A produção de biocombustíveis e seus impactos sobre a disponibilidade de alimentos

June 3, 2017 | Autor: R. Antonio Barbosa | Categoria: Food Safety, Biofuels, Fuel Quality
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A produção de biocombustíveis e seus impactos sobre a disponibilidade de alimentos. Roney Antônio Barbosa

Resumo À medida que a produção de combustíveis fósseis torna-se mais cara e seu consumo, mais nocivo ao ambiente e à saúde humana, intensificam-se as discussões sobre outras opções de energias mais limpas. Os biocombustíveis surgem nesse contexto como uma possível alternativa sustentável aos fósseis. Contudo, é fundamental avaliar os impactos de sua produção sobre a disponibilidade de terras para cultivo de alimentos e sobre a segurança alimentar. As análises dos vários estudos acerca do tema, com resultados variando segundo a escala e as dimensões utilizadas, somente nos permitem concluir que o fenômeno da segurança alimentar está entrelaçado à pobreza. Embora não possamos ignorar que esta pode ser afetada pelo agravamento da situação de vulnerabilidade pela qual estão expostos os pequenos produtores rurais. Palavras-chave: renováveis.

Insegurança

alimentar,

biocombustíveis,

sustentabilidade,

energias

1. Introdução

Grande parte da produção mundial de combustíveis é de origem fóssil. Num cenário de agravamento dos efeitos antrópicos sobre o ambiente, com indícios de impactos ambientais severos, é importante buscar alternativas de energias limpas para contrapor aos fósseis. Além disso, do ponto de vista geopolítico, a dependência dos combustíveis fósseis é uma ameaça à paz, devido aos constantes conflitos entre nações em função das disputas pela posse desse recurso (SACHS, 2007). As fontes de energia renovável são aquelas em que os recursos naturais utilizados são capazes de se regenerar, ou seja, são considerados inesgotáveis, diferentemente de fontes não renováveis como as baseadas em combustíveis fósseis. Algumas fontes de energia renovável existentes são a hidráulica, biomassa, solar, eólica, geotérmica, que atualmente respondem por 12,7% da oferta energética mundial (BERMANN, 2010).

No cenário internacional, os esforços na direção da ampliação da participação das energias renováveis são hoje objeto de muito debate. Com discussões mais severas no que diz respeito aos biocombustíveis, quando estas abordam a oposição da expansão das monoculturas à produção alimentar (BERMANN, 2010). No Brasil, esse debate também se apresenta de forma intensa (BERMANN, 2010). Segundo dados do Balanço Energético Nacional (EPE, 2015) cerca de 40% da Matriz Energética do Brasil é composta por energia renovável, frente aos 13,2% correspondentes à oferta energética mundial. Ao menos no caso brasileiro, os biocombustíveis surgiram nesse contexto como alternativa sustentável aos fósseis, embora ainda carregada de controvérsias quanto a aspectos de sustentabilidade, eficiência energética, concorrência com a produção de alimentos, mudanças no uso da terra, dentre outras. 2. Revisão bibliográfica

Forest, Forest e Ruviaro (2014), verificaram se ocorre substituição da produção de alimentos por bioenergia e se existe mudança na estrutura fundiária nos municípios de Mato Grosso do Sul, no período de 2010 a 2012, utilizando a metodologia Shift Share. Suas conclusões direcionam no sentido de que a pequena expansão da cultura canavieira no estado em comparação a outros cultivos não pode ser considerada um dos principais causadores da substituição de culturas. Nessa mesma linha de abordagem, Lourenzani e Caldas (2014) analisam as mudanças no uso da terra na região Oeste Paulista, provocadas pela expansão do cultivo da cana-de-açúcar, no período de 2003 a 2012. Utilizando o método Shift Share, puderam mostrar que a expansão da cultura da cana de açúcar na região estudada ocorreu predominantemente pela substituição de áreas de pastagem.

Já Silva e Freitas (2008), discutiram as vantagens e as desvantagens que a produção de biodiesel traz para a agricultura e o ambiente e a competição que pode ocorrer por recursos naturais entre a produção de alimentos e a do combustível. Eles concluem que o biodiesel apresenta vantagens ambientais em relação ao óleo diesel, mas o balanço energético depende do sistema de cultivo das espécies produtoras de óleo. Afirmando que esse biocombustível é uma alternativa ao óleo diesel, não um substituto e destacando que há competição entre a produção do biocombustível com os alimentos por recursos naturais. Moreira e Pessanha (2008) exploraram alguns aspectos do debate sobre os efeitos da produção de biocombustíveis sobre os preços dos alimentos, apresentando pontos de vista sobre os possíveis impactos da produção de combustíveis renováveis na (in) segurança alimentar. Uma de suas conclusões é que não há indícios de que o fenômeno

da

insegurança

alimentar

seja

influenciado

pela

produção

de

biocombustíveis, visto que o país dispõe de 70 milhões de hectares livres de cultivo para produzir energia, sendo que a área plantada de cana para produção de etanol representa apenas 1% da área agriculturável do país. Zilberman et al (2012) analisaram o relacionamento entre preços de alimentos e de combustíveis e o impacto da produção de biocombustíveis sobre o preços de commodities agrícolas usadas na alimentação. Eles utilizaram métodos de análise de séries temporais para avaliar a ligação entre os preços de alimentos e dos combustíveis. Mostrando que os preços variam segundo a localização, período, tipos de commodities e combustíveis, considerados. Chegaram à conclusão que os preços dos biocombustíveis não parecem afetar o preço dos alimentos, já que não são os principais colaboradores para a inflação dos preços destes.

Oliveira et al (2010) analisaram os impactos da mudança na estrutura produtiva rural sobre a oferta de alimentos, na estrutura fundiária e no estoque de pessoal ocupado no campo, nos municípios mineiros. Suas análises sugerem que a expansão da monocultura canavieira pode ser prejudicial às populações rurais, visto que afetam a produção de alimentos, provocam concentração fundiária e diminuem os níveis de ocupação no campo, aumentando a vulnerabilidade social local. A existência de múltiplas possibilidades de análise dos impactos da produção de biocombustíveis sobre o ambiente, condições sociais no meio rural, uso da terra e produção de alimentos demonstra a complexidade do tema e sua relevância social. Nesse cenário, a questão da segurança alimentar possui grande importância no mundo, sobretudo nos países em desenvolvimento, como o Brasil, onde a fome e a pobreza ainda são fenômenos presentes em proporções bastante elevadas.

3. Revisão teórica

A busca por combustíveis alternativos fundamenta-se na dependência dos combustíveis fósseis e na crescente preocupação com o meio ambiente. (MOREIRA, 2007). Como observou Sachs (2007), não se trata de um problema de escassez, já que os preços elevados incentivam a exploração de óleos mais pesados e a conversão de carvão em combustíveis líquidos e gasosos. O problema real são os impactos negativos dessas alternativas para a saúde dos humanos e do planeta, caracterizada pela mudança climática. Com consequências sobre o crescimento econômico e agravamento da pobreza (SACHS, 2007). 3.1 Desenvolvimento sustentável

Desde

a

conferência

de

Estocolmo,

em

1972,

o

debate

sobre

o

ecodesenvolvimento, ou desenvolvimento sustentável, privilegiou um tratamento proporcional das dimensões social e ambiental (SACHS, 2007). Trata-se de um conceito em construção, abrigando várias definições ao longo do tempo. Conforme Anjos, Caldas e Becker (2013), sustentabilidade abrange a segurança alimentar, geração de renda, cultura alimentar, conservação dos recursos naturais, preservação da biodiversidade (ANJOS, CALDAS E BECKER, 2013). Como forma de estabelecer metas de sustentabilidade em escala global, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) foram compactuados entre o Brasil e vários outros países que compõem a ONU (Organização das Nações Unidas) na Cúpula das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, com definição de metas para 2030 (PNUD, 2015). Os ODS foram construídos sobre as bases estabelecidas pelos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), de maneira a completar o trabalho deles e responder a novos desafios. São integrados e indivisíveis, e mesclam, de forma equilibrada, as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental (PNUD, 2015). São compostos por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e 169 metas, dentre os quais destacamos o objetivo 7, o qual possui o comando de “assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia, para todos”. Como se trata de objetivo amplo, contemplando dimensões sociais, econômicas e ambientais, focaremos numa destas apenas, representada pelo item 7.2 deste objetivo, qual seja: “até 2030, aumentar substancialmente a participação de energias renováveis na matriz energética global” (PNUD, 2015).

Visto que o Brasil tem potencial para cumprir esse objetivo, por meio da produção crescente de combustíveis considerados renováveis, é importante analisar os impactos da produção dos biocombustíveis sobre a produção de alimentos e a segurança alimentar no Brasil. 3.2 Biocombustíveis Os principais biocombustíveis produzidos no Brasil são o biodiesel e o etanol, o qual, segundo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) responde por 5,1% do consumo de energia no Brasil. Com o aumento recente do percentual de biodiesel adicionado ao óleo diesel comercializado ao consumidor final, de 5% para 7%, estimativas da EPE indicam que haverá acréscimo de 1,2 bilhões de litros no consumo em 2015. A participação desse biocombustível na Matriz Energética tende a aumentar. Estima-se que em 2030, a produção de biodiesel chegará a 11,7 bilhões de litros (EPE, 2015). O etanol combustível pode ser produzido a partir de várias fontes vegetais, tais como milho, beterraba, mandioca, mas a cana-de-açúcar é a que oferece mais vantagens energéticas e econômicas, sendo o insumo utilizado no Brasil para produção desse biocombustível (ANP, 2015). No país, são utilizados dois tipos de etanol o anidro, que é misturado na gasolina, na proporção de 27%, e o hidratado, consumido em motores construídos para este tipo de combustível ou nos veículos flex fuel, que podem utilizar tanto gasolina como etanol hidratado (ANP, 2015). Já o biodiesel é definido pela ANP como combustível natural, usado em motores diesel, produzido através de fontes renováveis. É um combustível produzido a partir de óleos vegetais ou de gorduras animais. Podem ser usadas diversas espécies vegetais

na produção do biodiesel, entre elas soja, dendê, girassol, babaçu, amendoim, mamona e pinhão-manso (ANP, 2015). Contudo, a principal matéria prima para produção desse biocombustível é a soja, com percentual de 74,7% de participação na produção de biodiesel (EPE, 2014). Já o etanol de segunda geração (etanol 2G ou celulósico) é produzido a partir de resíduos da própria produção do etanol de primeira geração. Sendo utilizado o bagaço da cana, rico em lignina, celulose, responsáveis pela geração da glucose, que por sua vez, fornecerá o etanol. Também é possível produzir etanol a partir das palhas de cana, milho, raspas de madeira e até mesmo de cascas de coco, biomassas não usadas na alimentação humana. A produção do etanol 2G no Brasil ainda se encontra em fase incipiente, sendo necessários aprimoramentos na eficiência produtiva das usinas, de forma a tornar essa alternativa viável econômica e tecnicamente. Essas novas fontes de energia renovável constituem-se em um novo mercado para os produtores agrícolas. As razões geralmente apontadas para o setor público apoiar a indústria dos biocombustíveis repousa sobre a redução das emissões de GEE, contribuição para a segurança energética. Porém é necessário considerar a viabilidade econômica e os custos sociais e ambientais, como desflorestamento, competição com alimentos, competição intensa por terra e água (MOREIRA et al, 2007). 3.3 Segurança alimentar Conforme Barrett (2010), segurança alimentar é um conceito amplamente usado, mais de 1 bilhão de pessoas sofre de deficiência alimentar, as estimativas de prevalência e padrões permanecem tênues porque é difícil medir o fenômeno. Uma definição usada em 1996, na Cúpula Mundial da Alimentação, é entendida como: "uma situação em que todas as pessoas, em qualquer tempo, possui acesso

físico, social e econômico a comida suficiente, segura e nutritiva que atenda a suas necessidades dietéticas e preferências alimentares para uma vida saudável e ativa". Essa definição abrange mais do que apenas o status nutricional atual, incluindo as possíveis vulnerabilidades a interrupções futuras ao acesso a alimentação adequada (BARRETT, 2010). Ainda segundo esse autor, segurança alimentar repousa sobre três pilares: disponibilidade,

acesso

e

utilização.

A

disponibilidade

de

alimento

não

necessariamente garante o acesso a ele, da mesma forma que este não garante a utilização pelos indivíduos. Segundo a Losan - Lei Orgância de Segurança Alimentar e Nutricional - LEI Nº 11.346, DE 15 DE SETEMBRO DE 2006: Segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. A segurança alimentar e nutricional abrange: (Art. 4º) I – ampliação das condições de acesso aos alimentos por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização, da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos, incluindo a água, bem como da geração de emprego e da redistribuição de renda; II – conservação da biodiversidade e utilização sustentável dos recursos; III – a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação da população, incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade social;

A sanção dessa Lei “demonstra a atenção despertada pelo tema e a capacidade da sociedade na elaboração de novas propostas para a Política Nacional” (CONSEA, 2015, p. 3).

Os conceitos de segurança alimentar podem ser vistos sob a perspectiva da qualidade dos alimentos e do ponto de vista da disponibilidade deles. No primeiro caso, estamos falando da qualidade dos alimentos do ponto de vista da ausência de agentes contaminantes. No segundo, significa tanto soberania e disponibilidade alimentar no âmbito de um país quanto aspectos mais gerais relacionados com a cultura alimentar das populações. Anjos, Caldas e Becker (2013) comparam os dados das PNAD 2004 e 2009, sobre segurança alimentar, para avaliar a evolução desse fenômeno. É utilizado como referencial teórico nessa pesquisa a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar - EBIA, que possibilita a classificação dos domicílios segundo os graus de severidade com que o fenômeno da (in) segurança alimentar é vivenciado pelas famílias neles residentes, possibilitando a estimação da amplitude desse problema no Brasil, Grandes Regiões e Unidades da Federação (IBGE, 2015). A EBIA baseia-se em metodologia desenvolvida pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos da América, sendo utilizada para medir o grau de insegurança alimentar segundo a percepção dos entrevistados. A situação de segurança alimentar ocorre quando os moradores dos domicílios têm

acesso

regular

e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade

suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais. A insegurança alimentar leve ocorre quando há preocupação ou incerteza sobre a disponibilidade de alimentos no futuro. Já a insegurança alimentar moderada configurase por situações em que há uma redução quantitativa da disponibilidade de alimentos entre os adultos, com possibilidade de perda dos padrões de alimentação.

E a

insegurança alimentar grave é constatada quando há perda quantitativa da disponibilidade de alimentos para as crianças, podendo ocorrer interrupção dos

padrões de alimentação devido à falta de alimentos entre as crianças. Essa situação configura-se também quando há fome e o indivíduo fica um dia inteiro sem alimento em função da falta de recursos para comprá-lo (ANJOS, CALDAS E BECKER, 2013). Anjos, Caldas e Becker (2013) analisaram a natureza multidimensional do desenvolvimento sustentável, mostrando o caráter contraditório desse conceito a partir das conexões que estabelece com o conceito igualmente complexo de segurança alimentar e nutricional, apresentando os traços que caracterizam o perfil da fome e da insegurança alimentar no Brasil. Eles analisaram a evolução da segurança alimentar dos municípios do Brasil, no período compreendido entre 2004 e 2009, observando melhorias, com diminuição da insegurança alimentar, no período. Na ocasião, eles constataram que houve diminuição de 65,0% para 69,8% para o Brasil, porém com melhores resultados sob o âmbito urbano. O gráfico 1 é uma tentativa de atualização dos resultados apresentados por esses pesquisadores, utilizando os dados da PNAD 2013, em comparação com os dados reponderados dos suplementos sobre segurança alimentar, realizados em 2004 e 2009, a fim de usarmos dados mais atualizados nas discussões posteriores.

Gráfico 1 - Evolução do percentual de domicílios brasileiro em situação de segurança alimentar, nos anos 2004, 2009 e 2013, para o Brasil e áreas urbana e rural

80,0 76,7

74,2 60,0

62,2

59,9

%

60,1

49,9

40,0 65,8

67,0

BRASIL

URBANO

59,8

20,0 0,0

Fonte: IBGE, suplemento da PNAD 2004/2009 e 2013.

RURAL 2004

2009

2013

Pode-se observar que a tendência de aumento de segurança alimentar se manifesta também em 2013, para o Brasil e para o âmbito urbano. No âmbito rural, percebe-se uma estagnação da evolução da situação de segurança alimentar em torno de 60%. Anjos, Caldas e Becker (2013) constataram que o fenômeno da insegurança alimentar é mais intenso no âmbito rural em que pese o Brasil ser um dos maiores agroexportadores do mundo. Esse fato pode ser observado a partir da análise do gráfico 2, o qual compara o percentual de insegurança alimentar leve, moderada e grave em domicílios brasileiros, em 2013, para o Brasil e áreas urbana e rural. Nota-se que todos os níveis de insegurança alimentar para o âmbito rural são superiores aos do âmbito urbano, permanecendo situação constatada por eles com base nos dados da pesquisa de 2009.

Gráfico 2- Percentual de insegurança alimentar leve, moderada e grave em domicílos brasileiros, em 2013, no Brasil e áreas urbana e rural.

30,0 25,0 24,3

%

20,0 15,0

17,1

15,8

10,0 5,0

9,5 5,1

3,6

4,3

3,1

6,3

0,0 BRASIL

URBANO

RURAL Insegurança Leve Insegurança Moderada

Fonte: IBGE, suplemento da PNAD 2013.

Insegurança Grave

Esses autores compararam também a distribuição da população em insegurança alimentar segundo a raça/cor e segundo classes de rendimento mensal per capita, constatando que a insegurança alimentar brasileira é influenciada pelo componente racial, afetando mais a população negra e parda e as famílias com renda domiciliar per capta baixa ( Anjos, Caldas e Becker (2013). Na mesma linha de raciocínio dos pesquisadores precedentes, é indispensável analisar a distribuição dos domicílios em situação de insegurança alimentar por classe de rendimento. No gráfico 3, evidencia-se a distribuição percentual desses domicílios segundo classes de rendimento e situação do domicílio (se localizado na zona rural ou urbana). É possível verificar que há maior presença de domicílios rurais em situação de insegurança alimentar em classes de renda mais baixas. Porém tal situação se inverte para classes de renda a partir de 1 salário mínimo domiciliar per capita.

Gráfico 3 - Domicílios particulares, por situação de insegurança alimentar e classe de rendimento domiciliar per capita - Brasil - 2013

70,0 60,0 34,1 50,0

23,7

%

40,0 9,0

30,0 20,0

19,4 9,9

10,0 0,0

2,0

9,0

25,4

30,4

25,9

Até 1/4 do SM

Mais de 1/4 a 1/2 SM

Mais de 1/2 a 1 SM

Mais de 1 a 2 SM

Mais de 2 SM Urbana

Rural

Fonte: IBGE, suplemento da PNAD 2013.

Fato importante já verificado pelos autores citados é que nas regiões Norte e Nordeste há maior incidência de insegurança alimentar moderada ou grave. Eles mostraram que, em 2009, a região Nordeste concentrava sozinha quase 51% da população brasileira em situação de insegurança alimentar moderada ou grave. Tal situação ainda persiste, apesar de uma ligeira melhora, visto que essa região ainda abriga 44% dos domicílios brasileiros em situação de insegurança alimentar. Este dado está coerente com a distribuição percentual de domicílios brasileiros abaixo da linha da pobreza, visto que 53% destes se encontravam na Região Nordeste em 2013, evidenciando que essa região carece de atenção dos formuladores de políticas públicas e programas governamentais. A Região Nordeste é historicamente palco de várias formas de desigualdade, com destaque sobre a desigualdade de renda, Dessa forma, faremos uma análise, por meio do método de decomposição de área (Shift Share), do comportamento das culturas de cana-de-açúcar e soja nessa região, no período de 1991 a 2013, de forma a verificar se

a expansão da produção de biocombustíveis pode ter relação com a substituição de alguma cultura utilizada na produção de alimentos, o que causaria impacto na estrutura fundiária, afetando os pequenos proprietários de terra, a produção de alimentos e a renda das famílias. 4. Metodologia

O método Shift Share consiste em comparar a evolução da área plantada com um ano de referência de forma a perceber os efeitos devido a possível substituição de cultivos, bem como os efeitos devido a ganhos de escala de produção. Sua expressão matemática é a seguinte:

em que

e

representam a área plantada do produto j, num intervalo de tempo

compreendido entre t=0 e t=T. As parcelas do lado direito da expressão representam, respectivamente, o efeito escala e o efeito substituição, na unidade de área utilizada, sendo que

, representa a variação da área total, quando se

considera todos os cultivos em análise, no intervalo de tempo t=0 e t=T. Fazemos uso de análise gráfica da relação entre os efeitos substituição e efeito escala para os principais produtos cultivados na região, para obtermos um indicativo de quais cultivos foram substituídos e quais tiveram diminuição da área plantada em função de ganhos de escala. A base de dados utilizada na análise é a pesquisa de Produção Agrícola Municipal (PAM), publicada anualmente pelo IBGE. Essa pesquisa possui informações sobre a área plantada, área colhida, quantidade produzida, rendimento médio obtido e valor da produção dos produtos das culturas temporárias e permanentes, por

município, microrregiões, mesorregiões, Unidades da Federação, Grandes Regiões e Brasil (IBGE, 2002). O período de coleta dos dados é anual, abrangendo todo o território nacional, tendo o município como unidade de investigação.

5. Resultados O Gráfico 5 sugere que ocorreu substituição mais intensa das culturas de mandioca, feijão e arroz, conforme se pode notar pelo valor negativo do efeito substituição dessas culturas. Gráfico 5 - Efeitos Escala e Substituição da área plantada na Região Nordeste, média do apurado no perído de 2005 a 2013. Tomate Soja (em grão) Milho (em grão) Melão Melancia Mandioca Feijão (em grão) Fava (em grão) Cebola Cana-de-açúcar Batata-inglesa Batata-doce Arroz (em casca) Amendoim (em casca) Alho Algodão herbáceo (em caroço)

824.530

-248.234 -357.593

-14.187

18510

-182.037

Área plantada em ha Efeito Escala

Efeito Substituição

Em sentido oposto, a soja possivelmente está substituindo outras culturas, uma vez que seu efeito substituição é destacadamente positivo. Indicando que a área plantada dessa oleaginosa cresceu em ritmo mais acelerado que as demais culturas. Com relação à cana de açúcar, embora o gráfico citado sugira que esta cultura tenha sofrido substituição, parte da redução da área cultivada pode ser atribuída aos

ganhos de escala, visto que este efeito compensa a perda da área plantada por esse produto. Uma possível explicação para o avanço do cultivo da soja, em relação à demais culturas, pode ser buscada sobre a política de expansão da produção de agrocombustíveis. Embora o PNPB (Programa Nacional de Produção de Biodiesel), tenha sido instituído em 2005 com o objetivo de incentivar a produção e uso do Biodiesel, de forma a permitir a inclusão social e o desenvolvimento regional (MME, 2015), incentivando a produção desse biocombustível a partir de várias fontes vegetais oleaginosas, a soja prevaleceu como principal matéria prima, apesar do seu baixo rendimento energético. Então seria de se esperar que sua expansão ocorresse de forma mais acelerada a partir desse período, em várias regiões do país. Porém, não é isso que mostra o gráfico 6. Podemos perceber que o aumento mais acentuado da área plantada desse produto ocorreu em 1992, quando esta atingiu 342.712 hectares, representando um aumento de 58%, em relação a 1991. A partir de então (com exceção de 1996), houve crescimento consistente da área cultivada desse produto, sem apresentar um salto significativo a partir de 2005, ano em que o referido programa fora instituído.

3.000.000

80%

2.500.000

60% 40%

2.000.000

20% 1.500.000 0% 1.000.000

-20%

Evolução da área plantada

Fonte: IBGE -PAM 1991 - 2014.

2014

2013

2012

2011

2010

2009

2008

2007

2006

2005

2004

2003

2002

2001

2000

1999

1998

1997

1996

1995

-60% 1994

0 1993

-40%

1992

500.000

1991

Á rea plantada em ha

Gráfico 6: Evolução da área plantada de soja, no período de 1991 a 2014, na Região Nordeste

Variação percentual

Gráfico 7: Evolução da área plantada de cana-de-açúcar, no período de 1991 a 2014, na Região Nordeste 1.600.000

15%

1.400.000

10%

1.200.000

5%

1.000.000

0%

Fonte: IBGE -PAM 1991 - 2014.

Evolução da área plantada

2014

2013

2012

2011

2010

2009

2008

2007

2006

2005

2004

2003

2002

2001

2000

-25% 1999

0 1998

-20% 1997

200.000 1996

-15%

1995

400.000

1994

-10%

1993

600.000

1992

-5%

1991

800.000

Variação percentual

Portanto, não há indícios de que a expansão da produção dessa oleaginosa na Região Nordeste tenha ocorrido em função dos incentivos governamentais no sentido de incrementar a produção de biodiesel na região.

Embora existam indicativos de que tal produto tenha substituído outras fontes alimentares ao longo dos anos, não é possível afirmar que tal substituição tenha ocorrido em função da produção de biocombustíveis. Vale ressaltar que não deixam de ser relevantes os possíveis impactos causados pela ampliação da área cultivada por uma única cultura, implicando em perda de diversidade, aumento da concentração fundiária e enfraquecimento dos pequenos produtores rurais, com possíveis consequências sobre o agravamento da pobreza no campo. Tais impactos carecem de novas análises as quais não temos condições de realizar no presente estudo. Já a área plantada de cana-de-açúcar era de 1.400.000 hectares em 1991, oscilando a partir dessa data entre 1.000.000 e 1.300.000 hectares a partir desse ano. O Proálcool, iniciado em 1975, é o principal programa governamental de substituição em larga escala dos combustíveis fósseis. Inicialmente foi concebido com o objetivo de reduzir as importações de petróleo e aliviar seu peso na balança comercial. Esse programa teve uma fase de estagnação no período de 1986 a 1996, quando os preços do petróleo caíram, enfraquecendo os programas de incentivo aos combustíveis renováveis (BIODIESELBR, 2015). No gráfico 7 nota-se declínio significativo da área plantada em 1993, com certa recuperação nos anos seguintes, o que nos sugere que a produção de cana de açúcar nessa região não foi fortemente afetada pelas oscilações na produção de etanol. Essa situação pode ter ocorrido em razão do caráter substitutivo existente entre a produção de etanol e açúcar. Quando o cenário para produção do biocombustível é desfavorável, a cana-de-açúcar é destinada à produção do açúcar propriamente. Diante dessas observações e da possibilidade de a cana-de-açúcar produzida ter apresentado redução na área plantada, sugerindo que houve apenas ganhos de escala de produção em lugar de aumento de área cultivada, não é possível afirmar que

a produção de tal cultivar tenha relação com substituição de outras culturas alimentares na região. 6. Conclusões Conforme já destacado por outros autores (Hoffman, 2006; Sachs, 2007) a insegurança alimentar é pautada pela pobreza, a qual assola mais fortemente as populações rurais. Uma análise superficial da distribuição dos domicílios particulares segundo classes de rendimentos mostrou que as populações com rendimentos mais modestos sofrem maior incidência de insegurança alimentar, sendo tal efeito mais perverso nos domicílios localizados na zona rural. Observa-se que a insegurança alimentar, embora venha decrescendo ao longo dos anos, em comparação com 2004, ainda é um problema marcante no Brasil, sobretudo nas populações rurais, em que os percentuais de domicílios em situação de insegurança alimentar são bastante discrepantes dos domicílios urbanos, com resultados estabilizados em torno de 60% dos domicílios em situação de segurança alimentar, frente aos 77% nessa situação, na zona urbana. Essa é uma conjuntura paradoxal, uma vez que o Brasil figura entre os maiores agroexportadores do mundo, com tendência de crescimento da produção agrícola e das exportações, segundo projeções do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) para 2023/2024 (MAPA, 2015). A situação é mais severa na Região Nordeste, onde se concentram a maioria dos domicílios em situação de insegurança alimentar no país, o que nos levou a realizar uma análise da variação da substituição de culturas alimentares nessa região.

De acordo com o Censo Agropecuário de 2006, a Região Nordeste possuía 46% do pessoal ocupado1 do país, em estabelecimentos agropecuários, em 2006, sendo um indicativo da importância das atividades agrícolas para a subsistência dos indivíduos nessa região. Sachs (2007) afirma que existe o risco do deslocamento pelos biocombustíveis da produção de alimentos necessários para combater a fome, porém deve-se considerar que a principal razão para a fome é a falta de poder aquisitivo, não a falta de alimentos.

7. Considerações finais As projeções de produção crescente de biocombustíveis e os avanços tecnológicos visando maior eficiência e produtividade das usinas dão indícios de que o Brasil será capaz de ampliar ainda mais a participação dos renováveis na Matriz Energética Nacional, contribuindo para algumas dimensões dos ODS. Para garantir que tal produção não impacte negativamente na segurança alimentar dos brasileiros, é necessário promover políticas de melhorias no campo, com geração de emprego, educação e proteção à saúde (SACHS, 2007), com especial atenção às populações mais pobres, não somente da perspectiva de insuficiência de renda, mas também de acesso a bens e serviços essenciais à promoção do bem estar social. Ainda que as análises realizadas não nos permitam concluir que exista influência direta da produção de biocombustíveis sobre a área disponibilizada para a produção de 1

Segundo metodologia do Censo Agropecuário de 2006, “foram consideradas como pessoal ocupado no estabelecimento todas as pessoas que trabalharam em atividades agropecuárias ou em atividades nãoagropecuárias de apoio às atividades agropecuárias,..., juntamente com as pessoas que tinham laços de parentesco com eles e que estiveram trabalhando no estabelecimento, no período de referência(IBGE, p. 21)”.

alimentos na região analisada, é importante destacar que tal risco já fora verificado por outros autores, para outras regiões. Uma análise em nível estadual pode ser mais reveladora das alterações promovidas pela produção de biocombustíveis do que a verificação na escala ora utilizada (por grande região). Dessa forma, impõe-se outro estudo visando verificar o comportamento da produção de alimentos em função de uma possível substituição pelos insumos agrícolas para a produção de combustíveis.

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