A primeira pessoa dentro, fora e além das narrativas contemporâneas

June 24, 2017 | Autor: Camila Doval | Categoria: Narrador, Literatura Brasileira Contemporânea
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A primeira pessoa dentro, fora e além das narrativas contemporâneas Camila Canali Doval PUCRS

Em tempos de holofotes voltados para as escritas de si, lançando luz sobre discussões acerca do teor de carga ficcional presente nas autobiografias, assim como o seu correlativo, a carga autobiográfica presente nas produções ficcionais, e ainda com a proclamada inserção dos novos ditos gêneros, como a autoficção, no que Philippe Lejeune (2008) denominou de “espaço autobiográfico”, a primeira pessoa se destaca em qualquer polêmica literária. Muito se tem debatido sobre o autor, em especial a relação entre autor, leitor e texto, desde os anos 60 do século passado, a partir de Roland Barthes e Michel Foucault; hoje, enfim, o autor é, em inúmeros aspectos, o plano central de sua obra, e nós, leitores, acabamos sabendo dele muito além do que o texto, a princípio, estaria autorizado a nos dar acesso. Da mesma forma, nestes nossos tempos, as circunstâncias de produção de um livro estão ao alcance do público, muitas vezes divulgadas pelo próprio autor ou editora para fins promocionais, e acabam se configurando, elas mesmas, numa narrativa. Temos cada vez mais zonas de contato com quem escreve, e isso nos dá cada vez maior intimidade com os escritores e seus processos de criação. Eles frequentam programas de televisão, revistas, entrevistas, vídeos, feiras literárias, encontros, sessões de autógrafos, polêmicas, salas de aula (aí tanto como nossos professores quanto como nossos colegas) e outros ambientes nada fictícios. A crítica genética e as teorias de criação literária estão nos currículos já leituras de literatura brasileira contemporânea nas graduações da área de Letras, investigando todos os rastros possíveis deixados pelo autor. Ainda, a profusão de novas tecnologias e mídias alimenta essas novas zonas de contato — muito além da obra — entre o leitor e o escritor, tornando cada vez mais complexa a tarefa do primeiro de consumir/apreender a arte por ela mesma, independentemente da vida privada do artista, e a do segundo de vender/transmitir a arte por ela mesma, sem precisar desenvolver uma verdadeira marca pessoal a fim de obter sucesso no objetivo de ser lido.

É através da obra que o ser de carne e osso que escreve e o ser de carne e osso que lê costumam tradicionalmente se transfigurar em autor e leitor; e quase somente através dela é que o leitor, até pouco tempo, tinha acesso ao autor. Para Phillipe Lejeune (2008, p. 23),

Um autor não é uma pessoa. É uma pessoa que escreve e publica. Inscrito, a um só tempo, no texto e no extratexto, ele é a linha de contato entre eles. O autor se define como sendo simultaneamente uma pessoa real socialmente responsável e o produtor de um discurso. Para o leitor, que não conhece a pessoa real, embora creia em sua existência, o autor se define como a pessoa capaz de produzir aquele discurso e vai imaginá-lo, então, a partir do que ele produz.

No entanto, também tradicionalmente, o leitor costuma se interessar pelo autor a partir do que a obra suscita nele durante a leitura. Não raro e não de hoje, o leitor que se empolga com determinada obra se lança em busca de biografias, autobiografias, entrevistas, correspondências, manuscritos e quaisquer outras pistas além do texto lido, rastros que o permitam ingressar no universo do autor e entender um pouco das motivações, intenções e angústias que subjazem a sua escrita. Lejeune (2008, p. 192) comenta esse momento da relação:

O autor é, por definição, alguém que está ausente. Assinou o texto que estou lendo — não está presente. Mas se o texto me lança perguntas, sinto-me tentado a transformar em curiosidade por ele e desejo de conhecê-lo a inquietação, a incerteza ou o interesse engendrados pela leitura. É o que denominarei ilusão biográfica: o autor surge como “resposta” à pergunta feita por seu texto.

Se o leitor há muito conta com alguns dos instrumentos citados anteriormente para interpelar o autor a respeito de sua criação e, mais especificamente, a respeito da intertextualidade

entre

sua

vida

e

obra,

contemporaneamente

o

espaço

autobiográfico que circunda a existência do ser que escreve é amplo, transbordante, surpreendente e em grande parte alimentado pelo próprio autor. É cada vez menos comum aquela velha imagem do escritor recluso e/ou excêntrico; nossos ficcionistas preferidos participam ativamente da vida política, cultural e social do país, eles fazem questão de estar em todos os lugares, dispondo do arcabouço descrito por Leonor Arfuch (2009, p. 114):

Neste espaço, densamente povoado, desdobram-se contemporaneamente tanto os gêneros tradicionais, sempre na lista dos best-sellers — biografias, autobiografias, memórias, diários íntimos, correspondências, testemunhos, histórias de vida — quanto as escritas das margens, que vivem uma espécie de primavera editorial — rascunhos, cadernos de anotações, de viagens, anotações de cursos, lembranças de infância —, junto com uma multidão de registros midiáticos; a entrevista, em primeiro lugar, mas também conversações, retratos, perfis, anedotários, indiscrições, confissões próprias e alheias, narrativas de autoajuda, velhas e novas variantes do show — talk show, reality show — sem deixar de fora por certo o da política.

Essa intimidade sugerida pelo intenso uso, por ambos os lados da questão, dos meios de acesso poderia estar desmitificando uma profissão que se firmou culturalmente sobre uma aura de mistério e elitismo? Para Lejeune (2008, p. 195), a exposição do autor alimenta o caráter de “resposta” a questões irrespondíveis pela obra em si, respostas que tanto ansiamos, mas de fato não nos responde nada, tudo não passa de ilusão:

Será que, ao tornarem o autor contemporâneo acessível a todos, o rádio e a televisão exercem uma função salutar, dissipando o efeito de mistério engendrado pela escrita? Só na aparência. Pois, na realidade, a mídia incentiva fatalmente a ilusão biográfica que leva a buscar a solução do mistério no próprio autor.

De outro lado, mas também imbricada à questão das novas zonas de contato possíveis entre autor e leitor, está a aproximação do público com o contexto de escrita do autor. As condições de produção de um livro estão ao nosso alcance, sendo até mesmo divulgadas pelo próprio escritor em tempo real — através de seus blogs e perfis de redes sociais — e acabam se configurando, elas mesmas, como dito anteriormente, numa extranarrativa (pois nem sempre metanarrativa). Essa nova construção sobre a obra permite a afirmativa de Lejeune (2008, p. 196): “Confrontamos o que vimos com o que lemos, tentamos imaginar o que teremos para ler segundo o que vimos. O autor nos leva ao livro e o livro ao autor”. Sobre essa proximidade um tanto vertiginosa entre autor e leitor, Leonor Arfuch (2009, p. 116) pontua:

Porém, essa tendência à exteriorização, muitas vezes compulsiva, que povoa os diversos registros da comunicação contemporânea, do escritor best-seller à estrela da vez, tem sua contrapartida obrigatória no quase-vício dos públicos: como resistir à palavra ao vivo — visual, auditiva, gráfica —, de quem (se) diz eu, ou ainda, à revelação de um outro, um outro eu?

Os nossos tempos são os tempos do “eu”. Por fragmentado e difuso, líquido e virtual, pela capacidade de estar em todos os lugares em todos os planos, o “eu” é a onipresença absoluta e não tangível, quem sabe o retrato de uma contemporaneidade paradoxalmente em vias de extinguir a individualidade. Há personagens que nascem nas narrativas dos escritores, e escritores que se tornam personagens de extranarrativas à medida que escrevem — e que são lidos. Isso se dá também em função das muitas escolhas possíveis ao autor diante de sua criação. A troca entre seres humanos e personagens não é privilégio da atualidade; sobre esse par se construiu a literatura. Os personagens, para Antonio Candido (1995, p. 45), “como seres humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral político-social e tomam determinadas atitudes em face desses valores”. A tendência é que o escritor, dessa forma, crie personagens que se identifiquem com a época à qual ele é contemporâneo; personagens que reflitam a condição da subjetividade do próprio escritor no tempo e no espaço em que ele se insere. É possível, assim, perscrutar na ficção aspectos da nossa história, direcionando a personagens do passado questões do tipo: o que elas desejavam? O que as instigava? O que as movia? O que temiam? O que as afligiam? O que as confortava? Como se relacionavam com o outro? Com as diferentes classes, etnias e orientações sexuais? De que formas expressavam sua subjetividade? Conforme Candido (1995, p. 54), “enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam” e, embora essa visão que emana da obra seja oriunda de seu autor, é capaz de dizer muito — inclusive no que silencia — sobre o momento em que foi criada. Além disso, o personagem assume imensa importância como registro de um período porque “representa a possibilidade de adesão afetiva e intelectual do leitor” (CANDIDO, 1995, p. 54), e a partir do sucesso de uma obra pode-se inferir que nível de empatia — ou não — ela suscitou em seu leitor contemporâneo. Essa relação de

espelho é um princípio aristotélico de legitimação da literatura, a verossimilhança, obtido através dos recursos de caracterização dos quais o escritor lança mão na hora de construir seus personagens. Posso me perguntar, aqui, a mesma questão que Candido (1995, p. 66) se impôs nos seus estudos sobre o tema: “No processo de inventar a personagem, de que maneira o autor manipula a realidade para construir a ficção?”. Uma das maneiras é a escolha pelo foco narrativo em primeira pessoa, tão presente na obra e na extraobra do autor contemporâneo. Normam Friedman (2002, p. 180) afirma que “a escolha de um ponto de vista ao se escrever ficção é, no mínimo, tão crucial quanto a escolha da forma do verso ao se compor um poema”. David Lodge (2009, p. 36) também confere suma importância à escolha do ponto de vista sob o qual uma história é contada, “pois tem um impacto profundo no modo como os leitores vão reagir, na esfera emotiva e moral, aos personagens e às suas ações”. No entanto, num momento em que a tendência é desconstruir as estruturas pré-concebidas do narrar, talvez seja mais válido o conselho de John Gardner (1997, p. 208), “na literatura contemporânea, o escritor pode fazer o que quiser com o ponto de vista, desde que o que fizer funcione”. Em concordância com Gardner, Stephen Koch (2008, p. 113) não hesita: “a história é a personagem. A personagem é a história. Você vai ouvir muitas vozes tentando persuadi-lo de que essa antiga verdade não é mais válida. Recomendo com veemência que as ignore”. Na personagem de uma história, portanto, de diferentes formas, se imbrica também o sujeito histórico. Para enxergar o sujeito contemporâneo e identificá-lo com essa personagem contemporânea que se apresenta em primeira pessoa tanto em plano real quanto virtual, é preciso questioná-lo a respeito de suas aflições, impulsos, desejos, temores e relacionamentos, é preciso ao menos percebê-lo em seu processo de fragmentação e descentramento, conforme apontado por Stuart Hall (2011, p. 7): “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado”. Para Hall, o final do século XX trouxe transformações às paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que até então nos

pautavam como indivíduos sociais, e essas transformações vêm abalando as estruturas de nossas identidades pessoais. Já não somos o indivíduo — uno — que fomos ou nos imaginamos ser até aqui, e isso abala a nossa existência em diversos planos, principalmente naqueles que nos é dado representarmo-nos. “Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito” e, para Hall (2011, p. 9), “constitui uma ‘crise de identidade’ para o indivíduo”. O sujeito do Iluminismo desenvolveu-se baseado numa concepção de centro, de núcleo interior que o unificava e o permitia manter-se idêntico a si mesmo ao longo de sua existência — um núcleo reconhecido como a sua identidade. Perceber essa ilusão de unicidade se desfazer é entrar em crise, também na representação. A ideia de um ser humano suficiente em sua própria essência foi sendo substituída por uma nova ideologia sociológica, em acordo com “a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação com ‘outras pessoas importantes para ele’” (HALL, 2011, p. 11). De acordo com Hall (2011, p. 11), essa visão mantinha a ideia de núcleo interior do sujeito, mas se tratava de uma essência que se ia construindo na interação com o outro: “O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem”. Hoje, a estrutura que sempre amparou o sujeito, seja em relação a si mesmo ou em relação ao outro, está desfeita: “[...] à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente” (HALL, 2011, p. 13). Dessa forma, o apego à construção de personagens em primeira pessoa por mim é compreendido como uma tentativa de organizar o caos e seguir dando vazão à necessidade humana de narrar(-se). Quando não se é mais possível representar, ainda é possível sentir, e o foco narrativo que prioriza principalmente o protagonismo pode configurar-se como um espaço um pouco mais confortável para os

escritores que pretendem compartilhar com os leitores o fato de que igualmente se encontram desnorteados pela súbita chegada da chamada pós-modernidade — ou, simplesmente, o hoje. A personagem em primeira pessoa representa, assim, uma escolha especial do autor, por encontrar-se atualmente em uma nova relação de interdependência com o seu exterior. Trata-se de uma maneira corajosa de o autor significar o mundo, significar o sujeito e também significar-se como sujeito — não porque o sujeito em primeira pessoa da narrativa efetivamente se equivalha ao autor, mas porque a virtualidade vem apagando as distâncias até o autor, e assim transformando a imagem tradicional que tínhamos dele. Uma maneira corajosa, mas, não posso deixar de assinalar, também um tanto forçada pelo contexto. Prensados contra a parede mercadológica em que uma obra inevitavelmente está inscrita, há uma nova geração de escritores trocando o silêncio e a reclusão por curtidas no Facebook e seguidores no Twitter, portanto arriscando-se — conscientemente, creio eu — a confundir os leitores e, vejam só, a si mesmos, a respeito das fronteiras entre o real e a ficção. Elvira Vigna é uma escritora emblemática da nova geração a que me refiro aqui, uma nova geração não formada exclusivamente por autores jovens e/ou iniciantes, mas por aqueles que aderem e adaptam-se ao movimento tecnológico. Vigna mantém muito ativos os seus perfis em redes sociais, falando sobre seus trabalhos atuais e antigos, narrando suas perdas e conquistas no meio editorial, discutindo a situação da literatura no país e no mundo, tecendo críticas ao mercado editorial e a outros escritores, compartilhando textos, matérias, artigos, enfim, dialogando com seus leitores. Nada a dizer, romance da autora, trata-se de uma narrativa em primeira pessoa, em que a personagem protagonista é uma mulher de mais ou menos sessenta anos que rememora — enquanto reelabora — o episódio em que seu marido relacionou-se com uma mulher vinte anos mais jovem do que ele, fato que a obriga a encontrar novos significados para a relação e para si mesma. Embora a protagonista de Nada a dizer tenha a mesma faixa etária da autora Elvira Vigna, as duas compartilhem um meio social e cultural próximos e a linguagem do romance seja construída num tom confessional, não há indícios subjacentes a esses, na obra, de estarmos diante de uma

autoficção; entretanto, o romance serve a este estudo como ilustração de um novo formato da até aqui mencionada relação autor-obra-leitor, mediada pela tecnologia oferecida pela contemporaneidade. “Aline” é uma blogueira que mantém a página “Godot não virá mas sente-se enquanto espera” como um espaço destinado à publicação, entre outras coisas relacionadas à literatura, de resenhas de livros de ficção produzidas por ela mesma. “Aline” identifica-se apenas por este nome, não revela ao público qual sua formação ou nível de contato com a Teoria e a Crítica Literária; ao que indica, é uma leitora que escreve resenhas por prazer. Em setembro de 2011, ela publicou em sua página uma resenha1 sobre Nada a dizer. Até aqui, tudo normal. Obras são lançadas o tempo todo no mercado e cria-se em torno delas uma metaprodução que vem escapando cada vez mais ao controle do autor e aos limites da autoria. A curiosidade, neste caso, é a tentativa de interferência da própria Elvira Vigna nos rumos que tomou sua criação. No espaço destinado aos comentários sobre a resenha, Vigna apropria-se do texto de “Aline” para rebater ponto a ponto as críticas da blogueira, utilizando uma estrutura de “diz você /digo eu” e criando uma discussão argumentativa que culmina em:

diz você: Eu disse “pretensamente amoral” porque não acredito que um registro literário, porque psicologizado, consiga ser neutro quanto a questões morais. Como todo discurso, aqui estão implicadas escolhas estéticas que, mais ou menos explicitamente, configuram uma visão de mundo. Minha leitura, como eu disse desde o começo, é que essa visão de mundo está pautada — e também engendra, convicta — num tipo psicológico já estabelecido no acervo destes nossos dias: a mulher de meia idade, intelectual, traída, afetivamente frustrada, cujo consolo é afirmar, direta ou indiretamente, sua superioridade moral em relação ao marido canalha e à amante hedonista. À amante, principalmente. digo eu: aline, aqui eu fico achando que você está tão empenhada em manter uma posição prévia, que sequer conseguiu ler o livro direito. a narradora não é frustrada nem afetiva nem sexualmente. pelo contrário. e seu consolo é trepar mais e mais com o homem de quem ela gosta, e afirma aliás, textualmente, que gosta. assim como ele a ela. [sic]

1Resenha

e comentários citados a seguir estão disponíveis em: http://godotnaovira.wordpress.com/2011/09/07/nada-a-dizer/ . Último acesso em: 08/07/2014.

Ao que “Aline” responde, após outras explicações, com uma ponta de ironia capaz de nos descrever o seu sentimento de frustração ao ver negado pela própria autora da obra o seu direito a produzir sentidos através da leitura:

Talvez eu tenha comprado um exemplar defeituoso de Nada a dizer, pois faltou nele o anexo com a explicação da autora para que os leitores “consigam ler direito” o romance, sem contaminação de nenhuma “posição prévia”. Mas em faltando o anexo explicativo, é de muita eficiência esse serviço de Interpretare Letteratura Personalité que vc oferece àqueles que se propõem a escrever “errado” sobre seu livro. [sic]

Elvira Vigna ainda contra-argumenta: “bem, aline, aqui me despeço. sua agressividade me confirma um medo, a de que você estivesse desde o começo defendendo uma posição pessoal em vez de ler um texto — o que supõe uma abertura. ciau” [sic]. São muitas as inferências que podem ser realizadas a partir deste evento. Algumas advêm da discussão que se seguiu, nesse mesmo espaço destinado aos comentários, após a interferência de Vigna. Destaco alguns dos mais significativos: “Antonio” questiona: “será q é um romance autobiográfico?” e “Manoel Galdino” exemplifica: “Já pensou o Machado falando, ó, a Capitu não traiu não, isso é leitura machista. Quem lê assim tá errado. Ou então, é claro que traiu, os sinais tão todos lá, lê direito…”. E, por fim, o comentário de “lu”, que aborda o ponto que pretendo demonstrar:

Curiosa a postura da autora, que defende a narradora como defende a si mesma; no discurso dela, ambas se confundem, e sua posição é defendida como se fosse a da verdade. Narrador em primeira pessoa não conta com onisciência… Desse jeito, invés de “Nada a dizer”, um título mais apropriado pro livro seria “Desabafo”;)

Tal evento no blog “Godot não virá...” não pode afirmar algum teor autobiográfico em Nada a dizer, e de qualquer forma isso não importa aqui. A questão é observar como mais uma vez, e de diferente forma, a zona de contato entre o real e a ficção se amplia: os “eus” afloram para um plano extralivro em que a escritora, a “dona” da obra, explicitamente tenta dominar o que em essência deveria lhe escapar, a recepção. Ao interferir no texto de “Aline”, que já foi construído sobre

Nada a dizer, Vigna acaba gerando uma terceira instância além da sua obra, instância possível e alimentada pelos recursos da internet. Ainda, para concluir a discussão sobre o episódio, ao menos neste texto, não podemos deixar de lembrar que, em tempos de tantas ficções e autoficções, a Elvira Vigna que se manifestou nos comentários do blog “Godot não virá...” pode não passar de mais uma invenção da autora real — já que a própria imagem que Vigna utiliza em seu perfil do Facebook se trata de uma ilustração, não de uma fotografia —, quiçá de um leitor se fazendo passar pela autora real, e assim nada do que eu afirmei aqui tem validade, ou tem ainda mais. Os dias atuais são dias de superexposição, da qual não escapam nem mesmo os antes reclusos escritores. Dificilmente uma obra publicada por uma grande editora atinge larga abrangência e expressivo sucesso sem que o autor tenha sua imagem estampada na contracapa do livro e exibida em materiais de divulgação, suas opiniões registradas em entrevistas para diversos meios, suas idiossincrasias transformadas em instrumentos de publicidade. A literatura contemporânea se estabelece num mercado, que, como não poderia deixar de ser, possui regras para gerar o retorno almejado. A presença do escritor — um ser humano com rosto, voz, opinião — legitimando a sua criação se trata de uma das cláusulas mais destacadas do contrato. Tanta profanação indicaria o fim ou ao menos o enfraquecimento da literatura como estamos acostumados? Lejeune (2008, p. 202-3), a respeito da relação entre as imposições do mercado e essa possível tragédia, afirma:

Historicamente, em primeiro lugar, constato que, a cada vez que uma inovação veio intervir nas modalidades da inovação literária, apareceram cassandras e puristas para condená-la. [...] Depois, a nova técnica é absorvida, com suas vantagens e inconvenientes. Acostuma-se com ela, educa-se, mitridatiza-se e nem por isso a literatura morre. Sem dúvida alguma, o campo cultural é transformado, menos, aliás, por causa do “modo de vulgarização” do que pelo fato de o livro fazer parte de um conjunto de consumos culturais mais amplos.

Certamente as exigências do mercado, as condições de produção envolvidas na criação da obra, a vida pessoal do autor, sua formação, viagens e o tipo de relacionamento que mantém com os leitores não estarão nunca acima da importância dessa obra, nem definirão o seu valor. No entanto, um autor é mais do que um nome

impresso em capas de livros — nome que muitas vezes se sobrepõe ao próprio título da obra. Um autor é um nome que faz referência a uma pessoa cada vez mais visada pela mídia e pelo público, a uma personalidade cuja presença pode vir, sim, a influenciar a experiência do leitor. No exemplo dado aqui, essa influência se dá de uma forma ainda mais concreta, mesmo que no meio virtual. Ao mesmo tempo, a contemporaneidade disponibiliza instrumentos suficientes para que escritores como Elvira Vigna sigam ficcionalizando a vida mesmo fora dos limites do papel, e é possível a eles forjarem-se personagens também quando se apresentam no cenário social. Todos esses novos elementos vão se apresentando e se incorporando ao espaço biográfico conforme previsto por Arfuch (2009, p. 114):

Um espaço biográfico — espaço/temporalidade — mais dilatado que o gênero, pensado não a partir da pureza étnica, mas sim das interações, das inter-relações, do hibridismo das formas, de seus deslizamentos metonímicos, de sua intertextualidade, em resumo, das diferentes maneiras em que as vidas “reais” — experiências, momentos, iluminações, lembranças — narram-se, circulam e são apropriadas nas incontáveis esferas da comunicação midiatizada.

Afinal, a literatura é, hoje, um campo de fronteiras indeterminadas, até movediças, entre as quais o autor, como alertou Foucault (2006), está sempre, mesmo que por conta da superexposição, em vias de desaparecer.

REFERÊNCIAS

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FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico. Revista USP, São Paulo, n. 53, p. 166-182, mar.-maio 2002. GARDNER, John. A arte da ficção: orientação para futuros escritores. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. 1. reimp. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. KOCH, Stephen. Oficina de escritores: um manual para a arte da ficção. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Organização de Jovita Maria Gerheim Noronha. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008. LODGE, David. A arte da ficção. Porto Alegre: L&PM, 2009. VIGNA, Elvira. Nada a dizer. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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