A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU Departamento de Direito Processual DPC 5820 As Garantais Processuais Penais em face da Convenção Americana de Direitos Humanos

Jorge Miguel Nader Neto Denis Ortiz Jordani Fernando Américo de Figueiredo Porto

A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Professores: Claudia Moises Perrone Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró Maria Thereza Rocha de Assis Moura

São Paulo 2014

Jorge Miguel Nader Neto

Denis Ortiz Jordani

Fernando Américo de Figueiredo Porto

A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Trabalho acadêmico apresentado à disciplina DPC 5820 – As Garantias Processuais Penais em Face da Convenção Americana de Direitos Humanos, como requisito parcial de avaliação.

São Paulo 2014

Sumário

1. Introdução................................................................................................................ 3 2. Considerações iniciais ..............................................................................................4 2.1. Surgimento: histórico e precedentes normativos no Brasil e no mundo. Alguns julgados iniciais logo após a Constituição de 1988....................................4 2.2. Conteúdo da princípio da presunção de inocência: três significados..................5 2.3. O princípio da presunção na CF/88 e no Pacto de San José da Costa Rica......12 3. Análise de julgados de Cortes Internacionais ......................................................13 3.1. Caso Allenet de Ribemont X França ....................................................................13 3.2. Caso Suárez X Equador ........................................................................................16 4. Análise da jurisprudência nacional relativa ao princípio ...................................20 4.1. HC 82.959-7/SP – (STF – Pleno – Rel. Min. Marco Aurélio). Inconstitucionalidade do §1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90. .................................20 4.2. 3.2 HC 84.078 – Execução antecipada da pena ...................................................21 4.3. HC 97.256/RS – (STF – Pleno – Rel. Ayres Britto). Inconstitucionalidade do art. 44 da Lei nº 11.343/06 e ADI 3.112-1/DF – (STF – Rel. Min. Ricardo Lewandowski). Inconstitucionalidade do art. 21 da Lei nº 10.826/03. ...............22 4.4. ADPF 144 – (STF – Rel. Celso de Mello) e ADI 4578 – (STF – Rel. Luiz Fux). Impossibilidade de criação de hipótese de inelegibilidade decorrentes da vida pregressa do candidato. ..........................................................................................23 5. Conclusão ................................................................................................................25 6. Referências bibliográficas ......................................................................................27

1. Introdução Não é de hoje que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos não só faz parte do nosso ordenamento jurídico, como também deve ser respeitada como importante instrumento de proteção dos direitos humanos. Sua ligação com o processo penal interno e, especialmente com as garantias individuais consagradas na Constituição Federal é patente e deve ser observada e respeitada. Não uma mera ligação, mas também e especialmente uma complementação, pois a norma convencional ora completa a garantia constitucional, ora é completada por ela. Essa simbiose, no entanto, deve ser reforçada em prol dos direitos e garantias individuais dos cidadãos quando em confronto com o Leviatã. Esse Leviatã ainda mostra suas garras, quer por meio de normas penais, quer por meio de normas processuais que insistem em desrespeitar e violar, expressa ou indiretamente, os direitos e garantias individuais dos cidadãos. O presente trabalho tenta abordar a garantia da presunção de inocência, suas facetas por meio de uma breve introdução teórica, depois a análise de alguns casos julgados pela Corte Interamericana e, por fim, a análise da jurisprudência pátria atinente ao princípio que, ao que parece, deve valer não só para o processo penal, sua principal fonte, mas também para outras questões que envolvam o chamado poder punitivo estatal de um lado e direitos e garantias de outro.

 

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2. Considerações iniciais: Inspirada na Constituição italiana, a Constituição Federal de 1988 traz expressamente em seu art. 5º, LVII: Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

O texto constitucional não utiliza a expressão presunção e inocência (formulação tradicional do princípio). Preferiu-se consideração da não culpabilidade (ou não consideração prévia da culpabilidade). Diante da diversidade terminológica o preceito constitucional passou a ser chamado de “presunção de não culpabilidade”, para alguns. O questionamento se essa última expressão traduz um menor grau de proteção que “presunção de inocência” gerou divergências. Sergio Pitombo, por exemplo, entendia que a Constituição estampava muito mais que uma presunção, pois trazia uma proibição de se considerar alguém culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Assim, para uns a Constituição não adotou a presunção de inocência. Para outros, os princípios são equivalentes. Na realidade, parece não haver diferença de conteúdo entre as expressões, vez que inocente e não-culpável são apenas variantes semânticas de idêntico conteúdo. Ademais, eventual tentativa em distingui-las se mostra inútil, visto que o nosso Estado é democrático de Direito e, ao lado dos demais princípios, deve assegurar a liberdade do cidadão, que é a regra. 2.1. Surgimento: histórico e precedentes normativos no Brasil e no mundo. Alguns julgados iniciais logo após a Constituição de 1988. Parte da doutrina aponta que a presunção de inocência remonta ao direito romano, porém, na inquisição da idade média foi atacada e até invertida, havendo, inclusive, uma presunção de culpa. Posteriormente, foi consagrada, ao lado de outros princípios, na Declaração dos Direitos do Homem, de 1789. Apesar disso, no fim do séc. XIX e início do séc. XX, voltou a ser atacada pelo fascismo.

 

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Manzini, por exemplo, influenciou o Código de Rocco, de 1930, que não consagrou a presunção de inocência (entendia que seria um excesso de garantia). O fato é que ela apareceu pela primeira vez, formalizada, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Após, foi reafirmado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 10 de dezembro de 1948, que em seu artigo XI traz que: todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei.

Também prevista no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos – Ass. Geral da ONU, em Nova York, em 16 de dezembro de 1966: Art. 14.2: toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.

A Convenção Europeia de Direitos Humanos (4 de novembro de 1950, em Roma), traz em seu art. 6º: todo homem acusado de um crime tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpa seja provada de acordo a lei.

Entre nós, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), traz expressamente entre as garantias processuais mínimas, no artigo 8.2 que: toda pessoa acusada de um delito tem o direito que se presuma sua inocência, enquanto não se comprove legalmente a sua culpa.

O princípio passou a fazer parte das Constituições modernas, como por exemplo, a do Canadá (art. 11, d), da Espanha (art. 17), da Itália (art. 13), do Japão (arts. 31, 33 e 34) e de Portugal (art. 32º, 2). Alguns julgados proferidos logo após a Constituição de 1988 sobre a prisão cautelar e a presunção de inocência: a) TJSP, HC 79.565-3 (Rel. Weiss de Andrade, j. 05.06.1989; b) TACrimSP (HC 180.324-4 – Rel. Walter Teodósio, j. 18.04.1989 e HC  

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182.190-8, Rel. Juiz Barreto Fonseca, j. 12.07.1989 e do Prof. Sérgio Pitombo, em 02.12.1992, pela 10ª C. no HC 234.610-2 a respeito da prisão para apelar do que não era primário e possuía bons antecedentes como forma de não adequação do CPP à CF, ignora a interpretação sistêmica e restabelece o automatismo da prisão processual). Vale ainda mencionar o art. 386, VI, do Código de Processo Penal, que na redação original de 1941 já previa como fundamento de absolvição a falta de prova para condenar. Apesar de nosso código de 41 ser um modelo autoritário, com tendência punitiva e que rejeitava a presunção de inocência em seus aspectos fundamentais, podese ver ai um embrião dela. 2.2. Conteúdo da princípio da presunção de inocência: três significados: O princípio da presunção de inocência, além de conquista histórica e paradigma indissociável da República brasileira, se constitui em três garantias deveras importantes, as saber: 2.2.1. Garantia Política: pode-se dizer que é a mais importante forma de analisar o princípio, pois o processo penal reflete a cultura e organização política da sociedade. A Constituição consagra o Estado de Direito, onde vigora um processo penal acusatório, sendo inerente a ele a regra do in dubio pro reo. Trata-se, pois, do fundamento sistemático e estrutural do processo acusatório (dignidade da pessoa humana) no Estado Democrático e de Direito. Há a carga ideológica do princípio que o liga à própria finalidade do processo, necessário para a verificação jurisdicional da ocorrência de um crime e sua autoria (garantia da liberdade do cidadão). Aqui vale a pena destacar, como bem salientado por Gustavo Badaró, que todo indivíduo nasce livre e tem a liberdade entre seus direitos fundamentais. Tal direito, contudo, não é absoluto. A liberdade pode ser juridicamente restringida. Para tanto, é necessária expressa previsão legal e a observância de um devido processo legal. O direito à liberdade é assegurado por várias garantias, dentre as quais se inclui a presunção de inocência1.

                                                                                                                          1

 

BADARÓ, Gustavo. Processo penal – série universitária, 2ª ed. São Paulo: Elsevier, 2014, p. 22.

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Todo cidadão, portanto, tem garantida a presunção de inocência que, para ser quebrada, deve haver provas robustas de que cometeu crime, dentro, é claro, das regras do devido processo penal, balizado pelos direitos e garantias constitucionais. Garante, portanto, a presunção de inocência a liberdade do cidadão, acusado de um delito, contra o poder dever de punir do Estado. É o que sempre temos no processo penal, o jus libertatis do cidadão de um lado e, de outro, o poder dever de punir do Estado de outro, sempre em observância dos direitos e garantias individuais, dentre eles, a presunção de inocência como garantia de liberdade. 2.2.2. Regra de julgamento: aqui temos o princípio tratado de forma técnica jurídica, utilizado sempre que houver dúvida sobre fato relevante para a decisão. Sentença condenatória exige a prova cabal da culpa do acusado. A dúvida, aqui, ainda que razoável, leva a absolvição. Confunde-se, pois, neste aspecto com o in dubio pro reo. Vale a pena destacar que a regra não traz a inversão do ônus da prova. Pelo contrário, In dubio pro reo é regra de julgamento, válida para todo processo penal, não havendo que se falar em distribuição do ônus da prova. Só haverá inversão se for instituído o in dubio pro societate, expressão usada equivocadamente, por exemplo, quando se estuda a pronúncia, nos procedimentos do júri, desvirtuando toda sua função garantidora, como se verá a seguir. 2.2.3. Regra de tratamento do acusado: não é permitido que seja equiparado ao culpado. O cidadão é livre e como tal deve ser tratado, mesmo que indiciado e acusado, posto que ainda não há sentença penal condenatória definitiva. Alguns exemplos: a) Vedação das prisões processuais automáticas ou obrigatórias (Direito penal do inimigo, por exemplo, drogas, atualmente – os “menos” ou “mais” inocentes que fala Adauto Suannes). O princípio não proíbe toda prisão processual, admitindo a que seja compatível com ele, qual seja, a de natureza cautelar, fundada em juízo concreto de sua necessidade e não em presunções abstratas (periculosidade, fuga, gravidade do delito).

 

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Importante a distinção entre a prisão pena e prisão cautelar, não podendo esta fazer as vezes da pena, sob flagrante violação das garantias constitucionais do acusado, dentre elas a da presunção de inocência. Segundo Marta Saad, Diante do princípio constitucional da presunção de inocência, ou proibição de Prévia consideração da culpabilidade (artigo 5º, inciso LXII, da Constituição da República, e artigo 8º, II, do Pacto de São Jose da Costa Rica), contudo, a aplicação dessa regra sujeita--‐se a rigoroso escrutínio, não se lhe permitindo a extensão que os vagos conceitos do artigo 312 do Código de Processo Penal só aparentemente lhe conferem. Como visto, o caráter de providência transitória é indispensável à boa interpretação da prisão processual; apenas se admite a prisão processual se esta dispuser de cautelaridade, ou seja, se visar a acautelar o resultado útil do processo: “ao contrário, portanto, da prisão como pena, que é retributiva, que se baseia na responsabilidade do acusado, que é injusta para o inocente, a prisão provisória é cautelatória, funda-se na necessidade de chegar a uma solução correta e é justa de que o bem comum a exija. Trata-se de regra excepcional, cuja aplicação contorna a bem da verdade disposições legais hierarquicamente superiores. As regras relativas à prisão processual, porque exceção, precisam ser lidas à luz das garantias Constitucionais e essa prisão não pode ter outra finalidade que não endoprocessual, ou seja, a garantia do próprio processo em que é decretada. É o que, ademais, hoje prevê o artigo 282, do Código de Processo Penal, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 12.403/11. Trata--‐se de finalidade cristalinamente diversa, portanto, em essência, da pena de prisão, que possui finalidades retributiva e preventiva, geral e especial, segundo a teoria que se prefira adotar. Esse cisma, aliás, é visível no ordenamento. Há diferença ontológica entre prisão como pena e prisão como providência cautelar que explica os dispositivos do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal que determinam a separação de presos provisórios de presos definitivos.

 

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Por sua natureza, portanto, a prisão processual não poderia assimilar funções ou finalidades da prisão‐pena. Importante notar que a conclusão acima tirada, conquanto suficiente do ponto de vista hermenêutico, restringe-se ao plano ideal. A observação prática mostra aplicação mais extensa da prisão preventiva, sugerindo, de duas, uma: ou a regra dispõe de campo de incidência maior do que a lei posta revela, ou a regra é aplicada de forma transcendental, assimilando a finalidade da prisão-pena. Isso se ressalta porque, a toda evidência, “existem fundamentos apócrifos da prisão preventiva”, cumprindo

a

prisão

processual

funções

encobertas,

mascaradas, porque, “quando se argumenta com

ocultas,

razões de

exemplaridade, de eficácia da prisão preventiva na luta contra a delinquência e para restabelecer o sentimento de confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico, aplacar o clamor público criado pelo delito etc., que evidentemente nada tem que ver com os fins puramente cautelares e processuais que oficialmente se atribuem à instituição, na realidade se introduzem elementos estranhos à natureza cautelar e processual que oficialmente se atribuem à instituição, questionáveis tanto desde o ponto de vista jurídico-constitucional como da perspectiva politico-criminal. Isso revela que a prisão preventiva cumpre ‘funções reais’ (preventivas gerais e especiais) de pena antecipada incompatíveis com sua natureza”. E essa realidade é facilmente verificável, mas vendo sendo repudiada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.2

b) impossibilidade da execução provisória (apesar da praxe, inclusive com expedição de guia de execução provisória, admitir. Súmula 716, STF, que admite para a progressão de regime a execução provisória). c) Júri: uso de algemas no plenário. Nessa hipótese, muito comum na prática, vê-se uma flagrante violação da presunção de inocência. O acusado entra em plenário com as vestes do presídio (amarelo “cenourão”), com algemas nos pés e nas mãos, acompanhado por policiais.

                                                                                                                          2  SAAD,

Marta. Revista Eletrônica de Direito Penal. AIDP-GB. Ano 1, Vol. 1, nº 01, junho de 2013. Assimilação das finalidades da pena pela prisão preventiva.

 

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Tal imagem, por si só, mesmo para o juiz togado, causa impressões negativas, o que dizer para o corpo de jurados, juízes leigos e que não irão fundamentar a decisão? A violação é patente, pois influencia negativamente no ânimo dos jurados e compromete a imparcialidade do julgamento. Não é demais lembrar que, mesmo cabendo recurso de apelação, suas hipóteses são limitadas e, além disso, admitida uma única vez. d) Função garantidora da pronúncia. Outro tema dento do Júri que parece violar o princípio aqui tratado se da quando o juiz, no final da primeira fase do procedimento do Júri, por entender que houve dúvida, que a acusação não provou direito o que alegou, utiliza-se do jargão in dubio pro societate e pronuncia o réu, remetendo-o ao julgamento perante o plenário do júri, onde poderá ser condenado sem que os jurados fundamentem a decisão e, além disso, com possibilidade de recurso restringida. Doutrina e jurisprudência mais modernas estão atentas à importante função garantidora da pronúncia. Ensinam eles - e com razão, segundo nosso entendimento – que é inconstitucional a máxima in dubio pro societate, pois, em suma, se há dúvida fundada, se não há indícios suficientes de autoria, mas apenas meros indícios, vagos, não é o caso de pronunciar, pois pode se estar remetendo ao julgamento popular um réu inocente. Por ser um juízo de admissibilidade da acusação, é necessário a prova da materialidade (inconteste) e os indícios fundados, fundamentados de que o réu teria cometido o crime. Indícios sem fundamentos, desarrazoados não bastam. Vicente Greco Filho destaca: “É comum dizer que a função da pronúncia é remeter o réu a Júri. Mas rejeitamos, terminantemente, essa impostação. A função da fase da pronúncia é exatamente a contrária. Em outras palavras, a função do juiz togado na fase da pronúncia é a de evitar que alguém que não mereça ser condenado possa sê-lo em virtude do julgamento soberano, em decisão, quiçá, de vingança

 

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pessoal ou social. Ou seja, cabe ao juiz na fase da pronúncia excluir o julgamento popular aquele que não deva sofrer a repressão penal. A pronúncia, portanto, atua como uma garantia da liberdade, evitando que alguém seja condenado e não a mereça. No procedimento dos crimes de competência do juiz singular, a garantia da liberdade encontra-se na exigência da fundamentação da sentença e na possibilidade de recurso a um tribunal revisor. No procedimento do júri, em virtude da soberania e do julgamento por convicção íntima sem fundamentação, a garantia da liberdade somente pode estar na decisão de pronúncia. O raciocínio do juiz na pronúncia, então, deve ser o seguinte: segundo minha convicção, se este réu for condenado haverá uma injustiça? Se sim, a decisão deverá ser de impronúncia ou de absolvição sumária. 3

Para finalizar, vale a pena citar a lição de Sérgio Marcos de Morais Pitombo: É fácil, na sequência, perceber que a expressão in dubio pro societate não exibe o menor sentido técnico. Em tema de direito probatório, afirmar-se: ‘na dúvida, em favor da sociedade’, consiste em absurdo lógico – jurídico. Veja-se: em face da contingente dúvida, sem remédio, no tocante à prova – ou melhor, imaginada incerteza – decide-se em prol da sociedade. Dizendo de outro modo: se o acusador não conseguiu comprovar o fato, constitutivo do direito afirmado, posto que conflitante despontou a prova; então, se soluciona a seu favor, por absurdo. Ainda, porque não provou ele o alegado, em face do acusado, deve decidir-se contra o último. Ao talante, por mercê judicial o vencido vence, a pretexto de que se favoreça a sociedade: in dúbio contra reo”. 4

Alguns julgados já adotaram a posição:

                                                                                                                          3

TRIBUNAL DO JÚRI – Estudos sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira, coordenação Rogério Lauria Tucci, artigo: Questões polêmicas sobre a pronúncia,. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 118/119. 4 Pronúncia e in dúbio pro societate, p. 6, apud Guilherme de Souza Nucci, in Código de Processo Penal Comentado, São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª ed. p. 659.

 

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O Tribunal de Justiça de São Paulo: “Não pode ser mantida a pronúncia se completamente estéril a prova de autoria do delito, a qual , de modo algum ensejaria o acolhimento da acusação pelo Júri” (RT558/313). E o Tribunal de Justiça do Paraná – “Para a pronúncia não são suficientes indícios duvidosos, vagos ou incertos sem conexão com o fato e sua autoria” (RT534/416). Nesse diapasão, pontua Badaró: É claro que o juiz não precisa ter certeza ou ‘se convencer’ da autoria. No entanto, se estiver em dúvida se estão ou não presentes os ‘indícios suficientes de autoria’, deverá impronunciar o acusado, por não ter sido atendido o requisito legal. Aplica-se, pois, na pronúncia, o in dubio pro reo. 5

2.3. O princípio da presunção na CF/88 e no Pacto de San José da Costa Rica. Foi com a Constituição Federal de 1988 que o princípio recebeu expressa previsão em nosso ordenamento jurídico. Antes não havia previsão expressa, apesar de parte da doutrina já considera-lo implícito ao processo penal brasileiro. Há julgados do Supremo Tribunal Federal também nesse sentido (STF, RE 136.239, 1ª T., Rel. Celso de Mello, j. 07.04.92, v.u. RTJ 143/306 e HC 67.607, 1ª T., Rel. Min. Celso de Mello, j. 07.09.89, v.u., RTJ 141/816). A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), traz o princípio expressamente entre as garantias processuais mínimas, no artigo 8.2 que: “toda pessoa acusada de um delito tem o direito que se presuma sua inocência, enquanto não se comprove legalmente a sua culpa”. Há quem sustente diferenças entre os preceitos, no sentido de o pacto reduzir o âmbito da previsão constitucional, porém, restam extirpadas diante da clareza da norma constitucional ao dizer que somente após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória é que se considera culpado o cidadão. Além disso, há regra expressa na Convenção no sentido de que os direitos nela previstos não poderão ser interpretados restritivamente (art. 29). Deve sempre prevalecer a previsão mais favorável.                                                                                                                           5

 

BADARÓ, Gustavo. ibidem, p. 480.

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Vê-se, pois, que tanto no âmbito interno como internacional (tratados), o princípio em questão é uma verdadeira pedra angular do processo penal: “O devido processo legal somente o será na medida em que estiver em conformidade com a presunção de inocência” (Geraldo Prado).

3. Análise de julgados de Cortes Internacionais No presente tópico, abordar-se-á dois casos tratados respectivamente pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH ou Corte), que julgou a irresignação de Allenet de Ribemont contra o Governo da França; e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CADH) que decidiu os fatos levados por Suárez Rosero contra o Governo de Equador. A análise será feita através de uma perspectiva do princípio da presunção da inocência, tema objeto de estudo do grupo. 3.1. Caso Allenet de Ribemont X França: 3.1.1. Origem O caso foi levado à Corte (TEDH) pela Comissão, em 21/1/1994, por provocação do interessado (Patrick Allenet de Ribemont), alegando suposta ofensa da Corte Francesa. 3.1.2. Histórico: Antes do caso chegar ao TEDH, alguns antecedentes precisam ser expostos, para que se possa compreender os motivos que levaram Allenet a levar o caso da jurisdição ordinária francesa para a Corte Europeia. Em 24/12/1976, Jean de Broglie, membro do Parlamento e ex-Ministro, foi assassinado, em frente à casa de Allenet. A vítima tinha visitado seu consultor financeiro, Pierre De Varga, que morava no mesmo prédio do acusado (Allenet). Pierre e Allenet planejavam se tornar sócio de restaurante e o financiamento foi feito pela vítima (Jean de Broglie), que pegou dinheiro emprestado no banco, para ser reembolsado por Allenet e Pierre. Allenet e vários outros são presos, em 29/12/1976. No mesmo dia, em coletiva de imprensa da polícia francesa, o Ministro do Interior, Michel Poniatowski, o Diretor do Depto. de investigação criminal em Paris, Jean Ducret, e o Superintendente  

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chefe do setor de investigação criminal, Pierre Ottavioli, se referiram às investigações e deram o caso como encerrado, atribuindo ao Sr. Allenet culpa pelos fatos. Allenet é acusado de ser cúmplice do homicídio doloso, em 14/01/1977 e só é solto em 21/03/1980, após ordem judicial (mais de 3 anos depois da prisão). O fato de ter ficado praticamente 3 anos preso, sem que houvesse julgamento, levou Allenet a buscar reparação pelos danos sofridos. Primeiramente, Allenet tentou a reparação civil na jurisdição nacional francesa. O sistema francês é marcado pela dualidade de jurisdição, onde existem cortes administrativas que decidem questões ligadas ao Estado, e as cortes judiciais, que, de maneira resumida, julgam os demais casos. Devido a esta separação da jurisdição, Allenet buscou responsabilizar o Estado, em razão de sua prisão excessiva, ingressando com a demanda perante a Corte Administrativa, cujo procedimento passo a resumir. Allenet requereu ao primeiro-ministro indenização de 10 milhões de Francos Franceses (equivalente a 1,5 milhões de Euros ou R$ 4,5 milhões), por danos morais e materiais, devido aos prejuízos que teve com as declarações das autoridades, em 23/3/1977. O primeiro-ministro não apreciou o caso, portanto, em 20/9/1977, Allenet pede ao Tribunal Administrativo de Paris que analise seu pedido de indenização, em virtude de recusa implícita do Ministro (omissão). Entre setembro de 1977 a 13/10/1980 várias alegações foram apresentadas e o Tribunal Administrativo proferiu acórdão entendendo que não poderia revisar declarações de autoridades no exercício de suas funções, mesmo que tenha causado danos. Allenet apela ao Conseil d´Etat, em 15/12/1980, que, em 15/12/1980 entendeu que a fundamentação do Tribunal Administrativo estava equivocada, mas que este Tribunal não tinha competência para julgar o caso. Em face de não julgamento do mérito do seu pedido, Allenet buscou a via jurisdicional. A primeira via jurisdicional foi proposta em 29/02/1984, quando Allenet ingressou com ação no Tribunal de Grande Estance de Paris contra o Ministro. Este alega que o Tribunal não tinha competência.  

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Entre 14/11/1984 e 5/4/1985, durante a instrução probatória do processo, Allenet requereu que o Tribunal ordenasse às empresas de televisão que entregasse, gravações de vídeo da coletiva de imprensa. Ocorre que, em 8/1/1986, o Tribunal decidiu que o Primeiro-Ministro não podia ser parte, e sim o Estado. Além disso, indeferiu a produção de provas requeridas, entendendo que competia a Allenet juntar as provas pertinentes. Em seguida, julgou improcedente, alegando, em suma, ausência de prova das declarações. Allenet recorre para Corte de Apelação de Paris, em 19/2/1986 e alega que o sistema judicial não estava funcionando corretamente. Em 21/10/1987, a Corte de Apelação rejeita recurso, entendendo que não houve nexo entre as declarações das autoridades e o suposto dano sofrido, pois as provas juntadas não demonstravam a existência das declarações nas datas dos fatos e sim referências a entrevistas feitas posteriormente. Inconformado com a decisão, Allenet recorreu à Corte de Cassação, alegando questões de direito, em 4/11/1988. A Corte mantém a decisão do Tribunal de Apelação. Assim, esgotaram-se os recursos internos de tentativa de reparação dos danos decorrentes da prisão supostamente indevida. Por conta disso, Allenet busca a Corte Europeia de Direitos Humanos, alegando direito a um processo equitativo e presunção da inocência (art. 6º, §§ 1º e 2º da Convenção Europeia de Direitos Humanos). A demanda perante o TEDH seguiu o seguinte rito descrito abaixo. 3.1.3. Conclusões perante o TEDH Allenet entra com pedido perante a Comissão do TEDH, em 24/5/1989. Apenas em 8/2/1996 a Comissão admite reclamação quanto à ofensa ao princípio da presunção da inocência e da duração do processo. O TEDH utilizou os seguintes fundamentos para admitir e julgar parcialmente procedente o pedido de Allenet: a) Aparente conflito entre os princípios da Liberdade de expressão (art. 10 da Convenção) em face da presunção de inocência: segundo a Corte, o direito de expressão não pode impedir autoridades de informarem o público sobre investigações criminais, desde que o façam com discrição e prudência para respeitar a presunção da  

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inocência. As declarações das autoridades foram incompatíveis com a presunção da inocência. b) O TEDH entendeu que existiu ofensa ao princípio da duração razoável do processo. Embora tal demora tenha decorrido de vários fatores (1- confusa dualidade de jurisdição, 2- complexidade do caso, 3- dificuldade da prova, 4- bem como demora excessiva causada também pelo Allenet) que atrasaram o processo por cerca de três a quatro anos, não justifica o atraso superveniente de cerca de 8 anos, havendo culpa concorrente, notadamente do Governo Francês. O processo interno na França durou mais de 11 anos, o que não foi considerado razoável pelo TEDH. c) Houve ofensa reflexa ao princípio da presunção da inocência, já que tal princípio pode ser ferido através de declarações de autoridades administrativas e até em processos cíveis, não se limitando ao processo penal. Por conta da prisão considerada indevida, que decorreu apenas das declarações das autoridades policiais em uma coletiva de imprensa, o TEDH entendeu que Allenet perdeu a confiança perante a sociedade, o que gerou lucros cessantes e danos morais (2 milhões de Francos Franceses [aproximadamente 300 Mil Euros] mais 100 mil Francos Franceses de custas e despesas), mas Tribunal não condenou em danos materiais pretéritos. Houve um voto divergente que entendeu inexistir danos tampouco ofensa : ao art. 6-2 da Convenção, mantendo-se a condenação em custas, pois tal princípio só pode ser aplicado no âmbito processual, não podendo irradiar seus efeitos para questões extraprocessuais, como as declarações das autoridades. Tal posicionamento, considerado mais tradicional, acabou sendo superado pelo tribunal. 3.2. Caso Suárez X Equador Rafael Iván Suárez Rosero procurou a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CADH), para tentar reverter decisão desfavorável obtida no ordenamento jurídico interno do Estado do Equador. Abordaremos os antecedentes que levaram Rosero a buscar a tutela jurisdicional perante o Equador, a resposta dada pelo referido Estado, e os motivos que o levaram a buscar a CADH, bem como o resultado do julgamento pelo Tribunal Internacional. 2.2.1 Antecedentes

 

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Rosero, que trabalhava como agente de segurança da empresa Challenge Air Cargo e nunca havia tido problemas judiciais, foi preso em 23 de junho de 1992, juntamente com Nelson Salgado, por dois senhores encapuzados e sem mandado de prisão, os quais se encontravam em um veículo sem identificação. A prisão foi feita por dois agentes da Interpol que, após receberem denúncia anônima de que haviam sujeitos ocultando drogas mediante incineração, realizaram a diligência e prenderam os suspeitos. Durante a prisão, não foram encontradas as supostas drogas que motivaram a denúncia e a prisão. Mesmo assim, Rosero foi autuado em flagrante, sem saber quem eram os responsáveis pela sua prisão. Levado para a Delegacia, Rosero foi torturado, pois os policiais queriam saber sobre uma quadrilha de tráfico de drogas. Sem saber dos fatos, e ainda sem direito a sequer ter contato com advogado, Rosero foi colocado em uma cela, passou 30 dias dormindo em cima de um jornal, não pôde informar sua família sobre a detenção. Acabou contraindo pneumonia e só conseguiu ver sua família em 28 de julho de 1992 (mais de um mês após sua prisão). Apenas em 12 de agosto de 1992, o juiz decretou a prisão preventiva de Rosero. A prisão preventiva, ou seja, antes do julgamento final, durou cerca de 4 (quatro) anos. Rosero acabou sendo condenado, sem jamais ter sido levado a um juiz (segundo seu depoimento), quatro anos após sua prisão (9 de setembro de 1996). A questão é que a pena aplicada a Rosero foi de apenas 2 (dois) anos, pela ocultação da droga, enquanto o mesmo havia ficado 4 anos preso. Durante o processo penal no Equador, alguns fatos merecem destaque. A decisão da Corte Superior de Justiça, seguindo opinião do Fiscal (MP?), indeferiu revogação da preventiva e não apontou quais os indícios, apenas abordou de maneira genérica, conforme se extrai do seguinte trecho: “por el momento; y, de conformidad con lo señalado en el informe de la Policía que sirve de base para que se de inicio al presente juicio penal, así como de las declaraciones presumariales aparecen indicios de responsabilidad en contra de[l] sindicado[...]: Iván Suárez Rosero

 

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[...] no procede la solicitud de revocatoria de la orden de prisión preventiva que pesa en su contra”.

A decisão da Corte Suprema de Justiça que negou habeas corpus também foi genérica e refutou por questão formal – não indicar o juízo que praticou o ato coator, nos seguintes termos: [l]a petición presentada [.] no aport[ó] dato informativo alguno que permita conocer la clase o naturaleza del juicio por el cual indica há sido privado de su libertad, distrito al que pertenece el Presidente de la Corte Superior de Justicia que ha dictado la orden respectiva, lugar de la detención, fecha a partir de la cual se encuentra privado de libertad, motivo, etc, por lo cual no es posible acogerla al trámite y se le deniega, ordenando su archivo;

Tais irregularidades levaram Rosero a buscar reparação perante a CADH. O processo, no Tribunal Internacional, levou o seguinte desfecho descrito no próximo item. 3.2.2 Indenização perante a CADH A Corte foi provocada ainda quando Rosero se encontrava preso. Em fevereiro de 1994, a Comissão (órgão vinculado à CADH), recebeu denúncia de ofensas aos Direitos Humanos. A Comissão levou o caso à CADH em dezembro de 1995, alegando ofensa ao direito à integridade física, liberdade pessoal, garantias judiciais, proteção judicial, todos relacionados à obrigação de respeitar os direitos previstos na Convenção Interamericana de Direitos Humanos. A Comissão pleiteou que o processo fosse rapidamente julgado e de maneira justa, bem como que os abusos não voltassem a se repetir para outros casos, punindo-se os responsáveis. Também foi pleiteada indenização para Rosero, pelos abusos cometidos. A CADH deu ganho de causa a Rosero, alegando, em suma, os seguintes fundamentos relacionados ao princípio da presunção da inocência:

 

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a) O depoimento de Suárez não podia ser considerado isoladamente, pois era interessado. Porém, as cortes equatorianas se basearam nos depoimentos isolados dos policiais para condenar. b) A prisão decorreu de denúncia anônima, sem ordem judicial. c) O réu não foi acompanhado de advogado na prisão. O Tribunal Internacional não ingressou na questão de fundo quanto à culpabilidade de Rosero no crime de tráfico, pois entendeu que a questão era alheia à posta ao julgamento perante a CADH. A análise recaiu apenas sobre os fatos relacionados ao processo judicial e às medidas preventivas adotadas contra Rosero (prisão). A CADH entendeu que Suárez, por ter sido preso em situação que não era de flagrante, e, apenas mais de um mês depois ter sido proferida decisão pela sua prisão preventiva, teve direitos ofendidos previstos no art. 7º, 2 e 3 da Convenção Americana. Em resumo, a CADH entendeu que houve ofensa ao princípio da presunção da inocência (art. 8 da convenção), fundamentando na duração excessiva do tempo em que ficou preso (quase 4 anos); à incomunicabilidade e à impossibilidade de ter acesso ao advogado. Os pleitos formulados pela Comissão perante a Corte tiveram os seguintes resultados: em relação à imediata soltura e julgamento rápido, restaram prejudicados, pois já haviam ocorrido, quando do julgamento da questão. Já o pedido de condenação do Estado do Equador para que investigasse e punisse os responsáveis pela ofensa, bem como, para que evitasse que tais abusos voltassem a ocorrer, foram julgados procedentes. Também reconheceu o direito à reparação dos danos em favor de Rosero e seus familiares, cujo valor seria apurado em uma segunda fase, que dependeria de dilação probatória. A decisão da CADH foi tomada em 12 de novembro de 1997.

 

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4. Análise da jurisprudência nacional relativa ao princípio Mais do que falar sobre a efetividade e respeito ao princípio (ou garantia) da presunção de inocência, é importante consignar os principais julgados relativos à sua violação e, que resultaram em decisões paradigmáticas no sentido de sua aceitação e aplicação pelos Tribunais Superiores nacionais.

4.1. HC 82.959-7/SP – (STF – Pleno – Rel. Min. Marco Aurélio). Inconstitucionalidade do §1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90 Desta feita, em 26.02.2006, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 82.959-7/SP, decidiu sobre a inconstitucionalidade do §1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, que determinava o cumprimento integral da pena, relativa a prática de crime hediondo, em regime fechado, impossibilitando a progressão de regime penitenciário. A discussão sobre o princípio da inocência passa ao lado do enfoque principal aferido pelo writ. Com a proibição de progressão de regime, viola-se, segundo o Min. Marco Aurélio, o princípio da individualização das penas levando a ideia de retribuir o “mal pelo mal causado”, sabidamente contrário aos objetivos do contrato social. Com esta premissa, a razão de ser da progressividade no cumprimento da pena não é em si a minimização desta, ou o benefício indevido, mas sim o interesse na preservação do ambiente social, da sociedade, que, algum dia, receberá novamente o condenado. Todavia, no processo de individualização da pena, o magistrado, observando os ditames do art. 59 do Código Penal, deverá determinar o regime inicial do cumprimento da pena (e portanto, pena provisória e sem assunção definitiva de culpa). Neste ponto, se há violação à individualização já que a previsão original da Lei n. 8.072/90 era no sentido de proibir a progressão e com isso violava a individualização, acaba por violar também, ainda que indiretamente, o princípio da inocência. Após a declaração de inconstitucionalidade do referido parágrafo, o Poder Legislativo acabou por acatar o posicionamento do Supremo e alterou a redação da Lei n. 8.072/90 para admitir que o regime inicial de cumprimento de pena seja o fechado, possibilitando com isso, a progressão de regime.  

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Não há que se esquecer, ainda, que tal posicionamento hoje também encontra-se superado, em razão julgamento do HC 111.840 (STF - Rel. Dias Tófoli) que também considera o parágrafo primeiro do art. 2º da Lei n. 8.072/90 inconstitucional, permitindo que o regime inicial de cumprimento de pena, ainda que frente a prática de crime hediondo, respeite as regras do art. 33 do Código Penal, podendo ser o fechado, semiaberto ou aberto.

4.2. HC 84.078 – Execução antecipada da pena Até o julgamento do Habeas Corpus 84.078, havia divergência na jurisprudência sobre a possibilidade de execução de pena com condenação em primeiro grau de jurisdição, confirmada em segunda instância, pendentes Recurso Extraordinário e Recurso Especial. A tese da execução antecipada se baseava no sentido de que em RE e Resp. não seria mais possível a discussão de matéria fática, ligados a autoria e materialidade do crime. Apenas seria possível a discussão de direito, o que ensejaria a execução da pena aplicada. O CPP (art. 637) e a Lei 8038/90 (art. 27, §2º) não conferiram efeito suspensivo aos recursos ao STF e STJ e por isso, permitiriam a execução antecipada da pena. Por força da regra de tratamento atribuído ao princípio da inocência, qualquer que seja a modalidade de prisão cautelar, não deve a mesma, se não baseada nos pressupostos de cautelaridade, ser usada como meio de antecipação da execução penal. Neste sentido, o Supremo entendeu que as disposições da Lei de Execução Penal, em especial os art. 105, 147 e 164, se alinhavam melhor a ordem constitucional vigente, sobrepondo-se formal e materialmente às disposições do art. 637 do CPP. O modelo de execução penal consagrado na reforma penal de 1.984 confere concreção ao chamado princípio da presunção de inocência, admitindo o cumprimento da pena apenas após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A Constituição de 1.988 dispõe regra expressa sobre esta matéria. Aqui, como observou o Ministro Cezar Peluso em voto na Reclamação 2.311, não é relevante indagarmos se a  

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Constituição consagra, ou não, presunção de inocência. O que conta, diz ainda o Ministro Cesar Peluso, é o “enunciado normativo de garantia contra a possibilidade de a lei ou decisão judicial impor ao réu, antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória, qualquer sanção ou consequência jurídica gravosa que dependa dessa condição constitucional, ou seja, do trânsito em julgado da sentença condenatória”6.

A execução antecipada não pode ser justificada já que em países democráticos, até mesmo os criminosos são sujeitos de direitos (Lewandowski). Assim, neste julgado, o STF rechaçou tal possibilidade, afirmando que a presunção de inocência não sofre qualquer limitação ou restrição quanto à matéria em julgamento – se de fato ou de direito.

4.3.

HC

97.256/RS



(STF



Pleno



Rel.

Ayres

Britto).

Inconstitucionalidade do art. 44 da Lei nº 11.343/06 e ADI 3.112-1/DF – (STF – Rel. Min. Ricardo Lewandowski). Inconstitucionalidade do art. 21 da Lei nº 10.826/03. Tema ainda deveras relevante entrelaçado ao princípio da inocência relaciona-se com a prisão cautelar ex lege, ou seja, obrigatória, derivada de imposição legal. Neste sentido, não se analisavam as fundamentações e pressupostos autorizadores da prisão cautelar. No Habeas Corpus 97.256/RS que decidiu sobre a inconstitucionalidade do art. 44 da Lei nº 11.343/06 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.112-1/DF, a qual apontou a inconstitucionalidade do art. 21 da Lei nº 10.826/03, o Supremo debateu de frente a violação ao princípio da inocência por esta modalidade de prisão. Baseavam-se os textos em vedar a medida cautelar de liberdade provisória, dada a gravidade do crime praticado. Impunha-se, assim, a prisão automática e a crítica que recaia sobre esta modalidade de prisão é a de que ela retirava do Judiciário a possibilidade de análise da necessidade de medida cautelar (notadamente preventiva) no caso concreto.

                                                                                                                          6

 

HC 84.078/MG – (STF – Voto Min. Eros Grau).

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As medidas cautelares justificam-se diante de um comportamento do réu no sentido de turbar a investigação ou a persecução, ou seja, o processo. A prisão obrigatória, de resto, fere os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LV), que abrigam um conjunto de direitos e faculdades, os quais podem ser exercidos em todas as instâncias jurisdicionais, até a sua exaustão. Esses argumentos, no entanto, não afastam a possibilidade de o juiz, presentes os motivos que recomendem a prisão ante tempus, decretar justificadamente a custódia cautelar. O que não se admite, repita-se é uma prisão ex lege, automática, sem motivação. Em outras palavras, o magistrado pode, fundamentadamente, decretar a prisão cautelar, antes do trânsito em julgado da condenação, se presentes os pressupostos autorizadores, que são basicamente aqueles da prisão preventiva [...]. 7

Por isso, a imposição de sanções automáticas, sem qualquer análise da conduta concreta do afetado não tem qualquer natureza cautelar, pois não está atrelada a fatos que indiquem a possibilidade de perecimento de direito ou bens, mas caracteriza sanção antecipada. Não por acaso está sempre ligada com a hediondez da imputação, gravidade do crime, ou seja, a uma acusação que está ainda em curso. Cautelar automática é execução antecipada de pena, uma vez que carece de justificativa instrumental.

4.4 ADPF 144 – (STF – Rel. Celso de Mello) e ADI 4578 – (STF – Rel. Luiz Fux). Impossibilidade de criação de hipótese de inelegibilidade decorrentes da vida pregressa do candidato. Segundo o §9º do art. 14 da Constituição Federal há a possibilidade de se criar inelegibilidades decorrentes da vida pregressa do candidato por lei complementar. Discutia-se a possibilidade de restringir a legitimidade eleitoral passiva com base em processos em andamento ou condenações não transitadas em julgado, independente de criação de lei complementar.

                                                                                                                          7

 

ADI 3.112-1/DF – (STF – Voto Min. Ricardo Lewandowski).

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O STF concluiu na ADI 144 que o princípio da presunção de inocência extrapola a esfera do processo penal, sendo inviável a restrição de direitos em decorrência de ação penal não transitada em julgado. A presunção de inocência também irradia seus efeitos sempre em favor de pessoas contra o abuso de poder do Estado. Cabe reafirmar, bem por isso, Senhor Presidente, uma observação concernente ao postulado da presunção de inocência: trata-se de garantia – que possui eficácia irradiante, apta a projetá-la para esferas processuais não-criminais – cuja invocação, contra qualquer autoridade ou Poder do Estado, mostra-se pertinente não só nos casos de recebimento da denúncia (como sucedia no regime anterior), mas, também, em qualquer situação na qual não se haja formado a coisa julgada, a significar, portanto, que os fundamentos que que deram suporte ao magnífico voto proferido pelo eminente e saudoso Ministro Leitão de Abreu a propósito da qualificação do recebimento judicial da denúncia como causa de inelegibilidade são inteiramente aplicáveis a qualquer outra situação processual, mesmo àquelas com sentença já proferida, mas ainda não tornada definitiva, por efeito do trânsito em julgado8.

A Lei Complementar 135/2010 – Lei da Ficha Limpa, previu que são inelegíveis aqueles que praticaram algum crime previsto na norma (fé pública, patrimônio público, sistema financeiro). Previu-se a inelegibilidade daquele que foi considerado culpado por órgão colegiado, ainda que não houvesse trânsito em julgado. Na ADI 4578 entendeu-se que a LC 135 é constitucional. Justificou-se dizendo que a LC 135 apenas criou uma condição de elegibilidade, qual seja: não ter sido condenado por órgão colegiado pelos crimes indicados na lei. As demais condições de elegibilidade (brasileiro, alistado, domicílio na circunscrição eleitoral, filiado, idade mínima, alfabetizado) são condições que não se relacionam com qualquer comportamento anterior sobre o qual recaia uma reprovação. Já a inexistência de uma condenação tem íntima relação com o reconhecimento de culpa pela prática de crime. Ainda que considerada constitucional, a LC 135 pressupõe juízo de culpa e este só existe com trânsito em julgado de sentença penal condenatória.                                                                                                                           8

 

ADPF 144 – (STF – Voto Min. Celso de Mello).

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5. Conclusão Os direitos e garantais individuas representam uma enorme conquista da humanidade. Foi um grande passo, conquistado às duras penas e que continua até nossos dias, numa luta contínua contra arbitrariedades perpetradas pelo Estado em detrimento do cidadão, que é livre e inocente, até que se prove o contrário, por meio de um processo justo, com estrita observância das garantias individuais. E somente por meio desse instrumento é que a liberdade do cidadão, essência de toda e qualquer relação que envolva o Estado, pode ser retirada. Ainda não se encontrou outro meio que não o direito penal para tutelar os bens mais importantes para a vida social. Violência que é, deve ser aplicado, por meio do processo, com a estrita observância dos direitos e garantias individuais. O princípio da presunção da inocência, ao lado também dos outros princípios que iluminam o processo penal, por tudo que foi analisado no presente trabalho, por consubstanciar a pedra de toque do processo penal no Estado Democrático de Direito, deve ser observado em todos os seus aspectos. Apesar de toda teoria, a jurisprudência ainda é muito relutante em adotá-lo integralmente, especialmente nas questões levantadas, que são, a nosso ver, as mais sensíveis por envolverem diretamente a liberdade dos cidadãos. Por outro lado, de nada adianta lutar por um processo democrático se o direito material ainda traz resquícios autoritários. O Direito penal, também, dever ser lido, feito e aplicado sob o manto do Estado Democrático de Direito. Deve ser sempre lembrado que o direito penal e seus princípios representam uma limitação ao poder do Leviatã. Em que pesem as mais modernas teorias da dogmática penal na discussão de aplicação do Direito Penal a ramos que até então não fazia parte (meio ambiente, economia) e de sua legitimidade para tanto na chamada sociedade do risco, jamais podese afastar de sua função delimitação do poder e da violência estatal. Esse aspecto deve ser resgatado expurgando, por exemplo, o direito penal do autor, na sua versão mais recente, intitulada de Direito penal do inimigo.

 

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Nesse aspecto, especialmente no plano internacional, não há como fechar os olhos para Guantánamo, onde os EUA, pretensos pais do iluminismo ignoram de forma patente as flagrantes violações de direitos humanos, dos princípios mais básicos de justiça. Assim, ao mesmo tempo em que a sociedade internacional parece evoluir por um lado, por outro parece retroceder à barbárie. E é contra esse retrocesso que o processo penal moderno, ainda que numa pretensa sociedade do risco, com base sólida nos direitos e garantias conquistados às duras penas, especialmente o da presunção de inocência, deve se pautar.

 

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7. Referências bibliográficas.

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