A PROFANAÇÃO DOS VALORES ARTÍSTICOS NA OBRA DE ANDY WARHOL E O DESENVOLVIMENTO DO CAMPO CULTURAL NORTE-AMERICANO NAS DÉCADAS DE 1950 E 1960

July 14, 2017 | Autor: William Santos | Categoria: Andy Warhol, Profanation, Popart
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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES INSTITUTO DE HUMANIDADES PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA

WILLIAM GARCIA DOS SANTOS

A PROFANAÇÃO DOS VALORES ARTÍSTICOS NA OBRA DE ANDY WARHOL E O DESENVOLVIMENTO DO CAMPO CULTURAL NORTE-AMERICANO NAS DÉCADAS DE 1950 E 1960

RIO DE JANEIRO JUNHO DE 2012

2 WILLIAM GARCIA DOS SANTOS

A PROFANAÇÃO DOS VALORES ARTÍSTICOS NA OBRA DE ANDY WARHOL E O DESENVOLVIMENTO DO CAMPO CULTURAL NORTE-AMERICANO NAS DÉCADAS DE 1950 E 1960

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Pós-Graduação em História Contemporânea do Instituto de Humanidades da Universidade Cândido Mendes.

RIO DE JANEIRO JUNHO DE 2012

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A PROFANAÇÃO DOS VALORES ARTÍSTICOS NA OBRA DE ANDY WARHOL E O DESENVOLVIMENTO DO CAMPO CULTURAL NORTE-AMERICANO NAS DÉCADAS DE 1950 E 1960 William Garcia dos Santos Trabalho de Conclusão de Curso submetido ao corpo docente do Programa de PósGraduação em História Contemporânea da Universidade Cândido Mendes, como parte dos requisitos necessários à conclusão do curso de Pós-Graduação lato sensu em História Contemporânea. Aprovada por: AVALIADOR 1: ________________________________________________________ ________________________________________________________ (Assinatura) AVALIADOR 2: ________________________________________________________ ________________________________________________________ (Assinatura)

RIO DE JANEIRO JUNHO DE 2012

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Santos, William Garcia dos. A Profanação dos Valores Artísticos na Obra de Andy Warhol e o Desenvolvimento do Campo Cultural Norte-Americano nas Décadas de 1950 e 1960 / William Garcia dos Santos – Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, Pós-Graduação em História Contemporânea, 2012. 75 f.: il..; 29,7 cm. Trabalho de Conclusão de Curso (Pós-Graduação em História Contemporânea) – Universidade Cândido Mendes, Instituto de Humanidades, 2012. 1. História. 2. Cultura Norte-Americana no Pós-Guerra. 3. Andy Warhol. 4. Arte Multimídia. II. Universidade Cândido Mendes. Instituto de Humanidades. III. Título.

5 Agradecimentos Aos meus pais, José Alves dos Santos e Rosângela Maria Garcia dos Santos, por sempre me apoiarem em todas as decisões que eu tomo e pela formação que me deram, que não está presente no currículo de nenhum curso acadêmico. À Renata, pela compreensão e pelo apoio que me deu, ao ler repetidas vezes os parágrafos que eu não considerava bem escritos e me incentivar a seguir no caminho que eu estabeleci para a elaboração deste estudo. À Elisângela, por toda a contribuição que me deu ao longo de minha trajetória. Ao Pedro Henrique, por ter sempre um sorriso no rosto nos momentos em que a elaboração deste trabalho mais me preocupou Ao Venâncio, pela paciência com a qual me explicou como proceder nos inúmeros problemas que tive ao longo deste curso e por sempre nos tratar com respeito e dignidade. Aos amigos, que foram o que de mais importante aconteceu neste curso de PósGraduação. Alexandra, Bruno, Carlos, Paulo, Eduardo, Maurício, Rita, Rodrigo, Túlio e Virgínia, que neste papel podem ser apenas simples nomes, mas que constituíram um dos capítulos mais importantes da minha vida. E a todos aqueles que contribuíram para a realização deste trabalho.

6 Resumo

SANTOS, William Garcia dos. A Profanação dos Valores Artísticos na Obra de Andy Warhol e o Desenvolvimento do Campo Cultural Norte-Americano nas Décadas de 1950 e 1960. Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes / Instituto de Humanidades, 2012. Trabalho de Conclusão de Curso (Pós-Graduação em História Contemporânea).

Este trabalho pretende discutir aspectos relacionados à sociedade e à cultura norteamericana nas décadas de 1950 e 1960. Para tanto, estudamos as características sócio-econômicos dos Estados Unidos no pós-guerra, além de analisarmos o campo cultural do país neste período. Neste sentido, procuramos destacar às rupturas dos cânones estabelecida por Andy Warhol e pelos indivíduos ligados ao estúdio Factory e como o espetáculo Exploding Plastic Inevitable pode ser compreendido como um esforço de “profanação” dos limites entre as diferentes manifestações artísticas.

7 Abstract

SANTOS, William Garcia dos. Andy Warhol e o

A Profanação dos Valores Artísticos na Obra de

Desenvolvimento do Campo Cultural Norte-Americano nas

Décadas de 1950 e 1960. Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes / Instituto de Humanidades, 2012. Trabalho de Conclusão de Curso (Pós-Graduação em História Contemporânea).

This paper discusses issues related to society and American culture in the 1950s and 1960s. We studied the society and the economy of the United States after the war, and analyze the cultural field of the country during this period. In this sense, we seek to highlight the ruptures of the canons established by Andy Warhol and the individuals connected to the Factory studio and how the spectacle Exploding Plastic Inevitable can be understood as an effort "profanation" of the limits between different art forms.

8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................................9 CAPÍTULO I – SOCIEDADE E CULTURA NOS ANOS DOURADOS DO CAPITALISMO (1945-1973)....................................................................................................................................13 CAPÍTULO II – AS TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO CULTURAL NORTE-AMERICANO NAS DÉCADAS DE 1950 E 1960.................................................................................................21 2.1 On the Road: A Geração Beat e a Emergência de Novos Valores Culturais..................21 2.2 Rock Around the Clock: O Rock and Roll e a Cultura Jovem dos Anos 50...................28 2.2.1 Twist And Shout: A “Invasão.............................................................................35 2.3 Da Action Painting à Pop Art: As Artes Plásticas nos Estados Unidos no Pós-Guerra..39 CAPÍTULO III – A PROFANAÇÃO DOS CÂNONES ARTÍSTICOS NA PRODUÇÃO DE ANDY WARHOL E DA FACTORY............................................................................................47 3.1 Andy Warhol e a Construção do Artista Pop .................................................................47 3.2 The Velvet Underground and Nico: o Rock Para Além do Yeah, Yeah, Yeah..............57 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................................66

9 INTRODUÇÃO As décadas de 1950 e 1960 foram um período de intensas transformações nas sociedades ocidentais desenvolvidas, nos países cujos governos se proclamavam socialistas e no então denominado “terceiro mundo”. Estas mudanças eram de ordem política, social, econômica e cultural. Apesar de não considerarmos a realidade como sendo marcada pela fragmentação entre os diferentes níveis que enumeramos, procuraremos estudar neste trabalho o campo cultural 1 norte-americano no pós-guerra. Tentaremos, assim, compreender quais fatores levaram ao desenvolvimento de novas linguagens, que redundaram no desenvolvimento da pop art e na elaboração de produções coletivas como o espetáculo Exploding Plastic Inevitable, concebido pelo artista plástico e cineasta Andy Warhol e pela banda de rock and roll The Velvet Underground. Consideramos necessário para tal análise estudar as condições sócio-econômicas dos países capitalistas desenvolvidos no pós-guerra. Este período, chamado por muitos historiadores de “Anos Dourados do capitalismo”, foi marcado por um grande crescimento econômico que foi acompanhado pelo evidenciamento de muitas contradições existentes nestas sociedades. No caso dos Estados Unidos, sobre o qual nos debruçaremos com mais atenção, estas discrepâncias são manifestas, como podemos notar nas lutas de igualdade dos direitos civis levadas a cabo pelos negros norte-americanos, no crescimento do movimento feminista e nos protestos contra a guerra do Vietnã. Muitas das manifestações culturais elaboradas neste período também demonstram um caráter crítico em relação a padronização dos costumes e ao conservadorismo da sociedade americana, representado pela chamada “caça às bruxas”, levada a cabo pelo “Comitê de 1

Compreendemos a noção de campo a partir de Pierre Bourdieu. “Os campos de produção cultural propõem, aos que neles estão envolvidos, um espaço de possíveis que tende a orientar sua busca definindo o universo de problemas, de referências, de marcas intelectuais (frequentemente constituídas pelos nomes de personagens-guia), de conceitos em “ismo”, em resumo, todo um sistema de coordenadas que é preciso ter em mente – o que não quer dizer consciência – para entrar no jogo. [...] Esse espaço de possíveis é o que faz com que os produtores de uma época sejam ao mesmo tempo situados, datados, e relativamente autônomos em relação às determinações diretas do ambiente econômico e social [...]”. BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. p.53.

10 Atividades Antiamericanas”, liderado pelo senador republicano Joseph McCarthy. Neste sentido, procuramos entender o desenvolvimento do movimento literário beat, do ritmo musical rock and roll e da pop art, pois desempenharam um papel fundamental no questionamento aos cânones e valores estabelecidos. A abordagem que adotamos para tal estudo se baseou em tentar compreender a ação de certos indivíduos na constituição destes fenômenos sociais e o modo como estes interagiram com os seus pares e instituições no campo em que atuavam. Procuramos analisar tais aspectos evitando a interpretação de que a “vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma 'intenção' subjetiva e objetiva [...]” 2. O historiador italiano Giovanni Levi estabelece uma tipologia das formas de abordagens historiográficas das biografias. Neste sentido, nosso estudo se aproxima do que ele denomina de prosopografia. Levi afirma que segundo esta análise “os elementos biográficos que constam das prosopografias só são considerados historicamente reveladores quando têm alcance geral” 3, o que não é necessariamente o nosso caso, pois também levamos em conta as peculiaridades individuais que nos permitem compreender o grau de possibilidades e limitações aos quais estão sujeitos os indivíduos na sociedade estudada e no âmbito em que atuavam. Nos aproximamos de tal procedimento de modo análogo ao que o historiador italiano estabelece citando Pierre Bourdieu: “o estilo próprio de uma época ou de uma classe”, e o que diz respeito à “singularidade das trajetórias sociais”: “na verdade, é uma relação de homologia, isto é, de diversidade na homogeneidade, que reflete a diversidade na homogeneidade característica de suas condições sociais de produção e que une os habitus singulares dos diferentes membros de uma mesma classe. Cada sistema de disposições individuais é uma variante estrutural dos

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BOURDIEU, Pierre. Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J (Org.). Usos e Abusos da História Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p.184. 3 LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J (Org.). Usos e Abusos da História Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 174.

11 demais (…), o estilo pessoal não é senão um desvio em relação ao estilo próprio de uma época ou de uma classe”4.

Nossa análise também irá recair sobre a análise da trajetória e da produção artística de Andy Warhol. O artista plástico norte-americano articulou, em grande medida, as referência elaboradas pelos movimentos estudados. Para compreendermos as posições ocupadas por Warhol no campo cultural dos Estados Unidos nos anos 50 e 60 utilizamos a noção de trajetória definida por Pierre Bourdieu da seguinte forma: A análise crítica dos processos sociais mal analisados e mal dominados que atuam, sem o conhecimento do pesquisador e com sua cumplicidade, na construção dessa espécie de artefato socialmente irrepreensível que é a “história da vida” […] não é em si mesma um fim. Ela conduz à noção de trajetória como série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações. […] Os acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo considerado. O sentido dos movimentos que conduzem de uma posição a outra (de um posto profissional a outro, de uma editora a outra, de uma diocese a outra etc.) evidentemente se define na relação objetiva entre o sentido e o valor, no momento considerado, dessas posições num espaço orientado. O que equivale dizer que não podemos compreender a trajetória […] sem que tenhamos previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado – pelo menos em certo número de estados pertinentes – ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço de possíveis5. 4

BOURDIEU, Pierre apud LEVI, Giovanni. Usos da Biografia. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J (Org.). Usos e Abusos da História Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p. 174. 5 BOURDIEU, Pierre. Ilusão Biográfica. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J (Org.). Usos e Abusos da História Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. p.189, 190.

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Outra referência que utilizaremos para estudar a obra de Andy Warhol é a do filósofo italiano Giorgio Agamben. Consideramos que o conceito de “profanação” se aplica à obra de Warhol em diversos sentidos e demonstram o quanto o artista norte-americano estava questionando cânones consolidados pela modernidade e buscando assim uma alternativa a valores “sacralizados” pela arte nos últimos séculos. Ao fazer esta operação Andy não estava apenas levantando problemas relativos ao âmbito artístico-cultural, estava pensando em questões reativas à sociedade norte-americana das décadas de 1950 e 1960. A esse respeito, considerava que comprar é muito mais americano que pensar e eu sou absolutamente americano. Na Europa e no Oriente, as pessoas gostam de comerciar – comprar, vender e comprar; são basicamente mercadoras. Americanos não estão interessados em vender – na verdade, eles preferem jogar fora a vender. O que eles realmente pensam é em comprar – pessoas, dinheiro, países6.

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WARHOL, Andy. A Filosofia de Andy Warhol: (de A a B e de volta a A). Rio de Janeiro: Cobogó, 2008. p. 255.

13 CAPÍTULO I – SOCIEDADE E CULTURA NOS ANOS DOURADOS DO CAPITALISMO (1945-1973) Consideramos que para compreender o campo cultural norte-americano 7 na década de 1960 devemos levar em consideração aspectos políticos e sócio-econômicos do período em questão. O historiador inglês Eric Hobsbawm, por exemplo, considera o período entre o fim da Segunda Guerra Mundial e 1973 os “Anos Dourados”, especialmente no que se refere aos países capitalistas desenvolvidos8. O autor afirma que “durante os anos 50 [...] muita gente sabia que os tempos tinham de fato melhorado, especialmente se suas lembranças alcançavam os anos anteriores à Segunda Guerra Mundial”9. Hobsbawm, no entanto, pondera que este período para os Estados Unidos não foi tão excepcional quanto em outras regiões, pois nestas décadas o país apenas continuou sua expansão dos anos da guerra, enquanto que a Europa Ocidental e o Japão partiram de uma base bem menor para o seu desenvolvimento no período, tendo em vista, que foram áreas diretamente afetadas pelo conflito. Os Estados Unidos, porém, possuíram durante todo o período dos Anos Dourados mais de 50% do capital entre os países capitalistas avançados e era responsável por mais da metade de sua produção10. Hobsbawm considera que o país era o modelo de sociedade capitalista e durante estas décadas espalhou o seu padrão de produção em massa fordista para outras regiões do planeta e para outros setores – o autor utiliza como exemplo o comércio das junk foods, representado pela rede de lanchonetes McDonalds. O estúdio Factory11 que analisaremos, em menor medida, também segue esta tendência de divisão do trabalho, com a especialização de tarefas e não por 7

Utilizamos os adjetivos “americano” ou “norte-americano”, pois é desta forma que os indivíduos nos Estados Unidos se referem a si próprios. Atualmente o uso de tais termos está ligado ao imperialismo deste país no continente, porém é desta forma que os próprios ingleses se referiam aos seus colonos, como em documento do primeiro-ministro da Grã-Bretanha de 1774, no qual afirma que “os americanos cobrem de piche e pena seus súditos, saqueiam seus comerciantes, queimam seus navios (...)” (Reid, Constitutional History, 13. The Parliamentary History of England: From the Earliest Period to the Year 1803 (London, 1813) 17:1280–1281.). 8 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 253. 9 Ibidem, p. 253. 10 Ibidem, p. 270. 11 O Dicionário Larousse define “fábrica” como o equivalente de “factory” em português. (Dicionário Larousse Inglês-Português, Português-Inglês: mini. 1. ed. São Paulo: Larousse do Brasil, 2005. p. 65).

14 acaso recebeu este nome. Ademais, uma série de serviços antes destinados a uma pequena parcela da população, passaram a ser usufruídos por um número maior de consumidores12. O historiador inglês afirma que “o que era antes um luxo tornou-se o padrão de conforto desejado, pelo menos nos países ricos: a geladeira, a lavadora de roupas automática, o telefone”13. Nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, o crescimento econômico parecia ser impulsionado pela revolução tecnológica. O uso de materiais sintéticos, conhecidos como “plásticos” aumenta, a indústria química, em grande medida ligada a produtos de higiene, se expande e uma série de produtos provenientes destas transformações tecnológicas se tornam acessíveis aos mercados consumidores, principalmente nos países capitalistas desenvolvidos, como foram os casos da televisão, dos discos de vinil (surgidos em 1948), das fitas e dos equipamentos de fotografia e vídeo14. Tais utensílios entraram de tal modo no cotidiano dos indivíduos daquele período, que Andy Warhol chegara a afirmar o seguinte: A aquisição do meu gravador de fita (em 1964) realmente acabou com qualquer vida emocional que eu pudesse ter, mas fiquei contente por essa vida ir embora. Nunca mais foi problema, porque um problema significava apenas uma boa fita, e quando um problema se transforma numa boa fita não é mais um problema. Um problema interessante era uma fita interessante. Todo mundo sabia disso e representava para a fita. 15

Obviamente, o pintor exagerou no que se refere ao impacto da aquisição deste aparelho em sua vida (Warhol realmente registrou horas de gravações na Factory), porém é possível verificar a importância de tais transformações geradas pelo uso de tais utensílios através das considerações de Andy. Hobsbawm afirma que tais condições, dentre outros fatores, foram geradas pelo compromisso político estabelecido pelos governos com o pleno emprego e, menor medida, com a 12

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 259. Ibidem, p. 259. 14 Ibidem, p. 261. 15 WARHOL, Andy. A Filosofia de Andy Warhol: (de A a B e de volta a A). Rio de Janeiro: Cobogó, 2008. p. 41. 13

15 diminuição das desigualdades econômicas através de ações ligadas à seguridade social e previdenciária16. Estas condições foram principalmente proporcionadas pelas crescentes rendas públicas, levando à existência de “uma economia de consumo de massa”17. Fatores políticos estavam relacionados a esta ampliação dos gastos sociais, pois os primeiros anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial foram dominados por governos reformistas, como foi o caso do governo democrata (de tendências “rooseveltianas”18) nos Estados Unidos e do domínio dos social-democratas na Europa Ocidental. Mesmo na década de 1950, que não presenciou um domínio tão patente dos reformistas, com a presença de inúmeros governos conservadores nos países capitalistas desenvolvidos, houve a manutenção do consenso em torno da importância da seguridade social. A década de 1960 acompanhou uma guinada política à esquerda devido, entre outros fatores, à supremacia do keynesianismo em relação ao liberalismo econômico e ao aparecimento dos Estados de bem-estar – com investimentos em seguridade social, manutenção da renda e em educação19. Eric Hobsbawm afirma que “a política das ‘economias de mercado desenvolvidas’ parecia tranquila, se não sonolenta”20. Toda a “excitação” política existente nestes países se devia à ameaça comunista e às crises internas geradas por algumas ações imperialistas (tentativa de ocupação do Canal de Suez em 1956 pela Grã-Bretanha; a Guerra na Argélia envolvendo a França, entre 1954 e 1961; e a Guerra do Vietnã levada a cabo pelos Estados Unidos). O historiador inglês, considera que por conta desta situação as revoltas estudantis de 1968 surpreenderam políticos e intelectuais mais velhos21. A respeito destes movimentos, Hobsbawm faz uma observação interessante sobre as condições que levaram a sua deflagração: A rebelião estudantil foi um movimento fora da economia e da política. Mobilizou um setor minoritário da população, ainda mal reconhecido como um grupo definido na vida 16

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 264. Ibidem, p. 277. 18 Ibidem, p. 277. 19 Ibidem, p. 278. 20 Ibidem, p. 279. 21 Ibidem, p. 279. 17

16 pública, e – como a maioria de seus membros ainda estava sendo educada – em grande parte fora da economia, a não ser como compradores de discos de rock: a juventude (classe média). Seu significado cultural foi muito maior que o político, que foi passageiro – ao contrário de tais movimentos em países do Terceiro Mundo e ditatoriais 22.

O historiador inglês subestima a dimensão política dos eventos de 1968. Maria Paula Araujo destaca que a filósofa Hannah Arendt afirma que tais movimentos, na verdade, desprezavam as formas tradicionais de fazer política23 e observa que muitos dos seus líderes eram militantes dissidentes dos partidos de esquerda tradicionais 24. Hobsbawm também relaciona tais rebeliões aos jovens, que participaram de outra importante transformação no período dos Anos Dourados; as mudanças na cultura popular, agora predominantemente jovem25. Os Anos Dourados presenciaram grandes transformações culturais e comportamentais. A família, tal qual era concebida anteriormente, passou por profundas mudanças, especialmente nas décadas de 1960 e 1970. Neste período ocorreu uma enorme “liberalização tanto para os heterossexuais (isto é, sobretudo para as mulheres, que gozavam de muito menos liberdade que os homens) quanto para os homossexuais, além de outras formas de dissidência culturalsexual”26. Além disso, diversos setores reconheceram oportunidades com a ascensão dos jovens enquanto atores sociais conscientes de si, como foi o caso da indústria fonográfica, especialmente com a emergência do rock and roll. Segundo Hobsbawm, a cultura juvenil passou a ser dominante nos países capitalistas desenvolvidos, pois os indivíduos nesta faixa etária possuíam um grande poder de compra e passaram também a ter uma vantagem sobre outros grupos em decorrência de sua maior adaptação às mudanças tecnológicas27. 22

Ibidem, p. 280. ARAUJO, Maria Paula. Disputas em torno da memória de 68 e suas representações. In: 1968: 40 anos depois: história e memória. Carlos Fico; Maria Paula Araujo (Org.). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010. p. 18. 24 Ibidem, p. 20. 25 HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 317. 26 Ibidem, p. 316. 27 Ibidem, p. 320. 23

17 A cultura jovem possuía um caráter internacional, sua mais popular expressão musical (o rock ‘n’ roll) era difundida em diversas regiões do mundo. Esse aspecto também demonstrava a hegemonia dos Estados Unidos no âmbito da cultura popular. Este predomínio norte-americano não representava uma novidade nos Anos Dourados, pois nas décadas anteriores se manifestava principalmente através da indústria cinematográfica. Ademais, a moda foi uma área na qual estes valores se faziam presentes, especialmente através de seu principal ícone, o blue jeans, antes restrito às camadas populares americanas. A cultura popular passou a ser consumida pelos mais diversos setores da população, o que, segundo Eric Hobsbawm, é uma característica presente em períodos anteriores, principalmente pelo que chama de “forte impacto das artes plebeias” 28. A partir da década de 1950, no entanto, a absorção de elementos populares entre os jovens de setores mais privilegiados economicamente da população alcançou uma dimensão inexistente nos decênios anteriores, especialmente através do rock and roll, que utilizava elementos do “blues, gospel, big band jazz, folk, country e rhythm and blues”29, a maioria dos quais eram identificados com a população negra dos Estados Unidos. A sonoridade do rock era a tal ponto relacionada à da música negra, que quando o primeiro compacto de Elvis fora lançado pelo DJ Dewey Phillips, da rádio WHBQ de Memphis, o apresentador perguntou a Presley em qual colégio estudara, uma forma de informar aos ouvintes locais sobre a cor da pele do cantor30 (isso porque nos Estados Unidos fortemente marcados pela segregação racial, a L.C. Humes High School era uma escola de brancos31). Após a Segunda Guerra Mundial os americanos viam o seu país como baluarte da liberdade e democracia. De certa forma o poderio militar norte-americano, somado a sua condução no enfrentamento ao comunismo soviético, dava aos Estados Unidos um papel de liderança entre os países capitalistas desenvolvidos. Um dos fatores que contribuíram para a 28

Ibidem, p. 323, 324. FRIEDLANDER, Paul. Rock and roll: uma história social. 5. ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 31. 30 That's All Right Mama. In Wikipédia: a enciclopédia livre. Disponível em
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