A prisão preventiva e a função democrática do juiz criminal

July 4, 2017 | Autor: E. Neves Lima Filho | Categoria: Processo Penal
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A prisão preventiva e a função democrática do juiz criminal Eduardo Neves Lima Filho

RESUMO: Cotidianamente, vemos um considerável aumento no número de presos cautelares no Brasil, sendo que a maioria corresponde a prisões preventivas para garantia da ordem pública. Nesse contexto, o presente artigo tem como finalidade analisar a fundamentação utilizada, as decisões de decretação e a manutenção dessas prisões pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará, tenta vislumbrar quais objetivos o referido Tribunal visa alcançar ao decretá-las, verificar o motivo de tal comportamento, bem como sua adequação as funções democráticas do Judiciário. Palavras-chave: prisão preventiva, garantia da ordem pública, funções democráticas, fundamentação.

1 INTRODUÇÃO

A prisão tem sido considerada a principal espécie de pena na Modernidade (BITENCOURT, 2004), sendo aplicada como sanção aos violadores das normas penais incriminadoras. Contudo, a prisão-pena não é a única medida restritiva de liberdade que ordenamento jurídico brasileiro conhece. O Código de Processo Penal Brasileiro prevê as chamadas prisões cautelares ou prisões provisórias, que correspondem a medidas restritivas de liberdade aplicadas durante o andamento do processo visando resolver situações consideradas emergenciais. Desde a Constituição do Império de 1824, o nosso ordenamento jurídico já conhecia a figura das prisões antes da formação de culpa, mais especificamente nos casos de prisões em flagrante delito ou para indivíduos indiciados por crimes que não admitiam fiança (VASCONCELOS, 2010). Passados quase 200 anos, as prisões provisórias continuam existindo, possuindo previsão constitucional e legal, com alterações apenas no que diz respeito às espécies de prisões e hipóteses de cabimento. Ocorre que, cotidianamente, vemos um aumento considerável do número de presos provisórios em comparação com os presos definitivos no Brasil e em especial no 

Mestrando em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional pelo Centro Universitário do Pará - Cesupa, Especialista em Processo Penal pela Escola Superior de Magistratura do Estado do Pará, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal do Cesupa, Advogado Criminalista sócio do escritório Faro, Lima & Oliverio Advogados Associados. email: [email protected] e [email protected] Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 114134, Nov., 2013.

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Estado do Pará. Realizando uma análise superficial das decisões que decretam e mantém prisões cautelares (decretadas no curso do processo), já é possível observar que a grande maioria delas são fundamentadas na garantia da ordem pública, prevista no artigo 312 do Código de Processo Penal brasileiro, e a fundamentação utilizada é por demais diversificada, muitas vezes parecendo querer satisfazer determinados anseios populares que não seriam funções constitucionalmente atribuídas ao Judiciário. Assim, o objetivo do presente artigo é analisar essas decisões e verificar quais objetivos o Poder Judiciário visa alcançar ao decretar as prisões preventivas para a garantia da ordem pública, bem como verificar o motivo de tal comportamento. Para isso, iniciaremos com uma breve exposição da legislação que trata das prisões cautelares no Brasil, principalmente a regulamentação legal da prisão preventiva para garantia da ordem pública. Em seguida, analisaremos a situação carcerária no Brasil e no Estado do Pará, buscando demonstrar a proporção de presos cautelares e presos definitivos. Na seção seguinte, realizaremos um levantamento jurisprudencial, buscando, no Tribunal de Justiça do Estado do Pará, as decisões denegatórias de Habeas Corpus que mantiveram prisões preventivas para a garantia da ordem pública, bem como analisaremos o conteúdo de algumas destas decisões. Na última seção, tentaremos demonstrar qual seria a função do juiz criminal no estado democrático brasileiro, para, em seguida, tentar constatar se, no que diz respeito a decretação de prisões preventivas, os magistrados estão observando suas funções constitucionais.

2 PRISÕES CAUTELARES NO BRASIL

Atualmente, o ordenamento jurídico brasileiro prevê três espécies de prisões provisórias, a saber: a prisão temporária, cuja previsão se encontra na Lei 7.969/1989, podendo ser decretada apenas no curso do inquérito policial e tem como finalidade garantir o êxito da investigação criminal. É a única espécie de prisão com prazo de duração pré-estabelecido, podendo ser decretada por cinco dias, com possibilidade de prorrogação por mais cinco, ou, nos casos de delitos previstos na Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), por 30 dias, podendo ser prorrogada por igual período. A segunda espécie é a prisão em flagrante, que tem como objetivo a captura imediata de Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 114134, Nov., 2013.

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provas da materialidade do crime e indícios de sua autoria, podendo ser realizada independentemente de ordem judicial prévia nos casos previstos no artigo 302 do Código de Processo Penal, contudo tal prisão deve ser submetida a posterior homologação pelo Judiciário. Nessas hipóteses, o cidadão só poderá permanecer preso se o juiz converter o flagrante em prisão preventiva, que é a nossa terceira espécie de prisão provisória. A preventiva pode ser decretada após a realização de uma prisão em flagrante – conversão do flagrante em preventiva – ou simplesmente decretada, de ofício (somente no curso do processo) ou a pedido do representante do ministério público, do assistente de acusação ou da autoridade policial (durante a fase de inquérito ou no decorrer do processo criminal), porém, para sua decretação, sempre será exigida a existência dos requisitos autorizadores previstos nos artigos 312 do Código de Processo Penal. Esta terceira espécie de prisão cautelar terá especial importância para o presente artigo, mais especificamente uma das hipóteses de cabimento dessa prisão. O artigo 312 do referido diploma processual estabelece que a prisão preventiva somente poderá ser decreta: “como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”. Assim, percebemos quatro hipóteses fáticas que autorizam a prisão: conveniência da instrução processual, que corresponde à permissão legal de cerceamento da liberdade do acusado quando este estiver impondo obstáculos ao normal andamento processual, comprometendo, principalmente, a colheita probatória. São os casos em que o réu está destruindo provas, ameaçando testemunhas, oferecendo suborno a servidores públicos ligados ao processo, etc. Outra hipótese é assegurar a aplicação da lei penal, que diz respeito, principalmente, aos casos de fuga do acusado ou indiciado que visa evitar uma eventual aplicação de punição por ocasião de condenação. O raciocínio é que, ocorrendo a condenação, se o acusado não for mais encontrado, a pena não poderá ser aplicada, o que geraria a “perda de objeto” do processo penal. Em suma, sem a presença física do condenado não haverá aplicação de pena. Essas duas hipóteses de decretação da prisão preventiva visam acautelar o processo, proteger o procedimento de condutas praticadas pelo acusado contra o andamento processual. A maior controvérsia surge quando analisamos as últimas

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hipóteses de decretação desta espécie de prisão: a prisão para garantir a ordem pública ou a ordem econômica. Os termos “ordem pública” e “ordem econômica” são possuidores de um elevado grau de vagueza e indeterminação, o que faz com que os Tribunais brasileiros não entrem em consenso acerca da definição destes termos. Este consenso inexiste tanto na jurisprudência quanto na doutrina e não nos deparamos apenas com uma ausência de consenso, mas também com uma série de posicionamentos diferentes e diametralmente opostos, desde a completa inconstitucionalidade desta prisão (LOPES JR, 2010), passando pela exigência cumulativa de alguns requisitos, como repercussão geral, gravidade do crime e periculosidade do agente (NUCCI, 2008), chegando ao extremo de considerar garantia da ordem pública a prisão de indivíduos considerados perigosos1. Parece-nos uma diversidade e flexibilidade por demais extensa para um dispositivo capaz de determinar a privação total da liberdade de um cidadão antes mesmo de qualquer formação de culpa. Outro ponto de elevada importância para o presente artigo é a proporção entre presos definitivos (condenados com sentença transitada em julgado) e presos cautelares.

2.1 PRISÕES CAUTELARES E POPULAÇÃO CARCERÁRIA

Como já dito, após a análise dos relatórios gerados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) durante a realização dos mutirões carcerários, percebemos a espantosa proporção de presos provisórios em relação ao número de presos permanentes, pois a média nacional é de 49% de presos provisórios. A situação é mais preocupante quando olhamos para os dados do sistema carcerário local, pois no Estado do Pará, 60% dos presos são provisórios, podendo este número ser mais alarmante, pois como destacou o conselheiro do CNJ Walter Nunes: “Eles (faz referência ao Judiciário do Pará) não sabem ao certo nem quantas pessoas estão sob a custódia do Estado”2.

1

Brasil, STF, HC 107167, Ministro Relator Joaquim Barbosa. Órgão Julgador:Segunda Turma. Publicado em 22/03/2012.

2

MONTENEGRO, Manuel Carlos. Conselho suspende mutirão carcerário do TJPA. Disponívelem:. Acesso em: 30/03/2012. Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 114134, Nov., 2013.

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Pela análise do Sistema Nacional de Informação Penitenciária (InfoPen)3, podemos chegar a dados similares, apensar de alguma divergência, aos apresentados pelo CNJ. Até junho de 2012, o levantamento da população carcerária constante no Infopen, indica que tínhamos, no Brasil, 508.353 (quinhentos e oito mil e trezentos e cinqüenta e três) presos. Destes, 191.024 (cento e noventa e um mil e vinte e quatro) presos provisórios, o que corresponde 37,57% do total. De acordo com a mesma base de dados, no Estado do Pará, até junho de 2012, tínhamos 11.730 (onze mil setecentos e trinta) presos incluindo regime fechado, semiaberto, aberto e internação por medida de segurança, sendo que destes, 5.542 (cinco mil quinhentos e quarenta e dois) são presos provisórios (todos em regime fechado). Ou seja, 47,24% da população carcerária do Estado é composta por presos que não foram condenados com sentença condenatória transitada em julgado, alguns sem mesmo sentença de primeiro grau. Assim, constata-se pelos dados apresentados que grande parte da população carcerária do Brasil e, em especial, no Pará, é composta por presos cujas situações processuais ainda não estão definidas, ainda não existindo sentença condenatória definitiva. Após a exposição da situação carcerária, passaremos a análise de decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará em julgamentos de Habeas Corpus envolvendo prisões preventivas para garantia da ordem pública.

3 LEVANTAMENTO JURISPRUDENCIAL

A pesquisa jurisprudencial foi realizada no site eletrônico do Tribunal de Justiça no Estado do Pará. A busca foi realizada tendo como data da publicação inicial 01 de agosto de 2012 e a data final 20 de dezembro de 2012, sendo utilizados como termos de busca as expressões “habeas corpus” e “ordem pública”, conjuntamente. Como resultado, tivemos 114 (cento e quatorze) acórdãos encontrados. Pela análise das decisões, podemos constatar uma série de interpretações do termo “ordem pública” constante no artigo 312 do Código de Processo Penal. As 3

http://portal.mj.gov.br/main.asp?View=%7BD574E9CE-3C7D-437A-A5B622166AD2E896%7D&Team=¶ms=itemID=%7BC37B2AE9-4C68-4006-8B1624D28407509C%7D;&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 114134, Nov., 2013.

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interpretações são as mais variadas e não excludentes, ou seja, com base nos acórdãos analisados, percebemos que a expressão “garantia da ordem pública” tem vários significados diferentes não excludentes entre si. Dentre as interpretações mais comuns encontramos: “repercussão social” e “periculosidade”, de forma alternativa ou cumulada. A “periculosidade” do paciente costuma ser vislumbrada pelos juízes e desembargadores por meio dos antecedentes criminais ou pelo chamado modus operandi, que nada mais é que a presunção de que o acusado é perigoso devido à forma de execução do crime. Para exemplificar, vejamos trechos dos seguintes julgados: Decisão 01: Em relação ao indiciado [...] o mesmo possui vários antecedentes criminais, principalmente pelos delitos de roubo e furto conforme acostado nos autos, fato que, a priori, indica grave afronta a ordem pública que se vê imensamente ameaçada em razão dos crimes desta natureza, mais precisamente na forma cometida pelo acautelado, conforme artigo 312 do CPP, portanto, necessária se faz, ao menos por hora, manter a custódia cautelar do flagranteado. (grifo nosso) (CÂMARAS CRIMINAIS REUNIDASHABEAS CORPUS LIBERATÓRIO COM PEDIDO DE LIMINAR 2012.3.0194437.Comarca de Origem: CAPITAL.Relatora: MARIA EDWIGES DE MIRANDA LOBATO).

Decisão 02: Da análise detida do mencionado decisum (fls. 35/37), sobressai como motivo a manutenção da segregação cautelarcom a consequente negativa da liberdade provisóriaa necessidade de garantir à ordem pública, pois o fato de opaciente responder a outros processos criminais levou o magistrado singular a concluir que em liberdade o acusadotem encontrado estímulo para delinquir, demonstrando ser propenso à prática delitiva e absoluto menosprezo pelasnormaspenais.Em outras palavras, a reiteração criminosa, independentemente de condenação penal transitada em julgadacircunstância inominada relevante para a quantificação da pena-base demonstra periculosidade concreta do agente,pois torna presumível que em liberdade voltará a delinquir, avultando, nesse contexto, a necessidade de decretação daprisão preventiva com espeque na garantia da ordem pública, nos termos do art. 312 do Código de Processo Civil. (SECRETARIA DAS CÂMARAS CRIMINAIS REUNIDASHABEAS CORPUS LIBERATÓRIO COM PEDIDO DE LIMINARPROCESSO Nº 2012.3.016869-8. RELATORA: DESEMBARGADORA VERA ARAÚJO DE SOUZA, 29/08/2008)

Decisão 03: Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 114134, Nov., 2013.

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É que a alegada ausência de justa causa à segregação cautelar do paciente não prospera, pois diante da simples leitura do despacho que indeferiu o seu pedido de liberdade provisória e decretou a sua prisão preventiva, constata-se que o Juiz a quo deixou evidente a necessidade de se garantir a ordem pública na hipótese, em virtude da gravidade concreta do delito em questão revelada pelo modus operandi empregado na sua prática, que evidencia a periculosidade do agente, tanto que o referido Juiz informou ter sido o aludido paciente preso em flagrante pela prática do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, tendo sido apreendido em sua residência 1kg de maconha, destinado à mercancia, impondo-se, portanto, valorizarse e referendar-se o convencimento do Juízo a quo acerca da necessidade da constrição cautelar, em observância ao Princípio da Confiança no Juiz próximo da causa, dos agentes, dos fatos e de suas circunstâncias. (grifo nosso)(HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO COM PEDIDO DE LIMINARPROCESSO Nº 2012.3.0169323RELATORA: Desa. Vania Fortes Bitar)

Quanto à repercussão social, várias decretações e manutenções de prisões preventivas utilizam elementos fáticos diversos para constatar a repercussão e consequentemente fundamentar o encarceramento cautelar. Dentre as alegações de garantia da ordem pública em decorrência da repercussão social, de forma exemplificada, as mais comuns são: Decisão 04: No caso ora em julgamento, a autoridade coatora, inicialmente, ressaltou que encontravam-se presentes os indícios suficientes de autoria, visto que o paciente confessou a autoria do delito após ter sido preso. Posteriormente, fundamentou sua decisão na garantia da ordem pública, asseverando que a conduta praticada é bastante grave e que causou desassossego à sociedade local. (grifo nosso) (AUTOS DE HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO COM PEDIDO DE LIMINARPROCESSO N. 2012.3.017841-5RELATOR: Des. JOÃO JOSÉ DA SILVA MAROJA)

Decisão 05: Com efeito, o indeferimento do pedido de liberdade provisória proferido pelo juízo a quo restou fundamentado pela necessidade de acautelar a ordem pública, na conveniência da instrução criminal e na garantia da aplicação da leipenal, uma vez que os indícios de autoria e materialidade no caso ora em análise seriam robustos, bem como pelagravidade concreta do crime e sua repercussão social, uma vez que o crime é de tráfico de drogas e associação para otráfico, demonstrando periculosidade e sério abalo à ordem social.(HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO COM PEDIDO DE LIMINARPROCESSO Nº 2012.3.016478-7DESEMBARGORA RELATORA: VERA ARAÚJO DE SOUZA

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Como afirmamos, estas são as interpretações mais comuns do termo “garantia da ordem pública”, sendo que podemos encontrar várias outras interpretações, grande parte delas preocupadas com o combate a criminalidade e impedir reiteração criminosa. Apresentaremos algumas dessas decisões. Decisão 06: No caso em apreço, a digna autoridade apontada coatora converteu a prisão em flagrante em preventiva,demonstrando a necessidade da manutenção da constrição cautelar da paciente, face à prova da materialidade eindícios de autoria consubstanciados no laudo toxicológico(fl. 16) e na prova testemunhal, e ainda em razão dapresença de um dos pressupostos para a prisão preventiva, qual seja, a garantia da ordem pública, destacando em suadecisão, que No caso em tela, estamos diante do típico caso de inversão dos papéis do sistema público de segurança,onde dois dos flagrados, que deveriam estar protegendo a sociedade, estavam colocando-a em perigo. Ademais, oscrimes são apenados com reclusão e os indiciados soltos podem continuar a infestar a cidade de substânciasentorpecentes, colocando em risco a saúde pública, havendo, portanto, extrema necessidade da medida acauteladorapara garantia da ordem pública e para que sirva de efeito pedagógico a fim de que ostros (sic) não pratiquem o mesmoato. (CÂMARAS CRIMINAIS REUNIDASHABEAS CORPUS LIBERATÓRIO COM PEDIDO DE LIMINARPROCESSO N.º 2012.3.015120-5.RELATORA: DESA. BRÍGIDA GONÇALVES DOS SANTOS.)

O julgado acima afirma ser perfeitamente admissível a prisão preventiva para garantia da ordem pública, nos casos de tráfico de entorpecentes, para impedir que os agentes continuem a vender drogas ilícitas conjuntamente com o fato dos acusados serem policiais e ao invés de combaterem o crime estavam praticando crimes. Além disso, a garantia da ordem pública se daria pelo efeito pedagógico para que outros indivíduos não praticassem crimes, o que nos parece a mesma função preventiva da sanção penal, a qual só pode ser aplicada após o trânsito em julgado da sentença condenatória. O julgado seguinte, cuja fundamentação chama atenção, utiliza vários argumentos diferentes para justificar a decretação da preventiva para garantia da ordem pública: Decisão 07: No caso em apreço, os depoimentos constantes dos autos apontam para o envolvimento do(a-s) acusado(a-s) no(s) crime(s) em questão, além do laudo de constatação provisória indicar positivamente quanto a existência de substância entorpecente, estando presentes, portanto, os pressupostos que se justificam a manutenção ou decretação da Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 114134, Nov., 2013.

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custódia preventiva (prova da materialidade e indícios da autoria), fatores que caracterizam o requisito do fumus commissi delicti). Já no tocante ao requisito do periculum libertatis, verifico que a gravidade concreta do(s) crime(s) atribuído(s) ao(a-s) acusado(a-s), em especial devido ao modus operandi por ele(a-s) desenvolvido demonstra, com razoável clareza, a sua periculosidade social, sendo a cautelar corporal, por ora, a melhor medida para estabilizar a ordem pública. Isso porque, o crime de tráfico de entorpecentes é um crime de especial gravidade social. É ele o responsável pelo esfacelamento social, já que atua destruindo diretamente a célula máter da sociedade, na medida em que destrói as relações familiares. Além disso, é ele a matriz geradora da maioiria dos demais delitos penais, a exemplo do roubo, do furto da receptação, etc; já que os viciados em entorpecentes, após perderem o contato familiar e profissional e por consequência o apoio financeiro -, passam a praticar crimes para sustenta o vício e fomentar o tráfico.(...); Pari passu, estando presentes os pressupostos e, ao menos, um dos fundamentos de decretação da prisão preventiva, qual seja: garantia da ordem pública - já que pôr-se em liberdade o praticante , em tese, de crime de natureza hedionda , causaria a descrença no Poder Judiciário por parte da população local, afetando a credibilidade da Justiça, que se constitui em valor essencial à sociedade, cabendo aos agentes públicos e políticos, e aí se inclui o Poder Judiciário, tomar as medidas necessárias para assegurar que este valor se mantenha -, impõe-se a segregação precária . É bem verdade que toda prisão consiste em uma agressão à liberdade do cidadão. Contudo, ela se sustenta justamente na prevalência do interesse público sobre o particular. Há casos, como o ora em exame, que o interesse público se sobrepõe ao privado, de maneira que havendo a necessidade de se sacrificar um direito ao outro se deve, sem dúvida, assegurar o direito da sociedade em detrimento até da liberdade de alguns. Eis, portanto, o fundamento de validade de toda e qualquer prisão cautelar. (CÂMARAS CRIMINAIS REUNIDAS, HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO COM PEDIDO DE LIMINAR, PROCESSO N.º 2012.3.008942-2.RELATORA: DESA. BRÍGIDA GONÇALVES DOS SANTOS.)

Este último julgado aponta como elementos de fundamentação a periculosidade evidenciada pelo modus operandi, contudo, ao invés de descrever a conduta imputada (como de costume), a desembargadora se limitou a afirmar que o crime de tráfico de entorpecentes é de elevada danosidade social, sendo: “responsável pelo esfacelamento social, já que atua destruindo diretamente a célula máter da sociedade, na medida em que destrói as relações familiares. Além disso, é ele a matriz geradora da maioria dos demais” (CÂMARAS CRIMINAIS REUNIDAS, HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO COM PEDIDO DE LIMINAR, PROCESSO N.º 2012.3.008942-2. RELATORA: DESA. BRÍGIDA GONÇALVES DOS SANTOS). Ou seja, a garantia da ordem pública se daria pelo afastamento de cidadãos acusados da prática de crimes considerados altamente lesivos a sociedade. Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 114134, Nov., 2013.

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Outra fundamentação utilizada é a necessidade de garantir a ordem pública protegendo-se a credibilidade do Judiciário perante a sociedade. Diz que se os acusados de crimes hediondos permanecerem em liberdade no curso do processo, ocorreria uma descrença no Poder Judiciário e seria função deste, ao lado dos outros Poderes, impedir que isso aconteça. Sem nos alongarmos demasiadamente na exposição de decisões, os acórdãos apresentados visam exemplificar as interpretações e definições dadas à expressão “garantia da ordem pública” visando a decretação ou convalidação de prisões preventivas. A questão a ser tratada, tendo como parâmetro de análise tais acórdãos, é se as definições apresentadas ou aceitas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará estão adequadas às funções do magistrado criminal de um Estado Democrático de Direito, bem como quais razões provavelmente levam o Judiciário a decidir nesses moldes.

4 PRISÃO PARA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E A MAGISTRATURA DEMOCRÁTICA

4.1 FUNÇÃO DO JUIZ CRIMINAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO Para entendermos a função do magistrado no processo criminal democrático brasileiro, devemos compreender o próprio processo penal. O Estado, em sua essência, não precisa do processo penal para efetivar seu poder de punir, pois este é um poder ontológico, sempre existiu e sempre existirá. Independentemente da existência de Direito Penal ou de Direito Processual Penal, o Estado sempre possuiu o poder de punir, ou seja, se não existissem as leis penais e processuais penais, ainda assim existiria a punição. O processo penal não está posto para o Estado, mas sim contra o Estado, sendo uma proteção dos indivíduos contra punições estatais arbitrárias e irracionais, limitando a utilização desse poder punitivo. Ao tratar da necessidade de submeter o caso ao processo penal para que haja aplicação da pena, Arouca ensina que: “Estamos aqui, outra vez, diante de uma opção de civilização, que levou a proibir aplicações do Direito Penal que não se realizem precisamente com as garantias do processo” (AROUCA, 1997, p. 20) (tradução nossa)4. Certos direitos

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“Estamos aquí, otra vez, ante una opción de civilización, que ha llevado prohibiraplicacionesdelDerecho penal que no se realicen precisamente conlas garantias delproceso”. Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 114134, Nov., 2013.

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fundamentais, dentre estes o direito à liberdade, só podem ser limitados por uma decisão judicial legítima (CARVALHO, 2006). Como bem nos lembra Lopes Jr.: “O processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (Direito Penal), senão que desempenha o papel limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido.” LOPES JR, 2010, vol. I. p. 09). O processo penal é o direito fundamental que visa impedir a aplicação de punições de forma arbitrária, sem que o cidadão tenha direito de se defender e apresentar todas as provas e alegações que puder e quiser em seu favor. O processo corresponde ao direito de somente ser punido após um procedimento dialético pré-estabelecido que observe todos os demais direitos fundamentais previstos na Constituição da República, nas Leis e nos tratados e convenções internacionais. Nunca podemos deixar de realizar a devida leitura da Lei Processual a partir de uma filtragem constitucional. A Constituição da República de 1988 estabelece, em seu artigo 5º, um sistema processual penal regido pelo princípio do juiz natural e imparcial, separado materialmente da figura do acusador, ou seja, com julgadores imparciais, cientes de sua efetiva função de proteção dos Direitos Fundamentais e não de justiceiros combatentes da criminalidade. Sem o processo penal democrático os cidadãos poderiam ser vítimas de punições estatais arbitrárias e irracionais, movidas pelo simples capricho, vaidade ou vingança dos governantes de um Estado. Assim, os direitos fundamentais, em especial os individuais de primeira geração, estão postos em favor dos cidadãos como proteção contra os demais cidadãos e principalmente contra o próprio Estado, visando a manutenção do Estado Democrático, impedindo assim o retorno a Estados ditatoriais e autoritários antes já vivenciados. Os direitos de primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado. (BONAVIDES, 2007, p. 563-564) Os Direitos Fundamentais, principalmente os processuais, são direitos dos indivíduos submetidos a uma gravosa persecução criminal. Seguindo o raciocino de Ferrajoli, temos que analisar o Direito Penal e o Direito Processual Penal como direitos destinados a proteção dos mais fracos. Nas palavras do autor: Precisamente – monopolizando a força, delimitando-lhe os pressupostos e as modalidades e precluindo-lhe o exercício arbitrário por parte dos sujeitos não autorizados – a proibição e a ameaça penal protegem os possíveis ofendidos contra os delitos, ao passo que o Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 114134, Nov., 2013.

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julgamento e a imposição de pena protegem, por mais paradoxal que pareça, os réus (e os inocentes suspeitos de sê-lo) contra as vinganças e as outras reações mais severas. Sob ambos os aspectos a lei penal se justifica enquanto lei do mais fraco, voltada para a tutela dos seus direitos contra a violência arbitrária do mais forte.

Dessa perspectiva, podemos perceber que a função do juiz criminal no Estado Democrático é a proteção dos Direitos Fundamentais do acusado proferindo, ao final, uma sentença imparcial. Segurança pública é função constitucional do Poder Executivo (artigo 144), não cabendo ao magistrado penal esta função. O juiz criminal não pode buscar combater a criminalidade sob pena de por em risco sua imparcialidade ao valorar provas e proferir a sentença, devendo se ater, no curso do processo, a função de garantir a proteção dos direitos fundamentais do acusado até então considerado inocente (artigo 5º, inciso LVII, da CR). A função do juiz criminal no curso do processo se confunde, em parte, com a função do próprio processo, garantir os direitos fundamentais do cidadão submetido pelo Estado acusador a uma persecução penal.

4.2 O ENTRELAÇAMENTO DAS FUNÇÕES DOS PODERES E SUAS CAUSAS

A partir da análise das funções do magistrado criminal no curso do processo, bem como dos acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará nos casos de decretação e manutenção de prisões preventivas para garantia da ordem pública, tentaremos verificar se os juízes e desembargadores estão observando suas funções democráticas com base nos motivos apresentadas nos referidos acórdãos. Como já demonstrado, por diversas vezes as prisões preventivas para garantia da ordem pública são decretadas com o objetivo conter sujeitos considerados perigosos, afastando-os do convívio social e protegendo os demais indivíduos de suas condutas desviantes. Tais decisões evidenciam uma clara tentativa, por parte dos magistrados, de proteger a sociedade de sujeitos vistos como ameaçadores da paz social, da lei e da ordem. Ocorre que tais decisões têm como fundamento ou os antecedentes criminais dos acusados/indiciados ou o chamado modus operandi do crime. Em ambos os casos, a Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 114134, Nov., 2013.

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análise é feita a partir de situações não julgadas, em aparente violação ao Direito Fundamental de Presunção de Inocência. Como podemos perceber pelos dois primeiros julgados apresentados, a periculosidade dos sujeitos foi evidenciada devido a existência de processos criminais movidos contra os pacientes e ainda em andamento, ou seja, antes de condenação com trânsito em julgado (que pode até mesmo não ocorrer). No terceiro acórdão, a periculosidade foi vislumbrada devido ao modus operandi do delito. Devemos entender exatamente o que é esse modus operandi. Nada mais é que a afirmação por parte do magistrado de que o crime é de elevada gravidade (gravidade analisada sem qualquer critério objetivo) evidenciada pela forma de execução do crime (descrição do fato constante na denúncia) e que corresponde a externalização da personalidade do sujeito, devendo este ser afastado do meio social por ser perigoso para os demais indivíduos. Podemos perceber, que ao afirmar que o sujeito é perigoso devido a forma que este cometeu o delito, o magistrado já afirma, no curso do processo, que o crime ocorreu da forma narrada na denúncia e que o acusado efetivamente cometeu o crime (se não tivesse cometido não poderia ser considerado perigoso), o que nos parece uma clara violação à Presunção de Inocência e a Imparcialidade do Julgador. De qualquer forma, ao decretar uma prisão preventiva para garantia da ordem pública pautada na periculosidade do acusado, o magistrado deixa claro seu objetivo de garantir segurança pública e extirpar a criminalidade do seu meio social - falamos em “seu meio social” devido ao fato notório de que dentro dos presídios brasileiros, cotidianamente, crimes são cometidos, presos contra presos, sem que muita atenção seja dada pelo Judiciário. No que diz respeito a decisões pautadas na repercussão social, podemos perceber que existe uma preocupação, por parte da magistratura, de proporcionar uma resposta a sociedade. Almejando conter o sentimento de impunidade e a sensação de insegurança causada pelo fato, os juízes determinam a prisão preventiva do acusado. Freqüentemente, vemos notícias sobre mobilizações na frente dos fóruns, pessoas pedindo pela condenação ou prisão de alguém como forma de manifestação de justiça para aquele caso concreto. Vislumbramos entrevistas mostrando indivíduos indignados com sentenças absolutórias, vendo-as como manifestações de injustiça. Todos esses elementos, amplamente divulgados pela mídia, corroboram para o sentimento coletivo de impunidade e insegurança. Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 114134, Nov., 2013.

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Quando um cidadão é acusado em liberdade pela prática de um injusto penal, apontado como culpado pela polícia ou pela mídia, ocorre uma ampliação desses sentimentos coletivos (dependendo da cobertura dada pela imprensa essa ampliação pode se dar de forma muito elevada). A repercussão social corresponde ao alastramento, acima do normal, do conhecimento do crime pela população, que é valorado de acordo com parâmetros incertos e subjetivos, proporcionando um alastramento mais rápido e em maior alcance dos sentimentos de impunidade e insegurança. É esse alastramento que as decisões 04, 05 e 07 expressamente visam impedir. De forma geral, todas as decisões apresentadas no presente artigo, bem como as encontradas ao longo da pesquisa, tem um ponto em comum. Todas, de forma direta ou indireta, visam resguardar o sentimento de segurança na sociedade e a credibilidade no Poder Judiciário por parte daquela. Aparentemente, o Judiciário vem assumindo diversas funções dentro do Estado Democrático brasileiro, apesar de várias dessas funções não terem o status de função constitucional. Isso se dá pela clara impossibilidade fática do Executivo e Legislativo, principalmente o primeiro, cumprir com suas funções democráticas. O que vemos no Brasil, assim com em diversos outros países, é a transferência de algumas funções do poder político para o Judiciário, e isso faz parte da judicialização do discurso político (GARAPON, 2001). Parte dessa judicialização do discurso político corresponde a transformação do penal na primeira alternativa de resposta social, deixando de lado a ideia de Direito Penal como ultima ratio (que continua sendo ensinada na academia e passada a frente pelos manuais de Direito Penal). Como bem nos lembra Garapon: A justiça converteu-se no lugar eleito das paixões democráticas, e o tribunal, no último teatro da disputa política. Porém, esse interesse renovado pela coisa judiciária é ambíguo: ele revela tanto uma vontade de reforçar um contrapoder, quanto uma nova vocação, menos nobre, para a vingança.[...] Em uma democracia inquieta, mais casuística que dogmática, as categorias penais tem um belo futuro, por causa de sua simplicidade e por seu forte teor de adrenalina. Clamar por vingança, chorar ou se indignar não exige qualquer diploma(GARAPON, 2001, p. 97)

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O Direito Penal é uma forma dos indivíduos satisfazerem seu sentimento de vingança (não necessariamente contra o real autor do crime). Essa vingança é consubstanciada, mas especificamente, pela pena aplicada ao condenado. Ocorre que o processo penal (assim como o civil e o administrativo) é lento. Enquanto o processo não chega ao seu fim, a sociedade sente que a justiça não foi feita e que a vingança não foi aplicada. Nesse momento entram as prisões cautelares, dando a sociedade um pequeno gosto de vingança satisfeita. O crime abala o ser humano. Este se choca, se compadece da dor alheia e se indigna com o medo vivido no seu dia-a-dia. O indivíduo cansa de ver o tempo passar e a criminalidade só aumentar de forma drástica e aparentemente desenfreada sem que qualquer medida do Executivo consiga conter este crescimento. As esperanças democráticas de vingança e de segurança são depositadas no Judiciário, que passa a ser encarregado de fazer justiça e proteger a sociedade. Cada caso julgado, cada acusado preso corresponde a um sentimento de conquista de mais uma batalha no combate a criminalidade. Nossa sociedade passa a interrogar seu destino a partir de histórias singulares. O mero caso policial não é mais o acontecimento que transcende o fator político por seu caráter cotidiano, mas, ao contrário, é a expressão de uma nova demanda política. Ele permite ao discurso lpolítico, depois de ter tentado mobilizar os cidadãos valorizando a questão local e associativa, interessar-se mais pelo cotidiano e pelo particular (GARAPON, 2001, p. 101) Esta opção pelo Direito Penal como meio de satisfação de anseios tem como uma de suas principais causas o fracasso das regulações socais intermediárias, como a família, a comunidade ou o trabalho (GARAPON, 2001). Importante destacar que devido ao sentimento de impunidade e insegurança, a sociedade passa a ver o acusado como “o” causador desses sentimentos e a punição deste amenizará o medo vivido pela comunidade. Os membros do corpo social passam a exigir a punição, exigir a prisão do acusado. O sofrimento da vítima passa a ser um sentimento coletivo, como nos lembra Garapon: “O que produz consenso não é tanto o ultraje às leis mas o sofrimento intolerável da vítima,[...]” (GARAPON, 2001, p. 103) Os indivíduos só conseguem ver justiça na prisão do acusado; absolvição, penas restritivas e transações penais são vistas como impunidade.

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A simples perspectiva de que um presumido culpado possa ser defendido é intolerável. Nenhuma nuança entre adesão à posição das vítimas e a absolvição dos presumidos culpados é aceitável. Defendêlos já é em si um crime. Esse linchamento revela claramente uma espécie de corpo-a-corpo que assinala o fracasso de todo o distanciamento simbólico. (GARAPON,2001, p. 104)

O que vivemos é o retorno de um sentimento arcaico de justiça, isto é, vingança (GARAPON, 2001). O medo e a insegurança são vivenciados hoje e a resposta estatal (vingança) deve ser dada hoje por meio da punição do causador dos temores, o que evidentemente não pode ser feito por uma sentença condenatória definitiva (devido a notória morosidade do judiciário), assim, a única forma de apaziguar tais sentimentos só pode se dar por uma prisão cautelar. A incerteza da punição e a incerteza das normas levam a um tratamento mais rigoroso, tanto na pena do condenado quanto no tratamento do acusado. Por não saber “se” e “quando” os culpados pela prática de determinados crimes serão punidos, os magistrados passam a dar uma resposta célere à sociedade que clama por vingança. Nesse sentido, Garapon leciona que: A incerteza das normas é compensada por uma penalidade mais longa; mas será que estamos pedindo à justiça algo que ela não pode dar? A única coisa que ela pode fazer é oferecer em cadafalso algumas cabeças a uma opinião pública aquecida pela mídia. [...] Ela é de novo envolvida pela lógica do bode expiatório que acreditávamos estar enterrada há muito tempo. (GARAPON, 2001, p. 118-119)

Nos Estados Democráticos, dentre eles o brasileiro, as funções de acabar com a impunidade, de trazer paz social e garantir a segurança foram entregues ao Judiciário: “É portanto mais sobre a forma processual do que política que a ação coletiva se legitima” (GARAPON, 2001, p. 45). A sociedade, no que diz respeito a segurança pública, não crê nos demais Poderes ou acredita que estes já fazem tudo que podem sem conseguir resultados. O espaço simbólico da democracia emigra silenciosamente do Estado para a justiça. Em um sistema provedor, o Estado é todo-poderoso e pode tudo preencher, corrigir, tudo suprir. Por isso, diante de suas falhas, a esperança se volta a justiça. É então nela, e portanto fora do Estado que se busca a consagração da ação política. O sucesso da justiça é inversamente proporcional ao descrédito que afeta as instituições políticas clássicas, causado pela crise de desinteresse e pela perda do espírito público.(GARAPON, 2001, p. 47-48)

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Aliado a isso, sempre escutamos o discurso de que nossas leis são ótimas, mas o problema é a não operacionalização destas. Não raramente, vemos a mídia massivamente divulgar determinados crimes da mesma espécie, como se estivesse ocorrendo uma epidemia, dias depois o Congresso Nacional aprova uma lei aumentando a pena ou enrijecendo o tratamento dado àquele crime. Esse é o chamado Direito Penal Simbólico. Este termo é usado para caracterizar dispositivos penais que não geram, primariamente, efeitos protetivos concretos, mas que devem servir à manifestação de grupos políticos ou ideológicos através da declaração de determinados valores ou repúdio a atitudes consideradas lesivas. Comumente, não se almeja mais do que acalmar eleitores, dando-se, através de leis previsivelmente ineficazes, a impressão de que está fazendo algo para combater ações e situações indesejadas. (ROXIN, 2008, p. 47)

O Legislativo, vendo a manifestação popular, geralmente influenciada pela mídia, se diz comprometido com o combate a criminalidade e visa dar uma resposta social (que efetivamente não irá alterar a situação fática) passando um sentimento de segurança para a sociedade, garantindo votos sem precisar dispender recursos públicos. Assim, a responsabilidade pela não redução da criminalidade passa a ser dos demais Poderes, principalmente do Judiciário, encarregado da efetivação da justiça, a qual não existe com impunidade, criminalidade e sofrimento. Por fim, importante destacar o papel da mídia nesse assumir de papeis pelo Judiciário. Garapon afirma que a mídia “[...] ao nos colocar sob a influência de emoções, afasta-nos da influência do direito. Ela se autoproclama representante da opinião pública, mas é apenas, na maioria das vezes, o porta-voz da emoção pública” (GARAPON, 2001, p. 100). O autor continua: “[...] a emoção, que é a principal força da mídia, acaba por afetar o discurso político e inspirar leis. Através desse artifício, a emoção influi diretamente em toda a vida democrática, inclusive na justiça” (GARAPON, 2001, p. 103). A mídia, devido a sua capacidade de influenciar fortemente a sociedade, acaba por influenciar a democracia. As matérias jornalísticas são capazes de determinar os caminhos do Direito Penal; devido a mídia, reivindicações são feitas, leis são criadas e sentenças são proferidas. A mídia reproduz o discurso de que a justiça só se materializa na sentença condenatória, apresentando publicamente as provas contra o acusado, dramatizando o Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 114134, Nov., 2013.

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cometimento do crime, afirma que o crime ocorreu e que o acusado é o culpado antes da sentença condenatória. Como bem nos lembra Garapon, a mídia não proporciona igual direito de manifestação para a acusação e acusado, mostrando de forma mais incisiva os elementos de acusação (GARAPON, 2001). Quantas vezes ouvimos o ponto de vista da defesa diante das câmeras de televisão? De que valem esses poucos segundos televisionados diante das inúmeras reportagens apiedando-se da sorte das vítimas, de seu sofrimento, seu desespero? (GARAPON, 2001, p. 104)

Ela proporciona uma maior identificação dos indivíduos com o sofrimento da vítima, o que faz com que a sociedade exija a punição para satisfazer o sentimento de vingança e amenizar o sofrimento. A mídia amplifica o medo e a insegurança, ampliando também a exigência de uma resposta do Judiciário. Os eles da criminologia midiática incomodam, impedem de dormir com as portas e janelas abertas, perturbam as férias, ameaçam as crianças, sujam por todos os lados e por isso devem ser separados da sociedade, para deixar-nos viver tranquilos, sem medos, para resolver todos os problemas. (ZAFFARONI, 2012, p. 307) Nesse contexto, como já dito, os magistrados, visando conter esse sofrimento, se sentem compelidos a dar respostas à sociedade. Ocorre que, no curso do processo, a única resposta aceitável é a prisão cautelar, que facilmente pode ser aplicada devido ao elevado grau de abstração da prisão preventiva para garantia da ordem pública. Podemos nos perguntar, por que os juízes se sentem compelidos a dar respostas a sociedade? Afinal, os magistrados não são eleitos, não precisando satisfazer anseios populares para garantir mais um mandato. Ocorre que, em primeiro lugar, o juiz faz parte da sociedade e em muitas situações partilha do sofrimento e da dor coletiva, partilhando do desejo de segurança. Em segundo lugar, devemos entender a imagem do juiz e o papel que lhe é atribuído, em grande parte pela mídia. Há uma tendência de que a função do juiz o acompanhe em todos os atos de sua vida, o impeça de certas condutas que são normais para os demais e ele deve preocupar-se de não sair desse papel, dessa imagem, em momento algum (ZAFFARONI, 2012). O papel central nutre-se de um estereótipo criado midiaticamente, ainda que de velha data e reafirmado inclusive literalmente, um tanto desumanizado e com pretensões a sobre-humano, embora seja pouco crível e até ridículo. Amazônia em Foco. Ed. Especial: Temas Contemporâneos de Direitos Humanos, n. 2, p. 114134, Nov., 2013.

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[...] O jogo de impressão humana que o modelo burocrático judicial faz tende a produzir na pessoa uma deterioração que consiste, basicamente, em que, a certa altura da sua vida, não possa assumir sua identidade a não ser aquela vinculada à sua função, ou seja, não pode ser identificada sem sua atividade judicial. Quando o modelo consegue isso, a pessoa torna-se altamente vulnerável, pois a estabilidade em sua função não determina apenas o seu meio de vida, como acontece com qualquer trabalhador, mas também põe em risco sua própria identidade, o que gera níveis elevados de stress. (ZAFFARONI, 2012, p. 436-437)

Assim, a manutenção da “paz” do juiz depende da visão que a sociedade tem dele como pessoa e como funcionário público, o que faz com que o magistrado se sinta compelido a satisfazer os desejos da mídia e da sociedade. “A tarefa do juiz não seria, ao contrário, a de adotar um terceiro ponto de que fizesse justiça – e não vingança – ao agredido, mas também ao agressor” (GARAPON, 2001, p. 104).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final do presente trabalho, podemos constatar que a prisão preventiva para garantia da ordem pública, por sua vagueza e elasticidade, permite que encarceramentos sejam decretados visando satisfazer determinados interesses, os quais foram vislumbrados pela análise das decisões jurisprudenciais analisadas. Vimos que as decretações de prisões preventivas objetivam resguardar o sentimento de segurança e a credibilidade no judiciário, o que, repita-se, só é possível pela incerteza do significado da expressão “ordem pública” constante no artigo 312 do Código de Processo Penal. A partir de tais decisões, tentamos demonstrar que o Judiciário assume funções que constitucionalmente não lhe são atribuídas. Foi possível constatar uma transferência de funções dos demais Poderes, principalmente do Executivo para o poder Judiciário, em especial a responsabilidade pela segurança pública, ou melhor, o sentimento de segurança pública e a efetivação de uma “justiça vingativa”. Para tanto, os magistrados fazem uso das prisões cautelares, gerando o elevado número de presos sem sentença penal condenatória transitada em julgado, pessoas constitucionalmente inocentes que correspondem, no Estado do Pará, a praticamente metade da população carcerária.

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Com auxílio dos ensinamos de Garapon, podemos entender que a transferência de funções se dá pela concentração dos anseios democráticos no Judiciário. No que diz respeito a esfera criminal, esses anseios, potencializados pela mídia, materializam-se na exigência de segurança e de vingança, ponto um fim ao sofrimento coletivo, oriundo do sofrimento da vítima. É óbvio que o presente estudo deve ser aprofundado, não correspondendo à resposta definitiva sobre o tema, mas acreditamos que foi possível demonstrar o perigoso papel assumido pelos magistrados criminais. O juiz passa a se ver como agende de segurança pública e vislumbra em cada prisão um bem social realizado, sacrificando, porém, direitos fundamentais da mesma sociedade que tenta proteger e satisfazer.

6 REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

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