A presença do real: do extremo à perturbação na experiência receptiva da cena contemporânea
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A PRESENÇA DO REAL: do extremo à perturbação na experiência receptiva da cena contemporânea The presence of the real: from extreme to disturbance in the receptive experience of contemporary performing arts
Alessandra Montagner Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
Resumo: Este artigo disserta sobre experiências receptivas de choque impulsionadas pela utilização do extremo nas produções da cena contemporânea. Analisa-se uma cena do espetáculo B. #4, do ciclo de tragédias Tragedia Endogonidia, da companhia teatral italiana Socìetas Raffaello Sanzio, a fim de ilustrar a perturbação e ambivalência que fundam novas possibilidades relacionais e pessoais pela experiência estética. Palavras-chave: Espectador. Real. Presença.
Abstract: This article disserts about receptive experiences of shock, triggered by the application of the extreme in contemporary performing arts productions. It analyses a scene from B. #4, from the tragedy cycle Tragedia Endogonidia, by Italian theatre company Socìetas Raffaello Sanzio. Its goal is to illustrate the disturbance and ambivalence that found new relational and personal possibilities through the aesthetic experience. Keywords: Spectator. Real. Presence.
João Pessoa, V. 5 N. 2 jul-dez/2014
Alessandra Montagner
No texto intitulado Extrémiser
disparada na busca por uma vida repleta
La Culture, Paul Ardenne1 (2006, p. 18)
de movimento, ação e emoção. Na
entrega-se à tarefa de dissertar sobre a
procura por realização, através do
noção
atravessamento de limites.
de
um
“comportamento
extremista”2. Tal conduta, segundo o
Sob luz da constatação de Ivan 3
autor, deriva da atração do sujeito e da
Illich , de que vivemos em uma
sociedade pelo extremo, um desejo do
sociedade anestesiada, que necessita de
indivíduo de ir além – ultrapassar
estímulos cada vez mais fortes para
limites,
intensamente,
sentir-se viva, Ardenne (2006) recorre
transgredir fronteiras – e, assim, alargar
ao pensamento de Michel Lacroix4 para
os confins de suas realizações e
embasar tal ideia. Segundo Lacroix, o
conquistas. Como consequência, tal
homem de hoje vive no “culto da
atração colabora para a formação da
emoção” (in ARDENNE, 2006, p. 22).
identidade do homem do nosso tempo.
Vive(mos) na era da exaltação da
Ardenne diagnostica o extremo como
experiência particular de um sujeito
sendo um dos sintomas da nossa
comprometido com a vivência de
sociedade, recorrente em vários âmbitos
intensidades exteriores a ele – além dos
das organizações sociais, culturais e
seus abordes, expectativas e alcance – e
pessoais.
de
que saciem os desejos íntimos de uma
nossos desejos e referenciais, o extremo
nova província declarada: a “república
é uma característica do nosso tempo, do
do eu” (ARDENNE, 2006, p. 30). Neste
nosso querer e do modo que queremos.
comprometimento individualista para
O extremo, enquanto sintoma, faz-se
com a consumação, o mais imediata
presente no discurso de Ardenne,
possível, de seus desejos, o homem
através
entendimento
encontra-se em um ciclo vicioso de
psicanalítico, pois tateia um indício do
“auto-realização” e “superação”. Na
inconsciente (coletivo) que causa uma
“era do extremismo democratizado,
problematização
sujeito
julga-se o sujeito com base na sua
contemporâneo. Sob tais considerações,
capacidade de elevar a sua vida real à
experienciar
Potencial
de
fomentador
um
no
o homem atual teria se colocado em 3 1
Professor de História, na Universidade de Amiens, França. É também crítico de arte e curador na área de arte contemporânea. 2 As passagens em língua estrangeira são traduções da autora deste artigo.
Filósofo e pensador austríaco, Illich trabalhou vastamente sobre a cultura moderna e suas implicações e manifestações em diversos aspectos da sociedade moderna. 4 Professor de Filosofia, mestre de conferências na Universidade de Évry e no IUFM, de Versalhes, e investigador no Centre Pierre Naville, França.
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A PRESENÇA DO REAL
altura do seu desejo extraordinário”
ou de outros). Nesse cenário, o sujeito
(ARDENNE, 2006, p. 26).
faz-se entregue à árdua tarefa de
Neste extremismo subjetivo, a
insatisfazer-se na busca pela eterna
valorização de emoções fortes, que
transgressão de limites, à procura da
provoquem
e
realização extrema; na maratona de
psíquicos, busca suprir as demandas do
superação de um limite para que outro
sujeito
forte
possa ser criado – e superado? Segundo
significação, hábeis de tatuar neste, na
Ardenne, existem duas saídas para tal
sua história e no seu corpo, uma vida
impasse: a morte, que tudo cessa
que se realiza na ação extrema, no
quando consome com o desejo, e o
choque e em experiências de risco –
espetáculo, que tais desejos podem
uma vida levada ao extremo. Vivências
saciar e louvar de um modo seguro e
que carregam consigo a capacidade de
distante. Nesta perspectiva, o espetáculo
chacoalhar o homem e acordá-lo da
(desportivo, artístico, circense, teatral)
automatização da experiência cotidiana,
oferece a tal sujeito a ilusão do corpo de
da vida vivida no decorrer de horas
um outro que é ofertado à apreciação e
corriqueiras. Experiências que ressaltem
gozo de um sujeito-olhar, o qual se
a
realiza,
espasmos
por
busca
experiências
por
consequentemente,
prazer
físicos
de
intenso
e,
através
da
contemplação
insatisfação
daquilo que ele próprio não pode
recorrente. Segundo tais argumentos, o
realizar, atingir, violar. Um outro que se
homem de hoje encontra-se afrontado
faz simbólico no olhar em êxtase do
pela fatalidade de uma vida banal, e
espectador
angustiado na procura por satisfação,
expectante, ansioso. Assim, na era da
através de emoções desestabilizantes. O
Sociedade do Espetáculo5, aquele que
extremo,
em
vê se põe a saborear o virtuosismo
salvação e anseio: domínio do desejo e
daquilo que ele mesmo não pode fazer,
da barganha deste com o medo.
mas pode saciar através da ação do
então,
transforma-se
–
sedento
enquanto
Ir além de limites, quebrar
outro – um outro que, na “república do
recordes, feitos emocionantes, atos de
eu”, se faz símbolo do meu desejo (do
violência, abraçar o que não nos cabe
eu em desejo). O espectador pode,
nos braços e alcançar o inalcançável: realização profunda do sujeito que se satisfaz na transgressão de limites (seus
5
Trabalho mais conhecido de Guy Debord, escritor e pensador francês. Neste livro, Debord disserta sobre a alienação da sociedade ocidental, pós Segunda Guerra: a deploração da esfera espiritual em função da valorização da organização social capitalista.
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portanto, consumir a ação extrema
corpo extremo do outro? O quê
como comodidade degustada ao seu
acontece quando o outro, que se
prazer. Esta seria uma “pacificação
apresenta diante do olhar faminto do
temporária”, vivenciada também através
espectador, não possui a qualidade do
do corpo do recordista, o qual ultrapassa
herói super-humano e admirável? O quê
seus limites físicos para além do alcance
acontece se/ quando este outro, em
das
espectador
realidade, provoca no sujeito o choque
(ARDENNE, 2006, p. 27). Quando o
de um encontro que não satisfaz o
outro
desejo,
habilidades
(o
do
atleta,
o
recordista,
o
mas,
pelo
contrário,
o
performer) se constrói como corpo
problematiza? O quê acontece quando o
extremo, ele imola o que o espectador
encontro
teatral
(aquele que vê) não pode fazer: ele
colisão?
Quando
assume o risco que o espectador não
observação,
pôde assumir. O espetáculo garante a
consigo o perigo do
seguridade da distância e se faz
espetáculo6 é este?
potencial extremo do desejo de ser
o
se
transmuta
que
o
ato
ser-espectador,
Foquemo-nos
risco?
no
em de traz Que
espetáculo
extremo: “eu posso ser eu mesmo sendo
articulado
o ‘outro eu’ – o herói desportivo, o
experimentais da cena contemporânea,
líder, a estrela... – que eu criei como
o espetáculo performativo. A cena
uma fantasia muito atraente, de um
contemporânea
modo auto-erótico” (ARDENNE, 2006,
radicalidade
pp. 34-35). Assim, o desejo pelo
provocativas que se estabelecem, muitas
extremo seria atraente, a partir da
vezes, pela utilização do extremo:
comodidade contemplativa e segura
enquanto ação, ato, recurso, efeito e
daquele que, maravilhado, testemunha
afeto. Por cena contemporânea, segue-
na inatividade: aquele que vivencia o
se a amplitude do enquadramento
extremo sem tomar o risco para si.
adotado por Luis Fernando Ramos7,
Porém, o que acontece quando o
pelas
contém, transgressiva,
produções
em
sua
estéticas
quando este delimita como tal as
que o espectador encontra diante da sua 6
apreciação
não
é
a
intensidade
avassaladora do espetáculo que o faz narcotizado
em
contemplação,
maravilhamento e satisfação, através do
Na língua portuguesa, utilizamos a palavra espetáculo como sinônimo de representação teatral. Porém, de que modo tais relações com o termo definem ou revelam as nossas próprias relações e expectativas para com determinada produção teatral? 7 Encenador, dramaturgo, crítico de teatro, documentarista e docente do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo (USP). Depoimento disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=QsGQxPMTTqA – acesso em 09/04/2014.
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A PRESENÇA DO REAL
produções de dança, da performance
progress
art, das instalações das artes visuais, e
“dissolução”
de
do teatro, produzidas e disponibilizadas
categorizações
estéticas
ao público na atualidade. Ou seja, a
enfatizar o fato de que “o processo
gama de práticas performativas “que
criativo tende a ser realizado em e como
têm em comum a intenção de se
performance”
apresentarem a outrem, se darem a ver
2008, p. 22). Sobrevém uma virada
como
alguma
performativa, na qual a cena e o palco
contexto
voltam-se para a audiência (JÜRS-
abrangente do termo cena, “o que
MUNBY in LEHMANN, 2006b, p. 5),
definiria sua espetacularidade seria o
e
fato” desta “ser produzida para ser
problematizado.
vista” (RAMOS, 2009, p. 72). Na cena
contemporânea se construiu, através da
contemporânea, a crise da representação
redefinição
e o extremismo, corporal e estético,
performatividade
recorrem como tendências exploradas
potencialmente
por diversas poéticas, embatendo o
relação atuante x observador, performer
espectador
x espectador. Desta forma, as artes
espetáculo
com
intencionalidade”.
com
Neste
a
intensidade
do
o
(obra
inacabada).
Tal
preceitos
e
passam
a
(FISCHER-LICHTE,
contexto
de
espetáculo
Portanto,
do
artístico,
a
é
cena
onde
a
reestabeleceu, desestabilizando,
testemunho que se estabelece entre
performativas
afetos como prazer, assombro, choque e
progressão natural e conjunta das
beleza. Ocorre uma transgressão dos
experimentações estéticas das artes da
parâmetros estéticos tradicionais das
cena: onde a desestabilização torna-se
artes da cena, disposição que pode ser
característica da experiência receptiva e
observada em diferentes linguagens
desafiadora
artísticas, a partir dos anos de 1960 –
estéticos e políticos, no que concerne o
das artes visuais, música, literatura ao
testemunho de tais obras. Logo, estas
teatro. A representação, de imagens,
questões
cenas, ações, pessoas, é desafiada pela
espectador
cena
performer, e problematizam a validade
contemporânea
e
por
uma
surgem
perante
como
a
pleitos
uma
éticos,
desafiam
a
função
perante
a
cena
cênico
e
o
constante presentificação de realidades
daquele
e meios: as obras passam a ser
produto, ao mesmo tempo em que
autorreferentes,
e
questionam a razão para encenar,
copulam com a noção do work in
personificar e apresentar o extremo
performativas
evento
do
enquanto
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Alessandra Montagner
enquanto arte. Assim, a perturbação e o
que se propôs a investigar uma noção da
choque
o
tragédia na contemporaneidade. Esta
espectador com a presentificação do
aventura foi proposta e executada pela
risco, fragmentação do discurso e
companhia
“debilidade da ação” (BAUMAN in
Raffaello Sanzio9. Neste episódio de
CORNAGO, 2008, p. 21) – que, neste
Tragedia Endogonidia, muito vai além
contexto, caracteriza-se enquanto ato
do limite. Desde um bebê abandonado
(não mais ação) – operadas pela cena
no palco, com um sistema robótico
contemporânea.
se
incapaz de significar algo, até todo o
cortam no palco, ao invés de representar
restante, muito infringi fronteiras. A
um personagem que se corta; bailarinos
cena aqui enfocada é uma cena forte,
que executam movimentos ou posições
uma cena de espancamento. Nesta,
visivelmente
que
estranhamente,
o
peças
assumidamente
teatral,
passaram
demandam teatrais
a
embater
Performers
desumanas grande
que
e
esforço;
que
materializam
mecanismos
teatral
de
italiana
teatro
Socìetas
se
faz
pois
seus
representação
sensorialmente tabus, abusos, violência
confessadamente
e condições limite,
ao invés de,
(cena), existe uma articulação do meio
belamente, articularem uma narrativa
(teatral) honestamente teatralizada, e
lógica e legível, mesmo que trágica; etc.
concebida no extremismo estético da
Esses
das
violência. Como consequência, tal parte
“estéticas do choque” (FÉRAL, 2011)8,
de B. #4 parece ter desestabilizado,
que povoam a produção artística das
chocado
artes cênicas na contemporaneidade.
espectadores
são
Para perspectivas
alguns
que
exemplos
visualizemos
tais
desvelados.
são
e perturbado que
a
Nesta
muitos
dos
presenciaram
(RIDOUT, 2007).
objetivamente,
Na cena em questão, um ator
prosseguirei citando uma cena muito
vestido de policial entra no palco e
comentada de uma montagem teatral
desnuda-se
intitulada B. #4 (Bruxelas), pertencente
ritualística. Após tal ritual, dois outros
ao ciclo Tragedia Endogonidia, uma
atores, também vestidos de policiais e
série de trabalhos teatrais desenvolvidos em tour por várias cidades europeias e 8
Termo empregado pela pesquisadora teatral Josette Féral, em decorrência do conceito inicialmente utilizado por Ardenne (2006), para designar estéticas desafiadoras que ofertam ações não mediadas à fruição do espectador.
de
forma
precisa
e
9
Companhia teatral contemporânea, composta por Chiara Guidi, Claudia e Romeo Castellucci. Trabalham de modo colaborativo - entre si e com outros colaboradores também. Romeo é o encarregado da direção cênica dos trabalhos da companhia, e seu nome acaba geralmente sendo usado para referir-se ao trabalho do grupo. São grande referência na produção teatral contemporânea, pós-dramática e performativa.
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A PRESENÇA DO REAL
portando cacetetes, entram em cena
experiência extrema, por uma violência
segurando uma garrafa, e despejam
sofrida. O corpo é então ensacado e
sangue falso, desta garrafa, no chão,
abandonado no palco, como um objeto
fazendo uma pequena poça de sangue.
sem importância. Um microfone é
Na sequência, o primeiro ator, de
colocado à direita do cadáver, e
cuecas, deita-se sobre a pequena poça
murmúrios de um corpo incapaz são
de sangue, quando, então, os outros dois
ouvidos como se fossem gritos de
atores tomam suas posições para que
socorro de, talvez, todos os cadáveres
algo inicie-se. Existe uma sensação de
sem importância da Terra.
brutalidade nesta preparação, um grito
Esta cena de espancamento,
de violência que se rompe, através de
violência
um espancamento que é abruptamente
impetuosamente
iniciado. O som da batida de cada um
claramente construída, concebida e
dos cacetetes sobre o corpo nu é
representada
intensamente
e
previamente a ensaiaram e definiram.
movimentos
Não existe fluência espontânea na
acompanhado
sonoro, por
extremo,
policial,
sangue
derramado
por
é
corpos
espasmódicos do corpo do ator. O
apresentação
espancamento evolui, através de uma
existe suspiro de vida. Existe uma
repetição dos mesmos movimentos, o
articulação teatral que se compõe em
mesmo som agressivo, o mesmo corpo
um tempo estético, um tempo de
se debatendo no chão, os mesmos
atenção
cacetetes, o mesmo sangue (sangue?)
meticulosamente executada por outros
gradativamente se multiplicando sobre o
corpos.
corpo nu no chão: o mesmo ao seu
sublimando o gozo do sujeito, através
extremo. Quando o espancamento finda,
da sua ação extrema? Será? Aqui, o
um pouco mais de líquido vermelho
extremo
(sangue?) é derramado sobre o corpo já
enaltecido na sua quebra de limites, na
ensanguentado do ator. Este, então, é
sua realização irrealizável. Aqui, o
sentado em uma cadeira, com o rosto
extremo se faz em representação, como
voltado para o público pela primeira
elemento externo à vida cotidiana, o
vez. A plateia testemunha um olho
que, segundo Ardenne, gera um escape
nojento, inchado, e um rosto coberto de
desta: um momento de inspiração e
sangue,
alento, onde o indivíduo se renova em
um
corpo
injuriado
pela
daquela
que
imagem,
potencializada,
Estariam
pode
ser
e
estes
que
não
é
outros
presenciado
e
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Alessandra Montagner
transgressão. Neste caso, o espectador
total (inimaginável, porém constituinte).
encontra-se sim distante, na observação
Seria,
da ação extrema, no lado de fora do
aproximasse de si a própria morte:
espetáculo
–
mas,
estaria
ele
talvez,
como
se
o
sujeito
solução para o desejo, e vontade não
impassível? Sentir-se-ia ele renovado?
permitida
em
vida.
Aqui, o testemunho se transmuta em
portanto, não moralmente desejável na
choque. Neste teatro, a representação da
vida
violência provoca, como se esta fosse
possível nos domínios do extremo, no
real. A “montagem deste evento é tão
distanciamento da representação. Neste
obviamente sinalizada e, portanto, tão
ponto,
meticulosamente representada, que esta
potencial, o extremo opera uma ruptura
é vivenciada como algo intolerável,
na estrutura do real: “por definição, o
intoleravelmente real” (RIDOUT, 2006,
extremo é por si só extremo, ele perfura
p.183). Mas que real é este?
a limitação do real, esquarteja-o, ele
cotidiana,
com
é
sua
A
violência,
plausivelmente
maximalização
Por que uma cena como esta se
introduz uma quebra” (ARDENNE,
faz tão perturbadora? Como tal ação
2006, p. 20). O extremo pode, assim,
violenta se consolida como experiência
fazer
de choque, que, para alguns, se torna
submerso: o trauma, a ferida, o abjeto10.
insuportável?
Ardenne,
emergir
o
que
se
mantém
novamente
No texto O Retorno do Real, Hal
através das palavras de Lacroix, afirma-
Foster11 disserta sobre um real que
nos o seguinte: “para nos sentirmos
emerge da experiência de choque, no
vivos, nós precisamos de experiências
defrontamento do sujeito com uma
de violências” (LACROIX, 2001 apud
imagem que desarticula – a qual faz
ARDENNE, 2006, p. 24). O autor
com que a intensidade do encontro
coloca que estas são as experiências
perturbador com esta se reproduza
que, eficazmente, nos removem da
também no encontro do sujeito consigo
nossa percepção anestesiada, e nos
mesmo. O choque, que nos leva ao
levam ao alcance do extremo, emoções
trauma, permite que o real insurja.
fortes e abalos chocantes. Através da 10
violência, da selvageria máxima, na qual o corpo pode se inserir, o espectador (teoricamente) goza com o corpo do outro em desfrute de um risco
Noção explorada por Julia Kristeva no livro Power of Horror (1982), a teoria do abjeto aborda o que nos é desprezível, marginal, mas que, de qualquer modo, nos compõe. O abjeto seria quilo que nos compõe em negação; como, por exemplo, os líquidos que expelimos: merda, sangue, sêmen. Seria então merda (real e figurada) que nos constitui. Se eu perguntar, qual a merda que escondes, isto faria algum sentido para ti? 11 Crítico de arte e historiador norte-americano, Foster é professor na Universidade de Princeton.
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A PRESENÇA DO REAL
Foster aborda o real, a partir de um
choca, com a ação violenta, com o
conceito lacaniano12, que apreende este
corpo do outro (que poderia ser seu)
como o que existe antes da existência,
violado pela violência, o trauma pode,
antes
não
também, inundar o seu próprio corpo
categorizável, a problematização da
como reação espasmódica e, Foster vai
inexplicabilidade.
neste
além, prazerosa também. Tal paradoxo,
entendimento, “existe fora da realidade”
entre perturbação e prazer, causa uma
e é no domínio do real que encontramos
crise que se instaura na indefinição da
o gozo (CORREIA, 2004, p. 100). Este
identidade. No caso do teatro, seria uma
não é um real que se faz real em
crise que questiona a presença do
oposição ao ficcional, mas um real que
espectador no espaço teatral. Uma crise
emerge como presença extrema: como
que faz emergir um real que insurge
constante vazio presente. Algo que faz
como trauma e opera uma quebra na
parte do sujeito, mas o constitui
constituição do sujeito.
da
enquanto
linguagem,
recusa
O
o
real,
dormente,
que
o
compõe em silêncio. O real revela ao
A quebra do corpo, o olhar devorando
sujeito o que nele existe como presença
o sujeito, o sujeito tornando-se o espaço, o estado de pura similitude (...)
ausente, e, assim, contém o evento
Ela relembra o ideal perverso da
traumático. O discurso do trauma,
beleza,
desenvolvido por Foster, aborda o eu do
sublime, apresentado pelos surrealistas:
sujeito que se confunde em uma
uma possessão convulsiva do sujeito
experiência
paradoxal
(seu
entregue
corpo)
em
situação
e
uma
próprio
daquilo
que
ele
vivencia
esteticamente. A experiência receptiva, assim, vai além do olhar literal, ela toca o sujeito-olhar. Ela se estende ao corpo e à ferida que habita tal corpo. Quando o sujeito se encontra com a imagem que 12
Jacques Lacan, psicanalista e psiquiatra francês, contribui para teorias da psicanálise e filosofia. Lacan concebeu a composição do sujeito, através de uma tripartição: o real, o simbólico e o imaginário. Para Lacan, a realidade, assim como o sujeito, se constitui através da linguagem.
a
em termos
mortífera
do
jouissance.
(FOSTER, 2005, p. 184)
de
questionamento da própria identidade diante
redefinido
Nesse gozo (jouissance), pode ocorrer o que Ardenne colocaria como sendo
a
realização
do
desejo,
a
realização do irrealizável, através do corpo do outro – que, em performance, assume o risco que o espectador negou – e vivencia a transgressão ética no testemunho da violência. O perigo do gozo? A presença do real.
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Alessandra Montagner
Naquela cena de B. #4, do Tragedia
Endogonidia,
perturbação,
existe
uma
contestação
da
sentidos: tanto no que se refere ao risco tomado
pelo
ator,
representado,
do
corpo
agredido
representação do ato de violência,
representação,
articulada e ofertada ao olhar do
respeito ao risco do testemunho do
espectador. Na repetição de um ato de
espectador (o perigo da presença). O
violência extrema, do corpo de um ser
que faz o espectador em cenas como
humano
à
esta? Aprecia? Goza? Como pode ele
apreciação de outros seres humanos)
gozar com violência? Nesta contradição
sendo
(?),
móvel, no risco da emoção extrema,
no
surge, portanto, o paroxismo do real: o
extremismo de uma ação de choque e na
gozo no indizível, no inconcebível –
insistência
experiência
porém, neste contexto, o gozo perturba.
receptiva de tal ato desestabiliza e faz
O trauma, oriundo de momentos onde
emergir o risco de, momentaneamente,
somos
habitar-se aquele local. A progressão, e
próprios
eternidade, do espancamento (que se
intangível. Momentos nos quais a
estende preguiçosamente pelo tempo
experiência estética nos inunda como
cênico), a extrema violência daquela
ameaça ética. Momentos e imagens nos
ação representada no palco contestam e
quais o nosso choque nos estranha e
espertam
define, como uma identidade que
(o
qual
agredido,
explorado
(?)
encontra
humilhado e
desta,
a
se
dilacerado,
a
percepção
e
emoção
quanto
confrontados limites,
no
em
com
nossa
diz
nossos presença
daqueles que testemunham. Esta cena,
colaborativamente
portanto,
identificação e recusa; se corrói na
parece
ilustrar
a
noção,
explorada por Ardenne, e citada acima,
se
que
constrói
de
ausência presente.
de que são os atos de violência que,
As artes da cena são constituídas
hoje, nos levam a experiências limite, a
pelo encontro face-a-face, e a relação
emoções fortes; e consequente fascínio
não mediática e vivaz que emerge de tal
numa
e
encontro é local de questões sociais,
do
pessoais e políticas (RIDOUT, 2006, p.
espancamento assegura a realização do
29) entre as partes que a compõem.
corpo levado ao seu extremo. Tal
Neste contexto, se, na cena, o performer
transgressão faz emergir o risco, o
é presente, quando se compromete a
choque do comparecimento em dois
hospedar a ação em seu próprio corpo, o
transação
perturbação.
A
entre
gozo
representação
João Pessoa, V. 5 N. 2 jul-dez/2014
A PRESENÇA DO REAL
espectador se faz presente quando, por
tal inquietação? Se o homem atual tem
alguma razão, comparece ao teatro. Se o
se reinventado, através do extremismo,
ator
espectador
seria esta também uma condição para
Na
cena
que o teatro se faça atual? Qual a
contemporânea, o espectador pode vir a
necessidade por experiências de choque,
questionar a sua própria presença
espasmos, na cena contemporânea?
quando se vê violentamente lançado ao
Talvez Romeo Castellucci, diretor da
desafio
emancipação
Socìetas Raffaello Sanzio, possa nos
(RANCIÈRE, 2009), vendo-se inquirido
indicar um caminho, que ficará aqui em
pelo posicionamento participativo. O
aberto, para tais questões: “Eu acredito
espectador encontra, como tangível e
que hoje a experiência teatral baseia-se
desestabilizante, o testemunho do não-
na
testemunhável, do inconcebível, do
espectador [...] o teatro contemporâneo
risco da consciência de si e da sua
tornou-se
cumplicidade com o imoral. Talvez, em
consciência sensível. Consciência no
uma era global de conforto midiático e
sentido de abertura, consciência do que
presenças virtuais, tais experiências
se abre.” (CASTELLUCCI, 2007, p. 4).
venham trazer inspiração e luz a uma
Os desafios da radicalidade da
é
em
transforma-se
ação, em
de
o
ação.
sua
experiência
íntima
uma
experiência
intensidade de suas presenças; os quais,
pensemos, vivenciemos e despertemos,
longe da virtualidade do dia-a-dia,
esperando que tal ato venha ao nosso
encontram, no “último local humano”
encontro para nos carregar para além de
(READ,
nós
271),
o
mesmos:
do
propor
de
cena
p.
portanto,
cada
sociedade de homens apartados da
2009,
veem,
de
que
que
podemos,
reconhecimento intenso e extremo da
queremos e ousamos ser perante o outro
sua responsabilidade presencial com
e a nós mesmos. Que a utópica e
relação ao outro e à si mesmo.
intangível potencialidade formadora e
Conclusivamente,
se
somos
instigante da cena venha nos trazer
produto de uma época que, segundo
novos limites, os quais possamos ser
Ardenne, se dispõe a perseguir a
capazes de derrubar. No encontro do
transgressão de limites, na busca pela
espectador
saciedade de desejos, pelo intenso e
extrema, existe o sintoma do homem
extremo, seria o teatro que produzimos,
anestesiado e alienado frente ao novo no
também, produto (e, talvez, produtor) de
outro, no contexto, e em si: revertamos
chocado
com
a
cena
João Pessoa, V. 5 N. 2 jul-dez/2014
Alessandra Montagner
este quadro com a arte e afirmemos a
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necessidade de tais experiências em um
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