, o experiente maestro Irineu de Almeida no “bombardino”, ou saxhorn barítono, e no oficleide, assim como o compositor Bonfiglio de Oliveira, no “pistom”, ou trompete, acompanhados de um trio de irmãos, sendo Léo e Otávio Viana nos violões e Henrique Vianna no cavaquinho. Em uma gravação da polca Carne Assada, de Pixinguinha, podemos ver toda a versatilidade nas improvisações e contracantos de Irineu e Bonfiglio, enquanto o jovem compositor segue firme com a melodia na flauta. Outro grupo desta mesma época é o “Choro Carioca”, tendo o maestro Cândido Pereira da Silva, o Candinho Trombone, como principal solista, acompanhado pelo cavaquinista Nelson Alvez e por Artur de Souza Nascimento, conhecido como Tute, o precursor do violão de 7 cordas. Tute tocava percussão na banda de Anacleto Medeiros, mas ficou conhecido com um dos maiores violonistas da história, tendo como discípulo o Dino 7 Cordas. As orquestras de baile também estão na base da formação de inúmeros trombonistas dedicados ao choro, sendo que alguns são verdadeiros maestros. Com o passar das primeiras décadas do século, o choro acha nas formações orquestrais novas possibilidades sonoras, diferentes do tradicional regional. Devido a aproximação com o samba, surge o “Choro de Gafieira”, baseado num baile instrumental repleto de choros dançantes, nos quais os trombonistas muitas vezes lideravam com solos sonoros e repletos de “gingado”.

Aliás, o termo “Choro de Gafieira” apareceu como título de uma

composição de Pixinguinha, porém foi o trombonista Raul de Barros26 o responsável por explorar essa nova linguagem a fundo, tornando-se o “Pai da Gafieria”. Analisar algumas formações instrumentais típicas da Europa no século XIX, em especial as dirigidas pelos músicos da família Strauss, conhecidas como “orquestras ao ar livre”, é necessário para entendermos o progresso da arte da instrumentação, arranjo e orquestração. Este cenário europeu, onde tais orquestras ajudavam na popularização do repertório de concerto, se aproximando do povo através de versões adaptadas para o gosto popular, tomou diversas facetas por todo o continente americano.

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Raul de Barros (Rio de Janeiro, 25 de novembro de 1915 — Itaboraí, 8 de junho de 2009).

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No Brasil, as bandas de músicas são um dos espaços mais adequados para o desenvolvimento de arranjos e adaptações de muitas músicas ditas clássicas, que são bem populares na Europa. É uma prática muito comum, dar uma “cara brasileira” a música estrangeira, ou simplesmente facilitar os arranjos para formações mais modestas. Estas técnicas vieram ao Brasil desenvolvendo a “escola nacional de arranjos”, que pode ser relacionada com uma liberdade de tocar e adaptar as músicas, usando as influências da música africana, mas também do jazz em si, principalmente devido aos padrões harmônicos, e da própria música de concerto. A mistura de estilos é uma característica bem assimilada pelo povo brasileiro, sendo assim, algumas músicas ganham um outro clima para se tornarem mais intimas do público. Para isto, utilizavam-se técnicas de variação e adaptação orquestral, pois arranjos versáteis facilitavam as mudanças de instrumentação entre os grupos. Para que estas transformações ocorram, é necessária uma grande produção de arranjos. Porém, o fator determinante para dar às músicas o aspecto de brasilidade está na maneira de tocar. Neste aspecto, a qualidade dos instrumentistas é essencial, mas a tradição sonora é algo marcante nesta linguagem da música instrumental brasileira. O choro, como maneira de tocar, é um dos principais alicerces da música instrumental brasileira, como tradição perpetuada entre os mestres e discípulos nas rodas de músicos.

REFERÊNCIAS

CAZES, Henrique. Choro: do quintal ao municipal. São Paulo: Ed. 34, 1998. DINIZ, André. O rio musical de Anacleto de Medeiros: A vida, a obra e o tempo de um mestre do choro. Rio de Janeiro: JZE, 2007. MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil. Nova Fronteira, 2005. pp. 51-59. MASSIN, Jean & Brigitte. História da Música Ocidental. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997. SADIE, Stanley. Dicionário Grove de Música: Edição Concisa. Rio de Janeiro: JZE, 1994.

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