A PRESENÇA MUÇULMANA EM PORTUGAL NOS FINAIS DA IDADE MÉDIA: TRADIÇÃO LEGAL E PRÁTICA INSTITUCIONAL

June 15, 2017 | Autor: J. Gonçalves de F... | Categoria: Minority Studies, Muslim Minorities, History of Minorities
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1 Publicado em: Imigração Marroquina em Portugal: contextualização histórica e política, Alcinda Cabral ed., Porto: Edições Universidade Fernando Pessoa, 2003, pp. 49-65.

A PRESENÇA MUÇULMANA EM PORTUGAL NOS FINAIS FINAIS DA IDADE MÉDIA: TRADIÇÃO LEGAL E PRÁTICA PRÁTICA INSTITUCIONAL

Judite A. Gonçalves de Freitas*

Os dados que aqui lançamos, e as reflexões produzidas, não são estritamente

pessoais,

alguns

fundam-se

em

contributos

de

medievistas que se interessam pelo fenómeno do mudejarismo em Portugal nas suas múltiplas facetas. Propomo-nos estabelecer uma relação aproximativa e comparada entre o quadro da tradição legal e as práticas institucionais no tentame de desvendar os efeitos sociais da lei e da organização político-institucional tardo-medievos no processo de comunitarização e fixação espacial dos agrupamentos mudéjares conducente à respectiva segregação.

De acordo com o iuris-historiador inglês W. Ullmann (1971), um dos maiores tributos da Idade Média, em termos jurídicos, é o estabelecimento do conceito de supremacia da lei. Partindo desta ideia, a nossa exposição apoia-se fundamentalmente no grupo de textos normativos coligidos e reunidos em 1446, pelo jurista Rui Fernandes, sob o título Ordenações Afonsinas. No seu conjunto, a compilação está organizada em cinco livros contendo cerca de 650 actos legislativos. Aos organizadores coube a prossecução da recolha e Professora Associada da FCSH / UFP (2003-2007). Investigadora do Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade / FCT /UP. *

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2

organização de textos legislativos de produção temporal distinta, nalguns casos recuando aos inícios do século XIII (Homem, 1999a: 673-698). Deste ponto de vista interessa-nos explorar uma das dimensões da relação entre História e Direito, já que um dos nossos principais intuitos é o de salientar o lugar ocupado pelos mouros no panorama jurídico tardo-medievo. O segundo aspecto que nos interessa abordar, para o delinear da construção da imagem dos mouros na época medieval, é o que parte do cruzamento das fontes literárias e documentais que, não raras vezes, nos colocam problemas de tratamento e interpretação. Por tudo isto, foram também alvo da nossa atenção os relatos dos cronistas palacianos de Gomes Eanes de Zurara1 e Rui de Pina2 e outros elementos de prova retirados da Chancelaria, principal repositório da memória administrativa do reino. As Ordenações Afonsinas, invocando uma tradição legal (Homem, 1999b: pp. 119-123) contêm um significativo conjunto de títulos que regulamentam as práticas quotidianas das comunidades de mouros3 em Portugal, designação então dada aos muçulmanos. Dos mais de vinte títulos (no total são vinte e três) reunidos no livro II4, um largo grupo respeita às restrições legislativas impostas desde finais do século XIV, designadamente no que toca aos contactos entre

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Crónica da conquista de Ceuta, intr. e notas de Reis Brasil, Mem Martins:

Europa-América, 1992. “Crónica de D. Afonso V”, in Tesouros da Literatura e da História, ALMEIDA, M. Lopes de (ed.), Porto: Lello & Irmão, 1977, pp. 583-881; “Crónica de D. Duarte”, in Tesouros da Literatura e da História, ALMEIDA, M. Lopes de (ed.), Porto: Lello & Irmão, 1977, pp. 479-575. 2

Nos primórdios da monarquia, séculos XII e XIII, a designação remetia juridicamente para o estatuto de não livre (cativo). Ver por todos Barros, 2000: pp. 279-283. 3

4

Ordenações Afonsinas, L. II, títs. LXXXXVIIII-CXXI, pp. 529-564.

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3

muçulmanos e cristãos. As fontes jurídico-normativas, conforme teremos oportunidade de observar, nos séculos finais da Idade Média, relevam de um acentuado segregacionismo legislativo, quer em relação aos mouros, quer aos judeus (Tavares,1984)5. Estas minorias marcadamente urbanas são, de acordo com a norma legal, remetidas para os arrabaldes, encontrando-se em espaços sócio-culturais definidos: as mourarias e as judiarias. Conforme refere Barros “As

ordenações do reino, materializando as prioridades de uma sociedade maioritariamente

cristã,

vão

progressivamente

cerceando

as

liberdades das duas minorias, muçulmana e judaica” (2000: 280). Pudemos

igualmente

confrontar

a

norma

legal

com

os

testemunhos credíveis sobre a opinião dominante e mais significativa representada pelas elites dirigentes e pelos letrados, tendo em conta o relato do cronista Gomes Eanes de Zurara (cap. XI, 1992: 64-66). Em todo o caso, as referências directas à opinião geral são pontuais e parciais, sabemos porém que os príncipes e os grandes senhores6, nos finais do século XIV e durante o século seguinte, invocam recorrentemente a guerra ao infiel (mouro) como uma causa justa, como serviço de Deus. D. João I prepara a guerra contra o infiel, desde os alvores do século XV, apoiando-se nos filhos varões (D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique), tomando a opção por Ceuta (Zurara, caps. XIII-XIV, 1992: 72-77). A sociedade grada de então, em conselho Tanto no corpus legislativo quanto no plano institucional estas duas minorias surgem recorrentemente associadas, ou seja estão sujeitas aos mesmos princípios legislativos (cf. por todos Ordenações Afonsinas, L. II, títs. CXV, CXVII e CXXI, pp. 556, 558, 563-64). 5

Conhecemos os pareceres do conde de Arraiolos, do conde de Barcelos e do conde de Ourém a respeito das vantagens da guerra ao infiel, nomeadamente os dirigidos ao Infante D. Duarte no ano de 1433, nos últimos tempos do reinado de D. João I (cf. Dom Duarte - Livros dos Conselhos de el-rei D. Duarte. Livro da Cartuxa, ed. diplomática, transc. de João José Alves DIAS, intr. de A. H. de Oliveira MARQUES e idem, Lisboa: Editorial Estampa, 1982, pp. 56-73). 6

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maioritariamente reunida, deu apoio à empresa marroquina (Zurara, cap. XX, 1992: 91-94). A guerra no Norte de África surge como um destino de conquista lícito a qualquer Estado cristão do Ocidente (Farinha, 1999: 21-25 e Freitas, 2003: 55). D. Duarte obteve Bula de cruzada contra o infiel, em 1436, requerida no Concílio de Ferrara pelo Conde de Ourém (Pina, cap. XIII, 1977: 518-519). A guerra no Norte de África surge como um destino de conquista lícito a qualquer Estado cristão do Ocidente (Farinha, 1999: 21-25 e Freitas, 2003: 55). Por seu lado, a sociedade cristã, nos séculos XIV e XV, representada pelos procuradores às Cortes, avança com protestos e petições contra os grupos minoritários de mouros e de judeus para que residam nos arrabaldes em espaços para isso reservados (Sousa, vol. II, 1990: 236). D. Pedro I (1357-1367), oficializou a criação de lugares de segregação – as mourarias7, procurando acautelar o perigo da «contaminação» (Lavajo, 2000: 109-110). As pressões da maioria cristã derivam da desconfiança e salientam a persistente e secular confrontação de interesses políticos, sociais e religiosos entre as entidades concelhias e as comunas de mouros8. Por um lado, a maioria cristã queixa-se dos privilégios obtidos pelos mouros; por outro, a

Cortes Portuguesas. Reinado de D. Pedro I (1357-1367) (1986) – MARQUES, A. H. de Oliveira e DIAS, João Alves (ed.), Lisboa: INIC/CEH-UNL, p. 52. 7

De facto nota-se que, ao longo do século XIV e XV, há a preocupação em salvaguardar as melhores áreas das cidades e vilas do reino para a maioria cristã. No entanto, a segregação manifesta-se igualmente na lei geral e demais determinações régias: nas cortes de Coimbra de 1390 foi dada proibição de os mouros invocarem Maomé, dentro das mesquitas; na sequência das cortes de Leiria-Santarém de 1433 foi proibido às minorias moura e hebraica de serem rendeiras das sisas e direitos da coroa (Sousa, vol. II, 1990: 238 e 291 respectivamente). 8

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5

minoria mudéjar solicita ao monarca protecção legal da autonomia comunal contra os abusos praticados pelas autoridades concelhias.

O século XV é um tempo de decisão: quer no plano legal, quer no plano governativo9. A tendência é para o acentuar do enquadramento legal das actividades administrativas correntes, tributária de uma conjuntura favorável a partir da fundação da dinastia de Avis. A esta orientação não é alheio o desenvolvimento das finanças públicas, da melhor organização e gestão militar e dos demais sustentáculos do poder régio, bem assim como o alargamento deste à comunidade dos súbditos (Genet, 1999; Gonçalves, 1999 e Monteiro, 1999). O monarca entende escolher para os ofícios burocráticos homens experimentados e conhecedores das leis (Freitas, vol. I, 2001: 216 e ss.) e, no caso pendente, quando pretende decidir ou deliberar sobre as comunidades minoritárias, preocupa-se em designar servidores entendidos no respectivo quadro normativo e linguístico (Barros, 2000: 280). Na verdade, o poder central, apoiando-se na opinião maioritária da comunidade cristã e procurando controlar subsistentes tensões e conflitos, procedeu de forma a isolar social, económica, geográfica, cultural e juridicamente estas comunidades. Por conseguinte, a subalternização da minoria moura face à maioria cristã aparece manifesta na lei geral do reino.

Conforme pertinentemente refere W. ULMANN: “Sería bastante acertado decir que la historia medieval, en su esfera pública, estaba influida por el derecho y se resolvía en él porque tal derecho era el vehículo a través del cual se ejercía el gobierno. Derecho y gobierno estuvieron siempre tan íntimamente unidos(...)” 9

(1971: 23).

5

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De um total de vinte e três actos legislativos contidos no texto das Ordenações Afonsinas, a que já aludimos, dez são da responsabilidade de D. João I (1385-1433) e oito diplomas da de D. Duarte (1433-1438). Os restantes cinco actos legais distribuem-se respectivamente por D. Afonso I (1), D. Afonso II (1), D. Afonso III (2) e D. Afonso IV (1). Observando mais de perto a matéria legislativa constatamos que o Mestre de Avis esteve realisticamente absorvido com a restrição da convivência entre a comunidade cristã e moura, mandando que os mouros vivam isoladamente dos cristãos10 em bairros e que cerrem as suas portas ao toque das Trindades11. De igual modo, prossegue com regulamentação que pretende acautelar excessos da parte da comunidade cristã (que os mouros não sejam presos por fuga de cativos12 e que não sejam convertidos contra sua vontade13); mostrando no texto legislativo reais preocupações com a segurança. Na busca de um maior controlo e vigilância institucional sobre estas comunidades, D. João I, ordena a exclusão do uso da letra araviga nos documentos notariais ou celebrados pelo tabelionado14. A língua não é apenas um instrumento de cultura mas igualmente um meio de

exercício do poder. A proibição do uso do árabe nos documentos notariais, iria inevitavelmente conduzir a um aumento da influência do notariado e tabelionado cristão junto das comunidades de mouros. Na actividade legislativa de D. Duarte nota-se a preocupação em delimitar, do ponto de vista jurídico-normativo, o estatuto dos mouros forros relativamente aos cativos, impondo obrigações estritas no plano

10

Ordenações Afonsinas, L. II, tit. CII, pp. 535-536.

11

Ordenações Afonsinas, L. II, tit. CIIII, pp. p. 540.

12

Ordenações Afonsinas, L. II, tit. CXVIII, pp. 559-561.

13

Ordenações Afonsinas, L. II, tit. CXVIIII, p. 561.

14

Ordenações Afonsinas, L. II, tit. CXVI, pp. 557-558.

6

7

fiscal e impedindo os maometanos do acesso aos ofícios régios15 e de possuir cristãos como criados16. A exclusão da comunidade muçulmana do benefício dos direitos de avoenga constitui mais uma ingerência e controlo por parte do poder central no destino a conceder aos bens dos respectivos parentes17, acabando aqueles por reverter, uma maioria das vezes, para o soberano. Conforme já tivemos oportunidade de referir o «Eloquente», no seu precoce sentido de

Estado, quer enquanto infante quer enquanto monarca foi um notado legislador (Freitas, 1995: 57-69). D. Afonso V (1439-1481) manteve a mesma linha de actuação dos monarcas antecessores, quando estipula o condicionamento do uso de vestuário de luxo, o uso de sinais de identificação para os mouros cativos18 ou a proibição de estabelecimento de contratos de aforamento com cristãos (Sousa, vol. II, 1990: 342, 380, 423, 424 e 475). Ao longo do século XV, o estatuto jurídico, social e económico dos mouros foi-se diferenciando acarretando a perda sucessiva de garantias, isenções e privilégios, sem embargo das concessões régias em contrário. A condição de mouro remetia, nos tempos de então, para uma situação de inferioridade jurídica e social a que não era alheia a identidade religiosa (Marques, 1998: 19 e ss.). Com D. Manuel atingiu-se o âmago da perseguição sócio-religiosa às duas

15

Ordenações Afonsinas, L. II, tit. CVII, p. 543.

16

Ordenações Afonsinas, L. II, tit. CVI, p. 542.

Direito pelo qual os parentes próximos tinham preferência em caso de transacção. As Ordenações Afonsinas revogam este direito (L. II, CVIIII, p. 545 e L. IV, XXXVII, pp. ) e as Ordenações Manuelinas extinguem-no. 17

As Ordenações Afonsinas não estipulam a obrigatoriedade do uso de sinais identificativos, tal como para os judeus (Ordenações Afonsinas, L. II, tit. LXXXVI, pp. 409-501). 18

7

8

comunidades (moura e judaica) quando foi promulgado o édito de expulsão, a 5 de Dezembro de 149619.

Porém, à medida que as comunidades mudéjares em Portugal foram isoladas da rede urbana central, acabando remetidas para a periferia20, atraíram para aí grupos de mesteirais cristãos que com eles «contratavam» ou junto dos quais efectuavam os seus negócios, garantindo a preservação das relações profissionais e de vizinhança (convívio) entre as duas comunidades (Barros, 1998: 13-20). A lógica social interna destes agrupamentos obedece a uma lógica de repartição dos espaços. Remetidas para os arrabaldes urbanos, as mourarias organizam-se em torno dos locais de culto, espaço identitário islâmico. De igual modo, constatámos que os privilégios jurídicos e as isenções fiscais surgem como resultado de particulares situações de excepção ou como forma de aliciamento à conversão. No que respeita a relação entre conversão e alforria devemos adiantar o seguinte: a lei refere que a conversão não pode ser efectuada pela força21, no entanto, adianta outros princípios legislativos nos quais contempla os privilégios concedidos aos mouros conversos22. A norma legal prevê, nomeadamente, a isenção do pagamento de pesadas contribuições

19

Ordenações Manuelinas, L. II, tit. XLI, pp. 212-214.

Desde o reinado de D. Pedro I (1357-1367) que os mouros e os judeus são afastados do convívio com cristãos. A régia resolução deve-se às queixas de desacatos por aqueles provocadas e levadas às Cortes de Elvas de 1361 (Cortes Portuguesas. Reinado de D. Pedro I, ed. cit., p. 52). 20

21

Ordenações Afonsinas, L. II, tit. CXVIIII, p. 561.

22

Ordenações Afonsinas, L. II, tit. CX, pp. 546-547.

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fiscais e da posse de cavalo para todos os que se converterem ao cristianismo23. A concessão pelos oficiais régios de cartas de alforria (Freitas, 2001: 74) radicava na solicitação de indivíduos mouros que não tinham liberdade jurídica (cativos). As razões invocadas pelo poder central para conceder estes instrumentos legais são, não raras vezes, os bons serviços prestados ao monarca, aos seus familiares e/ou a senhores de linhagem, e bastante menos comuns os casos de atribuição por motivos de conversão à fé cristã. Por conseguinte a parte dispositiva destes diplomas remete para o estatuto alcançado ao referir “[tomando-o]

forro e isento elle e seos filhos e filhas e herdeiros que depois delle vierem e descenderem assy pella guisa que o som os outros xristaaos naturais de nossos reinos”24. Os diplomas da Chancelaria régia sugerem também a atribuição da alforria por motivos de conversão, tais são os casos seguidamente mencionados. João Álvares, em 1442, obtém o tão pretendido instrumento legal uma vez que “(...) em sendo

mouro e nosso cativo se convertera na nossa santa fe”25 e Zara, em 1455, moura cativa durante vinte e um anos de João Garcia, cavaleiro, morador na vila de Tavira, acusada de furto que “se podia hiir pera

terra de mouros se quisesse e que por quanto ella fora criada na christandade e era em conhecimento da Santa fe em christo se querya tornar christãa e viver em nossos regnos”26.

23

Idem.

24

AN/TT, Chancelaria de D. Afonso V, L. 24, fl. 39v.

25

AN/TT, Chancelaria de D. Afonso V, L. 35, fl. 97v.

AN/TT, Chancelaria de D. Afonso V, L. 15, fl. 100; Azevedo, Pedro, t. II, 1934: 246-247. 26

9

10

Duas das principais condicionantes para a obtenção da liberdade são efectivamente a prestação abnegada de bons serviços a indivíduos grados da sociedade política de então e a conversão ao cristianismo. Estão igualmente documentadas situações que indiciam uma dificuldade acrescida em fazer cumprir institucionalmente as normas e que procuram cavar um fosso social interno entre a comunidade cristã e a moura de modo a evitar os contactos. Corria o ano de 1466 e Adela Braçano, mouro forro, morador na mouraria de Lisboa foi acusado, e depois perdoado, de ter emprestado a sua casa a Çoleima, filho de Brafome Galo, e a Omar, filho de Çaide, para um encontro nocturno destes com uma cristã, tendo sido apanhados por Diogo Martins, seu irmão, e Diogo Vaz, oficiais locais27. Não obstante Adela Braçano ter emprestado a casa enganosamente, pois não sabia “pera

que elles a queriam”, foi obrigado a pagar dois mil reais para a “arca da piedade” em troca da liberdade. Este caso pormenorizadamente relatado dá-nos conta de uma situação de real transposição do muro da mouraria de Lisboa que, segundo a lei, seria um espaço impenetrável depois do toque das Trindades28. Outros episódios documentados nos registos da Chancelaria régia apontam, de algum modo, para uma diferenciação entre o direito legislado e o direito praticado. Os monarcas isentavam do pagamento de tributos, concediam imunidades e privilégios que, nalguns casos derrogam a lei vigente, provocando situações de desigualdade entre os habitantes das comunas. Esta divisão interna da minoria moura conduziu ao agravamento das queixas, junto dos oficiais régios, por

27

AN/TT, Chancelaria de D. Afonso V, L. 35, fl. 10v.

28

Cf. supra, n. 11.

10

11

parte de todos aqueles que não gozavam de nenhum benefício ou mercê, comprometendo assim o princípio da efectividade da aplicação da lei e aumentando a instabilidade institucional. Conclusão Com efeito, podemos dizer, que os contactos entre mouros e cristãos foram bem mais frequentes do que a legislação deixa supor. A observação da dimensão espacial do processo social permitiu-nos verificar a existência de casos que sustentam a ideia de integração de uma

minoria

de

muçulmanos

na

sociedade

portuguesa.

A

institucionalização e regulação crescentes do Estado foram, em todo o caso, susceptíveis de preservar a hierarquia e a discriminação social, que, convém realçar, não se dirigiam exclusivamente aos mouros, incluíam múltiplas vezes, cumulativamente, os judeus. As leis afectaram a organização espacial e social destes grupos. Os monarcas nos séculos finais da Idade Média engrossaram as medidas legislativas para garantir a segurança dos súbditos e evitar confrontos, desentendimentos e situações menos lícitas proporcionadas pelo contacto entre as duas comunidades e, simultaneamente, assegurar as elevadas contribuições fiscais provindas das minorias moura e judaica. Em Cortes, as pressões dos povos enfatizam a existência de abusos e incumprimento das regras de convivência estabelecidas nos planos social, económico e religioso condicionando as deliberações régias. Por parte das autoridades eclesiásticas e civis, não obstante os casos excepcionais, parece-nos manifesta a intenção de aumentar as represálias contra aqueles que desrespeitem a lei. Certo é que todo o conjunto de princípios legais e práticas institucionais contribuem para o isolamento dos mouros forçando-os à obediência e/ou à conversão; tal facto impede-nos de falar em verdadeira

11

12

integração da minoria muçulmana no quadro político português Quatrocentista. FONTES E BIBLIOGRAFIA 1. FONTES AZEVEDO, Pedro (1915-1934) – Documentos das Chancelarias

Reais anteriores a 1531 relativos a Marrocos, tomo I (1415-1450), tomo II (1450-1456), Lisboa: Academia das Ciências.

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2. Estudos

12

13 BARROS, Maria Filomena (1998) – Comuna (A) Muçulmana de

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14

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