A produção acadêmica do compositor: entre prática e conceito

September 15, 2017 | Autor: Silvio Ferraz | Categoria: Musical Composition, Artes, Música, Composição Musical
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Silvio Ferraz A produção acadêmica do compositor: entre prática e conceito UFRN, Natal 2012 ___________________________________________________________________________________________________________  

A produção acadêmica do compositor: entre prática e conceito Silvio Ferraz (UNICAMP; Grupo de Pesquisa em Criação Musical-CNPQ)

Palestra realizada no evento O conceito de Pesquisa na Pesquisa em Artes; Inst.promotora/financiadora: CAPES/UFRN

De um modo geral as áreas práticas das artes, dentre as quais a composição musical, são espaços interdisciplinares, com implicações conceituais e técnicas, que colocam em jogo diversas áreas de conhecimento bem como as outras práticas artísticas. No universo da arte todo material facilmente se transforma em ideia poética. Porém cada material tem sua resistência e impõe suas regras, com o que facilmente uma aproximação poética pode transformar-se em discurso de legitimação. Visando ir além desta relação de legitimação, e dar ênfase à criação musical enquanto produto de estudos acadêmicos, este pequeno artigo relata um pouco das práticas adotadas no Grupo de Pesquisa em Criação Musical (CNPQ/Unicamp) no qual o estudo da composição musical se dá dentro de um jogo bastante complexo que articula filosofia, biologia, física, literatura, linguística, as tecnologias eletrônicas e digitais, e técnica composicional (implicando aqui aspectos analíticos e históricos da música). O que esta múltipla implicação determina é a necessidade de espaços e sistematizações para pesquisas que articulem domínios tão distintos, de modo que tal interação se dê de fato sem anular a força própria ao domínio da criação: evitando assim cair na esterilidade dos domínios, seja técnico seja conceitual, de pruras elucubrações.

Este artigo traz anotações dispersas sobre uma prática que tenho adotado na condução de pesquisas de pósgraduação, mestrado e doutorado, no domínio da composição musical. Quando começamos a falar sobre composição musical ou, de um modo geral sobre criação artística, não temos como fugir das questões interdisciplinares que atravessam tais práticas. E, pensando em tal interdisciplinaridade, dois nomes de artísticas do século XX são referências quase que obrigatórias: Paul Klee e Iannis Xenakis. De um lado o pintor e violinista, de outro o arquiteto e compositor. Mas também temos de pensar que a interdisciplinaridade que atravessa os dois casos é bastante específica: Klee se vale da música e do som como imagem visual, Xenakis das linhas da arquitetura e da matemática como imagens sonoras. Dois artistas que encontram as imagens para suas criações em domínios que não são aqueles próprios de suas artes: a pintura e a música. Dois domínios aparentemente distantes: o olho e o ouvido; o espaço e o tempo. Tanto em um quanto no outro, a relação entre os domínios distintos não é ilustrativa. Buscando outras duas referências, pensaria em Leonardo da Vinci e Olivier Messiaen. Leonardo e seus estudos de anatomia, não para criar um tratado de medicina mas para um estudo do movimento, da vida que molda um corpo. Messiaen e a ornitologia, não para realizar um catálogo de pássaros mas para

 

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encontrar uma matriz melódica para sua música, para encontrar talvez alguns dos arquétipos da melodia humana. Cruzamentos entre artes e cruzamentos entre ciência e arte, para o que ainda poderia ir mais adiante e encontrar o cruzamento entre a filosofia e a arte, a música do filósofo Jean-Jacques Rousseau, a filosófica dos poetas heterônimos de Fernando Pessoa, a filosofia do escultor Alberto Giacometti. Relações que realmente nos fascinam e que nos autorizam a prosseguir reunindo domínios distintos. Mas que em mãos desavisadas facilmente se confunde com a relação de legitimação, a arte que busca ser legítima através do discurso da ciência, da filosofia e da técnica. A arte, que em um terreno como a universidade e suas pesquisas acadêmicas, sofre sempre a tentação de abandonar a produção de imagens para por em jogo a busca de um discurso legítimo ou a relação ornamentação. A ciência, a filosofia, a matemática, surgindo como discursos autorizados que legitimam alguma estratégia artística, não mais por seu potencial de invenção, mas por uma verdade que faltaria à arte sozinha. Este seria o problema da arte na universidade. É neste entroncamento das relações de invenção com as relações de legitimação que a interdisciplinaridade acaba tornando-se um campo que exige um cuidado específico. Estabelecer algumas regras de estudo, algumas regras de saída, é mais que necessário e urgente. Como manter a força interdisciplinar própria da invenção? Como afastar-se das relações de legitimação de discurso ou ainda das relações ornamentais, entre a ciência, a filosofia e as artes? O artista plástico e poeta Anselm Kiefer nos lembra que a arte se alimenta de tudo. A partir de Kiefer distingo três relações entre arte e outras disciplinas ou mesmo entre as artes. A relação técnica, na qual uma disciplina vem ao auxílio de outra enquanto ferramenta para compreensão ou produção (na música teríamos a acústica, a computação, os sistemas cognitivos, a matemática). A relação poética, onde toda disciplina se transforma em reservatório de imagens para a invenção. A relação legitimadora, em que uma disciplina cujo discurso é tido como operador de verdades acaba sendo tomada de empréstimo para legitimar uma ação artística (os discursos sobre arte-sociedade, arte-natureza, arte-matemática, artecognição etc). Mas mesmo distinguindo estes três modos, na prática da composição tudo não passa de

 

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relações poéticas, e toda relação poética é frágil, toda relação poética não é da ordem da verdade, e paradoxalmente quase toda relação frágil pede por um discurso que o legitime e pede uma técnica. Ou, lembrando Igor Stravinsky, a música é uma ciência, porém uma ciência especulativa. *** Frente a estes três modos de relação que a arte implica (a da poética, da técnico e do juízo), cabe pensar o embate entre o pensamento não linear da arte, da ciência, da filosofia e da técnica em contraponto com o pensamento supostamente linear dos discursos de legitimação universitários. Se na universidade, ciência, filosofia e técnica já desenvolveram seus modos de relacionar-se com tais discursos de legitimação, não é esta a situação da arte, muito menos da arte na universidade brasileira. Um exemplo simples desta situação incipiente é a pouca ou quase nenhuma existência de programas de pósgraduação em que um projeto de composição seja o requisito fundamental para obtenção dos títulos de mestre ou doutor, na maioria dos programas esta produção é no máximo ilustração de um trabalho teórico. Mas como evitar este caminho da legitimação, tão aparentemente necessário para um pesquisador que já tem no seu objeto de trabalho algo indefinível, movente, como a composição? O interessante é notar que tal necessidade de legitimação surge nos mais das vezes quando há deficiência de formação técnica e também face à própria função territorial da arte. Nunca devemos esquecer que a arte é um modo não só de diálogo entre pessoas, mas também um mecanismo de demarcação do território em que tal diálogo se dá. Anexar à arte um discurso legitimador é um modo de controle quase necessário. Mas como implicar um projeto composicional nos estudos pós-graduados sem recair no discurso linear? Retomar o modelo da graduação, o sistema do conservatório, onde a prática composicional representa destreza técnica? Atender à necessidade de legitimação e buscar um discurso cientifico, técnico ou filosoficamente amparado? Escapar a tais tendências e trabalhar uma poética e seu universo de relações e transformações? Sem dúvida esta terceira hipótese, a da poética, é a mais interessante; mas como realizála?

 

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O campo da criação no entanto implica os três modos, eles embora distintos não se apartam, um está embutido no outro. O técnico, o poético e o político, ou melhor o ético. É o desequilíbrio entre os três modos que acaba levando a caminhos, ou a falsa independência entre eles que conduz a resultados insipientes, pouco produtivos, muitas vezes teoricamente equivocados. Muitas vezes a falta de técnica acaba sendo o ponto de partida para a busca de legitimações. O vazio poético também abre este mesmo espaço, e buscar legitimar-se através de uma técnica. A falta de consistência na formação de um jovem compositor acaba sendo o terreno aberto para o desenvolvimento de um discurso moral que mais e mais afastará a busca de uma poética, afasta o jovem da própria arte que ele busca. Pois o ponto de partida moral tenta suprir a falta de formação técnica ou a invenção poética. É importante assim inverter este quadro, ligar a pesquisa em arte o quanto antes à invenção. A arte é sempre nascente, adota suportes e modos de produção os mais inusitados, a todo momento. A invenção não se baste em um ou outro discurso, nem se basta em técnicas adquiridas de antemão. Técnica e poética nascem juntas. Embora a técnica seja disciplinar ela nasce em um caminho móvel em que as disciplinas não existem. Falando um pouco de técnica, da técnica composicional, disciplina básica da música. É assim a composição musical, um domínio que articula modos variados de suporte e produção, abarcando música escrita, composição algorítmica, instalações sonoras, performances, objetos sônico-visuais etc. De Perotin a Smetak. Um quadro tão amplo que dificilmente será abarcável por algum curriculum, o qual no máximo só limitaria o domínio da criação. A base do solfejo-harmonia-contraponto-história dificilmente dá conta, e mesmo sua ampliação com disciplinas como acústica, computação musical, novas técnicas de instrumentação, improvisação, música e imagem, música e movimento etc, não dá conta deste seu caráter movente da invenção. A composição artística (em nosso caso, a musical) não se limita à música escrita, muito menos às técnicas de escrita do início do século XX, ou mesmo à escrita mais recente, e muito menos à computação musical ou à arte sonora etc. Além do que na arte os domínios do conhecimento, transformados em imagens poéticas, têm a capacidade de se misturar e transformar em alta velocidade.

 

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*** Foi este jogo de misturar, de não definir a arte, de permitir trânsitos os mais diversos, que foi o mote do velho curso de Semiótica da PUCSP, um lugar de desenvolvimento de projetos poéticos atravessados pela filosofia, pela ciência e pelas novas tecnologias. A mobilidade deste quadro se completava com a presença de um grupo de estudantes, cuja etapa técnica (aquela do conservatório) estivesse vencida, trabalhando sob orientação de professores e pesquisadores reconhecidos em seus domínios de origem (a ciência, a arte e a semiótica). Um programa em que artistas atuassem livremente, em pesquisas que cruzavam campos os mais diversos, mas todos atravessados pela ideia complexa de signo, pelo modo como um signo se articula com outros, foi o que se implementou no final do anos 90 na Comunicação e Semiótica da PUCSP. Neste programa atuavam músicos, bailarinos, escritores, cineastas, videoartistas, pintores, escultores. Ali as ferramentas tradicionais de análise de objetos artísticos eram colocadas em xeque e davam lugar a estratégias as mais diversas de articulação do universo sígnico. Neste campo aberto, a semiótica acabava atuando como centro móvel indo da semiótica de Peirce, de Greimass, à semiótica russa, à ciência cognitiva, à epistemologia e semiótica psicanalítica. Em torno deixo eixo móvel giravam estudos que articulavam conceitos como os de tempo, silêncio, estrutura, linearidade, imanência, aspectos cognitivos relacionados ao som, à música e à escuta, semiótica da música, novas tecnologias etc. Seja no domínio da semiótica, seja no das artes, tratava-se sempre de colocar em jogo os debates mais recentes, uma forte relação com a música experimental do século XX e XXI, ou melhor uma visão sempre da arte enquanto arte experimental e atual. Postura que era retomada nas ferramentas de análise: para uma arte que se inventa a todo tempo cabe uma ferramenta de análise que se invente junto com esta arte. Tal dinâmica interdisciplinar vinha garantida pela presença de um corpo docente formado por especialistas reconhecidos em um domínio e em outro, uma postura que afastava os projetos de propostas ingênuas, de reinvenções da roda comuns em trabalhos que se propõem interdisciplinares mas realizados nos limites dos departamentos.

 

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Nos trabalhos conduzidos na PUC, a ênfase foi dada sobretudo à fundação poética de um processo de criação, afastando a prática composicional ou analítica fundamentada em modelos prêt-à-porter de legitimação, geralmente calcados na filosofia, na álgebra elementar, e nas ciências sociais, enquanto fonte de verdades, geralmente em um nível que não ultrapassa aquele do ensino médio. E mesmo os pequenos tropeços, aqueles trabalhos que tentavam se valer de disciplinas mais estruturadas para se legitimar, mesmo aí a poética se impunha, pois uma escolha conceitual, técnica ou teórica implica sempre uma poética. Assim, conceitos extremamente complexos como o de tempo, por exemplo, que na filosofia vem se desdobrando em um verdadeiro campo batalha desde os pré-socráticos, na música é uma questão que implica em poéticas distintas. A música como arte do tempo (Cf. Messiaen, Xenakis, Boulez, Ferneyhough). O tempo medido, o tempo liso, a noção de multitemporalidade. E não se trata de determinar a veracidade de uma ou outra imagem de tempo, pois o resultado composicional é o principal implicado e o condutor da pesquisa. O mesmo podemos dizer a propósito do som, do som enquanto imagem da ondulatória ou enquanto imagem poética, como a imagem do som esférico de Giacinto Scelsi. Se o som é ou não esférico, se o espectro é ou não um dado que corresponde álgebra e natureza, não é esta a questão. A questão é composicional, ou seja o que uma imagem suscita no campo da invenção composicional. É necessário ter isto bem claro: até mesmo as implicações aparentemente técnicas de uma área como a das novas tecnologias aplicadas à música, não só se dá enquanto suporte tecnológico, mas está aterelada a mudanças radicais no domínio poético. De fato não estou mais falando de interdisciplinaridade. Mas da relação entre a disciplina e a não disciplina. É assim que o músico que domina sua técnica busca um terreno que não domina, e ali encontra seu alimento. Já aquele que não tem a técnica fatalmente encontrará no outro domínio aquilo que o disciplina. Desta dinâmica não temos como escapar. O interdisciplinar não é mais do que a relação entre a disciplina e a não disciplina, entre o linear e o não linear, o discurso e o sem discurso. É assim que toda disciplina torna-se imagem livre na arte. De outro modo, estamos a disciplinar a arte. Neste sentido até mesmo quando falamos de bibliografia nos estudos artísticos a questão é bastante diferente daquela que consiste em estudar um método ou uma teoria. Frente a arte até mesmo o estudo conceitual se faz estudo de fonte primária e fonte de imagens. O estudo de um determinado filósofo ou  

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teórico acaba sendo mergulhado nas imagens que saltam de seu pensamento e no modo como apresenta seus conceitos: sua escrita, a organização de seu trabalho, seus exemplos etc. Tudo se torna imagem. E é talvez por isto mesmo que conceitos extremamente complexos, ou mesmo controversos em sua origem, e que dificilmente seriam aprendidos e desdobrados no curto espaço de um doutorado ou mestrado, se fazem temas constantes nos projetos de pesquisa na área de composição artística. Conceitos, fórmulas, bibliografia e até mesmo a técnica dão lugar a imagens. O projeto como o MóbileUsp, coduzido por Fernando Iazzetta é um exemplo deste lugar em que a técnica da programação, os aplicativos aparentemente duros e os instrumentos eletrônicos não só se manifestam como suporte ou método, mas também enquanto poética. Da técnica nascem imagens. * * * O aspectos privilegiado do trabalho de criação no Centro de Linguagem Musical do programa de comunicação e semiótica da Puc permitiu trabalhos radicais que colocaram lado a lado a pesquisa conceitual e o domínio da criação musical.1 Mas de fato eu gostaria mesmo é de destacar que a conclusão dos trabalhos ali realizados articulava geralmente duas dimensões: aquela teórico-conceitual e a prática composicional. Quase que duas teses colocadas em paralelo: uma tese teórica ou conceitual e uma composicional. Dois trabalhos por vezes distintos, um não sendo necessariamente a explicação do outro, mas simplesmente seu paralelo. Ingressando como professor de composição do curso de música da Unicamp no início deste 2002, me deparei com um quadro totalmente diferente. Um departamento de música é um lugar especializado. Tem suas vantagens, ou deveria ter, mas suas desvantagens são grandes. O quadro colaborativo interartes e interdisciplinar da situação quase ideal da “Semiótica”, se existia, estava isolado no Núcleo de Integração e Comunicação Sonora, coordenado por Jonatas Manzoli. Foi assim que o primeiro passo foi criar o Grupo de Pesquisa em Criação Musical, e buscar ao menos no pós-graduação estimular projetos interartes e interdisciplinares.                                                                                                                 1 pelo programa passaram, neste campo mais próximo à práticas musicais contemporâneas, pesquisadores como Anselmo Guerra, Denise Garcia, Edson Zampronha, Lia Thomas, Heloisa Valente, Harry Crowl, Graham Griffiths, Sérgio Freire e os jovens Daniel Bento, Daniel Barreiro, Paulo Zuben, Leonardo Aldrovandi, Mario Loureiro, Fernando Kozu, Fátima Carneiro, César Sponton, permitindo um forte intercambio entre pesquisadores já estabelecidos (muitos já professores universitários) e jovens ainda em fase de definição de suas linhas de pesquisa.

 

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Tinha de encontrar assim um modo de permitir estes diálogos, que começavam naquele entre compositor e intérprete, depois entre música e outras artes, e então entre música e filosofia, ciência e novas tecnologias.

Fechado em um departamento de música busquei encontrar novamente a interdisciplinaridade criativa, mas agora aplicada diretamente a projetos de composição musical, que permitisse aos pesquisadores ter não só um acompanhamento técnico composicional, mas um acompanhamento nos domínios correlatos aos quais seus projetos estavam associados (física, matemática, computação, ciências cognitivas, filosofia, linguística etc. Isto foi possível visto a possibilidade de os alunos cursarem aulas em outros institutos. Assim articulavam áreas diferentes tendo como professores, pesquisadores de reconhecida competência em suas áreas. No próprio departamento encontrei um segundo elemento favorável. A estrutura desenhada no início dos anos 2000 compreendia, além da tradicional banca de qualificação, que os alunos passassem por uma banca de composição musical (ou performance) e por banca de monografia (defesa de artigo conceitual ou analítico). Foi assim que da mobilidade entre institutos e da presença de uma prova específica de criação (ou performance) foi nascendo a ideia de distinguir dois trabalhos finais para mestrado e doutorado: uma dissertação ou tese principal (técnica ou conceitual) e uma paralelas compreendendo o domínio prático composicional e analítico. Criando um sistema adequado para a produção de trabalhos que envolviam a composição musical e os estudos técnico-conceituais, o problema hoje é encontrar um modo de este trabalho composicional encontrar um lugar de real importância no momento final de defesa; ou seja, encontrar um modo de a produção composicional deixar de ser secundária, com que a produção artística deixe de ser ornamental. Claro que compor uma banca apenas com compositores facilita este caminho, mas ao mesmo tempo pode não ser ideal para a compreensão dos domínios correlatos implicados no trabalho teórico-conceitual. Como então articular esta banca, como fazer com que leia a partitura, com que leia a tese, e que compreenda que

 

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em arte as coisas não se ligam linearmente, que em arte uma relação pode estar muito além ou aquém do que se imagina? *** Queria deixar claro que se de um lado trata-se de retirar a produção artística de sua posição ornamental nas teses e dissertações, por outro também de ter o estudo conceitual e técnico em posição de relevância e de não deixá-lo sucumbir à função de legitimação ou à posição também ornamental (que não deixa de ser legitimadora) e ingênua. Lado a lado ao problema da banca, existe o problema do jovem compositor que desenvolve a tese ou dissertação. Raramente um jovem compositor tem uma escrita musical definida, ele ainda está por desvendar e estudar modelos composicionais, seu conhecimento no campo da análise também está no mais das vezes limitado aos modelos de conservatório aprendidos ao longo de sua graduação. A estrutura tradicional dos cursos de música ainda incide sobre o que o jovem domina no campo da computação musical (da composição assistida, dos aplicativos de análise e síntese sonora, das interfaces interativas etc), de estratégias analíticas mais recentes. Raramente um curso de graduação abarca as implicações conceituais da prática composicional e mais raro ainda enfoca um repertório mais atual e a necessidade de produção de portfolio de obras musicais analisadas ou criadas. Estes temas acabam tendo assim de ser trabalhados no curto espaço do pós-graduação.2 Ainda no que diz respeito ao jovem compositor que ingressa no pós-graduação, é comum tendência aos trabalhos de autoanálise. Este parece um caminho fácil, afinal de contas nele é fácil desviar-se dos problemas de formação, técnicos e teórico-conceituais. Ali, sem ainda ter dado consistência a estratégias de análise e de escritura, o jovem compositor-pesquisador se lança ao estudo de si mesmo, estuda sua própria obra, uma obra que ainda sequer existe. Raramente em trabalhos deste tipo consegue-se observar-se                                                                                                                 2 Alerto aqui para a tendência muitas vezes de trabalhos de autoanálise. Sem ainda ter dado consistência a estratégias de análise e de escritura, um jovem compositor-pesquisador que se lança à autoanálise, estudando sua própria obra, raramente obtém resultado eficaz. Tais trabalhos são não só ineficazes como constrangedores, visto a falta de distanciamento entre obra enfocada e aspectos de ordem pessoal. No mais das vezes são verdadeiros acidentes de percurso que não permitem nem uma avaliação pertinente da banca nem um aproveitamento do pesquisador face o trabalho que realizou. Não é possível observar-se a condução real da pesquisa, seu vínculo com outros grupos de pesquisa, seu diálogo com uma bibliografia atual e seu aplicabilidade. O trabalho de “auto análise” acaba caindo em um espaço sem diálogos, sem reflexão técnica composicional, sem reflexão conceitual (ou apenas uma reflexão superficial) e no mais das vezes centrado no indivíduo pesquisador (o que, como disse antes, torna o momento da defesa em um campo constrangedor para banca e pesquisador).

 

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a condução real da pesquisa, seu vínculo com outros grupos de pesquisa, o seu diálogo com uma bibliografia atual e sua aplicabilidade. O trabalho de “auto análise” acaba caindo em um espaço sem diálogos, sem reflexão técnica composicional, sem reflexão conceitual (ou apenas uma reflexão superficial) e centrado no indivíduo pesquisador (o que, como disse antes, torna o momento da defesa em um campo constrangedor para banca e pesquisador). No mais das vezes são verdadeiros acidentes de percurso que não permitem nem uma avaliação pertinente da banca nem um aproveitamento do pesquisador face o trabalho que realizou. *** Face a falta de conhecimento quanto às novas escolas de composição, à formação parcial no campo da análise musical como suporte composicional e das novas tecnologias, e ainda a falsa facilidade de falar de si mesmo é o que procurei enfrentar elencando esta série de problemas a serem superados e fazer então do pós-graduação um lugar não só de desenvolvimento de um projeto de criação e de estudos técnicoconceituais como também de complementação de formação e produção de um primeiro portfólio de criação. As questões se colocam então a partir dos seguintes problemas: 1) formação ainda elementar dos jovens pesquisadores no domínio da análise musical; 2) deficiências no domínio da escritura musical; 3) defasagem dos estudantes face ao repertório contemporâneo; 4) a extemporaneidade de escolha de linha pessoal para a composição musical (é comum ao longo de uma pesquisa a tendência composicional mudar radicalmente), por fim 5) a necessária orientação das banca no que diz respeito à avaliação do resultado composicional, levando em conta uma defesa realizada em duas etapas: banca de defesa da produção musical e banca de produção teórico-conceitual. É neste sentido que imaginei um modo em que primeiro se distinguem duas etapas do processo de estudos pós-graduados e distingue também os produtos dele resultantes: o momento do mestrado e o do doutorado e a produção de resultados teórico-conceituais e composicionais em cada etapa. 1. Seguindo o modelo vigente na maioria das áreas de conhecimento, o momento do mestrado é aquele da revisão bibliográfica e do repertório de obras analisadas. Este é o momento em que o pesquisador, face a  

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uma corrente estética que lhe seja de interesse momentâneo, enfrenta um repertório de obras relativo a um compositor ou a uma estratégia composicional. O processo composicional é aqui, primeiramente, um espaço para exercícios de criação em que se apliquem dados decorrentes da análise musical, revertendo para o espaço da escritura aquilo que dela mesma foi extraído através das análises. O jovem compositor escreve sua música a partir de suas análise, o que sem dúvida acaba conduzindo sua própria escolha poética futura. Este modo de trabalho traz consigo uma também necessária mudança de posição do orientador ou coorientador. O orientador aqui tem de ser um compositor, alguém que produza música, que compreenda as mais variadas possibilidades deste campo de criação. Alguém que seja atualizado nas mais recentes ferramentas e que transite com facilidade entre tendências e métodos. Não imagino aqui um orientador compositor para que este possa avaliar a produção composicional mas sim de alguém que, em um curto espaço de tempo, compreenda a linha composicional para a qual o jovem compositor-pesquisador se dirige, e a partir dos dados técnicos composicionais que envolvem tal linha proponha a escrita musical enquanto exercício dirigido ou mesmo livre, sempre atento às ramificações que tal trabalho venha a ganhar. É normal os casos em que o jovem pesquisador chega ao pós-graduação com quase nenhuma formação apenas apresentando uma habilidade não desenvolvida para a escritura, situação em que o orientador tem de se tornar verdadeiro professor de composição indicando inclusive caminhos que torne mais eficaz a busca do aluno. O suporte de um grupo de instrumentistas e de laboratório de música eletroacústica contribui fundamentalmente para esta etapa de pesquisa. O resultado da pesquisa, já no mestrado tem de ser em duas vias, composicional e teórico-analítico, e pode ainda ser ampliado com um memorial descritivo do trabalho composicional. No entanto tais trabalhos têm de ser apresentados a bancas em momentos distintos e salientar o não necessário vínculo causal entre uma produção e outra. Muito embora o trabalho de composição possa nascer de um estudo teórico-analítico, seu vínculo com este estudo não é tão direto quanto se imagina, e a tentativa de criar tal vínculo induz a trabalhos com conclusões, senão falsas, precoces. A defesa em dois momentos, como já comentei antes, é pertinente para que inclusive as bancas sejam as mais adequadas possíveis. Uma banca de composição deve implicar compositores que tenham habilidade  

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de leitura de partitura ou de escuta de material com prática em análise crítica de processo criativo. Por outro lado, a banca do estudo teórico-analítico não necessariamente deve ser a mesma, vistas as especificidades do trabalho, seu tema, seu modo de análise, o repertório analisado etc. 2. A etapa do mestrado distingue-se daquela do doutorado. Para o doutorado espera-se um portfólio composicional mais elaborado do que o do mestrado, bem como um conhecimento mais aprofundado de repertório composicional e analítico. É o ponto em que faz-se importante que a tese trate de um conceito relacionado à escritura ou escuta musical. Para além do estudo técnico analítico e composicional (próprio ao mestrado), o estudo conceitual amplia, o cruzamento com áreas correlatas como filosofia, linguística, comunicação, ciências cognitivas, acústica etc é esperado. O estudo conceitual articula obrigatoriamente artes e disciplinas distintas, ele é interartes e interdisciplinar, prática incomum nos trabalhos acadêmicos mas que é fundamental na produção artística. O modelo do doutoramento segue os mesmos passos daquele do mestrado com a diferença de que neste ponto o trabalho composicional talvez tenha um vínculo ainda menor com o estudo conceitual ou teórico realizado. Aqui é quase que obrigatória a presença de duas bancas distintas, a banca de tese conceitual e a banca de composição e memorial descritivo, ou de uma banca que tenha a habilidade e trânsito fácil entre o universo da escritura musical e aquele do “pensamento musical”. É importante frisar esta pertinência do campo da criação no trânsito entre áreas distintas, o que historicamente tem permitido aos estudos musicais a sua relação com áreas tradicionalmente distantes: como a ciências cognitivas, a mecânica e a sistêmica, a acústica, a computação, os estudos linguísticos. Isto sem contarmos o já tradicional encontro com a filosofia, a matemática e os outros domínios da arte. No sentido de possibilitar um bom andamento para tal proposta, tem sido comum dentre a equipe de pósgraduandos do Grupo de Pesquisa em Criação Musical da Unicamp o estímulo a cursarem disciplinas diversas conforme o foco de pesquisa e tendência poética manifestada nas reuniões de orientação, devendo o pós-graduando adentrar o campo problemático da área com a qual vem realizando um diálogo, podendo esta ser tanto de áreas distintas (científicas, filosofia, comunicação, linguística e as outras artes).

 

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Em síntese, para concluir esta apresentação, teria reafirmo a importância dos seguintes pontos: 1) o caráter interdisciplinar como elementos poético e não científico nas pesquisa no campo da criação musical, 2) a produção de duas teses ou dissertações distintas, relacionáveis mas não de modo linear, um no campo da criação musical e outro no domínio analítico, teórico ou conceitual, 3) a necessária defesa em duas fases de modo a não tornar o trabalho de criação como ornamental e dar-lhe a devida atenção, 4) a distinção entre o momento do mestrado (revisão bibliográfica e revisão de repertório poético e analítico) e o momento do doutorado (lugar do desenvolvimento de estudo conceitual e poético), 5) a necessária constituição de bancas que tenham o domínio da leitura e interpretação de partitura ou de escuta de material audiovisual, 6) a importância no que diz respeito aos estudos interartes e interdisciplinares, suplantando a inexistência de um curso de pós-graduação interartes, esta separação institucional que não condiz com a prática artística, 7) realizar a aproximações interdisciplinares mas evitando os trabalhos de proto-ciência ou protofilosofia artística, enfatizando a necessidade de os pós-graduandos acompanharem disciplinas e grupos de estudos em outras áreas, adentrando assim de modo pertinente o debate do domínio conceitual ou mesmo prático com o qual estejam dialogando, 8) enfatizar trabalhos de criação experimentais, relacionados a verdadeiros campos problemáticos e não à aplicação ou uso de técnicas de escrita ou análise, como os exercícios estilísticos e a análise de escola, mais próprias ao estudo de conservatório do que ao estudo universitário, quanto menos ao de pós-graduação.

Por fim, tudo isto ainda está andamento, sendo implementado. Mas o que mais me fascina é termos conseguido com o Centro de Pesquisa em Criação Musical criar uma oficina de composição e de reflexão sobre os conceitos que gravitam em torno desta prática musical. Ao longo dos seus oito anos foram  

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diversos os prêmios, obras encomendadas, participações em eventos internacionais, e um vínculo crescente com intérpretes, jovens instrumentistas que vêm se apaixonando pelo universo de invenção que envolve a nova criação musical. No mais, espero assim ter contribuído para imaginar um lugar próprio para a composição musical dentro dos programas de pós-graduação, e que tal experiência possa lentamente se alastrar também para a formação de graduação na área. Acredito que diversos colegas pactuam de estratégias semelhantes, Rodolfo Caesar, Sérgio Freire, Fernando Iazzetta, Rogério Costa. Por fim, agradeço a oportunidade desta exposição neste encontro.

 

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