A proibição do sacrifício em religiões de matriz africana e o genocídio cultural

June 19, 2017 | Autor: Cauê Machado | Categoria: Afro-Brazilian Culture, Antropologia da religião, Religiões Afro-Brasileiras
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A proibição do sacrifício em religiões de matriz africana e o genocídio cultural
Cauê Fraga Machado (Doutorando PPGAS-MN/UFRJ)
Marcio Goldman (1984) já havia elaborado no âmbito da antropologia que o sacrifício e a possessão constituem os pilares das religiões de matriz africana. O antropólogo Norton Corrêa afirma, em artigo recente, que "proibir o sacrifício de animais, o eixo da religião, é aniquilar o modo de vida de seus seguidores" (2015). Consultando apenas esses dois autores e qualquer pai ou mãe de santo do batuque gaúcho é possível chegar a conclusão simples – mas ignorada pelos entusiastas da "causa animal" e do Projeto de Lei (PL 21/2015) de autoria da Deputada Regina Becker Fortunati (PDT) – de que sem sacrifício não existe religião de matriz africana.
Importante lembrar que por de matriz africana penso, para distinguir da umbanda de linha branca, religiões que trouxeram um panteão e com ele rituais que aqui no Brasil se modificam, sem, contudo, perder seus pilares (possessão e sacrifício), sua condição mesma de existência. A umbanda, grosso modo, criada aqui no Brasil, com panteão de entidades nascidas em solo brasileiro, realiza rituais que não incluem sacrifícios. Mas umbanda não é batuque. Batuque não pode "evoluir" para umbanda, evolução que muitos reclamam: "algumas religiões afro-brasileiras evoluíram e não fazem mais sacrifícios", dizem. Não, Janaína, por exemplo, não é uma "evolução possível" de Iemanjá. São deidades distintas, de religiões diferentes.
Os religiosos gritam pelo direito a sua liberdade de culto e denunciam o racismo presente na proibição do sacrifício e na ideia de abate humanitário, o que também não é levado em conta pelos "ativistas" e pela mídia tendenciosa. Abate humanitário, que por sinal, os religiosos já praticam antes mesmo de tal noção existir.
No presente momento em que os religiosos são atacados PL (21/2015) é urgente falar de ponto de vista um pouco mais radical sobre a temática face ao campo de disputas entre religiosos e "defensores dos animais" e seu reflexo na normatização das práticas rituais através de leis. (Aliás, novos projetos de lei em diferentes municípios não param de se proliferar, como a proibição do uso de tambores – outro elemento sem o qual as religiões de matriz africana não podem existir – discutida em Viamão/RS).
Anjos (2015) nos brindou com a belíssima descrição de uma co-participação de humanos, animais e divindades no ato do sacrifício, onde todos se doam, compartilhando sofrimento, para o renascimento no santo. No mesmo texto o autor traça a linhagem da PL (21/2015) que vai da Câmara dos Deputados até o período colonial, demonstrando as raízes colonialistas embutidas nesse projeto de lei. Gostaria de acrescentar que, além do racismo e do colonialismo, a lei em questão faz parte de um antigo e ininterrupto projeto genocida das populações e/culturas minoritárias, sejam elas de matriz africana, ou as culturas ameríndias. O Projeto de Lei se enquadra na esteira do espólio de terras de populações tradicionais, na segregação sociocultural, na dispersão dos grupos étnicos, tudo a fim de acabar com suas culturas.
Ora, se comer sangue e vísceras de animais imolados é o que dá vida às divindades afro-brasileiras, criando simultaneamente assentamentos e filhos de santo, a extinção de tal ritual é sinônimo de seu fim. É a morte, o extermínio, o genocídio de incontáveis divindades e seus filhos que ainda não nasceram, ou foram feitos, assim como pode significar a morte de assentamentos antigos que deixariam de comer sua principal fonte nutritiva. Isso pode, em último caso, acarretar não apenas a morte de uma deidade de origem africana, mas a morte de seus filhos, que como mostram diversas descrições etnográficas são duplos de suas divindades (e vice-versa), numa relação de feitura e nascimentos mútuos. E sem sacrifício, nem morrer em paz os religiosos poderiam, pois seus ritos fúnebres também envolvem sacrifícios. Trata-se realmente de uma das mais perversas formas de racismo-genocida.
Além de tudo, inverte-se valores, fazendo de pais e mães de santo (sacerdotes de mais alto nível na hierarquia da religião), "assassinos" – como se pode ver em cartazes e ouvir nos gritos em manifestações – eles que criam e cuidam da tantas vidas... Fazem dos autores e defensores do projeto de lei os maiores humanistas, eles tão evoluídos, mas incapazes de admitir que estão prestes a aniquilar não apenas modos de vida, mas as próprias vidas em mais um grande genocídio cultural.
E a semelhança entre os antigos bailes de corda (com negros de um lado e brancos do outro) e a divisória colocada entre o "povo do axé" e os "defensores dos animais" nas últimas manifestações não deve ser mera coincidência.

Referências
ANJOS, José Carlos dos. (2015). Os sentidos do sacrifício nas religiosidades afro-brasileiras. In: http://www.ufrgs.br/ner/index.php/estante/visoes-a-posicoes/69-os-sentidos-do-sacrificio-na-religiosidade-afro-brasileira.
CORRÊA, Norton. (2015). O sacrifício de animais no batuque. In: http://wp.clicrbs.com.br/opiniaozh/2015/04/04/artigo-o-sacrificio-de-animais-no-batuque/
GOLDMAN, Marcio. (1984). A possessão e a construção ritual da pessoa no candomblé. (tese de doutorado), PPGAS-MN/UFRJ.
http://www.radioguaiba.com.br/noticia/projeto-que-proibe-sacrificios/




Agradeço Oiya Gbemi (Luana Emil) pelas informações precisas e altamente necessárias sobre o debate em torno do PL e sobre as manifestações que acompanham ele.




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