A propósito do V Colóquio sobre Línguas e Culturas Pré-Romanas da Península Ibérica

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A Propósitodo V Colóquio sobre Línguas e Culturas Pré-Romanas da Península Ibérica A. Marques de Faria Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico c

A recente publicação das Actas do V Coloquio sobre lenguas y culturasprerromanas de la Penfnsula Ibérica. organizadas pelos professores JÜfgenUntermann e Francisco Villar, numa edição da Universidade de Salamanca, não podia deixar de ser assinalada. Tendo os col6quios ant~riores sido sucessivamente realizados em Salamanca (1974), Tübingen(1976), Lisboa (1980) e em Vitoria (1985), coube a vez à cidade de Col6nia de, em Novembro de 1989, acolher alguns dos mais reputados especialistas nas matérias que têm servido de'tema a estes encontros. À semelhança das actas dos col6quios anteriores, também as que acabam de ser publicadas, e que passaremos a comentar, constituem uma obra de grande qualidade, traduzindo a situaçãoactualdos estudosrespeitantesàs culturase às línguasda Hispâniapré-romana. O primeiro trabalho, da autoria de M. Almagro Gorbea (pp. 21-48), versa sobre o sistema palacial na Península Ibérica, merecendo especial relevo os resultados das escavações realizadas no palácio/santuário de Cancho Roano (Badajoz) ao longo da década de 80. O autor relaciona este tipo de estrutura com a arquitectura oriental e com a ideologia dinástica subjacente, que serviria de inspiração à monarquia hereditária tartéssica, reflectida em conhecidos relatos míticos. Estranhamos que, sobre esta questão, M. Almagro Gorbea se limite a citar os trabalhos de J. C. Bermejo, L. García Iglesias e de L. García Moreno (p. 38, nota 95), sem que se preocupe em destrinçar as respectivas teses. Aliás, o que separa estes dois últimos autores do primeiro é precisamente a intenção por estes manifestada de questionar a historicidade de tais mitos, apenas recolhidos nalguma historiografia helenística,que Bermejo considera terem tido um fundo real. Ao interpretar o santuárioproto-hist6rico

de Alhonoz (Sevilha)

-

considerado

por López Palomo, responsável pelas escavações, um centro de distribuição de cerâmica ibérica - como um armazém palacial (p. 40), M. Almagro não teve em conta as incontomáveis semelhanças existentes entre este dep6sito votivoe o de Garvão, que dificilmente admite uma interpretação diversa da que foi propugnadapelos respectivos escavadores; ambos devem constituir dep6sitos votivos secundários, instalados em santuários dedicados a uma ou a várias divindades femininas. Segue-se um trabalho de F. Chaves e de M. L. de la Bandera, consagrado às pouco conhecidas cerâmicas figurativas orientalizantes (pp. 49-89). Sem pôr em

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-FAZER E DESFAZER A HISTÓRIA

causa OSevidentes influxos orientais, patentes não só na iconografia utilizada mas também na tipologia dos suportes cerâmicos, importa assinalar que a respectiva área de distribuição (p. 51, Fig. 1), correspondente ao vale do Guadalquivir, não se coaduna com a atribuição às colónias fenícias instaladas no litoral de um papel relevante na divulgação de tais objectos e da temática neles ilustrada. Por outro lado, continuam a faltar as provas arqueológicas que fundamentem a colonização do hinterland meridional por gentes oriundas do Próximo Oriente. A Oretânia entre os séculos VIe rn a.c. é o tema tratado por M. P. García-Gelabert e por J. M. Blázquez (pp. 91-109). A maior parte da comunicação é dedicada à síntese dos resultados obtidos em diversas intervenções arqueológicas em Cástulo, sob a direcção do segundo signatário. Entre as ideias aqui defendidas, que retomam, grosso modo. muito do que já se conhecia de anteriores escritos dos autores, valerá a pena salientar a que, a propósito do chamado santuário do Cerro de La Muela, postula o carácter nacional da religião oretana (p. 106). Parece-nos, contudo, algo anacrónica a existência de uma consciência nacional em datas tão recuadas, ainda que exteriorizada sob a forma de práticas cultuais. Importa ainda observar que a existência do templo pré-ibérico de La Muela foi recentemente posta em causal. Depois de F. Jordá se debruçar sobre as navegações pré-históricas no Atlântico, que, segundo ele, se vêem reflectidas nas gravuras rupestres de Laja Alta (Cádis) (pp. 111-126), surge um trabalho de T. Júdice Gamito, no qual é defendida a origem celta de Tartessos(p. 133). Sobressai no referido estudo a publicação de uma série de datas (p. 132) que parecem comprovar a anterioridade dos povoados de Segóvia (Elvas) e Baldio (Arronches) relativamente às necrópoles da Favela Nova e do Pego (Ourique), ambas pertencentes à chamada Cultura do Sudoeste. Esta caracteriza-se, grosso modo, pela existência de necrópoles, constituídas por sepulturas de cistas rectangulares de pedra, assinaladas por estelas de xisto, gravadas com o recurso a um sistema de escrita oriundo do Mediterrâneo oriental. Aquelas necrópoles encontram-se sobretudo no interior do Algarve e no distrito de Beja, apresentando os objectos nelas recolhidos, também de procedência ou de influência oriental, uma cronologia que não ultrapassa os finais do século V a.C. Contra uma origem celta de Tartessos parece colocar-se Ph. Kalb, ao relatar a história da utilização do termo «celta» na investigação arqueológica sobre a Península Ibérica (pp. 143-157). De modo prudente, esta investigadora duvida da validade do registo arqueológico isoladamente considerado, como meio de identificar a origem étnica dos povos que habitaram as regiões meridionais da Península Ibérica (pp. 144, 150), ao mesmo tempo que questiona o valor das fontes escritas a que muitas vezes se recorre no intuito de serem encontradas as provas insofismáveis da presença celta nas mesmas áreas (p. 154). A seguir (pp. 159-188), E. Llobregat tece importantes considerações em tomo da arte e da cultura ibéricas, alertando para factores de carácter metodológico, susceptíveis de questionar grande parte do que tem sido escrito a respeito da origem da arte ibérica e das alegadas influências que sobre ela terá exercido a arte grega. 146

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Reveste-se igualmente de bastante interesse o texto da conferência proferida por M. Pellicer(pp. 189-207), que traça um panorama geral da arqueologia proto-hist6rica da Andaluzia e do Sul do território português. Várias teorias que estavam em vias de se transformar em dogmas são, neste artigo, objecto de desmontagem, desde a colonização fenícia do interior Sul da Península (pp. 190-191) até à extracção indo-europeia dos habitantes de Tartessos, ideia esta alicerçada na origem indo-europeia do nome Arganthonios, monarca tartéssico dado a conhecer por Heródoto. Acontece que, assim como o top6nimoTartessos reflecte uma helenização linguística, pelo menos ao nível do sufixo, também Arganthonios deverá ser uma adaptação à fonética grega, se não for uma tradução para esta língua de um nome pessoal não indo-

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-europeu (p. 192)2. Em relação à Cultura do Sudoeste, não é fácil provar que esta se tenha estendido para além dos finais do século V a.C. (p. 203). V. Pingel encerra a secção respeitante à pré-história e à arqueologia com um estudo sobre as esteJas decoradas do Sudoeste (pp. 209-231), confrontando-as, sempre que possível, com os vestígios materiais dos objectos que elas ilustram. A ourivesaria proto-hist6rica decorada com gravuras, alvo recorrente da atenção do autor, é também trazida à colação, na tentativa de identificar a cultura material e a área de influência do

povo gravadordas estelas.

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A introdução e o uso da escrita no vale médio do Ebro é o tema do valioso trabalho apresentado por F. Beltrán (pp. 235-272). Sendo um dos mais extensos entre os que figuram nas presentes actas, não é de admirar que algumas das afmnações produzidas sejam motivo de controvérsia. Não será certamente o caso da alusão a supostas emissões monetárias bilingues cunhadas em Emporia( e) (p. 245, nota 27), que, afmal, nunca existiram. Já quanto às legendas toponímicas das moedas ibéricas e celtibéricas, independentemente de se 'saber se elas eram causa ou reflexo do processo de alfabetização dos indígenas, não noS parece congruente defender, por um lado, que tais legendas constituem o principal factor diferenciador das emissões de cada uma das cecas (p. 259) e, por outro, afumar que o reconhecimento dos poucos signos componentes do nome de uma ceca não implica necessariamente saber ler (p. 260). «Dos de *Seteis», tradução aventada por F. Beltrán para a legenda monetária seTeisKen (p. 261), é apenas uma das duaship6teses possíveis, dado que podemos estar perante um nominativo do plural. Além disso, a forma latina Sedetani coloca grandes entraves à leitura daquele top6nirno como *Seteis ou *Sedeis'. O s deverá certamente pertencer ao sufixo ibérico -sKen, testemunhado em diversas legendas monetárias (uRKesKen, iKalesKen, etc.). A tratar-se de um genitivo, a tradução mais plausível seria «dos de *Sede». Ainda a prop6sito de legendas monetárias, convirá esclarecer que, diversamente dos outros exemplos apontados (p. 262, nota 75), que são top6nimos, TiKirsKine é

um nome pessoal.

'

O texto da conferência de F. Beltrán é seguido de uma curta comunicação de G. Chic sobre as estelas decoradas do Sudoeste (pp. 273-279), assunto que, sob outro prisma, já havia sido abordado por V. Pingel (v. supra). O tema é agora tratado com

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o recurso a conceitos tomados da antropologia cultural e a passagens de textos clássicos com algum sabor etnográfico. Tão-pouco são esquecidos os testemunhos arqueol6gicos dos bens de prestígio que as esteJas perpetuaram. Em relação à cronologia das estelas, assunto que introduz o trabalho em questão (p. 273), importaria saber qual a razão que levou G. Chic a situá-las nos meados do primeiro milénio a.C., contrariando a tese predominante que lhes atribui uma datação nunca posterior ao século VI a.C. Regressamos à epigrafia com um breve ensaio de J. d'Encarnação (pp. 281-287) sobre a interpretatio religiosa. Nele, o autor alerta para as cautelas de que se devem rodear aqueles que investigam a religião lusitano-romana com base nas inscrições, mostrando, através de alguns exemplos, a variedade de obstáculos que se levantam quer à detecção das influências sofridas pelas populações autóctones ante a introdução de deuses e de cultos al6genos, quer à avaliação dos efeitos que a religiosidade indígena terá produzido nas crenças e nos cultos introduzidospelo invasor romano. O estudo que se segue, da responsabilidade de G. Fatás, versa sobre a conquista romana dos Pirenéus Meridionais (pp. 289-315). Ao descrever a actividade de Sert6rio naquela região, durante a resistência contra as tropas de Pompeio, Fatás identifica Calagurris como uma. das bases do exército rebelde, fazendo derivar aquele top6nimo de * KalaKoRiS (p. 300 e nota 26); todavia, tanto quanto sabemos, a documentação conhecida cauciona somente o nome dos respectivos habitantes: KaIaKoRiKoS. Aliás, estamos persuadidos de que a introduçãoda sibilante final em Calagurris é fruto da latinização do top6nimo, com vista a facilitar a respectiva declinaçã04; refIra-se que as primeiras emissões monetárias latinas desta ceca ostentam ainda a forma CALAGVRRI(RPC1431)5. O único trabalho de natureza numismática, assinado por M. P. García-Bellido, tem por tema a hist6ria monetária da Ibéria durante a Segunda Guerra Púnica. Muito se tem avançado no conhecimento das emissões monetárias daquela época, em boa parte graças aos importantes estudos empreendidos pela autora. No entanto, a recente publicação de muito material inédito, integrável nesta conjuntura, aconselha alguma prudência nas conclusões a extrair da análise respectiva. Eis algumas observações ao que pode ser lido nestas páginas e que consta de outros trabalhos da autora, quase todos citados nas notas de rodapé: Sobre o nome da castulonense [milce (p. 323, nota 15), convirá conhecer a posição de J. de HOZ6,com a qual já manifestámos a nossa concordância'. Importa esclarecer, por outro lado, que M. L. Albertos8 qualificou sucessivamente aquele nome pessoal como indo-europeu (p. 268), celta (p. 271) e, por fim, como ibérico (p. 289). Em trabalho posterior ao citado por García-Bellido, aquela investigadora atribuiu-lhe uma origem indo-europeia9. Do ponto de vista metodol6gico, não se nos afigura pertinente a inclusão das séries VIIIe ]X de VillarongalOna mesma ceca, pelo simples facto de algumas peças da série ]X terem sido cunhadas sobre as da VIII (p. 323, nota 16); sem querermos duvidar daquela atribuição, a recunhagem pode, em termos genéricos, constituir mais facilmente um argumento em favor da distinção de cecas.

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A colonia latina de Carteia ostenta nas suas amoedações nomes de magistrados indubitavelmente itálicos, numa confinnação do que se sabe acerca das circunstâncias da sua fundação. Estranhamos, por isso, que a autora veja nas abreviaturas Q. e AED., correspondentes respectivainente a Quaestor e a Aedilis(les). uma tradução romana de cargos públicos de origem púnica (p. 325, nota 20). Apesar das conjecturas formuladas porGarcía-Bellido, sem bases mais consistentes do que alegadas afmidades ao nível do significado das legendas e da orientação dos signos que as compõem (pp. 326-327), não vislumbramos qualquer razão para crer que as moedas n" 1,2,3 e 5 (est. 2) tenham sido cunhadas em Saguntum durante o domínio púnico da cidade, já que os letreiros estão escritos em ibérico e a tipologia remete preferencialmente para modelos iconográficos romanos. De facto, as cabeças de Marte (ou de Roma?) (n" 1 e 5), os touros androprósopos (n" 1 e 2), a efígie feminina com barrete frígio (n!! 5) e as cabeçaS de cavalo (n" 2, 5 e 6) apontam inquestionavelmente para protótipos romanosl1. Se a iconografia do reverso da moedan!! 9 (est. 2) deixa supor que a efígie do

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anverso represente uma divindade púnica aparentemente masculina Eshmun, segundo García-BelIido -, já não é unânime a aceitação da correspondência entre Eshmun e Esculápiol2, sendo ainda mais problemática a equivalência Eshmun-Apolol3;quererá a autora dizer que Asclépio/Esculápio e ApoIo eram confundíveis em termos iconográficos? RefIra-se ainda que o exemplar ilustrado com o n210 (est. 3) ostenta um pégaso no reverso, e não um cavalo (p. 333). A o.bra«Colonial Elites», de R. Syme, é objecto de análise por parte de M. Koch (pp. 349-360), sobretudo na parte que se refere ao protagonismo de algumas famílias no processo de romanização de diversos centros urbanos da Hispânia no período republicano. É dado particular relevo às «grandes famílias» de Noua Karthago. estudadas pelo autor noutras ocasiões. O livro em apreço prossegue com um estudo de A. Lozano (pp. 361-409), consagrado à origem e à transmissão da antroponímia grega no território hispânico, segundo os dados transmitidos por quase trezentas inscrições. O já célebre pacto de hospitalidade de Montealegre serve de pretexto a G. Pereira Menaut para proceder ao estudo de um tipo de organização suprafamiliar da área celtibérica, a cognatio (pp. 41'1-424),até há pouco conhecida de modo incorrecto por gentilitas, ou, de maneira mais prudente, por «genitivo de plural». O excelente trabalho que entretanto J. Velazal. publicou sobre a mencionada inscrição veio mostrar que as traduções até aí apresentadas - incluindo a de G. Pereira no presente estudo - enfermavam de várias incorrecções. Ressalta, pela negativa, no texto em

questão, a interpretação de Cabrumuriae de Paligo como nomes de lugar (p. 413)1$. Assinalem-se ainda mais duas observações a propósito de outras tantas ideias perfllhadas pelo autor. Estamos em crer que Magilan(i)cum deriva de um antropónimo *Magilanus<
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