A preto e branco : folheando os relatórios médicos da Diamang

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A preto e branco: folheando os relatórios médicos da Diamang TERESA MENDES FLORES

  Esta pequena investigação integra o estudo “História da Cultura Visual da Medicina em Portugal”, financiado pela FCT (HC/0110/2009), e desenvolvido por uma equipa do Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens da Universidade Nova de Lisboa. Este projeto foi concebido e é dirigido pelo professor Fernando Cascais. 2   Charles Sanders Peirce (1839-1914) foi um filósofo e matemático americano que desenvolveu os fundamentos de uma disciplina lógica que designa de “Semiótica”. A noção central é de que todo o pensamento desenvolve inferências lógicas de tipo triádico, envolvendo três elementos: um representamen (por exemplo, uma palavra; uma imagem, um gesto), um objeto (os significados possíveis dessa palavra, imagem ou gesto) e o interpretante (o significado dessa palavra, imagem ou gesto de acordo com o contexto de interpretação e/ou de produção do signo). Á relação lógica entre estas três instâncias Peirce chamou “signo”. Por isso, Peirce diz que o representamen (que é o signo existente) está sempre no lugar do seu objeto, pois representa o seu objeto. O signo institui uma mediação simbólica entre si próprio, o objeto que representa e a mente interpretadora. Cf. Charles Sanders Peirce, Semiótica (S. Paulo, Editora Perspectiva: 2000). E ainda: Gérard Deledalle, Écrits Sur le Signe. (Paris: Éditions du Seuil, 1975); Gérard Deledalle, Théorie et Pratique du Signe. (Paris: Payot, 1979); Teun A. Van Dijk, Society and Discourse. How Social Contexts Influence Text and Talk (Cambridge and New York: Cambridge University Press, 2009); Ruth Wodak and Michael Meyer, Methods of Critical Discourse Analysis (London, Thousand Oaks and New Delhi: Sage Publications, 2009). 3   Este cargo foi criado com esta designação em 1956. Depreende-se da leitura dos relatórios que antes desta data seriam redigidos pelo Médico-Chefe, cargo equivalente (Cf. Relatório de 1967, pp. 2 e 4). 1

Neste texto pretendo refletir sobre as razões e modos de uso da fotografia nos relatórios dos serviços médicos da antiga empresa de diamantes de Angola, Diamang, no quadro mais vasto dos problemas e objetos de uma história da fotografia em contexto colonial, e também da cultura visual da medicina em Portugal 1. Tomarei como objeto de estudo as fotografias incluídas no relatório de 1967 dos serviços de saúde da companhia, que tomo como caso exemplar na plena acepção do termo: um elemento único no seu carácter de artefacto individual, com o peso singular da sua materialidade própria; e, simultaneamente, retirado de uma série de objetos produzidos segundo critérios, funções, contextos e princípios lógicos semelhantes. Este relatório é idêntico em muitos aspetos aos outros da sua série, susceptível de funcionar como representante de todos os outros, ou seja, de estar no lugar desses outros, precisamente porque surgem de uma mesma ordem discursiva e institucional. Daí decorrendo, justamente, a sua exemplaridade. Para quem está familiarizado com o trabalho semiótico de Charles Sanders Peirce, certamente reconhece, aqui, a sua noção de signo definida como “algo que está no lugar” do objeto do signo 2. Este texto constitui, então, um exercício de interpretação do referido artefacto, tomado como signo daqueles relatórios e da prática fotográfica e discursiva onde todos se inscreveram. Este relatório de 1967 foi redigido pelo Diretor dos serviços médicos, o médico J. H. Santos David 3. Trata-se de um conjunto de 267 folhas A4 datilografadas e agrupadas numa capa de cartolina [Figura 1], contendo, em numeração autónoma, 57 páginas com o título “Documentação Fotográfica”, cada uma das quais exibindo duas fotografias, impressas a preto e branco, em papel fotográfico, e diretamente coladas nas folhas. Contém um total de 114 fotografias. O relatório não é, como se depreende, impresso tipograficamente. As páginas das fotografias são intercaladas de modo aleatório entre as páginas do texto, embora obedecendo a uma organização interna, autónoma à do texto. Esta estrutura discursiva repete-se nos outros doze relatórios dos serviços de saúde, com mais ou menos fotografias por relatório. Compreendidos entre 1949 e 1972, são treze os relatórios que encontrámos no arquivo do Museu de Antropologia da Universidade de Coimbra e que integraram a 1

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Figura 1. Capa do Relatório da Direcção dos Serviços de Saúde (RSS) da Diamang de 1967. “Duplicado do gabinete”.

recolha de documentos visuais no âmbito do projeto de investigação sobre a História da Cultura Visual da Medicina em Portugal (ver nota 1). O Museu de Antropologia da Universidade de Coimbra adquiriu o espólio que se encontrava na sede da Diamang, em Lisboa, por ocasião do encerramento daquela empresa após a independência de Angola 4.

As fotografias enquanto artefactos A atenção que dispensei à descrição material do relatório e do modo como nele podemos encontrar as fotografias tem que ver com a estratégia de abordagem destas fotografias que, seguindo Elizabeth Edwards, considera o representacional não só enquanto estratégia semiótica mas enquanto processo social 5. Como escreveu Nuno Porto na sua investigação sobre o Museu do Dundo, pertencente à Diamang, “as fotografias são coisas” o que tem implicações metodológicas diversas, nomeadamente, o de devermos “acrescentar ao discurso relativo às características atribuídas ao medium – elas próprias suscetíveis de escrutínio caso a caso – a explicação das contingências específicas da produção, circulação e consumo de fotografias concretas” 6. A condição de documento histórico com que se transforma, neste olhar, o estatuto destas fotografias – que na sua determinação originária na Diamang, cumpriam outras funções – procura ter aqui a particularidade de colocar a fotografia como objeto central da investigação e não como testemunho de outros acontecimentos históricos. O acontecimento que pretendemos, aqui, captar é a própria fotografia enquanto prática de uma cultura visual, neste contexto específico. A fotografia é o acontecimento. Não quer isto dizer que ela não entre em jogo com outros acontecimentos, com os quais se relaciona de dados modos, os quais devem ser também objeto de investigação. Sob a influência da crítica pós-estruturalista, a área disciplinar da cultura visual vem afirmar, de forma consonante com o desenvolvimento das metodologias de análise crítica do discurso, que toda a imagem resulta de um regime visual ou de visualidade o qual é constituído, como todo o discurso, por relações de poder com dadas figuras ou formas de dominação. Deleuze, criticando

  Com a extinção formal da Diamang, em 1988, o Museu de Antropologia da Universidade de Coimbra viria a comprar o espólio da Diamang, primeiramente o que se encontrava na sede de Lisboa e, já em 1999, receberia em depósito, da empresa que em Portugal assumiu a continuidade da Diamang, uma série de documentação variada, onde se incluem os relatórios médicos aqui referidos. A Universidade de Coimbra tem vindo a digitalizar e disponibilizar este material em linha, no sítio . 5   Elizabeth Edwards, “Photography and the material performance of the past”, in History and Theory, Theme Issue 48 (December 2009), 130-150, p. 131. 6   Nuno Porto. Modos de Objectificação da Dominação Colonial: O caso do Museu do Dundo, 1940-1970 (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian: 2009), p. 185-186. 4

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o estruturalismo linguístico, afirma, corrosivo, que toda a palavra é palavra de ordem precisamente para sublinhar o caráter performativo – e de luta – de toda a linguagem 7: toda a palavra é ideológica e serve interesses dos seus falantes, manifesta e estrutura as suas relações de poder, muitas vezes reforçando poderes desiguais 8. A palavra é, ela própria, um elemento dessas relações de forças, um elemento agonístico decisivo no conjunto das interações sociais. No seu célebre Arqueologia do Saber (1969), Foucault contesta igualmente os pressupostos da linguística estruturalista, propondo o conceito de “regime discursivo” e dos seus respetivos campos de possibilidades e impossibilidades como categorias operativas: A análise do campo discursivo é orientada de um modo muito diferente [da análise linguística]; trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade do seu acontecimento; de determinar as condições da sua existência, de fixar da forma mais adequada os seus limites, de estabelecer as suas correlações a outros enunciados que lhe possam   Gilles Deleuze e Félix Guatari, Mil Planaltos. Capitalismo e Esquizofrenia 2 (Lisboa: Assírio e Alvim, 2008). 8   O termo ideologia é aqui usado como sinónimo do conjunto de representações sobre o mundo, ou mundividências, que orientam toda a produção de sentido de determinados grupos sociais. Para a análise das múltiplas acepções do termo e a discussão das suas implicações Cf. Teun A. Van Dijk, Ideology: An Interdisciplinary Approach (London, Thousand Oaks and New Delhi: Sage Publications, 1998); Ruth Wodak, Language, Power and Ideology. Studies in Political Discourse (Amsterdam and Philadelphia: John Benjamin’s Publication Company, 1989). 9   Michel Foucault, L’Archéologie du Savoir (Paris: Éditions Gallimard, 1969), p. 40. A tradução a partir do texto original em francês é da nossa responsabilidade. Existe versão portuguesa: Michel Foucault, Arqueologia do Saber. (Lisboa: Almedina, 2005). Apresentação de António Fernando Cascais. 10   Gilles Deleuze, L’image-mouvement. Cinéma 1 (Paris: Minuit, 1983), p. 8.; João Mário Grilo, A Ordem no Cinema. Vozes e palavras de ordem no estabelecimento do cinema em Hollywood. (Lisboa: Relógio d’Água, 1997). 11   W.J.T. Mitchell, “Showing Seeing. A critique of visual culture”. Journal of Visual Culture, Vol 1(2) (2002): 165-241, p. 181. 12   Thomas Luckmann e Peter Berger, A Construção Social da Realidade (Lisboa: DinaLivro, 2010). 13   De acordo com Marshall McLuhan. Cf. Compreender os Meios de Comunicação. Extensões do Homem (Lisboa: Relógio d’Água, 2008). 7

estar associados, de mostrar que outras formas de enunciação ele exclui. Não procuramos de todo, por baixo daquilo que é manifesto, a conversa fiada, meio silenciosa, de um outro discurso; devemos mostrar porque não poderia ser diferente do que é, em que medida exclui qualquer outro, como toma, no meio dos outros e por relação a eles, um lugar que mais nenhum poderia ocupar. A questão característica deste tipo de análise, poderíamos formulá-la do seguinte modo: qual é então, essa singular existência que vem à luz do dia no que se diz – e não noutro lado qualquer? 9

Evidentemente, a cultura visual dirige estas mesmas questões para as práticas da imagem e para as determinações sociais dos lugares culturais da visão. É neste sentido que João Mário Grilo, a propósito da consideração de Deleuze sobre a vulnerabilidade acrescida do cinema face a outras formas de expressão, sugere politizar o olhar com a seguinte afirmação contundente: “Um filme está sempre no lugar de outro” 10. Uma imagem está sempre no lugar de outra, tanto no sentido da equivalência com outras igualmente possíveis, como no sentido, mais forte, de não dar espaço à existência de outras imagens diferentes. Esta consciência politiza todo o olhar, condição indispensável para a compreensão das imagens enquanto objetos de representação e comunicação visual que resultam de certos contextos e interferem, através da representação, nos seus modos sociais de ser e de se apreender socialmente. Como refere W.J.T. Mitchell “a cultura visual é a construção visual do social e não apenas a construção social da visão” 11. Este aspeto, para além de entender a visão como uma construção social, afirma a performatividade dos “atos visuais”: ou seja, as diversas representações da visualidade (não subsumíveis apenas às imagens) são compreendidas como construtoras da realidade social, o que leva esta área de estudos a atentar na importância mediadora da técnica 12. Dos artefactos técnicos em geral, entendidos como “extensões do corpo” 13. Mas, em parti3

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cular, àqueles destinados à produção e distribuição de imagens e de signos visuais, que têm sobretudo caracterizado a modernidade e acentuado o seu ocularcentrismo 14. No campo da fotografia têm-se destacado as investigações foucaultianas de John Tagg sobre o dispositivo fotográfico como “tecnologia do eu” em diversos contextos institucionais “disciplinares modernos”. Tagg – tal como Allan Sekula, Abigail Solomon-Godeau e Geoffrey Batchen, entre outros – contesta todo o discurso modernista de cariz greenbergiano que afirmava a especificidade do fotográfico. Para ele, toda a “essencialidade” é socialmente construída e, por isso, relativa aos usos institucionais: A fotografia em si não tem identidade. O seu estatuto enquanto tecnologia varia consoante as relações de poder que a investem. A sua natureza enquanto prática depende das instituições e agentes que a definem e põem a trabalhar. A sua função enquanto meio de produção cultural está ligada à definição de condições de existência e os seus produtos são significativos e legíveis apenas dentro das valorações particulares que aí tiverem. A sua história não tem identidade. Cintila através de um campo de espaços institucionais. É o campo que devemos estudar, não a fotografia em si. 15

Considero que alguma “pregnância” técnica e material atravessa os campos institucionais que recorrem à fotografia e que sustentam a persistência de certas identidades, tranversalmente. No entanto, é verdade que o dispositivo fotográfico serve estratégias institucionais diversificadas, investe e é investido por uma pluralidade de relações sociais que lhe atribuem diversos significados, capazes de funcionar e constituir diferentes regimes de visualidade. A abordagem da cultura visual considera toda a representação como uma prática social e, tal como a análise crítica do discurso e a concepção pragmática da comunicação, coloca o contexto de uso no centro da sua análise 16.

As fotografias e a sua interpretação: algumas questões metodológicas Assim, voltando ao nosso objeto particular e à frase de Edwards de que toda a fotografia resulta de um processo social, que põe em jogo atores sociais diversos em um ou mais contextos institucionais, verificamos que este relatório dos Serviços Médicos de 1967 atravessa e põe em relação vários contextos institucionais. Em primeiro lugar é resultado de um modo de gestão empresarial e serve uma burocracia institucional precisa. Por outro lado, cunha-se igualmente no interior da organização social médica e dos modos de produção visual do conhecimento, onde a fotografia desempenha um papel preciso, tanto na elaboração quanto na legitimação dos conhecimentos. Além disso, a produção destas 114 fotografias coladas no relatório implicaram a participação de diversos intervenientes, desde logo, o fotógrafo e o Laboratório de Fotogra-

  Cf. Nicholas Mirzoeff, “The Subject of Visual Culture” in Nicholas Mirzoeff, Org., The Visual Culture Reader (New Fetter lane and New York: Routledge: 1998,2002), pp. 3-23. Martin Jay, Downcast Eyes. The Denigration of Vision in Twentieth-Century French Thought (Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press, 1993) 15   John Tagg, The Burden of Representation. Essays on Photographies and Histories (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988), p. 63 16   Cf. Nota 2; Ver ainda Gunther Kress e Theo Van Leuween, Reading Images. The Grammar of Visual Design (London and New York: Routledge, 1996, 2006). 14

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  Alguns dos outros enunciados foram os seguintes: Médicos: José Picoto, “Assistência médico-cirúrgica na Lunda pelo serviço de saúde da Diamang. Elementos estatísticos de cinco anos de actividade”. Separata dos Anais do Instituto de medicina Tropical, volume X, nº 4, Fasc. I, Setembro de 1953: 2677-2703; J.H. Santos David, Alguns aspectos da assistência médico sanitária do concelho do chitato (Lisboa: Companhia de Diamantes de Angola, 1965); Um accionista: Francisco da Cunha Leal, Coisas de Tempos Idos: Coisas do Tempo Presente (Lisboa: Edições Inquérito, 1956); O Administrador: Ernesto de Vilhena, Aventura e Rotina: Crítica de uma crítica (Lisboa: Edições Império, 1955); O sociólogo: Gilberto Freyre, Aventura e Rotina – Sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de carácter e acção (Lisboa: Livros do Brasil, 1953). 18   Jorge Varanda, «A asa protectora de outros: as relações transcoloniais do Serviço de Saúde da Diamang». In Cristiana Bastos e Renilda Barreto (org.), A Circulação do Conhecimento: Medicina, Redes e Impérios (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2011) pp. 339-372; Jorge Varanda, “A Saúde e a Companhia de Diamantes de Angola”, História – Ciência – Saúde, vol. 11 (suplemento 1), 2004, pp. 261-268; Philip Havick, “Saúde Pública, microbiologia e a experiência colonial: o combate à malária na África Ocidental (1850-1915)”. In Cristiana Bastos e Renilda Barreto (org.), A Circulação do Conhecimento: medicina, Redes e Impérios (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais: 2011) pp. 375-416;Meaghan Vaughan, «Healing and Curing: Issues in the Social History and Anthropology of Medicine in Africa». Social History of Medicine (1994) 7, 2, pp. 283-95; Roy M. MacLeod e Milton James Lewis, Disease, Medicine and Empire: perspectives on Western Medicine and Experience of European Expansion (Londres, Nova Iorque: Taylor & Francis, 1988); José Mattoso, História de Portugal – O Estado Novo (1926-1974). Volume VII. Lisboa: Editorial Estampa, 1994; Michel Foucault, O Nascimento da Clínica. Traduzido por Roberto Machado (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977 – Primeira edição original 1963). 19   Nuno Porto, Modos de Objectificação, pp.189-225; Tentei também contatar um dos fotógrafos da Diamang para marcar uma entrevista sobre as específicidades do trabalho fotográfico realizado para os Serviços de Saúde, mas não foi possível. 20   A natureza da comunicação visual não permite alguns dos procedimentos lógicos da comunicação verbal, tais como 17

fia da empresa, os membros dos serviços médicos que convocaram e autorizaram a presença do fotógrafo e todos e todas aqueles e aquelas que se deixaram fotografar, incluindo os próprios e as próprias pacientes. Como se produziriam estas fotografias? Que relações de poder põem em jogo, revelam ou reforçam? Que cumplicidades são necessárias para que uma fotografia se produza? E para que se produza de acordo com dadas retóricas visuais – uma determinada estética – e não outras? Responder a estas questões implica a articulação entre o que está representado nas imagens e o que lá não está, exercício heurístico complexo que implica o recurso a diversas outras fontes, visando encontrar as regularidades discursivas de que nos fala Foucault, os outros “enunciados” com os quais este nosso enunciado entra em relação, os domínios sociais que atravessa e que o regulam, os “enunciados” excluídos, aqui, particularmente, o que fica “fora-de-campo” e é excluído pelo “campo”, numa operação que sendo uma necessidade técnica do dispositivo fotográfico, configura inescapavelmente uma dada política do olhar. Confluem assim, neste texto, enunciados diversos respeitantes ao objeto em si: as fotografias e as suas legendas; estas e a relação com o texto do relatório e os seus diversos gráficos; a organização conceptual destas fotografias e dos diversos elementos textuais. Outros enunciados são exteriores ao objeto: consultámos conferências e outros escritos publicados por alguns médicos autores destes relatórios; pesquisámos declarações de responsáveis da empresa 17; algumas publicações da época sobre a Diamang e fontes secundárias diversas sobre a organização da empresa e a organização médica colonial da época 18. Investigámos o contexto político do “Império Português” e diversos estudos de história da cultura visual da medicina. Consultámos investigações sobre a Diamang, nomeadamente, a de Nuno Porto onde, entre outros aspectos, se relatam conversas com pelo menos um dos fotógrafos da Diamang 19. Desta forma procurei situar o modo como a fotografia era compreendida e usada no contexto da empresa e nos diversos campos onde atua, bem como identificar as práticas de visualidade e dominação que põe em jogo. Esta tarefa é especialmente difícil já que as fotografias instituem sempre um certo mutismo. A sua iconicidade é sempre imperativa, mas ao contrário do discurso verbal, cuja lógica formal permite explicitar de maneira mais determinada uma dada ideia ou pensamento, a fotografia, mesmo com a sua legenda, por não obedecer à lógica formal, dada a sua natureza de imagem, é suscetível de apresentar uma maior indeterminação 20. Roland Barthes introduziu a noção de “isto foi” para caraterizar a essência da fotografia: trata-se da consciência de que toda a fotografia se refere a um acontecimento ou objeto que existiu necessariamente diante da fotografia para que ela ocorresse 21. a negação, a contradição e não contradição ou a exclusão (‘o terceiro excluído’). A metacomunicação é outra das impossibilidades da imagem. Cf. Manfredo Massironi, Ver pelo Desenho (Lisboa: Edições 70, 2010).

  Roland Barthes (1915-1980) foi um semiólogo francês que desenvolveu esta noção no seu ensaio sobre a imagem fotográfica intitulado A Câmara Clara. Nota sobre a Fotografia (Lisboa: Edições 70, 1980). 21

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Assim, este acontecimento ou objeto a que a fotografia se refere está sempre necessariamente no passado, tornando a fotografia um dispositivo que induz uma espécie de “viagem no tempo”, ou seja, um dispositivo mnemónico (ligado à memória). Por extensão, podemos também dizer que todo o texto verbal também tem o seu “isto foi”, isto é, todo o texto é índice do momento da sua própria escrita, e toda a escrita é também, em si mesma, um acontecimento. Porém, o “isto foi” fotográfico não testemunha unicamente o seu fazer, como a escrita. Pelo contrário, certifica a própria existência do objeto representado. No entanto, apesar disto, cada fotografia não cessa de lançar dúvidas sobre o seu acontecimento, sempre “desterritorializante”, sempre instituidor de um corte espácio-temporal, lançando dúvidas sobre os sujeitos e objetos que nelas nos interpelam.

As fotografias na ordem institucional: a circulação das fotografias médicas A Diamang apresenta-se como uma grande organização privada, de capitais internacionais, a operar num setor altamente rentável e para cujo empreendimento obteve uma concessão especial do Estado português sobre uma região extensa do noroeste do território angolano, na Lunda. A Diamang foi fundada em 1917, como desenvolvimento de uma primeira empresa de pesquisa mineira fundada em 1912 – a PEMA (Pesquisas Mineiras de Angola). A PEMA fazia prospecção na região da Lunda, após notícias de que a empresa mineira belga Forminière descobrira diamantes na região, no seu lado da fronteira, no Congo. Esta empresa belga viria a ser uma das parceiras na criação da Diamang, após a descoberta dos jazigos. No capital da Diamang entram investidores portugueses da empresa Henry Burnay&Companhia, que viria a tornar-se no Banco Burnay, e do Banco Nacional Ultramarino; franceses, do banco de L’Union Parisienne; dos Estados Unidos, o grupo Ryan-Guggenheim, e como referido, os belgas da Société General de Belgique e da Mutualité, ligados à Forminière . Segundo Varandas 22, os americanos detiveram o poder de governo da empresa até à década de 30, apesar da legislação que obrigava a que as empresas em território angolano tivessem na sua administração gestores portugueses (Lei n.º 241 de 20 de Fevereiro de 1923). A empresa recebeu do governo da colónia a concessão total e exclusiva de prospecção num território equivalente a cerca de metade da dimensão de Portugal Continental, a troco de 40% dos lucros (mais tarde passaram a ser 50%) 23. A empresa foi nacionalizada em 1977, após a descolonização, e acabaria por ser extinta em 1988, dando lugar à actual Endiama. Os serviços médicos da empresa foram constituídos em 1920. Com sede em Lisboa, a Diamang tem escritórios nas principais capitais do negócio de diamantes. Esta dimensão internacional, a par das relações com as zonas de exploração, em Angola, exige tecnologias de informação e organização burocrática fiáveis e eficazes para uma gestão centralizada e a operar à dis-

  Jorge Varanda, “A Saúde e a Companhia de Diamantes de Angola”, História – Ciência – Saúde, vol. 11 (suplemento 1), 2004, pp. 261-268. 23   Fonte: Diamang digital, em . Consultada a 9 de Julho de 2013. 22

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  Nuno Porto, Modos de Objectificação, p. 197. 25   Ver, a propósito da relação entre valor informativo e modernismo, o trabalho de Robin Kelsey, Archive Style. Photographs and Illustrations for U.S. Surveys, 18501890 (Berkeley, Los Angeles and New York: University of California Press, 2007). 26   Santos David, Relatório dos Serviços , p. 5. 27   José Picoto, “Assistência médico-cirúrgica na Lunda”, p. 2690 28   Santos David, Relatório dos Serviços de Saúde, 1967, p. 4. 24

tância entre os vários pólos geográficos da empresa. A fotografia integra este sistema de controlo à distância e de certificação e construção de uma evidência visual do cumprimento das decisões, veiculadas através de ‘memorandos’ e ‘ordens de serviço’ 24. A partir de final dos anos 40, a presença de fotografias nos relatórios mensais e anuais dos diversos serviços é regular e obedece a esta função de documentação, auto legitimadora da actividade da empresa e certificadora do seu ‘regular’ funcionamento, de acordo com as diretrizes previstas. Nos relatórios do serviço de saúde as fotografias surgem agrupadas na secção “Documentação Fotográfica”, evidenciando esse caráter simultaneamente probatório e informativo da fotografia, por via da sua condição de índice do real, reforçada por uma estética ‘modernista’ que obedece a essa função informativa 25. No caso dos serviços médicos, os relatórios circulam entre a sede de Lisboa e de Luanda, uma cópia segue para os Serviços de Saúde e Assistência de Angola e, como escreve Santos David no relatório de 67, uma cópia é entregue “a partir deste ano, a seu pedido, verbalmente a nós expresso, ao Secretário Provincial da Saúde, Trabalho, Providência e Assistência de Angola” 26. Esta entrega revela uma relação de supervisão exercida pelas autoridades estatais na então designada, desde a Constituição de 1952, Província Ultramarina de Angola, no que concerne ao contrato de concessão. Este previa que a empresa prestasse cuidados de saúde, primeiramente aos empregados e, a partir de meados dos anos 40, segundo José Picoto, médico responsável pelos Serviços de Saúde da Diamang entre 1927 e 1956 , a toda a população da zona de exploração 27. A circulação destas imagens e destes textos não era, pois, apenas interna à Administração da empresa mas assumia um papel político relevante, um uso propangadístico visando provar o cumprimento do contrato de concessão. Aliás, existiam, por vezes, duas versões do mesmo relatório, como acontece no caso de 1967. Santos David aborda assuntos considerados delicados, neste caso a dificuldade de estabilização por mais de dois anos do pessoal médico, e que não seguiam para a instituição governamental. Escreve Santos David: “É evidente que esta parte é confidencial, interna, e assim, não faz parte da cópia que, por pedido, é enviada anualmente à Direcção dos Serviços de Saúde e Assistência de Angola” 28. Também esta indicação de que o relatório é enviado “por pedido”, revela uma relação de forças entre ambas as instituições e uma vontade da Diamang de não se subjugar, apesar de exercer a sua actividade em regime de concessão. No RSS de 1967 não conseguimos confirmar se existiriam também diferenças ao nível das imagens incluídas. Pelo seu teor ‘normalizado’, suspeitamos que não. Além disso, a retórica associada aos Serviços de Saúde da Diamang serve propósitos de política internacional cada vez mais destacados, desde que, durante os anos 50, Portugal vê as suas posições coloniais ameaçadas pelo eclodir de movimentos independentistas, sobretudo nos outros países europeus. Mais uma vez, mostrar a capacidade ‘civilizadora’ e ‘assistencial’, era determinante para a justificação do regime colonial. Mais ainda quando, durante a década de 50, a Organização Internacional do Trabalho passou a inspecionar 7

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as condições sanitárias nas colónias, o que reforçou a necessidade de uma narrativa humanitária e civilizadora que assentava bem nos serviços de saúde. Era, por isso, relevante mostrar a obra feita no tocante à assistência médica, onde a fotografia desempenhará um papel destacado 29. Aliás, o Laboratório e o Arquivo Fotográfico vêem as suas atividades reforçadas ao nível de equipamentos e ajudantes durante esta época, embora fosse sempre apenas um fotógrafo principal contratado 30. Como sublinha Porto, para o fotógrafo tratava-se de cumprir ordens e encontrar a melhor forma de resolver cada caso, já que o fotógrafo trabalhava para todas as seções e Direções de Serviço da empresa. Por isso, responde a situações muito diversificadas que colocam questões técnicas e retóricas particulares. Vemos isso, desde logo, no Serviço de Saúde pois o trabalho fotográfico deve cobrir aspectos que vão desde reportagem em torno de acontecimentos relevantes, fotografia de arquitetura e equipamentos, a um uso científico na documentação das doenças e resultados das intervenções cirúrgicas. O fotógrafo é então, literalmente, “um funcionário do aparelho”, como escreve Vilem Flusser a propósito do trabalho sistematizador e formatado, técnica e socialmente, pelo programa inscrito na câmara fotográfica31. Para Flusser o programa técnico obedece a um programa mais vasto, um programa do programa, que são os aparelhos burocráticos modernos. Algo que neste contexto se cumpre totalmente. Porto sublinha a distância que neste contexto existe face ao discurso emancipatório do autor fotográfico enquanto artista: A identificação do fotógrafo da companhia enquanto agente de uma estrutura laboral [é importante], em lugar da redução do seu papel enquanto ‘autor’ e do seu trabalho ao de uma ‘obra’ susceptível de análise enquanto processo de criação subjetiva de imagens fotográficas, apreensível, hoje, na sua valorização plástica e, portanto, exclusivamente estética ou histórica (eg. Fotografia colonial). Trata-se não de um autor mas de um técnico, encarregado de deslocar e transportar – a fim de o submeter ao olhar da administração em Lisboa – o desenrolar da vida na Lunda usando, para esse efeito, a mediação fotográfica 32 .

Ao fotógrafo exige-se “arte” no cumprimento dos objetivos empresariais, referindo-se este termo sobretudo à sua competência técnica e comunicacional. Nos relatórios que consultámos é omitido o autor das fotografias. Apenas o Diretor dos Serviços, Santos David, assina. Serão dele, provavelmente, também, as legendas que acompanham as fotografias. Este anonimato do olhar fotográfico atravessa quer o discurso de gestão empresarial quer o campo científico, ambos devedores de uma estética documental modernista e conceptual, apesar de alguma diversidade de abordagens, como o relatório de 1967 torna evidente.

  Como escreve José Picoto na sua participação no congresso de medicina tropical de 1953: “A ocupação sanitária total da Circunscrição do Chitato, empresa necessariamente de grande vulto, impunhase, que mais não fosse por humanitarismo” (Picoto, 1953: 2677). Ou, na conclusão do relatório: “examinando (estes dados) com atenção, de certo ressaltará o esforço desenvolvido, grandes cuidados e carinhos dedicados pela nossa Companhia à assistência (médica)” (idem: 2699). Esses “cuidados e carinhos” orientam o olhar fotográfico destes relatórios. Devem ser a sua prova visual. 30   De acordo com Nuno Porto foram três os fotógrafos contratados, sequencialmente, pela Diamang: Renato Amorim, até 1948; Agostiniano de Oliveira, entre 1948 e 1964; Júlio Pedro, entre 1964 e 1975. Com a implementação do Cinema Índigena desde 1950, passaram também a proceder a algumas filmagens para filmes. Cf. José da Costa Ramos, “Diamang – cinema a preto-e-branco”. In Angola: O Nascimento de uma Nação. Volume I: O Cinema do Império, Org. Maria do Carmo Piçarra e Jorge António, 97-122 (Lisboa: Guerra e Paz, 2013). 31   Vílem Flusser, Ensaio sobre a Fotografia. Para uma Filosofia da Técnica (Lisboa: Relógio d’Água, 1998; 1ª edição original 1983). 32   Nuno Porto, Modos de Objectificação, p. 196. 29

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A “Documentação Fotográfica” do Relatório dos Serviços Médicos (1967)

  Tese contestada, por exemplo, pelo historiador Fernando Rosas em “O salazarismo e o homem novo: ensaio sobre o Estado Novo e a questão do totalitarismo”. Análise Social, (2001) vol. XXXV, 157: 1031-1054. 34   A saúde era um dos seus trunfos e talvez também por isso, estas imagens não sendo destinadas a publicações impressas de circulação mais vasta, apresentam uma qualidade assinalável que as habilitaria a serem veículo da imagem externa da empresa. O que deveria acontecer, uma vez que os relatórios sendo distribuídos às autoridades governamentais, suscitariam essa possibilidade de uma circulação mais alargada. De resto, as fotografias dos casos clínicos mais singulares que se incluíam nos relatórios, tornavam-se também objeto de circulação em congressos e publicações médicas especializadas (como no o caso dos gémeos, um “branco e outro preto” como a legenda sugere). 35   Estas proibições estavam de acordo com as directrizes das comissões de censura. Cf. Ana Cabrera (org.) Censura nunca mais!. A censura ao teatro e ao cinema no Estado Novo (Lisboa: Aletheia, 2013). 33

São quatro os sub-capítulos em que as 114 fotografias estão divididas: 1) instalações sanitárias; 2) visitas oficiais; 3) atividades sanitárias e 4) casos clínicos, mostrando a diversidade de trabalhos fotográficos a realizar. Esta sequência produz uma narrativa visual em crescendo, que vai da ocupação territorial patente nas fotografias arquitetónicas das “instalações sanitárias”, às fotografias quase mundanas das visitas, com os retratos de grupo dos visitantes, ao estilo da “fotografia de família”. Segue-se as fotografias de reportagem das atividades dos diversos funcionários, aproximando a escala fotográfica, que era distante e espacial nas imagens de arquitetura, para se tornar, nestas fotografias das “atividades sanitárias”, mais próxima da escala humana das ações e dos rostos concretos que fazem a empresa. Depois, a câmara torna-se “científica” para documentar as doenças e os sucessos clínicos do ano, numa narrativa de antes e depois, que pretende confirmar e legitimar o trabalho médico e assistencial à população negra, a única fotografada nos casos clínicos; a única constituída em objeto do saber médico colonial, contrastando com o conteúdo textual do restante relatório. Todas as fotografias neste relatório e as suas respetivas legendas são elementos da mesma narrativa, apesar da sua diversidade aparente: contam a história do progresso civilizador e do são convívio entre raças, repercutindo a tese de que a colonização portuguesa tinha uma forma de operar branda e integradora, distinta de outros povos colonizadores 33. A narrativa fotográfica visa testemunhar da grandiosidade e do caráter necessário da ação colonizadora da Diamang 34. Porém, nestas mesmas imagens estão manifestos outros sentidos, embora reprimidos pelo ponto de vista único da empresa e do regime. A legendagem e a forma de contextualização das imagens no interior do relatório são duas estratégias que servem este propósito. Os sentidos reprimidos relacionam-se com a estratificação social com base na raça e no género, que surge evidente nas imagens, bem como a diabolização médica dos negros e a sua recorrente infantilização. Outra forma de controlo prende-se com o que se suprime, aquilo que é proibido mostrar: pessoas pobres, andrajosas e sujas; ações violentas sobre os negros; mortes; casos médicos mal sucedidos (uma vez que em todos os relatórios que consultei nenhum caso desses surge, o que reforça os objetivos políticos e estratégicos dos relatórios); protestos ou quaisquer indícios de rebelião no contexto político de guerra da independência em que se encontrava a colónia desde 1961 35.

As fotografias das instalações hospitalares e o imaginário do progresso civilizacional As fotografias das “instalações sanitárias” mostram edifícios de arquitetura moderna europeia, construídos ou em construção, através das quais se sus9

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tenta o discurso da presença civilizadora e pacificadora. Estas fotos comprovam essa presença e dão expressão visual ao cumprimento das decisões sobre a edificação de uma rede de dispensários rurais emanada da Administração e da instâncias políticas governamentais. As imagens fazem o balanço visual dessas realizações. Para este fim é indispensável o recurso a legendas que identifiquem os tipos de edifícios e os locais fotografados. Estas legendas desempenham uma função referencial fundamental à leitura da geografia do território, à geo-localização do objeto fotografado (o famoso efeito de ancoragem denotativa de Barthes) 36. A sua disposição sequencial, embora intercalada com páginas de texto, produz o efeito expressivo da figura de estilo da enumeração, produzindo no espectador o sentimento de diversidade e quantidade, conotando produtividade e eficiência 37. Alguma diversidade de escalas e ângulos também contribui para este efeito multiplicador. A comparação de fotografias em momentos diferentes, mostrando o adiantado das obras, é outra das estratégias [fotos n.os 21 e 22 da Figura 2]. A voz do narrador consegue articular a adjetivação ao tom referencial predominante. Isto é conseguido porque a adjetivação é conjugada com a imagem, propondo-se, não como uma qualificação subjetiva, mas como uma descrição referencial da imagem, de que esta se torna prova, confirmando-se, texto e imagem, mutuamente. Daqui resulta uma orientação do olhar do (a) espectador(a), imediatamente filtrado pela interpretação preferencial proposta, que deste modo se impõe ao/ à leitor(a) e se naturaliza. É o caso das imagens 3 e 4 deste relatório [figura 2]. Na primeira, a legenda ancora o olhar a um objeto presente na imagem: “placa ajardinada junto aos refeitórios, no Hospital do Sacavula”, mesmo quando é efetivamente o jardim que está em primeiro plano na imagem. Esta redundância entre o que é salientado na imagem e na legenda permite garantir que o olhar recai efetivamente sobre o jardim, eliminando qualquer dúvida sobre o que se pretende mostrar. Na imagem seguinte, uma sequência desta, qualificam-se estes espaços com a objetividade da descrição, proposta como uma evidência que só pode colher aprovação do leitor: “os recantos estão cuidados e embelezados”, interpretação que a imagem passa a ratificar. Esta estratégia retórica atravessa toda a “documentação fotográfica”. Parecendo descrever, prescreve-se uma interpretação idílica: “A grama e os arbustos tornam aprazível o aspeto do Hospital do Sacavula... E os doentes de tuberculose sentem-se bem nesse ambiente agradável e sedante” escreve-se noutra legenda 38. Ou, a propósito de outra imagem, “...A mesma vista do pátio interior, ficou guarnecida com uma bela varanda” 39.

Figura 2. Fotografias de “Instalações Sanitárias”. “Documentação Fotográfica” do RSS de 1967.

  Cf. Roland Barthes, «Retórica da imagem» in O óbvio e o obtuso (Lisboa: Edições 70, 1984). 37   Neste relatório de 1967, são 22 as fotografias referentes a “instalações sanitárias”, referindo-se a cinco unidades diferentes (Hospital do Sacavula; Dispensário-Enfermaria do Calonda; Hospital do Lóvua; Hospital do Canzar e Dispensário-Enfermaria do Cafunfo em Cuango). Apesar de constituírem cerca de 2% do total das imagens deste relatório a ideia de diversidade está presente. 38   RSS, 1967, fotos 5 e 6, p. III. 39   RSS, 1967, foto nº 10, p. V. 36

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  RSS, 1967, foto nº20, p. X   Algumas das fotografias que mostram um pouco mais dos terrenos envolventes evidenciam a sua localização rural e a desflorestação circundante. 40 41

Ou ainda “O berçário da Maternidade do Canzar tem este agradável aspecto, depois de concluído” 40. Mais uma vez, a imagem passa a valer como “agradável”, comprovando o texto. Constrói-se assim uma narrativa de sonho, que imagina e prescreve o que deverão sentir os futuros internados nestes ambientes arquitetónicos. As fotos sublinham as linhas retas do estilo arquitetónico moderno e, mesmo enquadrando os edifícios quase sempre de forma oblíqua, fazem-no reforçando, na imagem, as linhas horizontais [imagens 21 e 22, figura 2]. Os elementos humanos estão ausentes da maioria destas fotos ou, quando surgem, a sua presença não é destacada. São em geral trabalhadores negros que se confundem com o todo, tornados, por isso, praticamente insignificantes. A maior parte das fotografias enquadra os edifícios a média distância, embora com alguma diversidade de escalas e pontos de vista. Elimina-se do enquadramento os terrenos envolventes ou revela-se apenas uma pequena parcela, o que contribui para essa eliminação de “África em África”, como refere Gilberto Freyre, e para a construção de uma imagem paradisíaca dos locais construídos 41. Além disso, estas construções são em geral térreas e de média dimensão. Assemelham-se mais a vivendas privadas do que à típica arquitetura pública dos grandes Hospitais. Por isso, parecem prometer estadias faustas e “sedantes”, num paraíso domesticado e seguro. Estas fotos funcionam como uma espécie de catálogo serial, criando um espaço racional e “limpo”, que lembra a estética da nova objectividade concentrada nas propriedades do fotográfico para descrever e tornar presente um objeto e para o classificar num sistema racional, fora do espaço e do tempo, como objeto singular de uma normatividade. Estas fotos constituem uma espécie de sistema classificatório pelo recurso à imagem bem definida e à composição que reforça as linhas geométricas, descritivas do objeto representado e abstraído da maior parte da envolvente. A desterritorialização fotográfica é aqui um efeito ideológico. Nestas imagens apenas se permitem algumas marcas de exotismo, quase sempre através da presença de uma palmeira a pontuar um relvado, cliché do próprio exótico. Relvado esse que também é desterritorializado, transposto da paisagística ocidental. Funciona, também, como símbolo da sua dominação da natureza. O estilo fotográfico modernista e conceptual adotado, responde às exigências funcionais e de contemporaneidade, solicitadas ao fotógrafo. O fotógrafo torna-se um intérprete da visão empresarial e do seu ponto de vista. Há apenas um ponto de vista e um ‘programa’ que qualquer fotógrafo competente deve ser capaz de devolver. Este estilo de grande qualidade técnica e que reforça o 11

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anonimato do autor fotográfico garante, ao mesmo tempo, a utilidade destas imagens tanto no espaço lógico da empresa como no da ciência. Esse fato é confirmado não só pelas imagens como também pela proibição de uso de câmara fotográfica por parte dos residentes nas cidades erigidas pela empresa na região. Em toda a zona sob responsabilidade da Diamang, apenas os membros da Administração e os Diretores de Serviço sob autorização daquela poderiam usar câmara fotográfica. Obviamente que o fotógrafo constituía, por necessidades de serviço, a exceção a essa regra. Nuno Porto a este propósito refere a sociabilidade particular que daí resulta pelo facto de ser apenas o fotógrafo, um empregado como os outros, a ter privilégios fotográficos, o que o tornava, informalmente, o fotógrafo dos casamentos, baptizados, natais e outras festas dos outros empregados, em particular da comunidade branca 42. O direito à imagem, no seu sentido mais lato, é assim regulado e controlado de forma muito restrita. A este jus imagine, para lembrar a designação dada a este direito no Império Romano 43, correspondia também o direito à livre circulação pessoal, igualmente sujeita a autorizações no caso dos outros empregados. Executante de um olhar, o fotógrafo tem também direitos de passagem. Isto demonstra o grande investimento técnico, organizacional e simbólico atribuído à fotografia.

Visitas e Atividades Sanitárias: reportagens fotográficas da “família Diamang” 44 A afirmação de um certo estilo de vida, de uma resoluta superioridade feliz, impregna as fotografias que documentam as visitas oficiais aos Serviços de Saúde, por parte de autoridades representadas como amigáveis e familiares. Autoridades próximas das Direções dos Serviços de Saúde da Diamang – a elite colonial. No exemplo do relatório de 1967, mistura-se o lado oficial da visita ao lado mundano, com as legendas a sublinharem o agrado dos visitantes, recorrendo-se, na legendagem, ao mesmo procedimento retórico já analisado: “O Delegado de Saúde de Saurimo e sua Exma. Esposa muito apreciaram a Casa de Repouso do Cossa, onde almoçaram, sempre acompanhados pelo Administrador do Concelho do Chitato” (sublinhado nosso). A legenda acrescenta um significado subjetivo (o que as pessoas fotografadas sentiram) num tom descritivo e informativo, que prescreve uma leitura. Qualquer imagem que faltasse a esta “verdade” não teria lugar neste relatório. Nestas fotografias sobre as visitas, os funcionários negros – principais protagonistas das fotografias sobre as diversas atividades sanitárias – desaparecem. Os lugares do poder circunscrevem-se, como no enquadramento fotográfico, aos europeus ou africanos brancos. O narrador assume um tom a um tempo cerimonioso, na identificação dos nomes e respetivos títulos honoríficos dos fotografados, e familiar, no modo como descreve os movimentos dos visitantes e reconstitui, como narrador omnisciente, os “sentimentos” experimentados por estes.

  Nuno Porto, Modos da Objectificação, pp.189- 220. 43   Régis Debray, Vie et mort de l’image. Une histoire du regard en Occident (Paris: Gallimard, 1992), p. 23. 44   Este título foi-me sugerido pela história contada por José Costa Ramos a propósito de um soldado negro do exército português que participou no programa televisivo sobre as mensagens de natal dos soldados em guerra. Todos deveriam dizer o seu nome e a sua terra natal. Para este soldado essa terra era “A Companhia de Diamantes de Angola”. Uns eram de Sintra, Coimbra, Porto, Braga, etc. Este soldado era de uma Companhia, que funcionava portanto, como local geográfico e simbólico de origem, uma “grande família”. Cf. José da Costa Ramos, “Diamang – cinema a preto-e-branco”. In Maria do Carmo Piçarra e Jorge António (Org.), Angola: O Nascimento de uma Nação. Volume I: O Cinema do Império (Lisboa: Guerra e Paz, 2013), pp. 97-122. 42

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Figura 3. “Documentação Fotográfica” das “Visitas” do ano de 1967, RSS.

  As escalas de semi-conjunto apresentam um pequeno grupo de personagens enquadradas à altura da anca, num plano aproximado largo. Já o plano americano, mais aberto, enquadra os personagens mais ou menos acima do tornozelo ou pelo joelho. A designação “plano americano” surgiu porque esta escala tornou-se comum nos primeiros filmes americanos do início do século XX, para representar a luta entre os Cowboys. Era considerado estranho face aos enquadramentos típicos da pintura. Trata-se de uma escala de plano que visa apresentar as interações entre personagens sem eliminar completamente o contexto da ação, mostrando ainda parte considerável do cenário/ local da ação. Já o plano de semi-conjunto dá maior visibilidade à interação entre os personagens, embora o contexto esteja ainda presente. 45

Existem alguns retratos coletivos, mas a maioria das imagens acompanha as diversas visitas em estilo “reportagem”. Os enquadramentos são próximos dos visitantes e seus anfitriões, captando a sua interação no espaço, predominando as escalas de semi-conjunto e os “planos americanos” 45. Mais do que simplesmente documentar, estas fotografias são “photo-romans” – mostram sequências de “cenas” destas interações, narrativizam as visitas e constroem uma percepção eufórica da vida e do trabalho nos serviços médicos que se estende, por metonímia, a toda a actividade da Diamang. As fotografias das “ações sanitárias”, por sua vez, seguem quase sempre também este estilo de reportagem centrada nas ações dos funcionários, muitos deles negros. As imagens são rápidas a enaltecer estes colaboradores “tão úteis”, identificando os seus nomes e elogiando as suas capacidades [foto n.º 40, figura 4]. Esta personalização é algo muito presente nos relatórios deste médico que também reclama, em vários relatórios, da injustiça salarial que é exercida 13

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Figura 4. “Actividades Sanitárias”. “Documentação Fotográfica” do RSS de 1967.

relativamente às mulheres enfermeiras, discriminadas negativamente face aos seus homólogos masculinos, lamentando não ser ouvido. Em relação aos salários, as diferenças existem também por raças. Algo sempre considerado absolutamente natural e justificável no contexto empresarial e social. Santos David, ainda assim, tem aqui uma voz quanto a algumas dessas situações que lhe parecem injustas. Porém, as marcas de uma dominação baseada na raça estão bem presentes no posicionamento lateral ou de retaguarda com que são fotografados (e onde estão socialmente) os negros, desde que em presença de brancos. Essa normatividade social que se repete nas imagens é afirmada, com orgulho, por Ernesto Vilhena, Administrador da Diamang, em resposta às críticas de Gilberto Freyre sobre o segregacionismo da empresa 46. Diz Vilhena: “ali não há selvagens, porque o bom pretinho de Dala, como o de toda a Lunda, mantém de há muito, estreito contato com o branco e concorre, regularmente, com o seu esforço nos trabalhos da Companhia.” 47. Mais adiante, resume assim, a política colonial da empresa:

  Trata-se do livro Aventura e Rotina – Sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de caráter e ação. Livros do Brasil (1953). Este livro foi escrito pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre na sequência de uma viagem que realizou a diversas colónias portuguesas, a convite das autoridades coloniais. O livro foi mal recebido pela Diamang, levando o seu administrador a reagir (ver nota seguinte). 47   Ernesto de Vilhena, Aventura e Rotina, Crítica de uma crítica, p. 9. 46

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A política indígena da Companhia é essencialmente a clássica e tradicional orientação portuguesa, que considera o negro como um companheiro útil, simpático, de todos os dias, que o incita ao trabalho, evidentemente, mas a quem – e nesta empresa isto se faz no mais alto grau que comporta uma organização metódica e eficaz de boa produtividade de todos os elementos brancos e negros que a compõem – se proporciona tudo o que dentro dessa organização, tanto em matéria de assistência sanitária e alimentar, de instrução, de educação e de distração, é possível proporcionar-lhes 48.

  Ernesto de Vilhena, Aventura e Rotina, Crítica de uma crítica, p. 38 49   Ernesto de Vilhena, Aventura e Rotina, Crítica de uma crítica,p.29 50   Sobre as relações de género durante o Estado Novo, ver, por exemplo, o trabalho da historiadora Irene Flunser Pimentel, A Mocidade Portuguesa Feminina (Lisboa: Esfera dos Livros, 2007). 48

Vilhena admite que esta atitude é paternalista, mas que se justifica pois estará em “harmonia com os superiores interesses dos povos atrasados, e do seu lento mas efetivo ingresso em nossa civilização” 49. A racionalidade moderna defendida na empresa prevê que cada um ocupe o seu lugar. Estas imagens constroem a visibilidade dessa ordem. A subserviência é considerada natural e o agradecimento, um dever. Estes “companheiros úteis, simpáticos e de todos os dias” povoam as fotografias do relatório sobre as atividades sanitárias. A organização social diferenciada com base na cor da pele e na cultura de origem é defendida por Vilhena como a solução mais conveniente para todos e está presente na identidade de colonos e colonizados, ambos objeto desta narrativa que, numa grande maioria de casos, reproduzem. Nas ações sanitárias incluíam-se as fotografias das festas e celebrações com os doentes, que são assim consideradas parte integrante daquelas ações. Estas celebrações não eram iniciativa dos internados, mas faziam parte da política humanitária do próprio Hospital e da sua organização geral da vida. Este aspeto é significativo por quanto mostra a intenção de assimilar os negros à cultura europeia, imposta como norma. As fotografias têm este papel de impor uma normatividade que adquire a força da evidência documental do fotográfico, (con)vertendo a realidade na superfície de uma imagem. As fotografias tornam-se elas próprias meios de aculturação. Para a Direção dos Serviços de Saúde cumprem a função de persuadir a Administração e o Governo dos bons serviços prestados por aquela Direção, já que estas fotografias lhes devolvem, precisamente, o que querem ver: uma demonstração de que tudo está sob controle, cada um no seu lugar, numa altura em que, precisamente, este controlo está em causa com o decorrer da Guerra Colonial. Estas imagens das festas hospitalares cumprem, além disso, o papel de mostrar a boa convivência entre negros e brancos, surgindo estes últimos como cuidadores carinhosos e atentos. Os negros, mesmo os adultos, são sempre infantilizados e isso nota-se nestas fotografias pela posição sempre serviçal em que são mostrados e pela sua hesitação, sublinhada na legenda [foto n.º 49, figura 3]. Estas imagens visam demonstrar o grande investimento da empresa em proporcionar a felicidade dos internados. As fotos e as legendas destacam a ação de enfermeiras, esposas e filhas dos diretores, em aparições públicas e beneméritas nestas ocasiões. Fato que evidencia a estrita partilha dos papéis sociais por género e classe social, na época 50. Imagens idealizadas de uma feli15

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cidade espartilhada. Fora de campo, a realidade das relações de dominação é bem mais complexa e menos “encantada”.

As fotografias clínicas como operações de exclusão do corpo negro A maioria das fotografias deste relatório, 49 em 114 (cerca de 43%), são fotografias de casos clínicos, que constituem o capítulo final desta narrativa visual. E como termina esta história? Neste como noutros relatórios, estas imagens apresentam casos estranhos e monstruosos que afetaram a população negra e apenas esta. Cumprem eventualmente, a expetativa gerada em torno do trabalho médico colonial: a sua extrema dificuldade, dada a estranheza dos casos médicos a tratar. Uma ideia completamente determinada por uma imagem de desregulação associada aos corpos e à identidade dos povos negros. Toda a organização textual do relatório obedece a este segregacionismo. Santos David no relatório deste ano introduz uma mudança de terminologia que para ele se coaduna melhor com a realidade vivida e que, segundo defende, não usa como critério a raça mas o estado civilizacional 51: As três categorias do pessoal (evoluído, intermédio e sub-evoluído) serão examinadas em separado. Note-se a alteração das designações, uniforme em todo este relatório a partir deste ano, e as suas equivalências e justificações: evoluídos, substitui a antiga categoria de leucodermos e está de acordo com a atual situação, em que muitos evoluídos, pertencentes e já registados para os efeitos sanitários na seção, não são justamente leucodérmicos; intermédios, corresponde à primitiva categoria de evoluídos e significa aqueles indivíduos cuja situação socio-económica, os âmbitos e o modo de vida estão em transição da situação de sub-evoluídos para a de evoluídos; e sub-evoluídos, equivale a nativos, primitiva infeliz designação, porquanto muitos dos que se orgulham de ser nativos do concelho do Chitato não são sub-evoluídos, mas evoluídos 52.

Esta atualização terminológica visava substituir a divisão entre “leucodérmicos” (brancos) e “melanodérmicos” (negros), classificação que recorria à aparente objetividade terminológica da ciência. Mas, apesar do que escreve Santos David, estas novas designações não são substancialmente diferentes daquelas que José Picoto usava no seu relatório de 1953 para dar conta do registo de consultas: indígenas ou nativos; europeus; e assimilados (que se teriam passado a chamar “evoluídos”). Sendo que os assimilados e os indígenas eram melanodérmicos e os europeus leucodérmicos. A categoria de “assimilados” impunha já, na própria prática médica, um critério civilizacional que desde 1967 se pretendeu generalizar. Porém, a terminologia estritamente evolucionista acaba por acentuar, mais ainda, a lógica discriminatória que parece pretender erradicar, uma vez que coloca, explicitamente, a cultura europeia – e

  Esta introdução de uma nova terminologia para a organização dos relatórios foi o principal motivo da escolha do relatório de 1967 como caso exemplar, entre os treze relatórios do nosso corpus. 52   RSS, 1967, p. 15. 51

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Figura 5. “Casos Clínicos” do RSS, 1967.

  RSS, 1967, pp. 93; 111; 121.

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a pele branca – como modelo a seguir e como norma. A cor da pele e a cultura europeia surgem como a escala em relação à qual se mede o grau de evolução de cada indivíduo (dispensando imediatamente os “leucodémicos” de qualquer inspeção especial). Todas as estatísticas referentes tanto ao pessoal dos serviços quanto às consultas e doenças observadas obedecem a estas categorias sem que, para isso, exista um real critério médico. Afirmamos isto com base nas tabelas que registam as doenças diagnosticadas nas consultas externas para os “evoluídos”, “intermédios” e “sub-evoluídos” publicadas no relatório. Verificamos que o paludismo (ou malária), as doenças respiratórias e as doenças intestinais encabeçam a lista em qualquer dos tipos de indivíduos 53. Se as doenças registadas são as mesmas então não dependem destes “tipos de indivíduos”. O que justifica o seu tratamento separado nas estatísticas? É preciso sublinhar que a prática médica dividia todos os atos médicos a partir do critério da cor da pele, o que se materializa em locais destinados a 17

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cada uma das ‘raças’, como pudemos depreender na discussão sobre as instalações sanitárias. Esta separação foi uma das principais críticas de Gilberto Freyre no seu livro Aventura e Rotina, já referido. Freyre fazia depender o conceito de “luso-tropicalismo” da miscegenação, que aqui não se verificava. Pelo contrário, Ernesto de Vilhena, o administrador da Diamang, na sua resposta ao sociólogo brasileiro, diz que o luso-tropicalismo não depende da miscegenação. Escreve na sua resposta: Entre o «Malanismo» da União da África do Sul e o fabricar mestiços em série – Freyre seria um homem feliz no dia em que os visse povoando e dominando o Orbe – em certa altura da longa distância que separa essas duas atitudes extremas, está a posição portuguesa, posição que na Companhia de Diamantes incessantemente se melhora, mas que envolve, também, um postulado inicial, o de que não é necessário, e que é mesmo absolutamente dispensável, que pretos e brancos durmam na mesma cama 54.

Prossegue, de forma muito clara, sobre a necessidade imperiosa da “destribalização” em face das poucas “coisas aproveitáveis” das culturas negras: Basta refletir em que tão longe quanto se pode remontar na história dos negros a que nos estamos referindo, se constata tratar-se de culturas estagnadas, sem resistência a influências degradantes, e que só pela ação do branco têm podido conservar-se e, por vezes, aperfeiçoar-se. 55

A medicina interiorizou a divisão racial como critério médico e as fotografias dão corpo a esta percepção, reproduzindo a segregação que tem a sua origem na antropologia física que primeiro produziu uma classificação tipológica dos habitantes – “tipos” – africanos. Essa tradição tipológica está presente nestas imagens através do uso do sistema de representação visual desenvolvido por Alphonse Bertillon em 1870, e que aqui o fotógrafo retoma para as imagens especificamente médicas. Bertillon desenvolveu o primeiro sistema antropométrico para a polícia científica francesa (a judiciária) com o intuito de produzir um arquivo criminal que facilitasse o reconhecimento dos indivíduos reincidentes. O seu sistema, para além de uma série de medidas do corpo, prevê duas imagens, uma de frente para descrever o aspeto facial, e outra de perfil que permite a mensuração do crânio e a identificação da sua forma [fotos n.º 73 e 74, figura 5]. A antropologia e a medicina tropical adotam este sistema antropométrico e fotográfico com o mesmo propósito descritivo e tipológico. A fotografia e o uso do desenho esquemático facilitam a construção e classificação dos tipos, que adquirem aí a sua realidade, evidência e legitimidade. Estas imagens permitem-nos, para além do “tipo”, considerar uma certa cooperação resignada dos doentes perante a câmara do fotógrafo e perceber

  Ernesto de Vilhena, Aventura e Rotina, crítica de uma crítica, p. 39. 55   Ernesto de Vilhena, Aventura e Rotina, crítica de uma crítica, p. 42. Para Vilhena esta posição não é racista, mas descritiva da realidade, segundo o seu ponto de vista. 54

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A preto e branco: folheando os relatórios médicos da Diamang

  Ambroise Paré (1510-1590), médico cirurgião do Rei francês, publica em 1573 o livro Des monstres et des prodiges. Esta obra é a primeira obra erudita a ser escrita em língua vernacular e uma das primeiras a organizar as causas da monstruosidade numa lista que evidencia um esforço de considerar algumas causas naturais, tal como já o fizera Aristóteles no seu Geração dos Animais, tendo, por isso, o filósofo grego influenciado a apropriação científica deste tema. Porém, a mistura entre tipos de causas permanece, bem como um certo sentimento de culpa e a ideia de mau presságio (assinalação do pecado), sinal da ira de Deus. As causas consideradas por Paré são: A glória de Deus; A ira de Deus;a quantidade excessiva de semente; A quantidade diminuta de semente; A imaginação; A pequenez e estreitamento do ventre; A postura indecente da mãe enquanto grávida (sentar‑se demasiado tempo com as pernas cruzadas ou pressiona-las contra o ventre);Quedas ou choque contra o ventre da mãe grávida;Doenças hereditárias ou acidentais;Semente podre ou corrupta; Devido à má mistura da semente;Devido ao artifício de pedintes cruéis;Através de demónios”. Cf. Fontes da Costa, Palmira. 2010. Livros sobre Monstros e Prodígios. In Arte médica e imagem do corpo: de hipócrates ao final do século XVIII, Org. Adelino Cardoso, António Braz de Oliveira, Manuel Silvério Marques, 63-78. Lisboa: BNP (Catálogos), 2010. 57   Jonatas Ferreira e Cynthia Hamlin, “Mulheres, negros e outros monstros: um ensaio sobre corpos não civilizados”. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, (2010) 18(3): 811-836. 58   Ferreira e Hamlin, “Mulheres, negros e outros monstros”, p. 814. 56

a submissão voluntária, mas que não deixa de ser efetiva, entre pacientes e o dispositivo visual médico. No caso apresentado, os espaços ao ar livre escolhidos para fotografar, diante de panos brancos ou sem eles [figura 5], revelam a intenção classificatória do sistema Bertillon [as referidas fotos 73 e 74] e uma certa singularidade pessoal, com as reações dos fotografados, especialmente evidente na fotografia da jovem mãe de um bebé microcéfalo [foto n.º 111], com o seu ar zangado que nos interpela para além do discurso normativo da ciência. Porque não se fotografou apenas o bebé sem a sua mãe, como ‘objeto’ e caso neutro? A inclusão da mãe leva-nos a perceber a situação fotográfica também como uma situação de ‘luta’ e de negociação. Provavelmente, esta jovem mãe não largou o seu bebé e não o deixou “indefeso”. Hipótese que não podemos comprovar, mas que nos intriga. Há sempre algumas alianças necessárias entre fotógrafo e fotografados, mesmo no quadro de relações de poder tão desiguais. A produção de uma fotografia, no caso dos retratos, exige a mobilização de solidariedades várias, uma obediência tácita. Além da Bertillonage e da sua tentativa de redução do individual à normatividade métrica, estes exemplos associam-se ao imaginário teratológico que, embora importante desde a Idade Média, entrou na medicina durante o Renascimento, na forma de desenhos e relatos de malformações incríveis e inexplicáveis, tantas vezes associadas ao trabalho do diabólico ou à expiação de culpas, numa mistura entre causas naturais, sobrenaturais e morais56. Como realçam Ferreira e Hamlin ao homem branco é garantida a sua identidade civilizada, enquanto que mulheres, negros (também homens e mulheres) e monstros são considerados evidências de uma natureza tanto pródiga quanto castigadora 57. As tipologias científicas procuram, assim, resolver a ansiedade que estes seres, considerados híbridos e fronteiriços, produzem, reforçando este imaginário através da aura legitimadora de um discurso verdadeiro: Com o negro ocorre algo semelhante (ao que ocorre com a mulher). Se é comum encontrarmos discursos nos quais ele é apresentado como bom selvagem, força da natureza, alma dócil, pacífica, objeto de desejo, ele é, ao mesmo tempo, desregrado, macaco, lugar de vício, luxúria , repulsa. 58

Algo deste imaginário está ainda bem presente nestes relatórios. Todos eles consistem numa sucessão de fotografias sobre casos de malformações congénitas (lábio leporino é o caso mais frequente; há ainda vários casos de micro e macrocefalia e outros distúrbios anatómicos). Algumas destas malformações surgem como inversões, do género “homem com uma mama” ou o caso da mulher que deu à luz dois gémeos, um preto e outro branco; as malformações por doença, como o bócio ou as hérnias gigantes e as malformações por acidentes, como os queimados, são também frequentes. Curiosa é também a presença de várias fotografias de homens com elefantíase do pénis, exibindo pénis gigantes e que facilitam a sua compreensão num sentido “selvagem” e “anima19

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2.  Conhecimento / Circulação

lesco”, associado à representação da sexualidade desregulada dos indígenas 59. Há ainda os casos referidos na legenda como “Monstruosidades” e que apresentam os nados-mortos com malformações congénitas terríveis, nascidos nos hospitais da companhia. Esta sucessão de fotografias repulsivas vinham confirmar a diabolização do negro, mesmo que a sua prevalência seja inconsciente aos médicos que as reúnem. É certo que os casos apresentados são os mais fotografáveis: são doenças que se oferecem à visualidade do aparelho fotográfico. A uma visualidade excessiva. São, sem dúvida, marcas físicas exteriores que permitem a sua assinalação clara na imagem do corpo e a identificação dos corpos negros com a malformação e a monstruosidade, perpetuando um conjunto de estereótipos coloniais muito enraízados. Admitimos que um doente de paludismo, a doença mais preponderante, não apresente estas características de visibilidade. A espectacularidade parece ser o critério prevalecente nas imagens clínicas destes relatórios. Espectacularidade no duplo sentido do que mais facilmente se dá à visão e do que mais efeitos de surpresa, choque e espanto produz nos espectadores e que sem dúvida são um critério genérico de toda a fotografia médica, colhendo a influência mais antiga das veras anatómicas, também elas simultaneamente indiciais e realistas. Contudo, o efeito resulta na construção de um imaginário que beneficia a ação médica da empresa no território ao revelar a estranheza dos casos, a sua dificuldade extrema e ao tornar mais evidentes também os resultados das intervenções cirúrgicas. Além disso, perpetua um imaginário que justifica a dominação colonial. Vemos assim, como se instalou, neste contexto particular, um regime moderno de visibilidade, disciplinar e disciplinado, que atravessa várias instituições, une discursos empresarias, científicos e estéticos em torno de um ponto de vista comum (e único) que convoca uma diversidade de intervenientes e produz um ideal colonial, do qual o olhar médico participa integralmente. Produzir a sua consciência significa tentar tornar visível o que estas imagens invisibilizaram.

  A este propósito Ferreira e Hamlin lembram a obra A Mind of its Own. A Cultural History of the Penis, de David Friedman. O autor “nos conta da reação dos primeiros aventureiros ingleses ao pisar solo africano diante de uma natureza exuberante, dificilmente comparável aos padrões estéticos europeus. Mas foi a exibição de uma parte da vida selvagem local que chamou especialmente a atenção dos europeus: um certo Dr. Jacobus Surtor teve a oportunidade de encontrar nos sudaneses exemplos de uma máquina “aterrorizante”, mais próxima do pênis de um “jumento” que de um “ser humano”. O pênis do africano foi objeto de curiosidade não apenas de exploradores, mas da investigação “de cada uma das escolas de anatomia de Londres. O negro circula pela Europa como escravo, como mercadoria, e como possuidor de perigosas máquinas de reprodução. E essa circulação significa, por vezes, literalmente castração, ou seja, a circulação de membros amputados como curiosidade científica. A ciência emergente constrói canais através dos quais esses objetos de medo e admiração, de horror e de fascinação, circulariam de modo seguro: em jarras próprias à observação” (Ferreira e Hamlin, 2010: 821). 59

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