A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA À BRASILEIRA

June 6, 2017 | Autor: Marco Aurélio | Categoria: Criminal Law
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A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA À BRASILEIRA.
Marco Aurélio Gonçalves Ferreira.
Advogado, Mestre e Doutor e direito,
Professor da Faculdade de direito da UFF e Unesa.

A perspectiva compara da presunção de inocência.

O processo penal brasileiro é resultado de um somatório de alterações normativas. No entanto, desde do código de 1832, com a reforma de 1871, culminando com o código de 1941 que o processo penal brasileiro mantém a mesma lógica de uma estrutura processual sem abertura de espaço para institutos modernos como a presunção de inocência, mas vem mantando a histórica presunção de culpa.
Enquanto que países que, influenciaram o direito brasileiro, como os EUA, a presunção de inocência é um elemento que compõe a estrutura do processo judicial, no direito brasileiro essa garantia se mostra apenas como uma premissa inserida na subjetividade do juiz, mas completamente desconecta da estrutura do processo.
Embora, de acordo com pesquisas, (GUEIROS, 2012) 97% das demandas criminais dos EUA terminam preliminarmente no plea bargaing (negociação da culpa antes do processo) o processo judicial anglo-americano propriamente dito é o julgamento pelo júri. Esse processo foi pensado como um instrumento de defesa somente para aqueles cidadãos que se declaram inocentes, ou seja, caso o indivíduo queria sustentar a sua inocência então solicita a instauração do processo penal, no qual o órgão de acusação deverá se submeter as regras de produção de prova, com o ônus de demostrar a culpa do acusado no padrão de prova chamado Beyond resonable doubt, que se traduz como para além de uma dúvida razoável ( FERREIRA, 2013 p 29). Nada próximo a isso existe no direito brasileiro!
Na tradição anglo-americana a razão pela qual o processo se instaura é da presunção de inocência. Portanto, o surgimento do próprio processo se reveste de um direito no qual as pessoas que se declaram não culpadas se socorrem para sua defesa, caso contrário realizam a negociação com o órgão de acusação ( plea bargaing.) No decorrer do processo anglo-americano, que é o julgamento pelo júri, a presunção de inocência exige que o ônus da prova recaia exclusivamente sobre a acusação, que para alcançar uma condenação deve demonstrar a credibilidade a de suas provas em um alto padrão de verossimilhança. Este padrão é o mais elevado no direito americano e representa a necessidade de cerca de 75% de verossimilhança das provas para uma condenação. (GARAPON; PAPADOPOULOS, 2008, p. 108). Desta forma, uma prova apresentada pela acusação que não alcance esse padrão deve então pesar em favor do réu. A defesa não necessita produzir a prova, pois tem como eficaz instrumento de defesa a possibilidade de buscar desqualificar o padrão da acusação para um mais baixo e assim conseguir a absolvição.
Não existe no direito anglo-americano a busca da verdade real, pois o que prevalece são as regras do jogo. Consequentemente não existe atos instrutórios do juiz, portanto não existe a figura do perito do juízo, testemunha informante etc..
A matriz do processo penal brasileiro não foi pensada como uma garantia de direitos das pessoas acusadas, a base do nosso processo não foi pensada como um instrumento de defesa para os inocentes, mas sim como um instrumento de legitimação para punir culpados, conforme sua exposição de motivos expõe:
As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidencia das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. (Grifo nosso)
Institutos modernos como: a presunção de inocência, limitação das provas, direito ao silêncio, vedação a autoincriminação são estranhos a estrutura do processo penal brasileiro e passam ao largo de sua lógica. Embora a cláusula do devido processo legal esteja no artigo 5 inc LIV da Constituição Federal, no título dos direitos e garantias fundamentais, o processo penal brasileiro, diferente da tradição anglo americana, (FERREIRA, 2004) está longe de ser um direito fundamental conferido ao cidadão brasileiro em oposição ao poder do estatal, mas um direito do Estado, que por meio do processo realiza a persecução penal.

As modernas premissas constitucionais não produziram uma significante mudança na estrutura do processo criminal, tampouco na sensibilidade jurídica (KANT DE LIMA, 2010, p 25) e nos sentidos de justiça no ordenamento jurídico brasileiro. A inserção de garantias contemporâneas serve como remendo a uma estrutura dada, pronta e acabada de processo, mas que foi erigido sem a perspectiva da observância dos modernos direitos fundamentais. Com efeito, a estrutura do processo penal brasileiro não comporta o moderno instituto da presunção de inocência.
O inquérito policial brasileiro é um instrumento de investigação do Estado que materializa provas, sem as garantias do contraditório e de ampla defesa e é elaborado por funcionários dotados de fé pública. Ao afirmar que o indivíduo é o provável autor do crime, com base nos indícios de autoria e prova da materialidade e todas as suas tipificações na lei penal, o inquérito policial é em seguida encaminhado ao promotor de justiça que oferecerá a peça de denúncia a partir do próprio inquérito, ou seja, a partir da probabilidade de que o indivíduo é o autor do crime, conforme o artigo 12 do CPP: " O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra. "
De acordo com o procedimento legal, o magistrado ao receber a peça de denúncia verificará se há probabilidade de veracidade da denúncia, assim verificará a existência dos indícios de autoria e participação em um crime. Após essa verificação, em seguida realizará a citação para que o acusado apresente a defesa dessa probabilidade, conforme art 396 do CPP. Observa-se que, diferentemente do direito anglo-americano, o processo penal brasileiro se instaura com a presunção de autoria de um crime. Assim, a premissa sob a qual o processo de inicia é a chamada in dubio pro societate . Está premissa, que a princípio significa que na dúvida o processo deve ser instaurado para proteger a sociedade, denota que o sentido do processo não é a garantia do cidadão, mas um instrumento que, supostamente, protege a sociedade, portanto induz a percepção de que na dúvida o indivíduo cometeu o crime. Nesta perspectiva, a presunção pela qual o processo se inicia é a presunção de culpa do acusado e não de inocência.
No curso do processo judicial anglo-americano se a prova trazida pela acusação não apresentar uma verossimilhança de beyond resonable doubt (para além de uma dúvida razoável) ela deverá pesar em favor do réu, assim se, no curso do processo, a prova apresentada pela acusação apresentar dúvidas quanto a sua credibilidade, então incide o in dubio pro reo sobre aquela prova. No direito brasileiro vigora a busca pela verdade real, que legitima os poderes de oficio e instrutórios do juiz no processo penal. Assim, por exemplo, se no curso do julgamento houver uma dúvida quanto a credibilidade de uma prova apresentada pela acusação, pode então o juiz, de acordo com a lei, efetuar diligências para sanar sua dúvida. É o que afirma o Código de Processo Penal.
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício:
I (...)
II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante. ( grifo nosso)
Desta forma, percebe-se que a busca pela verdade real e os atos instrutórios do juiz não permitem que no curso do processo haja o in dubio pro reo. Ao final do processo, caso o magistrado pessoalmente tenha dúvida, então se abre a possibilidade absolver o réu e fundamentar com a presunção de inocência. Assim, o espaço para sua incidência reside única e exclusivamente na subjetividade do magistrado ao final do processo.
Vale destacar duas formas de investigação ou inquérito, uma que poderemos encontrar em alguns métodos próprios das ciências e outra do modelo inquisitorial de processo que vigorou na idade média (FOUCAULT, 1999). Nas ciências diante de um evento natural, o indivíduo elabora uma pergunta que visa a compreensão daquele fenômeno. Uma pergunta na qual não detém a resposta, sendo este o objetivo primordial de sua investigação. O modelo inquisitorial de investigação não parte de uma pergunta na qual não se tem uma resposta, mas sim de uma premissa na qual a investigação se debruça para confirmá-la. Essa última forma de investigação é de matriz inquisitorial. Na idade média, os procedimentos secretos visavam a confirmação das delações sigilosas. Essa é a lógica na qual ainda se baseia a estrutura do processo penal brasileiro e da forma na qual o sistema brasileiro atualiza o instituto da delação premiada. A hipótese que se busca confirmar é delimitada no inquérito policial, em seguida reproduzida na peça de denúncia ministerial, que constrói a premissa que intenta ser confirmada na ação penal.
O direito brasileiro se reconhece como sendo da tradição da civil law, na qual a previsibilidade da atuação estatal está determinada na lei em sua estrutura codificada. No entanto, é de se estranhar que a categoria presunção de inocência não se encontre em nenhuma lei, ou estatuto do ordenamento jurídico brasileiro.
Como demostrado, o processo penal não se inicia e tampouco se desenvolve sob o princípio da presunção de inocência.
O debate sobre a decisão do STF que retoma a execução provisória da sentença penal.
Diversas vozes se levantaram em defesa do instituto da presunção de inocência quando do recente julgamento do STF que restaurou a execução provisória da sentença no processo penal brasileiro quando julgou o Habeas Corpus 126.292. No entanto, a presunção de inocência é estranha a estrutura do processo e das práticas judiciais brasileiras.
Vale explicar que no processo penal brasileiro, até momento antes da decisão do STF, o acusado por um crime poderia somente responder o processo preso em razão de prisão preventiva. Assim, mesmo após a denúncia e até o julgamento nas cortes superiores o indivíduo pode responder o processo preso se houver os abstratos requisitos do artigo 312 do CPP, que autorizam a prisão preventiva. Curioso observar que, de acordo com o CNJ, 32% da população carcerária no Brasil é formada por presos provisórios. Isto significa que 32% das pessoas acusadas em um processo judicial em curso não tiveram a suposta presunção de inocência desde a primeira instância.
A sociedade brasileira é hierarquizada ( DAMATTA 2006, p. 143) e o sistema penal brasileiro, guiado por essa característica, é seletivo na aplicação da punição e o gozo da presunção de inocência, por conseguinte, também é seletivo no direito à liberdade. A abstração dos requisitos da prisão preventiva faz com que indivíduos de que ocupam a classe social dos " homens de bem", que " acidentalmente" caem na malha fina da justiça penal, em grande parte, respondem o seu processo em liberdade. Enquanto que a classe social a que pertencem os "homens de mau", ou seja, menos favorecida, em boa parte responde o seu processo em prisão. Acontece que tal fato não gera grande estranhamento no Brasil, visto que já é lugar comum no país ter um alto número de presos provisórios, desde que seja de determinado segmento social


Conclusão.
Ao comparamos o direito brasileiro com outras tradições jurídicas, notamos que a presunção de inocência objetivamente não existe na estrutura do sistema penal. Essa garantia é somente um discurso, um argumento inserido no texto constitucional, mas desconectado da estrutura do nosso processo. Assim, o processo penal brasileiro rege-se por uma dinâmica que estrutura e se organiza a partir da presunção de culpa, mas concomitantemente insere o argumento da presunção de inocência. Tal contradição é útil na medida em que permite que a esse pretexto seja distribuída a seletividade na justiça penal. É razoável o reclame de alguns de que a execução provisória da sentença possa aumentar o número de encarcerados no Brasil, mas de fato dificilmente mudará a seletividade da prisão e do exercício do direito à liberdade, seja pelo curso do processo, seja na condenação definitiva.
A pretexto de buscar uma maior efetividade das garantias processuais inscritas na Constituição Federal o pensamento garantista nacional, produz um discurso fluido, na medida em que para adaptar a Constituição ao texto infra constitucional, o princípio sacrifica a literalidade do texto legal, elemento essencial ao modelo da Civil Law que busca a previbilidade do direito na lei escrita. O simples esforço de adaptar velhos preceitos a concepções contemporâneas, desconsideram por completo o lastro axiomático dos institutos modernos, violando assim as representações e os valores históricos dos antigos institutos e produzindo na atualidade uma antinomia que somente se justifica em uma sociedade hierarquizada, mas que se pretende juridicamente parecer democrática e igualitária.
O fato é que até o momento não há no discurso "garantista" nacional uma proposta de processo penal mais afeito às garantias presentes nos modelos democráticos pelo quais se baseou a nossa Constituição. Tal fato insere o discurso "garantista" como mais um elemento na disputa dos nos espaços pela interpretação do direito, ou seja, na disputa de "dizer o direito," sem no entanto, mudar de forma significante o ordenamento jurídico vigente.
Há uma necessidade de que o processo penal seja reformado e que as garantias constitucionais sejam verdadeiramente incorporadas a sistemática do processo e não mero standard princípiológico de aplicação subjetiva e convencional.

Referências bibliográficas:

DA MATTA, Roberto. Carnavais, Mlandros e Heróis. Rio de Janeiro: Zahar,2006.

FERREIRA. Marco Aurélio Gonçalves. A presunção da inocência e a construção da verdade. Ed. Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2013.
___________________. O devido processo legal: Um Estudo Comparado. Rio de Janeiro: Lumen juris. 2004.

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Ricardo Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU, 2003.

GARAPON, Antoine.PAPAPOULOS, Ioannis. Julgar nos Estados Unidos e na França: cultura jurídica francesa e common Law em uma perspectiva comparada.Tradução de Regina Vasconcelos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
GUEIROS. Ricardo Um Estudo Empírico em Perspectiva Comparada Entre a Transação Penal e a Plea Bargaining no Sistema de Justiça Criminal do Brasil e dos EUA. Tese apresentada no Curso de pós-graduação em Direito, do Departamento de Ciências Jurídicas, da Universidade Gama Filho, como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Direito. 2012.

KANT DE LIMA, Roberto. Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de alguns aspectos do direito brasileiro em uma perspectiva comparada Anuário Antropológico/2009 - 2, 2010.


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