A produção de verdades no Espiritismo: as controvérsias entre Allan Kardec e J.B. Roustaing

September 9, 2017 | Autor: Fabiano Vidal | Categoria: Espiritismo, Allan Kardec
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A PRODUÇÃO DE VERDADES NO ESPIRITISMO: AS CONTROVÉRSIAS ENTRE ALLAN KARDEC E J.B. ROUSTAING1 Fabiano Cesar de Mendonça Vidal 2 Dilaine Soares Sampaio de França 3

Resumo: Este trabalho se propõe a discutir a produção de verdades no Espiritismo kardecista, o processo de legitimação das mesmas através do "Controle Universal do Ensino dos Espíritos", a disputa do monopólio da produção dos bens simbólicos espíritas e as controvérsias existentes entre a obra de Kardec e Jean Baptiste Roustaing, tomando por inspiração o conceito de controvérsia de Bruno Latour e utilizando a metodologia de análise do discurso de Michel Foucault para compreender a produção do discurso da doutrina, seus modos de legitimação e rejeição desse discurso. Palavras-chaves: kardecismo; produção de verdades; controvérsias 1. Introdução Este artigo relaciona-se ao trabalho de dissertação em andamento4 e é fruto do interesse na gênese do Espiritismo kardecista, notadamente no que se refere à sua produção de verdades e como se dá a legitimação das mesmas. Com essa finalidade, serão analisadas as controvérsias entre Allan Kardec, o codificador da doutrina espírita, e o advogado francês Jean Baptiste Roustaing, adepto do Espiritismo que se propôs a publicar uma obra denominada Os Quatro Evangelhos - A Revelação da Revelação que, em sua visão, daria continuidade à obra de Kardec, sendo-lhe um complemento necessário. Utilizaremos neste artigo o trabalho de Iracilda Gonçalves (2010) sobre a produção de verdades no Espiritismo, as teses de Michel Foucault sobre a produção do discurso e de Bruno Latour sobre as controvérsias.

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Este artigo é fruto de um trabalho de aproveitamento realizado para a disciplina Ciências das Religiões, ministrada pela Profª. Drª. Dilaine Soares Sampaio de França, no segundo semestre de 2012, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba. O texto sofreu modificações, através do trabalho de orientação da co-autora para ser apresentado neste evento. 2 Mestrando em Ciências das Religiões (PPGCR/UFPB). E-mail para contato: [email protected] 3 Professora Adjunta do Departamento de Ciências das Religiões da UFPB e de seu Programa de PósGraduação em Ciências das Religiões – PPGCR. 4 A dissertação, em construção, a ser defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB intitula-se Em torno do Nosso Lar: Uma análise das controvérsias e discursos produzidos no Movimento Espírita.

Como nosso trabalho foi construído a partir do referencial das Ciências Sociais das Religiões, faremos num primeiro momento a contextualização histórica das Ciências das Religiões, dos seus primórdios à discussão de sua emancipação no meio acadêmico como disciplina e de ser ou não uma ciência própria. Na segunda parte, é realizado um breve histórico do contexto em que surge o Espiritismo na França, através do fenômeno das mesas girantes, como Allan Kardec surge nesse cenário com seus estudos e como se dá o processo de seleção e aceitação ou não das verdades que farão parte do corpo doutrinário do Espiritismo, e como esse critério de seleção rejeita as teses de Jean Baptiste Roustaing, cuja obra Os Quatro Evangelhos se apresenta como complementar à obra kardequiana, mas sendo rejeitada posteriormente pelo codificador do Espiritismo, o que irá causar um cisma na nova doutrina.

2. A(s) Ciência(s) da (s) Religião (ões): contextualização histórica e o debate de uma área acadêmica Greschat considera que o uso da palavra “religião”, apesar de corriqueiro, pode ser comparado a um labirinto no qual sua utilização só é conhecida por especialistas que se utilizam do termo “Ciência da Religião”. Conforme o autor, na Europa, quando se fala na palavra “religião”, esta é associada à religião cristã, em função do fato da cultura europeia haver sido influenciada pelo cristianismo. Segundo o autor, “religião” serve para especialistas de diversas disciplinas, embora nem sempre signifique ou denomine a mesma coisa e, por consequência, apesar do grande número de definições de religião, até hoje não se chegou a um consenso (Greschat, 2005, p.17; 20). Para Greschat: O fato de não possuirmos uma definição universal de religião é um defeito, mas não uma catástrofe, uma vez que o objeto permanece e a qualidade de palavras inventadas ou a serem inventadas atinge o objeto apenas marginalmente (Greschat, 2005, p.21).

Embora não se tenha chegado ainda a um consenso sobre a definição de religião, esta existe enquanto objeto de estudo. Dada a multiplicidade dos diferentes modos e procedimentos de seu estudo pelos cientistas, tem ocorrido que a religião é vista de forma parcial, de acordo com as perspectivas das disciplinas destes cientistas5. Já para os

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Greschat cita como exemplos arqueólogos, historiadores, sociólogos, médicos, psicólogos e juristas.

cientistas da religião, o importante é a totalidade da religião estudada (Greschat, 2005, p. 23-24). Segundo Usarski, somente a partir da segunda metade do século XIX a Ciência da Religião foi estabelecida como matéria acadêmica das universidades europeias. No entanto, um saber sobre religiões já existia desde a antiguidade grega. De acordo com este autor, a Ciência da Religião desenvolveu, ao longo do tempo, especificidades próprias em função das condições acadêmicas de cada país, em função de sua relação e colaboração com outras disciplinas e até mesmo devido à presença de determinadas religiões que mais chamam a atenção entre os pesquisadores do tema (Usarski, 2006, p. 15). A Ciência da Religião é tida como “filha emancipada da Teologia” (Tworuschka. Apud Usarski, 2006, p. 16) e, em relação à sua emancipação desta disciplina, é possível afirmar que esta ocorre devido à “vasta extensão da sua área de pesquisa e no seu ideal de neutralidade diante dos seus objetos” (Usarski, 2006, p. 17). Outra diferença entre as duas disciplinas é que na Ciência da Religião o cristianismo não é tomado como referência, o que a leva a posicionar-se de forma irrestrita quanto aos objetos por ela tidos como dignos de investigação e em sua motivação pelos objetos estudados, apresentando um interesse primário isento de motivos apologéticos ou missionários. Para Usarksi, esta capacidade de abstração religiosa e sua “indiferença” quanto às contraditórias pretensões de verdades com as quais o pesquisador se defronta são competências-chave que caracterizam a Ciência da Religião (Usarksi, 2006, p. 17). Acerca do uso do termo Ciência da Religião ou Ciências das Religiões, Filoramo e Prandi assim se posicionam: Quem fala de ciência da religião tende, de um lado, a pressupor a existência de um método científico e, do outro, de um objeto unitário. Quem, ao contrário, (...) prefere falar de ciências das religiões, o faz porque está convencido tanto do pluralismo metodológico (e da impossibilidade de reduzi-lo a um mínimo denominador comum) quanto do pluralismo do objeto (e da não-liceidade e até impossibilidade, no plano da investigação empírica, de construir sua unidade) (Filoramo; Prandi, 2007, p.12).

Conforme este autor, as ciências das religiões não podem ser consideradas uma disciplina a parte, fundada, do modo como idealizaria a tradição hermeneuticamente orientada, sob a unidade do objeto e do método. As ciências das religiões são, antes de tudo, um campo disciplinar e, consequentemente, uma estrutura aberta e dinâmica (Filoramo; Prandi, 2007, p.13).

O uso da palavra “ciência”, no sentido específico do qual provém a expressão “ciência da religião”, de acordo com Dreher, é oriundo de uma íntima relação com o termo alemão Wissenschaft, que possui, segundo ele, o significado de um conhecimento sistemático e coerente, um saber (Wissen) regrado e controlado, explicitador dos seus pressupostos e que controla e justifica seus procedimentos (Dreher, 2001, p. 162-163). Em relação à institucionalização da ciência(s) da religião(ões) como uma disciplina acadêmica autônoma, Usarski considera que a mesma teve início nas últimas três décadas do século XIX, quando surgiu a primeira cátedra de “Histoire dês Religions” em 1873 na Facultè dês Lettres na Universidade de Genebra (Usarski, 2006, p.24-25). O desenvolvimento da ciência(s) da religião(ões) enquanto disciplina teve um grande progresso a partir de 1886, quando, através de decreto governamental, foi fechada a Faculdade de Teologia da Sorbonne para dar lugar à Section dês Sciences Religieuses da École dês Hautes Études, caracterizada pelo então ministro responsável como um “centro de pesquisa crítica” (Usarksi, 2006, p. 26). No entanto, outros indicadores além da “oficialização” da Ciência da Religião nas universidades explicam sua progressão enquanto disciplina no meio acadêmico: o surgimento de periódicos e publicações e organização de congressos, que por sua vez refletiam nas comunidades científicas relacionadas e ofereceram a oportunidade para o fortalecimento da consciência de integridade da própria comunidade científica (Usarksi, 2006, p. 27). No Brasil, a proposta da(s) ciência(s) da religião como uma nova área acadêmica, surge, segundo Dreher, a partir de uma concepção de que o objeto “religião/religiões” tem muito a ganhar através de uma melhor compreensão e aclaramento científico, se este for estudado de forma interdisciplinar e autônoma. Este estudo interdisciplinar em solo brasileiro, destaca o autor, foi moldado baseado em um modelo ora de aliança, ora de complementaridade com as ciências sociais, que deram uma contribuição significativa no tocante ao desenvolvimento de uma agenda para o estudo acadêmico da religião. Para Dreher, deve-se a este fato o maior interesse atualmente manifestado pela questão do diálogo inter-religioso que, apesar de ainda estar atrelado à teologia no país, possui um potencial próprio dentro da(s) ciência(s) da religião (Dreher, 2001, p. 159-160).

3. Allan Kardec e Jean Baptiste Roustaing: controvérsias no Espiritismo

A doutrina espírita codificada por Allan Kardec tem sua origem vinculada ao fenômeno das mesas girantes, que em 1853, na França, estava em seus primórdios e era visto pela maior parte da sociedade da época como um mero passatempo. Este acontecia quando pessoas se colocavam ao redor de uma mesa, em cima da qual punham as mãos. Levantando um dos pés, a mesa dava uma pancada equivalente a uma determinada letra que servia ao espírito comunicante para formar palavras. Porém, é apenas em 1854 que o pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail (Allan Kardec) terá seu primeiro contato com as mesas girantes. O mesmo ocorre em função de convite realizado por um magnetizador, o Sr. Fortier, a fim de conhecer as manifestações que ocorriam nos salões da capital francesa, inclusive no Palácio Imperial de Napoleão III. Inicialmente, a posição de Rivail foi de ceticismo, atribuindo ao fenômeno a possibilidade de ser causado pelo fluido magnético, uma vez que “a mesa não possuía nervos nem cérebro, nem podia tornar-se sonâmbula” (Abreu Filho, 1956, p.24). Homem das ciências, Rivail não acreditava na possibilidade deste ser um fenômeno espiritual. Tendo participado posteriormente de algumas sessões mediúnicas, a atenção de Rivail se voltou para o fato de que muitas das respostas emitidas por aqueles objetos estavam além do conhecimento cultural e social dos que faziam parte do "espetáculo". Desta forma, Rivail chega à conclusão de que a causa do fenômeno das mesas girantes não era meramente física, de onde depreende o axioma “se todo efeito tem uma causa, todo o efeito inteligente deve ter uma causa inteligente” (Kardec, 2009, p.147). Durante seus estudos e observações, Rivail recebeu uma comunicação dirigida a ele, de um espírito que se denominava Verdade, informando-o de que seria responsável pela codificação de uma nova doutrina. Após muitos questionamentos do pedagogo francês ao espírito, por fim Rivail aceita a tarefa que lhe fora designada. Até então, de acordo com Gonçalves, “Rivail não possuía como objetivo produzir um arcabouço discursivo específico. O que movia seu interesse pela observação do fato era, apenas, a vontade de inteirar-se sobre o fenômeno” (Gonçalves, 2010, p. 35). Dentre os temas que mais interessavam a Kardec durante seu processo de observação, estavam aqueles ligados à filosofia, psicologia e da natureza do mundo invisível. Iracilda Gonçalves destaca que, face à complexidade da tarefa assumida, Kardec passa a encarar os fenômenos por ele pesquisados como:

Uma chave de leitura para a solução de questionamentos, sobre o passado e o futuro da humanidade, até então, sem explicações. O fenômeno constituía-se, na sua perspectiva, como uma revolução nas ideias e crenças que, naquele momento, circulavam como verdades (Gonçalves, 2010, p. 35).

Kardec, então, assume que os fenômenos por ele estudados não poderiam ser explicados pelas leis já conhecidas, e adota o método experimental utilizado pelas ciências positivas (Gonçalves, 2010, p. 36). Sua decisão é assim explicada: Apliquei a essa nova ciência, como o fizera até então, o método experimental; nunca elaborei teorias pré-concebidas; observava atentamente, comparava, deduzia as consequências; dos efeitos eu procurava remontar às causas, pela dedução e o encadeamento lógico dos fatos, só admitindo como válida uma explicação quando ela pudesse resolver todas as dificuldades da questão. (Kardec, 2002, p. 394)

Em razão deste posicionamento assumido, Allan Kardec dá prosseguimento à coleta de discursos que formarão seu corpus de análise através das entrevistas. Elaborou de forma prévia um roteiro de perguntas sobre cada objeto a ser tratado, tendo se utilizado dos médiuns para conversar com seus informantes. Os principais médiuns utilizados por Kardec durante todo o processo foram as irmãs Caroline e Julie Baudin (Gonçalves, 2010, p.40). As mesmas perguntas realizadas a estas eram repetidas para vários outros médiuns da Europa e América, fazendo com que Kardec viajasse por mais de vinte cidades. Os médiuns utilizados durante a codificação da nova doutrina não tinham contato entre si, apenas Kardec tinha acesso a eles. Este controle rígido das informações coletadas ficou conhecido por "Controle Universal do Ensino dos Espíritos", do qual se estabeleceu que qualquer informação vinda do plano espiritual só terá validade para o Espiritismo se for constatada em vários lugares, através de diversos médiuns, que não mantenham contato entre si. Fora desse critério, toda comunicação será tida como uma opinião particular do espírito comunicante (Vidal, 2012, p. 16-17). É, portanto, através da aplicação do "Controle Universal do Ensino dos Espíritos", que Allan Kardec seleciona os enunciados que farão parte “daquele conjunto de ideias, em meio à grande dispersão de enunciados que circundavam, em torno daquele processo discursivo”, o que o fez optar pelo recurso da observação das regularidades discursivas (Gonçalves, 2010, p. 41). Temos, portanto, a adoção, por parte de Kardec, de um tipo de procedimento que permite o controle do discurso espírita e, consequentemente, da produção das verdades a serem adotadas pelo Espiritismo:

Trata-se de determinar as condições de seu funcionamento, de impor aos indivíduos que os pronunciam certo número de regras e assim de não permitir que todo mundo tenha acesso a eles. (...) Ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo (Foucault, 2011, p.36).

Conforme Freitas Gonçalves, o Espiritismo constrói suas verdades a partir de um conjunto de enunciados nos quais, ao tratar de objetos como a vida, morte, espírito, imortalidade, dentre outras temáticas, estes se tornam imanentes à sua religiosidade. Ainda segundo a autora, “a doutrina espírita possui um conjunto de discursos que formam seu campo discursivo a partir de uma regularidade que as identifica como tal. São discursos que definem um saber específico sobre o divino, o humano, o espírito, o terreno, a vida, a morte” (Gonçalves, 2011, p.54-55). O processo de produção do discurso espírita é realizado através dos vários tipos de mediunidade, o que dá origem a um tipo de discurso específico: o mediúnico. Assim como Allan Kardec, é através do discurso mediúnico que um advogado da cidade de Bordeaux, Jean Baptiste Roustaing, adepto do Espiritismo, dará início a uma obra que é tida por estudiosos da doutrina espírita como o primeiro cisma da mesma. De formação católica, Roustaing passara por uma grave enfermidade e, ao sair desta, fora informado por um clínico sobre a possibilidade de comunicações do mundo corpóreo com o espiritual. De início, este demonstra certo ceticismo sobre o assunto, mas posteriormente decide pesquisá-lo e adquire exemplares de O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns, concluindo posteriormente que “o mundo espiritual era bem o reflexo do mundo corporal” (Pires,1973, p.6). Empolgado com a revelação espírita de Allan Kardec, Roustaing decide estudar por conta própria livros de teor profano e religioso, O Velho e o Novo Testamento, dentre outros, e chegou à conclusão de que as verdades das obras de Kardec por elas eram confirmadas. Porém, Roustaing se questiona sobre a origem e a natureza espiritual de Jesus, assim como sobre sua posição espírita em relação a Deus e ao nosso planeta, os seus poderes e a sua autoridade (Pires, 1973, p.6). Este sente, então, a necessidade de uma nova revelação, que se concretizaria na obra Os Quatro Evangelhos - A Revelação da Revelação, em uma clara alusão ao Espiritismo kardecista.6 6

Para Allan Kardec, a Doutrina Espírita é a Terceira Revelação das leis de Deus. A primeira revelação estava representada na figura de Moisés; A segunda, personificada na figura de Jesus; e a terceira, o Espiritismo, que seria o Consolador Prometido por Jesus, não estando personificado por alguém, mas é o produto do ensinamento dado pelos espíritos.

Segundo relato do próprio Roustaing, a 24 de junho de 1861, este, no “sigilo de uma prece fervorosa”, pede a Deus que permitisse que o espírito de João Batista lhe manifestasse através de um médium que se encontrava em sua companhia, assim como a manifestação de seu pai e de seu guia protetor. Roustaing confirma, então, as manifestações espontâneas desses espíritos, “com surpresa do médium, a quem eu deixara ignorante de minha prece”, e que posteriormente, a 30 de junho, o espírito do apóstolo Pedro se manifesta “de modo inesperado tanto para mim quanto para o médium”. (Pires, 1973, p.7). Pires relata que após essas comunicações, Roustaing “trava conhecimento com Madame Collignon” (1973, p.7). Nascida na Bélgica, em 1820, Émilie Aimée Charlotte Bréard Collignon, médium que ficaria mais conhecida por Madame E. Collignon, começa a receber Os Quatro Evangelhos, apenas oito dias depois da comunicação de Pedro. Os apóstolos Mateus, Marcos, Lucas e João teriam lhe transmitido extensa comunicação sobre o recebimento da Revelação da Revelação. A obra é concluída em maio de 1865 e, em junho de 1866, Allan Kardec realiza uma análise da obra roustainguista7 na Revista Espírita. Segundo o codificador do Espiritismo, Esta obra [Os Quatro Evangelhos] compreende a explicação e a interpretação dos Evangelhos, artigo por artigo, com ajuda de comunicações ditadas pelos espíritos. É um trabalho considerado, e que tem, para os espíritas, o mérito de não estar, sobre nenhum ponto, em contradição com a doutrina ensinada por O Livro dos Espíritos e o dos médiuns. As partes correspondentes àquelas que tratamos em O Evangelho Segundo o Espiritismo o são num sentido análogo. De resto, como nos limitamos às máximas morais que, quase sem exceção, são geralmente claras, elas não poderiam ser interpretadas de diversas maneiras; também foram o assunto de controvérsias religiosas. Foi por esta razão que começamos por ali a fim de ser aceito sem contestação, esperando para o resto que a opinião geral estivesse mais familiarizada com a ideia espírita (Kardec,1993, p.129).

Baseados nessa afirmação de Kardec, os adeptos das teses de Jean Baptiste Roustaing afirmaram que o codificador do Espiritismo “não condenou os Evangelhos de Roustaing, apenas o deixou em quarentena” (Vidal, 2012, p. 31-32). Os seguidores de Kardec contestaram tal afirmação, citando a continuidade da mesma análise realizada pelo codificador na Revista Espírita. Nela, Kardec pondera que as explicações da tese roustainguista devem ser tidas: Como opiniões pessoais aos espíritos que a formularam, opiniões que podem ser justas ou falsas, e que, em todos os casos, têm necessidade da sanção do controle universal, e até mais ampla confirmação não poderiam ser 7

As teses defendidas por Jean Baptiste Roustaing, assim como seus adeptos, são denominadas de roustainguistas, rustenistas ou rustanistas.

consideradas como partes integrantes da Doutrina Espírita (Kardec, 1993, p.129).

As controvérsias entre kardecistas e roustainguistas ocorreram em função das revelações contidas na obra de Roustaing que não estariam dentro das condições estabelecidas por Kardec para a produção e aceitação de verdades pelo Espiritismo. Entre as principais teses do roustainguismo que causaram as controvérsias com as obras de Kardec, está a virgindade de Maria (sua gravidez teria sido obra do Espírito Santo, e como tal, aparente e fluídica, de maneira a produzir ilusão, a fazê-la crer numa gravidez real); o corpo fluídico de Jesus, que possuiria da matéria apenas a aparência; Tudo na vida de Jesus, foi apenas aparente, havendo ilusão para todos que o seguiam; Os espíritos “ateus” sofreriam o castigo da primitiva encarnação humana, transformando-se em larvas, que Roustaing denomina “criptógamos carnudos”, uma espécie de lesma; E a afirmação dos adeptos de Roustaing que Humberto de Campos-espírito enfatiza a participação dele na obra da Codificação 8 . Além destas teses, outro fator de crítica pelos kardecistas à obra de Roustaing se deve ao fato deste haver se utilizado de uma única médium (Madame Collignon) para o recebimento da obra, e da não aplicação do método de aferição das verdades criado por Kardec, o “Controle Universal do Ensino dos Espíritos”. Lewgoy, acerca da preocupação do controle das mensagens que poderiam ou não compor a Doutrina Espírita, assim se pronuncia: Desde Kardec, o espiritismo esteve preocupado em critérios de autenticação das mensagens recebidas pelos médiuns, onde a credibilidade destes é condição de possibilidade do êxito da comunicação. Mas o exame da mensagem é soberano, sendo feito com base em critérios exegéticos de "elevação moral intrínseca" de seu conteúdo. Ou seja, se são reconhecidas como mensagens de espíritos de escol, há todo um esforço paralelo de teorização dos critérios de reconhecimento, que atravessam a obra de Kardec, bem como nos autores que até as primeiras décadas do Século XX falam do espiritismo, como Conan Doyle (1992). Os critérios textuais consistem, fundamentalmente, numa espécie de crítica religiosa do conteúdo das mensagens, a fim de evitar fraudes e mistificações. Não se trata de uma simples exegese racional em busca de coerência doutrinal, mas do que poderia ser chamado, do ângulo do critério, de um certo habitus que corresponde a um "feeling religioso" que, por sua vez, apresenta uma abertura para a questão da estética das mensagens recebidas (Lewgoy, 2000, p. 59).

Para Latour, uma sentença dependerá da forma como está inserida em outras para ser considerada mais fato ou ficção: “Por si mesma, uma sentença não é nem fato nem ficção; 8

Conforme relato do autor espiritual na obra Brasil Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier.

torna-se um ou outra mais tarde graças a outras sentenças” (Latour, 2011, p.35). Conforme o autor, a sentença será tornada mais fato desde que esteja “inserida numa premissa fechada, óbvia, consistente e amarrada, que leva a alguma outra consequência menos fechada, menos óbvia, menos consistente e menos unificada”. De acordo com o filósofo e antropólogo francês, ao olharmos uma controvérsia mais de perto, perceberemos que “metade do trabalho de interpretação das razões que estão por trás da crença já está feita!” (Latour, 2011, p. 37). A continuação de um debate implica no aprofundamento do objeto estudado, o que geraria um maior número de novas condições de produção a serem atacados, uma vez que a cada nova contestação a ser adicionada ao debate da controvérsia, o status da descoberta original será modificado. Consequentemente, o destino da afirmação (sua definição como fato ou ficção) dependerá dos debates ulteriores: Seu grau de certeza aumenta ou diminui, dependendo da sentença seguinte que a retomar; essa atribuição retrospectiva se repete na nova sentença, que, por sua vez, poderá ser tornada mais fato ou ficção por força de uma terceira, e assim por diante (Latour, 2011, p. 39-40).

O que Latour denomina por debates ulteriores aconteceu, de fato, entre Allan Kardec e Roustaing. Em 1868, apenas dois anos após o lançamento de Os Quatro Evangelhos, Kardec publica A Gênese, onde procura implodir, de forma definitiva, a tese central roustainguista acerca do corpo fluídico de Jesus:

Como homem, [Jesus] tinha a organização dos seres carnais; mas como Espírito puro, destacado da matéria, devia viver na vida espiritual mais que na vida corporal, da qual não tinha as fraquezas. A superioridade de Jesus sobre os homens não era relativa às qualidades particulares de seu corpo, mas à de seu espírito, que dominava a matéria de maneira absoluta, e ao seu perispírito alimentado pela parte a mais quintessenciada dos fluidos terrestres (Kardec, 2003, p.263).

Arribas afirma que os esforços de Kardec para contraditar a teoria de Roustaing e posicionar-se de vez sobre o assunto, se davam em consequência da disputa do monopólio da produção dos bens simbólicos espíritas. Kardec aspirava, portanto, acabar com as bases para ver desmoronar todo o edifício teórico do pretendido continuador do seu Espiritismo (Arribas, 2010, p.221-222). Segundo a pesquisadora, embora houvesse existido um mínimo de diálogo entre Kardec e Roustaing através das páginas da Revista Espírita, a obra roustainguista: Mal foi conhecida, ou em termos mais precisos, reconhecida no meio espírita francês. Mesmo recebendo uma segunda tiragem em 1882, aumentada somente de um prefácio exclusivamente produzido contra o artigo de Kardec da Revue Spirite, as teses roustainguistas foram pouco ou quase nada difundidas. No entanto, no Brasil, os seus escritos tiveram uma recepção

bastante acolhedora, o que favoreceu a sua difusão por parte, sobretudo, do grupo dos religiosos – grupo que tomou cada vez mais a dianteira do movimento espírita brasileiro (Arribas, 2010, p. 224).

Segundo as concepções de Foucault sobre as “doutrinas”, estas constituiriam o inverso do que se entende por uma “sociedade de discurso”, que ocorre quando o número dos indivíduos que falavam, mesmo não sendo fixado, tendia a ser limitado, e apenas dentro desse grupo de indivíduos o discurso poderia circular e ser transmitido (Foucault, 2011, p. 41). A doutrina, explica Foucault, possui a tendência de difundir-se, através da partilha de: Um só e mesmo conjunto de discursos que indivíduos, tão numerosos quanto se queira imaginar, definem sua presença recíproca. Aparentemente, a única condição requerida é o reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de certa regra – mais ou menos flexível – de conforme com os discursos validados. (...) Ora, a pertença doutrinária questiona ao mesmo tempo o enunciado e o sujeito que fala, um através do outro. Questiona o sujeito que fala através e a partir do enunciado, como provam os procedimentos de exclusão e os mecanismos de rejeição que entram em jogo quando um sujeito que fala formula um ou vários enunciados inassimiláveis; a heresia e a ortodoxia não derivam de um exagero fanático dos mecanismos doutrinários, elas lhe pertencem fundamentalmente (Grifo nosso). (Foucault, 2011, p. 42).

Foucault fecha seu raciocínio sobre as doutrinas ao considerar que estas ligam os indivíduos a certos tipos de enunciação e, ao mesmo tempo, sujeita seus seguidores à sujeição “dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo, ao menos virtual, dos indivíduos que falam” (Foucault, 2011, p. 43). Desta forma, concordamos com Vilhena, quando esta autora afirma que, em decorrência de críticas acirradas entre grupos representativos de posturas antagônicas e concorrentes, o diálogo se torna mais áspero e, muitas vezes, praticamente impossível, originando cismas e rupturas no interior da mesma religião, conduzindo ainda à formação de dissensões dos grupos disputantes que arvoram para si a pretensão da correta interpretação dos princípios doutrinários e práticas a eles correlatas (Vilhena, 2008, p. 14).

4. Considerações finais

Cremos ser esta discussão acerca da produção e legitimação de verdades doutrinárias espíritas de suma importância para uma maior compreensão das várias correntes existentes no seio do movimento espírita brasileiro, uma vez que através do estudo da temática aqui abordada poderemos chegar a um entendimento de como se deu os momentos de implantação, consolidação e de legitimidade social ou doutrinária. As

Ciências das Religiões, em nosso entender, é o meio mais propício para tal estudo, face às suas pretensões de abstração religiosa e isenção missionária. Ressalte-se que o Espiritismo dentro do campo religioso brasileiro é relevante não apenas pelo expressivo número de adeptos9, mas também em decorrência de seus princípios básicos serem aceitos por muitos brasileiros, incluindo aqueles adeptos de outras religiões. Como exemplo da importância do estudo desta temática, citamos Giumbelli: No Brasil, Os Quatro Evangelhos, traduzido em 1883 por Ewerton Quadros, influenciaram livros como A divina epopeia de João Evangelista, de Bittencourt Sampaio, 1882 (...); e Elucidações evangélicas, de Antonio Sayão (1897) – este último muito usado em substituição ao original de Roustaing, tido como de difícil compreensão (Giumbelli, 1996, p.75).

Mas a influência da obra de Roustaing não teria ficado limitada às obras citadas por Giumbelli. Sérgio Aleixo, vice-presidente da Associação de Divulgadores do Espiritismo do Rio de Janeiro (ADE-RJ), denomina a obra roustainguista de “deturpação perigosa” que não seria divulgada apenas por sua obra principal, concorrente de Kardec, “mas mediante livros psicografados por Chico Xavier” (Vidal, 2012, p. 72). Arribas credita a aceitação e divulgação das teses roustainguistas no Brasil ao fato desta se conciliar às predisposições católicas de muitos espíritas, que deram origem em solo brasileiro a um Espiritismo catolicizado que segue dominante no movimento espírita brasileiro até a atualidade (Arribas, 2010, p. 235). Desta forma, consideramos que o presente trabalho será capaz de dar sua parcela de contribuição às questões aqui propostas na busca da compreensão das controvérsias espíritas.

Referências

ABREU FILHO, Júlio; PIRES, José Herculano. O Verbo e a Carne. São Paulo: Edições Cairbar, 1973. ARRIBAS, Célia. Afinal, Espiritismo é religião? A doutrina espírita na formação da diversidade religiosa brasileira. São Paulo: Alameda, 2010. DREHER, Luís Henrique. Ciência (s) da Religião: Teoria e Pós-Graduação no Brasil. In: TEIXEIRA, Faustino (org). A(s) ciência(s) da religião no Brasil. Afirmação de uma área acadêmica. São Paulo: Paulinas, 2001. 9

Dados do Censo 2010 indicam que a doutrina de Kardec possui 3,8 milhões de seguidores, o que faz do Brasil o maior país espírita do mundo. De 1,3% da população em 2000, o número de adeptos sobe para 2,0% em 2010.

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