A Presença do Espírito

June 1, 2017 | Autor: Carlos Vicente | Categoria: Administration, Liderança
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A Presença do Espírito Carlos Vicente da Silva Filho

Preliminares

Espiritualidade e liderança são conceitos tão amplos que não se atêm a determinada especialidade. Também não são conceitos permutáveis, ainda que possam permear-se em toda sua extensão. Espiritualidade, na percepção holística e sistêmica implica em consciência transcendente e em sua relação com energias sutis, não se confundindo, assim, com Religiosidade, geralmente associada a uma prática eivada de valores éticos, prescrições e exortações. Para o senso comum, o termo liderança evoca o que se costuma expressar com “espírito de chefia, autoridade”, mas essas conotações se mostram limitadas no campo dos acontecimentos deste novo século. Este artigo encarna a espiritualidade como aplicação prática, i.e., pretende-se ilustrar que para além de meditação e contemplação, espiritualidade tem um sentido de missão transformadora, e que liderança e espiritualidade quando conjugadas em determinado campo de positividade, podem resultar na formação de colaboradores altamente produtivos. Em nosso trabalho cotidiano lidamos com estratégias, planejamento e projetos. Lidando com a complexidade sistêmica da gestão urbana, deparamo-nos com variadas questões técnicas, mas percebemos que a maior dificuldade se encontra na integração sistêmica das equipes, na gestão do conhecimento, do capital intelectual, e na colaboração e participação social. Cremos, portanto, que é no âmbito do coaching corporativo e de liderança nas estruturas organizacionais que se fazem sentir as profundas necessidades de transformação e mudança. Aí se configuram as múltiplas crises por que passam as sociedades contemporâneas, e os profundos impactos que têm sido causados no ambiente global e nas comunidades de uma forma geral.

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A complexidade dessas questões desafia organizações, governantes e cada um de nós a buscar soluções inovadoras, a começar por uma reflexão crítica sobre certas práticas de gestão e sua ineficácia para a promoção do bem estar social e individual, e o equilíbrio das relações em escala planetária. Vivemos um momento dramático de nosso processo civilizatório, onde governos nacionais e corporações internacionais necessitam de respostas cada vez mais rápidas, frente a um cenário global de aceleradas transformações políticas, econômicas e ambientais. Em tal ambiente de incertezas torna-se imperativo o realinhamento contínuo do planejamento, o que vale recomendar a adaptação de objetivos e metas às mudanças, de modo a ampliar a resiliência das empresas, das cidades e da população. Esse redirecionamento das estratégias organizacionais só é viável, entretanto, quando se passa a orientar o foco do planejamento não mais apenas em realizações objetivas e concretas, mas primordialmente no estabelecimento de princípios e valores que giram em torno das pessoas e do ambiente de vulnerabilidades que caracteriza nosso tempo. Considerar irrelevante, em função de sua intangibilidade, a formação deste capital espiritual significa ignorar a crise que se abate de forma global, sobre as nações, corporações e sobre cada um de nós. Precisamos todos, individual e coletivamente, alinhar nossas ações com princípios e valores que permitam essa abertura para o si mesmo e para a dimensão holística do trabalho.

1. A Alienação de Si Mesmo

Meio Ambiente pode ser descrito como o espaço de relação entre dois entes: Eu e não-eu. Si mesmo e o outro! Neste cenário, o desconhecido, o diferente, pode causar medo e espanto. O medo é a raiz de todos os males. A carência é fruto do medo. A indiferença também. O vício em trabalho e a percepção do mundo como irrestrita causalidade, no fundo, também é medo, assim como o comportamento competitivo, agressivo e consumista. Na atualidade as ameaças de destruição se mostram globais e aterradoras, expondo com todas as luzes, probabilidades antes impensáveis de extinção da raça 2

humana. Somos bombardeados a cada dia com catástrofes, atentados terroristas e possibilidades concretas do uso indiscriminado de armas de destruição em massa. Vemos com frequência crescente, a ocorrência de cataclismos naturais, e reconhecemos junto a tudo isso, a degradação progressiva do meio ambiente global e da própria condição humana. Nesse estado de coisas, o medo se torna o pão de cada dia! Movidos pelo medo, partimos numa corrida vertiginosa em busca de riqueza, poder e controle. Produzimos, por conseguinte, um abismo cada vez maior entre ricos e pobres, perpetuando ciclos cada vez mais violentos, inclusive através de “coleiras eletrônicas”, como descreveu Deleuze. Criminosos e traficantes se expandem territorialmente, enquanto as forças militares asseguram os diversos discursos da lei, da justiça e da ordem social, ditados pelas forças dominantes. O mundo corporativo parece, por seu turno, seduzido pelos estrategistas militares tais como Sun Tzu, Clausewitz, e outros mestres da arte da guerra, guerra total declarada por vezes, também através de mecanismos sutis. De onde surge, ao mesmo tempo e na maioria de nós, este formidável sonho de poder, comando e controle? Como são formadas estas organizações? Como são preparados os cidadãos que as compõem ou são subjugados por elas? Que terríveis pesadelos as fazem imaginar tão fantásticos artefatos de destruição e tecnologias de submissão? Como se plasmam e se encarnam, tantos tiranos, usurpadores e ditadores cruéis, com seu séquito de zumbis? Tentando responder a tais questões, lembramos uma afirmação de Carl G. Jung: “O sonho é a realidade permanente e mais profunda do inconsciente”. Sonhamos o tempo todo, mesmo quando acordados. Entretanto, quando acordados, nossa consciência volta-se para o mundo exterior, para o mundo das coisas, para a dimensão de uma realidade concreta, mas ainda assim ilusória. Geralmente, ao acordar, imediatamente “pulamos da cama” e assumimos nossa identidade familiar, social ou profissional, com seus padrões posturais e respiratórios cristalizados. Desse modo, ignoramos o trabalho e as mensagens de nosso eu mais profundo e nos tornamos ausentes de nós mesmos. Possuídos por tais identidades heterorreguladas, alienados de nossa essência e de nosso poder interior, passamos a perceber apenas aquilo que interessa de forma 3

imediata e reativa, apenas o que corresponde aos desejos e ambições desta nossa identidade primária, cegamente obediente aos ditames de uma sociedade coercitiva e limitante em que nos deixamos submeter. Aqui, é preciso destacar que quanto mais heterorregulados, mais buscaremos regular o outro, em um exercício de repetição mecânica ditado pelo adestramento de nossos corpos e mentes. Mergulhados numa rede de “causação circular cumulativa e negativa”, seguiremos reproduzindo os mecanismos de poder, sem nos percebermos e sem percebermos o outro. Diz o mandamento Cristão: “Amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. Pouco se sabe, entretanto, sobre isso. A bondade de fazer por outros o que gostaríamos que fizessem por nós, pode ser opressora, na medida em que vemos nossos desejos e anseios como universais, e nos tornamos cegos e surdos às reais necessidades do outro, próximo ou distante. E quanto a “amar a si mesmo”? Como amar a si próprio quando nos reconhecemos como parte de uma coletividade insensível e cruel com os animais, com a natureza e consigo própria? Ausentamo-nos de nossa essência comum e repetimos os mesmos atos e gestos estereotipados e esquizofrênicos, de violência e dominação. Partindo do conceito de “complexos autônomos” de Jung, poderíamos conceber a existência em nosso interior de entidades que em certo sentido possuem vida própria, i.e., manifestações arquetípicas, estruturadas em símbolos que promanam do mais profundo inconsciente da humanidade e que irrompem nas mais variadas culturas, com roupagens diferentes, mas representando, essencialmente, a mesma energia: a criança, o guerreiro, a mãe, o sábio, o mago, o diabo, etc. Segundo essa abordagem, para o desenvolvimento do si mesmo, haveríamos de coordenar inteligentemente o timing e pertinência destas manifestações, o que pressupõe saber que somos uma multiplicidade. Jung alertava que ser possuído por tais entidades, ou dizendo de outra forma, identificar-se completamente com qualquer delas, significaria uma catástrofe psíquica de proporção gigantesca. Seguindo essa tese, podemos imaginar que estamos todos hipnotizados pelo medo, atuando no palco global como personagens destrutivos ou

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autodestrutivos. E a pergunta que surge é como dirigir com sabedoria esse espetáculo de cenários e personagens que nos habitam?

2. A Conquista do Si Mesmo

Como mestres da arte da autorregulação e como sujeitos da ação ética, somos impelidos a trilhar novos territórios, e a traduzir nossa experiência em um novo discurso do si mesmo. É o mapeamento de nossa trajetória no vasto território do conhecimento, que possibilita a crítica da própria subjetivação pelo poder, pela ideologia. Daí podem se irromper “linhas de fuga” para devires outros, porque somente o encontro com o inusitado pode arrancar o pensamento de sua inércia ou da repetição, conduzindo o indivíduo à potência infinita de transformação. Incessantemente, o mundo nos conta novas histórias, não necessariamente como um contínuo em progressão, mas como rupturas que desconstroem verdades universais e produzem singularidades. Como disse Foucault (1987), o discurso tem suas regras, que se inscrevem na gramática política de determinada época, com seus efeitos de poder sobre os corpos. Isso nos leva a questionar se seria possível vivenciar a liberdade criativa nos espaços construídos pelo poder, investidos de técnicas de sujeição. Enfim, se o processo de individuação, i.e., se a conquista do si mesmo está fortemente associada ao ato de pensar criativamente, este não se inscreve como uma mera representação ou reprodução. Nessa direção, vemos com Foucault (2004) a ética do cuidado de si como prática da liberdade e antídoto à sujeição. Liberdade que é da ordem dos experimentos, dos inventos criados pelos próprios sujeitos como artífices de seus destinos. É a conquista de si mesmo, para além da simples representação de um personagem caracterizado em atitudes, comportamentos e figurinos a que nos sujeitamos no curso de nossas vidas que se faz necessária ao processo de transformação. Em vez de reproduzir a diferença na repetição, a libertação das formas de sujeição impõe a ruptura com certo sistema de pensamento universalizador, e se volta para um exercício de constante inovação e invenção. 5

Há muito o teatro já intuía esse drama épico da libertação. A narrativa do novo tem que primeiro libertar-se de representações e processos que reproduzem formas controladoras e automatizadas, que embotam o processo de aprendizagem e a potência criadora do devir. Numa heroica atuação, a verdade de cada um tem que se transformar como resultado de uma práxis e de um ethos filosófico. Deste modo, compreende-se meditação e contemplação como presença de um espírito filosófico que subjetivamente nos informa a ilusão do mundo da representação, e liberta a nossa própria existência de nós mesmos, i.e., da prisão de nossa “subjetividade” que embora sendo social e historicamente construída, é vivida como uma substância natural e universal.

3. O Presente do Futuro

Se a ausência de si mesmo é a maior catástrofe que pode nos ocorrer, tornarse presente é nosso maior desafio. Otto Scharmer, em sua Teoria U, referindo-se a “presencing”, como uma combinação de presence e sensing, diz que é a partir desta “visão de nossa fonte mais profunda” que podemos “aprender com o futuro à medida que ele emerge”. Mais do que o resultado do que pensamos ter sido, somos também o que pensamos e o que afirmamos que seremos. A história que nos trouxe até aqui e agora pede, não uma simples reação ao que aconteceu, pede que lidemos com o potencial sempiterno de criação de novas realidades. A mais alta potencialidade do presente é a emergência de um futuro, magnânimo, com mente, coração e vontade aberta. Para tanto, vários exercícios para o desenvolvimento da atenção plena são primordiais. Já que vivemos em um mundo de relações onde a linguagem prepondera, vamos trazer a consciência para o ato de ouvir e falar. Você consegue ouvir sem prejulgar, sem concordar ou discordar apressadamente e já planejando o questionamento que irá fazer logo a seguir? Tente, pois só assim poderá ouvir em plenitude. Você consegue se colocar no lugar do outro e compreender de forma ampliada as razões de seu discurso? Tente, pois só o amor pode aumentar nossa inteligência.

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Você consegue se desapegar de suas identidades, de seus títulos, seus jargões profissionais e conversar de igual para igual com um analfabeto? Tente, pois só assim compreenderá o que é ser simplesmente humano. Seguindo estes princípios de mente, coração e vontade aberta poderemos

verdadeiramente ouvir o chamado à ação, conectado com os atores sociais que inspiram e aspiram uma intenção comum. É justamente este propósito comum de fazer diferença que nos moverá a um grupo. Na Teoria U, esse movimento inicial, denominado de coiniciar, pede o cossentir. Pede que se aprofunde, coletivamente, a observação do contexto com a agudeza e a acurácia necessárias para a percepção do potencial criativo do grupo e do momento histórico em que se insere. A partir desta percepção, surge o co-presencing. Ou seja, o grupo passa a sentir-se como uma equipe, funda-se uma rede de colaboração com liderança compartilhada, onde cada indivíduo tem importância e valor para a efetiva transformação da realidade e cocriação de um futuro emergente, prospectando modelos e explorando possibilidades concretas. Com

esta

equipe

de

alta

performance

colaborativa,

chega-se

ao

codesenvolvimento, onde veremos o despertar de um ecossistema de constante colaboração e inovação, alavancando protótipos e conectando iniciativas que se traduzem em transformações coletivas da realidade. Como disse o poeta, “Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só. Sonho que se sonha junto é realidade”1.

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John Lennon traduzido por Raul Seixas

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Referências Bibliográficas

CAMBRAY, Joseph.Sincronicidade: Natureza e psique num universo interconectado. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2009. CORRAL, Thais...[et all]. A liderança é Global: Cocriando um mundo mais humano e sustentável. São Paulo, SP: Editora Senac, 2010. DELEUZE, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. FOUCAULT, Michel. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987. JUNG, Carl.Gustav. Aion: Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1982. SCHARMER, Claus Otto. Teoria U: Como liderar pela percepção e realização do futuro emergente. Rio de Janeiro, RJ: Elsevier, 2010. SENGE, Peter...[et all]. Presença: Propósito humano e campo do futuro. São Paulo, SP: Cultrix, 2007.

Sobre mim Administrador, Gestor de Projetos e Master Coach ISOR®. Desde 2007 na Prefeitura de Salvador, coordena o planejamento da infraestrutura e do saneamento. Atua em conselhos, grupos e comissões, sempre com foco na sustentabilidade, na responsabilidade social. Em 1992 criou a HOLOSSÍNTESE, onde por quase quinze anos trabalhou atendendo pessoas, como consultor individual e terapeuta bioenergético. É também designer gráfico e projetista de arquitetura. E-mail: [email protected] Telefone: 71-9153-7537

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