A presença do cinema na poesia de Manuel Gusmão

June 1, 2017 | Autor: Manuela Moreira | Categoria: Portuguese and Brazilian Literature, Film Studies, Contemporary Poetry
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Maria Manuela Moreira Unidade Curricular: Poéticas Comparadas Faculdade de Letras da Universidade do Porto A presença do cinema na poesia de Manuel Gusmão Este trabalho tem por objeto analisar a presença do cinema na poesia de Manuel Gusmão, o qual, à imagem de outras artes, como a pintura e a própria literatura, aparece tecido ou entretecido no corpo de alguns dos seus poemas. Como diz o Poeta: “ (…)a minha poesia está cheia de citações, alusões, ecos deformados de outros autores e não só de poetas, também de fato romancistas e de referências a outras artes, às artes plásticas, ao teatro e muito ao cinema” (Silva/ Oliveira 2003: 303)1. Por outro lado, o trânsito de outros poemas e de outras artes para os seus textos leva o Poeta a tecer a “arte da poesia narrativa”2, a qual, por sua vez, se constitui em vários registos de língua, contrariando a ideia de que a poesia seja detentora de uma linguagem própria e de uma voz “original”. Como refere Gusmão: “(…) eu penso que é esse fato de as palavras serem também as dos outros que justamente nos permite a individuação” (Silva/ Oliveira 2003: 301). Na verdade, a poesia gusmaniana, ao importar a arte e a escrita de outros, estabelece uma relação dialógica com as artes e os artistas, estabelecendo assim uma “multivocalidade discursiva, poética e social” (Gusmão 2014:186), uma vez que, à imagem de alguns poetas contemporâneos, a linguagem pode: “integrar elementos (…) da conversa comum (…) usar formas da coloquialidade, do aforístico, e da ordem do provérbio” (Silva/ Oliveira 2003: 297). Assim sendo, Gusmão afirma a singularidade da sua escrita através daquilo que ele próprio designa por coralidade (Gusmão 2014: 186). Tendo sido acusado de criar uma poesia difícil, o Poeta defende-se, dizendo que esta forma literária exige um leitor ativo, um leitor que leia devagar e que disponha de tempo, por forma a apropriar-se do poema (Silva/ Oliveira 2003: 301). Esta conceção de leitor evoca de imediato o poema de Herberto Helder, intitulado “Para o leitor ler de/vagar”(Helder 2009: 128). Por conseguinte, Gusmão parte à demanda de um leitor que repouse na lentidão da leitura, como única forma de fruir e de apr(e)ender a sua poesia. No tempo da velocidade e da “falta de tempo”, já que o tempo se mede em 1

Mantém-se a grafia do Português do Brasil, por se reproduzirem elementos de uma entrevista dada à revista Scripta, editada pela Universidade Federal de Minas Gerais. 2 Expressão utilizada por Manuel Gusmão, em entrevista concedida a Rogério Barbosa da Silva e Silvana Maria Pessôa de Oliveira.

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termos de produtividade, o autor clama o ócio enquanto poder liberatório, isto é, como elemento de contrapoder à sociedade regulada pelo capitalismo avançado. Com efeito, só assim poderá o leitor chegar à “compreensão ativa”, já que não há outra, como refere Gusmão em entrevista a Marleide Anchieta de Lima (Lima 2010:s/p). Após esta breve caracterização da poesia gusmaniana, elejo, como corpus do meu trabalho, poemas que figuram em Teatros do Tempo, bem como em Migrações do Fogo e que, obviamente, remetem para o universo da sétima arte.3 Embora estes poemas sejam povoados por múltiplos vocábulos que se inserem no campo semântico do cinema, “incorporando os suportes artísticos da linguagem cinematográfica aos recursos estilísticos da poesia” (Lima, 2015:68), a minha abordagem do cinema na poesia de Gusmão privilegia a migração de nomes, planos ou sequências de filmes e será em torno deste movimento que a minha análise se centrará, estabelecendo-se, assim, uma relação intermedial entre poesia e cinema. Comecemos por Teatros do Tempo e pela migração de títulos de filmes. Em “Poema do fim”, o Poeta cita o nome do filme de Vicente Minnelli Deus sabe quanto amei de 1958, articulando-o na narrativa poemática. Desta forma, o título do filme de Minnelli apresenta-se como montagem dentro do poema, como se poderá verificar:

Era uma cena com as letras as figuras as imagens que são a memória inextinguível de corpos há muito extintos; uma cena com copos e cinzeiros brilhando como as cores do deus sabe quanto amei; (…)

Porém, ao ler o poema mais atentamente, constata-se que o que se torna relevante para o sujeito poético são “as cores do deus sabe quanto amei”, enquanto elemento de comparação

com

o

enunciado

precedente

e

não

o

título

do

filme.

É, aliás, o elemento cromático que visita a memória do Poeta e que se torna preponderante para a construção do verso. Como refere Marleide Anchieta de Lima: “Entre os elementos cinematográficos, Gusmão valoriza a iluminação como matériaprima fílmica indispensável para a materialização imagética (…). Ela ressalta a cor, a sensibilidade, a profundidade (…)” (Lima 2012: 193). 4 3

Quer Teatros do Tempo, quer Migrações do Fogo encontram-se inseridos na coletânea Contra todas as evidências – Poemas Reunidos II (2014), Lisboa, Editorial Avante. 4 Negrito meu.

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Num outro poema intitulado “Via Láctea”, o Poeta cita o título do filme Veludo Azul de David Lynch, criando porém um efeito diferente do nome do filme mencionado antes. Desta feita, a expressão Veludo Azul traduz-se numa imagem poética, remetendo o itálico para o filme, apesar da ausência desta marca gráfica não impedir a “compreensão ativa” do poema. Passo a citar um excerto, onde o título do filme Veludo Azul de David Lynch se insere na narrativa poemática:

O animal amante e a coisa amada trocam de lugar E confundem a voz e os dedos, os sucos e os nomes que se enleiam, deslizam e afundam na seda acesa ou no veludo azul em que a noite sobe até à flor do dia.

Não sendo meu propósito, fazer a análise do poema, mas apenas ver a(s) presença(s) do cinema na poesia gusmaniana, direi que o cinema nos visita, por duas vezes, neste poema, uma vez que o título “Via Láctea” evoca um filme de Luis Buñuel, de 1969. De outra forma, também em Teatros do Tempo, no poema “III A terceira manhã”, o sujeito poético, num processo semelhante à montagem cinematográfica, inclui na narrativa, aquilo que corresponde ao segmento de falas proferidas pelo protagonista da sequência final do filme Picpocket (1958) de Robert Bresson, e cito “Ah Jeanne, quel drôle de chemin/ m’a fallu prendre pour arriver jusqu’à toi”. Sabendo-se que Gusmão cita de cor (Cf.Valente 2011: 20), recorrendo ao arquivo da memória do “cinema que todos temos metido na cabeça”, verifica-se que o efeito da montagem se traduz num processo intertextual, já que o sujeito poético parte do hipotexto fílmico para reescrevêlo no texto poético. 5 A partir de agora, passo a analisar excertos de filmes que constroem a poiesis gusmaniana e que não se limitam a pequenos fragmentos, como em Teatros do Tempo, mas que são fulcrais para a criação do corpo poemático. Este é o caso de “Imagens congeladas” e “O corpo músico” do livro Migrações do Fogo, poemas sobre os quais refletirei, pelo facto de terem sido menos estudados.

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O emprego do verbo ‘reescrever’ vem na linha da definição de intertextualidade de Nathalie PiégayGros, para quem “l’intertextualité est donc le mouvement par lequel un texte récrit un autre texte (…)” (Piégay-Gros, 1996 :7).

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Comecemos por “Imagens congeladas”, poema em que o Autor dialoga com o cinema e também com a pintura. O filme que cita de cor e que faz parte da tessitura do poema é Rosetta (1999) dos irmãos Dardenne, de nacionalidade belga e os quadros que descreve são Thérèse e Nu au repôs de Balthus. Quedemo-nos pelo cinema, já que as referências intermediais com a pintura excedem o escopo deste trabalho. Assim, observemos a transcrição de uma sequência do filme, que coincide com o início do poema: (…) Entra na sala escura e sua entrada projecta de novo a voz daquela jovem que se volta para a parede pobre e diz: Eu tenho um trabalho. Eu tenho um amigo. Eu estou a adormecer numa cama da casa do meu amigo. Eu sou normal. – Nas traseiras do império ela é normal.

Esta estrofe remete para a entrada do Poeta na sala escura, imagem do acervo de memórias que o (re)visitam, rememorando a sala de cinema e o momento da projeção do filme Rosetta. A referência ao filme encontra-se em itálico, sendo que o sujeito poético, através da transposição de uma sequência, cita livremente o monólogo da jovem Rosetta, que sobrevive nas “traseiras do império”, isto é, no submundo da pobreza abjeta do coração da Europa. O filme conta a história de uma jovem de 17 anos, cujo sonho reside em arranjar emprego, de forma a ter uma vida normal, pois só assim conseguirá libertar-se da pobreza. Um dia, Rosetta vai ter com um amigo, acabando por pernoitar em casa dele. É neste momento que Rosetta profere o monólogo que se assemelha ao que o sujeito poético recorda do filme, mas que não o reproduz ipsis verbis. Enquanto que no filme ouvimos ‘’Tu t’appeles Roseta. Je m’appele Rosetta. Tu as trouvé un travail. J’ai trouvé un travail. Tu as une vie normale. J’ai une vie normale ’’ (Rosetta - Luc & Jean Pierre Dardenne (1999) 1 - YouTube), no poema, lemos:” Eu tenho um trabalho. Eu tenho um amigo.(…)Eu sou normal”, o que comprova a citação de cor do arquivo da memória do poeta, a partir do medium que lhe serve de ponto de partida, modificando-o no hipertexto. Por outro lado, ao atentarmos nos versos “a voz daquela jovem que se volta para a parede pobre/ e “Eu/ estou a adormecer numa cama da casa do meu amigo.”, verificamos que o autor textual utiliza as palavras enquanto mostragem das imagens que o cinema nos dá a ver. Na verdade, a conversão das imagens de um mesmo plano

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em linguagem verbal traduz o equivalente ao conceito ecfrástico de James Heffernan, isto é, “the verbal representation of a visual representation” (Heffernan 2015:38), o que de certo modo contraria o que o poeta confessa em entrevista a Luis Miguel Queirós, quando refere: “Há uma montagem de cenas, que por vezes vêm do cinema, mas que não são ecfrásticas no sentido de descreverem um plano cinematográfico”. (Queirós 2008:s/p). A meu ver, o Poeta não descreve um plano cinematográfico, mas expressa por palavras o que o cinema mostra. Assim sendo, apesar da natureza fluida do conceito de écfrase e da escassez de estudos teóricos que analisem as relações intermediais entre os efeitos do cinema sobre a poesia, considero que o sujeito poético, ao descrever verbalmente a imagem em movimento do cinema, procede a uma relação ecfrástica com o medium de partida.6 Por outro lado, também se poderia dizer que se assiste à transmutação da linguagem cinematográfica para a linguagem do poema, permitindo assim a visualização dos fragmentos fílmicos por parte do leitor. Para além do referido, o filme Rosetta permite também ao sujeito poético, um comentário reflexivo acerca das condições de vida da personagem principal e metonimicamente de todos aqueles que são relegados para as margens do império, como se poderá verificar na segunda estrofe: A noite da humilhação vulgar: a hora do lobo que lhe devora a infância comum e perdida; a horda dos fantasmas que esperam o seu sonho sem abrigo descem sobre ela; despenham-se sobre ela; fecham-na no seu casulo sem paz e sem futuro, cobrem o seu corpo & as suas almas & a sua vida pobre com a lama fria, com a memória fria, com o manto putrefacto da europa.

Na realidade, o vocábulo “noite” ecoa o mundo das trevas, barrando o conhecimento ao ser humano e, como tal, apresenta-se como a “humilhação vulgar” a que estão votados todos aqueles que a sociedade rejeita. Por outro lado, “a hora do lobo/ que (…) devora a infância comum” a todo o ser humano, no caso de Rosetta surge como “perdida”, logo destruída, uma vez que a personagem a quem a meninice foi roubada se vê obrigada, para sobreviver, a cumprir papéis, normalmente

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É o próprio James Heffernan que em “Ekpphrasis: Theory” alerta para a fluidez do conceito de écfrase ao afirmar: “since digital technology and cinema have animated visual art itself, the verbal representation of visual representation has become more fluid than ever (Heffernan 2015: 35).

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desempenhados por adultos. A título de exemplo e remetendo para o filme, Rosetta é a menina-mãe, a quem o “manto putrefacto da Europa” ‘incute’ o dever de cuidar da sua progenitora. A este propósito, o sujeito poético evoca uma relação de intertextualidade com o romance Esteiros de Soeiro Pereira Gomes, através da sua dedicatória: “Para os filhos dos homens que nunca foram meninos, escrevi este livro” (Gomes, 1992). Por outro lado, a “noite” traz com ela a “ horda dos fantasmas que esperam o seu sonho sem abrigo/ descem sobre ela; despenham-se sobre ela;/ fecham-na no seu casulo sem paz e sem futuro, (…)”, o que nos mostra que o sonho da personagem, a vida normal , permanecerá por realizar, uma vez que Rosetta habita num casulo, ou, num asilo, de onde não é possível escapar. Daí que para esta menina-mulher, a ‘vida’ se transforme no terror e na ausência de esperança. Assim, a jovem heroína vive num labirinto, qual prisão, sem augúrio de luz, tal como na noite em que os lobos atacam.7 Também, se excluirmos o cotexto poético e a relação intermedial do filme com o poema em análise, e se recorrermos ao autor empírico, bem como ao contexto da escrita do poema, podemos aventar a hipótese de o sintagma “a hora do lobo” aludir ao filme homónimo de Ingmar Bergman de 1966, em que a personagem Johan Borg diz: “Os antigos a chamavam de ‘a hora do lobo’. É a hora em que a maioria das pessoas morrem… e a maioria nasce. Nesta hora, os pesadelos nos invadem”(45’51”).8 De certa forma, esta “hora do lobo” da mitologia nórdica refere-se à hora em que os pesadelos/ fantasmas visitam o ser humano, significando simultaneamente o tempo cronológico da morte e da vida, o que de certa forma remete para o poema e para a vida ‘morta’ que Rosetta metaforiza, precisando de nascer de novo, mesmo que o futuro lhe reserve uma “promesssa sem garantias”.9 Ignorando se o autor empírico terá ou não visionado o filme do cineasta sueco, o que aliás não é relevante, a verdade é que a expressão “a hora do lobo”, inserida numa reflexão do sujeito poético sobre a vida dos excluídos da Europa, a partir de um filme, insere, voluntária ou involuntariamente, outro filme dentro do poema. 7

O emprego de labirinto significa, neste contexto, uma construção de plano tão complicado que dele ninguém consegue sair, uma vez lá entrado. Esta aceção de labirinto está relacionada com o mito do Minotauro.(Cf. Ferreira 2008: 10). 8 Apresenta-se a legendagem na variante do Português do Brasil, tal como aparece no filme. 9

À questão colocada por Rosa Mesquita: “As nossas causas continuarão a afirmar-se através da ‘promessa sem garantias’? Manuel Gusmão responde: “As ‘nossas causas’ continuarão a afirmar-se pela ‘promessa sem garantias’, ou seja, pela promessa sem Messias, acto de palavra rente aos limites e ao aberto do humano, pelas condições e pelo tonus de modulação da promessa e pelo que fazem as mãos que prometem” (Mesquita 2007:s/p).

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Concluir-se-á o estudo intermedial da parte do poema com o cinema, analisando a terceira estrofe de “Imagens congeladas”: A rapariga denunciou de seu amigo o crime contra a propriedade e em paga de tal virtude lhe tomou o posto. por céus e terras e ventos a persegue mas por ajudá-la o Amadis ferido e feroz. – Ele não é normal. Ela, menina e moça, deita-se na colcha que um juncal junto ao rio tem pintado. Abrira já o gás e espera agora o perfume das suas flores dulcíssimas. ela é normal e as nuvens não passam no céu do filme. nem ela, nem o homem sabem quem são os bárbaros.

Alguns versos desta estrofe estabelecem uma relação ecfrástica com o filme. Embora o conceito de écfrase, neste caso, não se restrinja à definição proposta por Heffernan, apesar de não a excluir, enquadra-se preferencialmente na categoria de écfrase proposta por Laura M. Sager Eidt, “depictive ekphrasis”, acerca da qual, como refere a estudiosa: “(…)images are discussed, described , or reflected on more extensively in the text (…) (Eidt 2008: 47). Por exemplo, os versos “A rapariga denunciou de seu amigo o crime contra/ a propriedade e em paga de tal virtude lhe tomou o posto”, estabelecem uma relação ecfrástica com o filme, no sentido proposto por Heffernan, já que, ao partir da narrativa fílmica, traduzem a representação de imagens visuais por palavras, mas em simultâneo, merecem uma reflexão por parte do sujeito poético, visto que o crime perpetrado contra a propriedade transforma-se, segundo o autor textual, em “virtude”, revelando, assim, a visão marxista do autor empírico contra a propriedade privada. Por outro lado, a denúncia, sinónimo de delação, oferece-se como a alternativa possível para a obtenção de emprego, o que também pode ser lido como “virtude” no sistema capitalista que vigora nas sociedades ocidentais. Aliás, é através da denúncia que Rosetta consegue um emprego, fator conducente à concretização do sonho de “ter uma vida normal”. Como refere Rosa Mesquita: “Mas a lei da sobrevivência elevou-se acima do protocolo da amizade, tendo acabado por denunciar o "crime" do amigo, atitude que lhe trouxe, na prática, resultados «positivos»- a conquista do "posto" do outro” (Mesquita 2007: 71) . Na realidade, o sujeito poético mostra-nos que a denúncia e a usurpação do posto de trabalho do outro funcionam como moeda corrente nas sociedades onde o lucro impera. Por fim, os versos “ela é normal (…) /nem ela, nem o homem sabem quem são os bárbaros” reiteram a simpatia do sujeito poético para com a jovem Rosetta. Ao mesmo

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tempo, os “crimes” bárbaros de denúncia e de usurpação, para além do que explanei supra, são levados a cabo pelos mais oprimidos dos oprimidos, isto é, por aqueles a quem a alienação impede a consciência dos seus actos e não lhes permite ver a barbárie do capitalismo sem rosto. Assim, não é por acaso que o filme dos irmãos Dardenne tenha ficado gravado na memória do poeta Manuel Gusmão como um filme político, já que a diegese fímica decorre do clima de desemprego e de pobreza crescente na Europa Ocidental de 1999. Estranho é que esta situação tenha permanecido ao fim de dezassete anos e que se mantenha “congelada”, dada a inoperância dos decisores do poder. Apesar do poema se intitular “Imagens Congeladas”, tendo como ponto de partida as imagens do cinema e da pintura, e tendo eu apenas analisado a relação do poema com o cinema, verifica-se que no poema gusmaniano, tal como no filme, “a imagem se congela em Rosetta”, como refere Marleide Ancieta de Lima (2012:199). No entanto, ao encararmos Rosetta enquanto metonímia dos espoliados da sociedade, para quem a passagem dos anos os cristaliza na miséria, atrevo-me a afirmar que eles figuram como as “imagens congeladas” de um mundo avariado. Para concluir este trabalho, debruçar-me-ei sobre o poema “O Corpo Músico”, na sua relação de intermedialidade com o filme A Crónica de Anna Magdalena Bach, realizado por Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, em 1968. Trata-se de um poema que revisita o filme, reescrevendo-o. O filme é constituído principalmente por atuações musicais da música de Bach e é narrado segundo a perspetiva da sua segunda mulher, Anna Magdalena. Aliás, a narração é o elo que une os longos planos-sequência, que nos dão a ver e a ouvir as diferentes composições musicais elaboradas por Bach. A despeito do carácter biográfico e narrativo, o filme não se confina a um único género, visto que utiliza técnicas do documentário, tal como planos longos, durante os quais a câmara se detém sobre as partituras, cartas e outros manuscritos da vida de Bach. Por conseguinte, podemos afirmar que não estamos perante um filme meramente biográfico. Para além do referido, saliento a importância da música enquanto elemento intrínseco à diegese fílmica. Partindo da relação intermedial com o filme, o poeta tece considerações sobre a imagem fílmica , dialogando com o leitor, ao mesmo tempo que alude à arte da música. Ao contrário de “Imagens Congeladas”, o sujeito poético não utiliza o itálico

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para citar o filme. O filme emerge do arquivo da memória, permitindo ao poeta recriálo, a partir das imagens que dele reteve. Vejamos este trecho: Do outro lado do dia e do mar da luz, ela chegou e já ali está; suspende-se no limiar em arco (…) e guarda-lhe a sombra, enquanto as mãos dele escrevem no livro das horas a ela roubadas o som futuro do cravo bem temperado (…)

Como podemos observar, verifica-se a omnipresença de Anna Magdalena na vida de Johann Sebastian e a sua importância na criação da música dele.10 Os versos: “e guardalhe a sombra, enquanto as mãos/dele escrevem no livro das horas a ela roubadas/ o som futuro do cravo bem temperado (…)” sugerem a presença de alguém que protege o músico e compositor, para que

ele consiga criar a sua obra-prima Das

Wohltemperierte Klavier, nome original de O cravo bem temperado. Convém salientar que esta obra, posteriormente estudada por Mozart e Beethoven, não se deve apenas ao génio de Bach, mas também à sua mulher, a quem o músico barroco roubou muitas horas, para compor como diz o Poeta “o som futuro do cravo bem temperado”. A despeito da citação por via da memória, o sujeito poético alude à presença discreta de Anna Magdalena, através da relação ecfrástica que estabelece com o filme. Na verdade, nos versos seguintes, a linguagem do poema reproduz o plano do filme que se inicia aos 41’ 12”: (…) Está a chegar. sempre. Está ali no limiar, leve e oblíqua contra a ombreira da porta. (…)

Como se pode observar, Anna Magadalena representa, para o sujeito poético, uma ausência presente, mas que se materializa a todo o instante, como mostra o fragmento poemático “Está a chegar. sempre (…)”. Se remetermos para o filme, podemos ver que a personagem feminina não se queda pela “ombreira da porta”, mas avança para junto do marido como nos mostra o plano seguinte, que surge aos 41’ 47” do filme.

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Embora o sujeito poético não utilize os nomes dos protagonistas do filme, empregando em vez deles, os referentes “ele” e “ela”, optei por utilizar os nomes próprios do hipotexto, ou seja, Anna Magdalena e Johann Sebastian.

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A estrofe continua com os seguintes versos: Ela é a doce sombra que equilibra a claridade e o mundo. Entre ele e a morte é ela quem está. Ele e ela são corpos músicos (…)

o que permite ao sujeito poético fazer uma reflexão interpretativa da figura feminina, a partir das imagens do filme. Laura M. Sager Eidt chama “interpretive ekphrasis” a este tipo de exercício (Eidt 2008: 50). Na verdade, aos olhos do poeta, Anna Magdalena personifica a serenidade e a candura, “a doce sombra”, mantendo o equilíbrio entre a luz, isto é, o conhecimento e o mundo, naquilo que ele tem de adverso para o exercício da criação. Assim, ela é vital para a criatividade do marido, porque, apesar de ser “a doce sombra”, mas também por o ser, a música nasce. Donde sejam ambos “corpos músicos” e, por conseguinte, é a figura feminina que sustém a morte, para que a criação nasça. Como facilmente se depreende, verificamos, no poema, uma homenagem à mulher que permaneceu na sombra, dando visibilidade ao marido, mas que também foi a sombra protetora, logo cuidadora, para que a obra do cônjuge florescesse, sendo que o mesmo nos é dado a ver no filme. Talvez seja por esta razão que o sujeito poético presta homenagem a esta figura feminina do século XVIII, elevando -a à estatura de Johann Sebastian, ao escrever o verso “Ele e ela são corpos músicos”. Ainda dentro desta estrofe, a relação dialógica com o filme fica suspensa, quando o poeta introduz estes versos: (…) Ambos sabem que estão num filme; que são uma imagem de cinema. Uma imagem inexplicável guardada no cérebro de alguém (…)

Aqui o sujeito poético afasta-se do filme de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, para criar no leitor um efeito de distanciamento, à maneira brechtiana, de outro “filme”, o ‘filme’11 que nos está a contar. Assim, as personagens Johann Sebastian e Anna Magdalena são meramente uma imagem do cinema que o poeta gravou na memória, “no cérebro de alguém”. Daí que se possa concluir que a ausência de itálico nos mostra “o domínio que o Poeta exerce sobre as memórias daquele filme”, como refere Rosa Mesquita (2007: 109). 11

O vocábulo ‘filme’ é em aqui entendido, de acordo com Rosa Maria Martelo (2012: 206), “(…)num âmbito mais lato e figurado, como sinónimo de «narrativa»”(…).

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Para finalizar, gostaria de recordar a música enquanto cerne do filme e dizer que o poeta estabelece indiretamente uma relação intermedial com a mesma, através do medium cinematográfico. Para tal, regresso ao poema e à figura de Anna Magdalena, que passo a citar: Aí, perto dessa janela ofuscante junto à fonte do dia lá fora; aí onde ela está sentada - silhueta em contraluz, figura de sombra recortada; aí onde ela está e o cravo diz as suas mãos: Aí está o centro da música.

Estes versos recordam o plano fílmico que se inicia aos 6’13”, estabelecendo o poeta novamente uma relação ecfrástica com o filme de Straub e Huillet, mostrando-nos Anna Magadalena sentada junto a uma janela, a tocar cravo. Os versos “ aí onde ela está e o cravo diz as suas mãos: Aí / está o centro da música” indicam que “o centro da música” se situa nas mãos da cravista feminina. Metonimicamente, a música nasce das mãos, independentemente dos instrumentos. Por outro lado, apesar de o sujeito poético aludir à personagem que permanece na sombra do compositor, como nos versos “silhueta em contraluz,/ figura de sombra recortada;/”, o mesmo sujeito poético elegea como a sua musa. Talvez seja por esta razão que o poema se intitule “O corpo músico”. Ao longo do presente trabalho, coube-me analisar a presença do cinema em Teatros do Tempo e em Migrações do Fogo. Se, na primeira obra, me limitei a comentar a importação de fragmentos poéticos, como títulos de filmes ou a citação das palavras da sequência final do filme de Bresson, na segunda, escolhi, como objeto de estudo, os poemas “Imagens Congeladas” e “O Corpo Músico”. A minha opção por “Imagens Congeladas” deveu-se ao facto de o poema mostrar como o filme Rosetta se articulava na narrativa poética do autor, ao mesmo tempo que exibia uma reflexão sobre o mesmo. Quanto a “O Corpo Músico”, o poema dava-me a possibilidade de ver como o Poeta estabelecia um diálogo com A Crónica de Anna Magdalena Bach, através de uma narrativa não linear, pontuada por fragmentos descontínuos que nela se entreteciam.

12 Bibliografia Ferreira, José R. (2008), Labirinto e Minotauro Mito de Ontem e de Hoje, Coimbra, José Ribeiro Ferreira. Gomes, Soeiro P. (1992), Esteiros, Lisboa, Caminho [1941]. Gusmão, Manuel (2014), “Teatros do Tempo”, Contra todas as evidências – Poemas Reunidos II, Lisboa, Editorial Avante, 15-114. - - (2014), “Migrações do fogo”, Contra todas as evidências – Poemas Reunidos II, Lisboa, Editorial Avante, 191-264. Heffernan, James A.H. (2015), “Ekphrasis: Theory”, in Gabriele Rippl (ed.), Handbook of Intermediality, Berlin/Boston, Walter de Gruyter GmbH, 35-49. Heidt, Laura M.S. (2008), Writing and Filming the Painting: Ekphrasis in Literature and Film, AmsterdamNew York, Rodopi. Helder, Herberto (2009), Ofício cantante, Poesia completa, Lisboa, Assírio & Alvim. Lima, Marleide Anchieta de (2010), “Entrevista a Manuel Gusmão”, Abril – Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana, v. 3, nº 4, NEPA/UFF, 147-154. - - (2012), “O teclado acende o écran: A Poesia Cinematográfica de Manuel Gusmão”, Abril - Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 5, n° 9, Novembro de 2012, 187-204. - - (2015), “COMO-VER: UM CINEMA DE PALAVRAS NA POESIA DE MANUEL GUSMÃO”, in “ boletim de pesquisa nelic”, Florianópolis”, v. 15, n. 24,p. 62-76, 2015 Martelo, Rosa Maria (2012), O Cinema da Poesia, Lisboa, Documenta. Mesquita, Rosa M. (2007a), O Cinema do Tempo em Migrações do Fogo, de Manuel Gusmão, Dissertação de Mestrado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, Porto, Faculdade de Letras da UP. - - (2007 b), “Manuel Gusmão entrevistado por Rosa Maria Mesquita”, Piégay-Gros, Natalie (1996), Introduction à l'intertextualité, Paris, Dunod. Queirós, Luis M. (2008), “Temos todos um cinema metido na cabeça”, Entrevista a Manuel Gusmão, Silva, Rogério B./Oliveira, Silvana M.P. (2003), “Entrevista- Manuel Gusmão”, in Scripta, Belo Horizonte, v. 6, n. 12, 294-306. Valente, Francisco (2011), “Poetas a quem o cinema ensinou a ver”, in Ípsilon, 28 de janeiro de 2011, 1820. Filmografia A hora do lobo (1966). Real. Ingmar Bergman Blue Velvet (1986). Real. David Lynch Chronik der Anna Magdalena Bach (1968). Real. Jean-Marie Straub e Danièle Huillet La Voie Lactée (1969). Real. Luis Buñuel Pickpocket (1958). Real. Robert Bresson Rosetta (1999). Real. Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne Some Came running (1958), trad. portuguesa Deus sabe quanto amei. Real. Vicente Minnelli

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