A proposta da Organização dos Estados Americanos para a censura de livros brasileiros de História no auge da ditadura militar

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A proposta da Organização dos Estados Americanos para a censura de livros brasileiros de História no auge da ditadura militar Macioniro Celeste Filho1

No final da década de 1960, em plena escalada autoritária do regime militar brasileiro, sob pressão dos Estados Unidos, a Organização dos Estados Americanos propõe que os livros de História de nosso país passassem por uma revisão, para que deles fossem retiradas referências desabonadoras aos atos de nosso grande vizinho do norte. Em outras palavras, é proposta por um organismo internacional a censura aos conteúdos dos livros de História editados no Brasil. O propósito original desta censura era o controle dos livros didáticos de História destinados ao ensino primário e secundário. No entanto, os ditadores de então logo perceberam a oportunidade de censura a quaisquer outros livros de História, não importando a qual nível educacional estivessem destinados, inclusive o universitário. Como foi possível tal conjunção de interesses? Qual o caminho para que uma importante nação democrática como os Estados Unidos pudesse se articular com a ditadura brasileira, tendo como vetor a Organização dos Estados Americanos, e que dessa junção de interesses resultasse em uma proposta de censura governamental aos livros de História no Brasil? Para responder a tais questões, será necessário abordar quatro décadas das relações multilaterais brasileiras no

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Docente do Departamento de Educação da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – Faculdade de Ciências – Campus de Bauru. E-mail: [email protected]

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que concerne a tratados internacionais sobre livros de História. Como resultado, será possível entender a ratificação brasileira em 1969 da Convenção sobre o Ensino da História. Desde a década de 1920 existem tentativas de estabelecer uma cooperação entre os diversos países das Américas, com o intuito de coordenar e difundir estudos históricos das diversas nações americanas. Essa proposta toma corpo com a criação em 1928 do Instituto Panamericano de Geografia e História: “O Instituto Panamericano de Geografia e História foi criado em 7 de fevereiro de 1928, por resolução na Sexta Conferência Internacional Americana (Havana, Cuba) e estabelecido na Cidade do México. Sua função é fomentar, coordenar e difundir os estudos geográficos, históricos, cartográficos e os relativos às ciências afins, para iniciar e executar investigações e trabalhos dessa índole que solicitem os Estados membros.” [da União Panamericana].2 Cinco anos depois, na 7ª Conferência Internacional Americana, realizada em Montevidéu de 3 a 26 de dezembro de 1933, é articulada a primeira proposta de recomendações comuns à produção de livros didáticos de História por parte dos países membros da União Panamericana. Chamava-se de Convenção sobre o Ensino da História. Essa Conferência ocorreu após a interrupção dos conflitos bélicos entre Bolívia e Paraguai, conhecidos como a Guerra do Chaco. Logo após a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, o tema da paz era premente entre os governantes do mundo inteiro e crucial para quem assistiu de perto ao recente conflito entre dois dos mais pobres países das Américas. Na Conferência Internacional Americana de 1933, destacou-se freqüentemente o papel dos órgãos e tratados internacionais que tornariam as guerras desnecessárias. Para isto, segundo as palavras de L. S. Rowe – Diretor Geral da União Panamericana – a Conferência: 2

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Secretaría Ejecutiva del Consejo Interamericano Cultural. Educación, ciência y cultura em la OEA: estructura, programas y recomendaciones para su desarrollo futuro. Washington: Secretaría General de la Organización de los Estados Americanos, 1963, p. 44.

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“adotou primeiro uma resolução instando com todos os Governos que ainda não o tivessem feito para ratificarem ou aderirem aos tratados internacionais, convenções e acordos já negociados, e que se destinam a assegurar a manutenção da paz nas relações entre os países da América e com todas as nações do mundo. Entre estes instrumentos figura o Tratado para Evitar ou Prevenir Conflitos, assinado na 5ª Conferência Internacional Americana em Santiago em 1923; a Convenção Interamericana de Conciliação e o Tratado Interamericano de Arbitramento, ambos assinados em Washington, em 1929; o Tratado BriandKellogg, assinado em Paris em 1928; e o Tratado Anti-Bélico, de iniciativa da Argentina, de 1933.3” A Convenção sobre o Ensino da História insere-se originalmente nessa série de convenções, objetivando a abolição da guerra como mecanismo de solução dos conflitos internacionais. Ainda sobre a importância da paz nas Américas, em referência à 7ª Conferência Internacional Americana, William Manger – Conselheiro da União Panamericana – destacou que: “O sentimento da Conferência sobre a questão do Chaco foi expresso pelo Secretário de Estado dos Estados Unidos, Cordell Hull, na sessão de encerramento da Conferência realizada a 26 de dezembro [de 1933], quando declarou: O derramamento inútil de sangue não tem cabimento na época em que vivemos. Com as inúmeras agências para a solução pacífica de disputas entre as nações, a guerra é inútil ao mesmo tempo em que é odiosa e repulsiva, e um desafio para a sociedade organizada. A presente guerra [do Chaco] é tão deplorável como perigosa em suas conseqüências para as nações vizinhas. [...] Muito resta ainda, contudo, a fazer. As pessoas que aqui se encontram e os povos aqui representados precisam se levantar em massa e exigir que o horrível flagelo da guerra seja daqui em diante banido deste hemisfério, que a luta arma3

L. S. Rowe. Preâmbulo da Sétima Conferência Internacional Americana. Boletim da União Panamericana. Washington: União Internacional das Repúblicas Americanas, março de 1934, pp. 130-131.

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da cesse de uma vez, e que doravante não mais converta em viúva uma só mãe, em órfã uma só criança.”4 No entanto, Cordell Hull – Secretário de Estado dos EUA – manifestou que, ao recomendar a obediência a estas convenções e tratados internacionais, os EUA apresentavam a condição de privilegiar o “direito das gentes tal como é geralmente reconhecido e aceito”.5 Tal ressalva criou polêmica entre os membros da 7ª Conferência Internacional Americana. A explicação posterior desse aposto condicional aos tratados internacionais feita por William Manger – Conselheiro da União Panamericana – na publicação oficial da instituição demonstra inconsistência. A Convenção sobre o Ensino da História foi inicialmente elaborada em 1933, em Montevidéu. No entanto, compunha um arcabouço de resoluções que moviam as diversas comissões da União Panamericana entre uma conferência internacional e o encontro seguinte das delegações de seus países membros. Neste sentido: “A Conferência de Montevidéu adotou um número considerável de resoluções sobre questões sociais, cooperação intelectual, comunicações e outros assuntos semelhantes [...]. As resoluções adotadas em cada Conferência Internacional Americana constituem um programa de atividade no intervalo entre as conferências, e os esforços dedicados a este aspecto da cooperação interamericana têm contribuído em não pequeno grau para o desenvolvimento de melhor conhecimento e mais íntima compreensão entre as Repúblicas do continente.”6 No que se refere à educação e à produção intelectual: “A Conferência aprovou os estatutos do Instituto Interamericano de Cooperação Intelectual formulados pelo Congresso de Reitores, Decanos e Educadores em

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William Manger. A Sétima Conferência Internacional Americana. Boletim da União Panamericana. Washington: União Internacional das Repúblicas Americanas, abril de 1934, p. 250.

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Idem, p. 252. Grifos do autor.

6

William Manger. Obra citada, p. 256.

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Havana em 1930, e ao mesmo tempo solicitou à União Panamericana para dirigir, coordenar e sistematizar os esforços internacionais no campo da cooperação intelectual. Foi também adotada uma resolução bastante inclusiva sobre cooperação bibliográfica e outras sobre a proteção de direitos de autor (copyright).”7 É no campo das resoluções sobre cooperação bibliográfica e copyright que se insere a Convenção sobre o Ensino da História. Esta Convenção de 1933 deveria ser aprimorada e ratificada pelos países da União Panamericana, se possível até a próxima conferência internacional. O resultado da participação brasileira na elaboração da Convenção sobre o Ensino da História começou a frutificar em 1936: “Quase três anos depois, em 1936, foi constituída no Itamarati a Comissão Brasileira Revisora dos Textos de História e Geografia, que aprovou “normas” para o cumprimento do referido Convênio. Precediam-nas a declaração de que “o Governo Federal e os governos dos Estados não permitirão que nos estabelecimentos públicos de ensino, ou fiscalizados pelo poder público, sejam adotados compêndios de História e Geografia que não observem as condições seguintes...” (isto é, as “Normas”). [Elas] não chegaram a ser aplicadas, porque lhes faltou a sansão, indispensável, de um decreto que regulamentasse a execução do Convênio.”8

A Comissão Brasileira Revisora dos Textos de História e Geografia, que teve sua sessão inaugural realizada em 14 de maio de 1936, era composta por Affonso d’Escragnolle Taunay, Diretor do Museu Paulista, Emilio de Souza Doca, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Fernando Raja Gabaglia, professor de Geografia do Colégio Pedro II, Jonathas Serrano, professor de História do Colégio Pedro II, Othelo Rosa, Secretário de Educação do Rio Grande do Sul, Pedro Clamon, professor do Museu Histórico Nacional, Fon-

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Idem, p. 258.

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Guy de Hollanda. Um quarto de século de programas e compêndios de História para o Ensino Secundário brasileiro: 1931-1956. Rio de Janeiro: INEP/MEC, 1957, p. 204.

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seca Hermes e Renato Mendonça, do Itamarati.9 Foram elaboradas então seis normas para os livros didáticos de História: 1 – A História da Civilização brasileira deve ser elaborada de modo a interessar a juventude na avaliação de todos os aspectos do passado nacional. Manterão os compêndios as proporções convenientes, entre as diferentes seções em que se divide a história, a fim de que a visão parcial dos fatos não prejudique a noção global do meio físico, povo, evolução e unidade do Brasil. 2 – Os compêndios de história não podem conter comentários deprimentes de referência a povos estrangeiros. 3 – Os compêndios de história devem desenvolver os capítulos referentes às relações de paz e comércio entre o Brasil e as nações estrangeiras, notadamente americanas, dando o devido sentido histórico à solidariedade entre os povos. 4 – Os compêndios de história pátria salientarão as tradições de desinteresse e idealismo da nossa política exterior, e a coerência dos seus sentimentos de conciliação e cordialidade. 5 – Sendo a veracidade um objetivo comum da história, ela exige que a respeito das mesmas relações interamericanas destaquem atitudes, iniciativas e fatos que formam a consciência americanista da nossa civilização e constituem uma segurança dos destinos pacíficos do Novo Mundo. 6 – Considerando que os textos históricos, utilizados no ensino primário e secundário, devem ministrar à juventude o máximo de noções exatas sobre o passado do seu país, as suas sínteses excluirão sistematicamente dos temas controversos comentários e divagações, limitando-se à indicação dos fatos. Tratandose de assuntos internacionais, evitarão as qualificações ofensivas e os conceitos que atinjam a dignidade dos Estados e os seus melindres nacionais.10 Pouco mais de duas décadas depois dos debates internacionais e nacionais sobre o ensino de História, ao analisar as discussões da década de 1930 e seus resultados concretos, como os acordos bilaterais de cooperação sobre

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José Carlos de Macedo Soares. Relatório apresentado ao Dr. Getulio Vargas, Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil. Ano de 1936. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938, vol. 1, p. 139.

10 Guy de Hollanda. Obra citada, pp. 206-207.

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ensino de História entre Brasil e Argentina e também entre Brasil e México, Guy de Hollanda sintetizou a preocupação dessas tentativas incipientes para a criação de uma visão panamericana do ensino de História: “Com a hipertrofia do nacionalismo, a partir da segunda metade do século XIX, o ensino da História – na escola primária sobretudo – tem servido para alimentar atitudes que ensejam a incompreensão internacional. Esta não desaparecerá graças a uma revisão dos livros didáticos, que contêm estereótipos desfavoráveis a esta ou àquela nação, bem como confundem o nacionalismo sadio com formas nacionalistas agressivas. Mas é inegável que as tensões internacionais, nas quais a opinião pública desempenha um papel considerável, perderiam, em parte, a sua virulência, se os povos e seus dirigentes fossem educados numa escola isenta de estereótipos nacionais, ou étnicos, que geram ou contribuem para afiançar atitudes de ressentimento, desprezo ou mesmo ódio a outros países, grupos étnicos, religiões, tipos de governo e organização social etc.”11 É apropriado ressaltar que essa revisão dos livros didáticos de História não teve prosseguimento. Deve ter sido tentador aos autoritários do Estado Novo implantá-la. O que ocorreria ao ensino de História das nascentes universidades do período se a sexta norma, na qual os livros de História “excluirão sistematicamente dos temas controversos comentários e divagações, limitando-se à indicação dos fatos”, tivesse sido implementada? Ficou faltando apenas um decreto que regulamentasse a execução dessas normas. A ditadura de Getúlio Vargas não se prestou a tanto. No final da Segunda Guerra Mundial, as propostas vinculando educação e internacionalismo foram novamente realçadas: “Os nacionalismos estreitos são, manifestadamente, base inadequada à organização do mundo de pós-guerra e não se coadunam, portanto, com a educação para o pós-guerra. Acreditamos que as realidades universais exigem o desenvolvimento de cidadãos que, mantendo profunda e inabalável lealdade às suas pátrias, entendam o mundo em que vivem, apreciem o valor e a necessidade da cooperação universal, reconheçam a dignidade, a igualdade e a fraternidade

11 Guy de Hollanda. Obra citada, p. 202.

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de todas as nações, e utilizem toda a sua inteligência na busca de solução dos problemas das relações internacionais. Não compreendemos, portanto, como possa existir qualquer incompatibilidade entre a educação destinada a dar noção de responsabilidade cívica em uma sociedade livre e a educação para o entendimento internacional. [...] Já não é mais possível a um patriota sincero e bem-informado ter dúvidas de que a segurança do seu país, o enriquecimento da sua própria cultura e a manutenção dos padrões de vida do seu povo só podem ser garantidos pela cooperação internacional. A educação para a mútua compreensão internacional, portanto, deve banir das matérias do ensino todo e qualquer elemento capaz de resultar na formação de preconceitos e da intolerância entre os povos do mundo. Deve promover o estudo de modo a criar a apreciação das diferentes culturas. Deve guiar o povo de maneira que ele possa perceber como as diversas nações do mundo se têm transformado em um todo interdependente, sempre que o bemestar geral se viu ameaçado pela miséria de qualquer dos seus componentes. [...] Uma educação tal não se limitará a deplorar as guerras e a agressão, mas antes se preocupará com as agudas dificuldades de ordem econômica e social que tantas vezes têm sido as causas das mesmas guerras.”12 É provável que parte dos intelectuais brasileiros no término da Segunda Guerra Mundial concordasse com os preceitos da Assembléia Internacional de Educação acima apresentados, mas eles se limitaram a resumi-los na concisa alínea “g”, do Artigo 26, do Decreto-Lei nº 8.460, de 26 de dezembro de 1945, que consolidou a legislação brasileira do período sobre a produção e utilização de livros didáticos: Art. 26. Não poderá ser autorizado o uso do livro didático: a. que atenta, de qualquer forma, contra a unidade, a independência ou a honra nacional;

12 União Panamericana. Educação para uma sociedade livre: nove princípios aprovados pela Assembléia Internacional de Educação. Washington: Departamento de Cooperação Intelectual da União Panamericana, 1944, pp. 19-21.

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b. que contenha, de modo explícito ou implícito, pregação ideológica ou indicação da violência contra o regime democrático; c. que envolva qualquer ofensa às autoridades constituídas, às forças armadas, ou às demais instituições nacionais; d. que despreze ou escureça as tradições nacionais, ou tente deslustrar as figuras dos que se bateram ou se sacrificaram pela pátria; e. que encerre qualquer afirmação ou sugestão que induza o pessimismo quanto ao valor e ao destino do povo brasileiro; f. que inspire o sentimento da superioridade ou inferioridade do homem de uma região do país com relação ao das demais regiões; g. que incite ódio contra as raças e nações estrangeiras; h. que desperte ou alimente a oposição e a luta entre as classes sociais e raças; i. que procure negar ou destruir o sentimento religioso ou envolva combate a qualquer confissão religiosa; j.

que atente contra a família ou pregue ou insinue contra a indissolubilidade dos vínculos conjugais;

k. que inspire o desamor à virtude, induza o sentimento da inutilidade ou desnecessidade do esforço individual ou combata as legítimas prerrogativas da personalidade humana. No Brasil, até a década de 1960, as balizas consensuais para a elaboração de livros didáticos de História foram equacionadas pelo Decreto-Lei nº 8.460/45. As discussões da década de 1930 e a possível implementação de uma Convenção sobre o Ensino da História caíram no esquecimento. Em agosto de 1961, em Punta del Leste, no Uruguai, a reunião extraordinária da Organização dos Estados Americanos formulou as bases da Aliança para o Progresso. Essa aliança foi concebida como uma revolução democrática nas Américas, em resposta clara ao processo revolucionário cubano. Em documento da OEA de 1963, foi realçado o papel da educação na Aliança para o Progresso:

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“A educação exige, em cada país, uma ação geral com propósito de melhoria efetiva das condições econômicas e sociais de toda a população. Dentro desta ação geral, a educação sustentará os valores de liberdade e igualdade de oportunidades, que são a um só tempo compromisso e honra da democracia. Com a finalidade de sustentar esses valores, deverá ser incentivado nos educandos, junto com o respeito à pessoa humana, a convicção de que a liberdade e a justiça social são condições inseparáveis e imprescindíveis de uma convivência que possa assegurar por sua vez: aos homens, um futuro de paz com dignidade, e, às nações, uma colaboração construtiva com independência.”13 Nesse documento, no que se refere às atividades recentes do Instituto Panamericano de Geografia e História, não há nenhuma menção a propostas de convenções sobre o ensino de História. No ano seguinte ao golpe militar no Brasil, em 1965, reúne-se no Rio de Janeiro, a Segunda Conferência Interamericana Extraordinária. Esse encontro assinalou que “era imperativo modificar a estrutura funcional da Organização dos Estados Americanos”, pois as mudanças sociais apresentavam “novas necessidades no processo histórico que deveriam ser satisfeitas da melhor forma possível”.14 Para tanto, reuniu-se em Buenos Aires, entre 15 e 17 de fevereiro de 1967, a Terceira Conferência Interamericana Extraordinária, que teve por objetivo a reformulação dos estatutos da Organização dos Estados Americanos – OEA. No que concerne à Educação, esses estatutos foram acrescidos em seis artigos, de número 45 a 50. O artigo 47 redefine o papel da Educação entre os Estados membros da OEA: “Os Estados membros levarão a cabo os maiores esforços para assegurar, de acordo com as normas constitucionais, o exercício efetivo do direito à educação, sob as seguintes bases: A educação primária será obrigatória para a população 13 Secretaría Ejecutiva del Consejo Interamericano Cultural. Educación, ciência y cultura em la OEA: estructura, programas y recomendaciones para su desarrollo futuro. Washington: Secretaría General de la Organización de los Estados Americanos, 1963, pp. 52-53. 14 Informaciones y comentários. La Educación. Washington: União Panamericana, nº 45-48, jan.-dez. de 1967, p. 129.

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em idade escolar e será oferecida também a todas as outras pessoas que possam beneficiar-se dela. Quando for incumbência do Estado, será gratuita. A educação de nível médio deverá estender-se progressivamente à maior parte possível da população, com o critério de promoção social. Será diversificada de maneira que, sem prejuízo da formação geral dos educandos, satisfaça as necessidades do desenvolvimento de cada país. A educação superior estará aberta a todos, sempre que, para manter seu alto nível, se cumpram as normas regulamentares ou acadêmicas correspondentes.”15 No que se refere aos tratados internacionais sobre Educação, o artigo 49 é mais preciso: “Os Estados membros fomentarão a ciência e a tecnologia mediante instituições de pesquisa e de ensino, assim como de programas amplos de divulgação. Coordenarão eficazmente sua cooperação nestas matérias [citadas no artigo 48, principalmente na luta contra o analfabetismo] e estenderão substancialmente o intercâmbio de conhecimentos, de acordo com os objetivos e leis nacionais e os tratados vigentes.”16 Visando incrementar propostas comuns aos membros da OEA para alcançar as metas dos artigos acima citados, deveriam ser criados grupos de especialistas que coordenassem coletivamente as ações educacionais sob a ótica internacional: “Outro ponto de importância em matéria de esforços multinacionais é o de que se organizem reuniões de especialistas que recomendem as medidas para procurar a harmonização dos programas de estudos nacionais com as metas da integração latino-americana.”17 É nesse contexto que se rearticula a Convenção sobre o Ensino da História, às vésperas do encontro dos chefes de Estado dos países da OEA em Punta

15 Idem, p. 131. 16 Idem. 17 Idem, p. 136.

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del Leste, em 14 de abril de 1967, trinta e quatro anos depois da 7ª Conferência Internacional Americana ocorrida no mesmo Uruguai em 1933. O encontro dos presidentes dos Estados membros da OEA teve por tema principal a trajetória da Aliança para o Progresso, programa de ajuda econômica e social para a América Latina existente desde 1961 e que tivera origem em encontro anterior na mesma cidade de Punta del Leste seis anos antes. Os desdobramentos internacionais da Revolução Cubana, a guerra do Vietnã e o movimento estudantil formavam o pano de fundo desse encontro. Além de se dirigir aos demais presidentes presentes, Lyndon Johnson, presidente dos Estados Unidos, destinou seu discurso, entre outros, aos estudantes: “Senhores Presidentes: para concluir, desejaria dirigir-me não somente a vocês, senão também à juventude de seus países, que os sucederão, aos jovens de nossas nações, aos estudantes das escolas e universidades [...]. Vocês – que formam a juventude da América – devem saber que as revoluções incendiárias têm imposto homens, neste hemisfério e nas selvas do outro extremo do mundo, com tiranias piores do que as que derrubaram.” Aqui, nos países da Aliança [para o Progresso], uma revolução pacífica tem confirmado a capacidade do homem para mudar as condições de sua própria vida por meio das instituições democráticas. Em suas mãos está a incumbência de levar adiante esta revolução.18 Nos periódicos sobre diplomacia, reportando ao encontro de Punta del Leste, onde estiveram presentes, dois dos mais destacados expoentes do debate sobre a Aliança para o Progresso foram Eduardo Frei Montalva – Presidente do Chile – e Lincoln Gordon – Embaixador dos EUA no Brasil, quando do golpe militar de 1964. Imediatamente após o término do encontro dos presidentes dos países membros da OEA, Eduardo Frei Montalva – Presidente do Chile desde 1964 e líder do Partido Democrata Cristão de seu país – publicou na importante revista internacional Foreign Affairs um artigo intitulado 18 Secretaría General de la Organización de los Estados Americanos. Reunion de jefes de Estado americanos. Punta del Este, Uruguay, 12 a 14 de abril de 1967. Washington: Union Panamericana, 1967, p. 298.

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“A Aliança que perdeu seu rumo”. Nesse texto, apresenta a Aliança para o Progresso como algo com propósitos originalmente revolucionários e democráticos, mas que fora subjugada pela aliança de interesses antidemocráticos da extrema-direita e da extrema-esquerda no continente: “A Aliança para o Progresso estava comprometida com a realização da revolução, que, como instrumento político, deveria ser colocada sob o serviço de idéias democráticas e aos interesses da maioria para que traga adiante uma mudança substancial nas estruturas políticas sociais e econômicas da região. Essa mudança tem de ser rápida e a responsabilidade por executá-la pertence, não só ao grupo de líderes ou à elite tecnocrática, mas a toda a sociedade. As origens latino-americanas da Aliança para o Progresso estavam evidentes dentro dos partidos políticos não marxistas, que não tiveram sequer ligação com as oligarquias nacionais e estavam determinantemente contra o Direito latinoamericano tradicional. [...] A revolução latino-americana tem objetivos claramente definidos: a participação do povo no governo e a destruição das oligarquias, a redistribuição de terras e o fim dos regimes feudais no campo, assegurando acesso às facilidades culturais, de educação e riqueza, acabando assim com privilégios herdados e divisões de classes artificiais. Finalmente, o principal objetivo da revolução é assegurar o desenvolvimento econômico, junto com uma distribuição justa de seus produtos e a utilização do capital internacional para o benefício da economia nacional. [...] Apesar de suas limitações, a Carta de Punta del Leste [de 1961, que deu origem à Aliança para o Progresso] teve impacto imediato e significativo. Em primeiro lugar, do ponto de vista político, foi claramente visto que os Estados Unidos apoiavam uma mudança básica. Como resultado, interesses econômicos e políticos ativaram a oposição. Uma aliança da extrema-direita e da extrema-esquerda se formou para impedir sua execução. Os conservadores extremistas, com seus interesses fixos, relataram que a Aliança era um programa utópico; os grupos marxistas a descreveram como um instrumento imperialista, incapaz de trazer as mudanças à tona. Embora usassem argumentos e canais diferentes, chegaram a um acordo – não pela primeira e nem pela última vez. A vítima foi o povo

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latino-americano, porque essa coalizão impediu as reformas necessárias para instituir um processo rápido e democrático de mudanças no hemisfério.”19 Segundo Eduardo Frei, devido à perda de rumo, a Aliança para o Progresso pode ser apresentada pelos diversos interesses econômicos e políticos de maneira contraditória: “Alguns a consideram como um esquema para financiar governos corruptos não interessados em reformas, outros pensam que isto é um programa para enriquecer os ricos. Para as oligarquias industriais e financeiras, ela representa um perigo porque, ao enfatizar mudanças sociais, afasta investidores estrangeiros. Para outros, o auxílio de emergência é o único meio de escorar uma falsa estabilidade, que, por sua vez, impede a classe trabalhadora de realmente entender sua situação e suas oportunidades, retardando assim a verdadeira revolução. Muitos outros, especialmente aqueles que representam governos, reclamaram que seu trabalho estava sendo retardado pelas exigências dos planejamentos e reformas que precedem a concessão de auxílio.”20 Para o Presidente do Chile, havia esperanças na retomada dos propósitos originais da Aliança para o Progresso. Porém, isso não significava apenas aportes financeiros, mas sua reestruturação política: “A salvação da Aliança depende da execução das seguintes medidas: o apoio da integração americana, da dissuasão da corrida armamentista e encontrar uma solução coorporativa para os problemas do comércio externo. O problema não se limita a recursos financeiros apenas, embora em certas ocasiões estes tenham sido inferiores às legítimas necessidades da região. É essencialmente um problema político, exigindo a demonstração de vontade para mudar, junto com a aceitação das medidas necessárias para trazer essas mudanças à tona. As pessoas não apóiam governos porque eles têm cumprido instruções dessa ou daquela organização internacional. As pessoas os apóiam quando eles oferecem 19 Eduardo Frei Montalva. A Aliança que perdeu seu rumo. Foreign Affairs. Órgão oficial do Conselho de Relações Exteriores dos EUA. Nova York: Conselho de Relações Exteriores, v. 45, nº 3, abril de 1967, pp. 437-441. Tradução do autor do atual trabalho. 20 Idem, pp. 441-442.

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uma alternativa econômica e que dê bons resultados frente às frustrações atuais e possibilite esperança de seguir para um futuro melhor.”21 É provável que tenha sido esta a posição oficial do Chile no encontro dos chefes de Estado dos países membros da OEA em Punta del Leste em 14 de abril de 1967. No número seguinte da Foreign Affairs, Lincoln Gordon – Assistente do Secretário de Estado para Assuntos Interamericanos dos EUA e ex-Embaixador no Brasil – responde o artigo de Eduardo Frei com o texto intitulado “Punta del Leste revista”. Nesse artigo, rebate as afirmações do Presidente do Chile: “Qual avaliação pode ser feita desse esforço, que durou seis anos, para promover uma revolução econômica pacífica e democrática no continente? Havia sido apenas “o mar sendo arado”, como na famosa frase de Bolívar, sendo engolido por novas ondas de expansão da população, desintegração política e caudilhismo militar, da exploração de favelas urbanas por demagogos extremistas, e tensões nacionalistas fortes demais para a união enfraquecida da América Latina? É verdade, como sugerido em Foreign Affairs pelo Presidente Frei do Chile, que a Aliança “perdeu seu rumo”? Ou, diante de novas diretrizes e objetivos estabelecidos pela Reunião de Cúpula em abril, promete determinar um curso de longo prazo para o desenvolvimento latino-americano, para a cooperação interamericana e um lugar para a América Latina no mundo?”22 Lincoln Gordon optou pela última alternativa e expôs em seu texto as providências adotadas em Punta del Leste na recente reunião dos chefes de Estado dos países da OEA, para que a Aliança para o Progresso seja efetiva. Sobre as palavras de Eduardo Frei, destacou que: “A acusação do Presidente Frei de que a “Aliança perdeu seu rumo” tem dois lados: um de substância e outro de ideologia. A frustração que ele descreve não

21 Idem, pp. 447-448. 22 Lincoln Gordon. Punta del Leste revista. Foreign Affairs. Nova York: Conselho de Relações Exteriores, v. 45, nº 4, julho de 1967, pp. 624-625. Tradução do autor do atual trabalho.

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pertence somente a ele ou ao Chile. Tem sido geral na América Latina e com os norte-americanos preocupados com a América Latina. [...] Pelo lado substantivo, a maioria das questões do Presidente Frei serão resolvidas se os objetivos da Reunião de Cúpula forem alcançados: integração econômica, o desestímulo aos gastos militares excessivos, a promessa de uma nova cooperação na frente comercial, orientação multilateral reforçada para as políticas de assistência e objetivos mais avançados para o crescimento econômico.”23 Sobre o que identificou no texto de Eduardo Frei como crítica ideológica à situação da Aliança para o Progresso, Lincoln Gordon afirmou que: “O ideal da democracia representativa está longe de ser uma prática consolidada. Num período de mudanças econômicas e sociais rápidas, quando setores novos da população estão sendo conscientizados politicamente e estruturas de poder social estão perdendo potência, não é de se surpreender que as instituições políticas também estejam enfraquecidas. Ter expectativas de praticar a democracia representativa de maneira exemplar, quando não há evolução econômica e social, seria estar fora da realidade. Mesmo assim, entretanto, é confortante saber que, durante o ano passado, houve um recorde de nove eleições na América Latina, com resultados respeitados em todos os casos, com exceção de apenas um inconstitucional golpe de estado.”24 No que se referia à educação e seu papel sob a Aliança para o Progresso, Lincoln Gordon afirmou que: “Agricultura e educação foram os campos mais ingovernáveis, seja por planejamento operacional ou execução dos planos para que alcancem resultados concretos. Ambas são, por natureza, complexas: exigem administração descentralizada de seus sistemas e lidam com setores da comunidade resistentes a mudanças. Novamente temos esperanças de que os compromissos políticos de alto nível, com 23 Idem, p. 634. 24 Idem, p. 636.

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programação nacional e cooperação interamericana, darão um impulso efetivo para agir onde discussões de níveis mais técnicos provaram-se insuficientes.”25 A possível implantação das diretrizes da Aliança para o Progresso, após o encontro dos chefes de Estado em 1967, tomou o caminho criticado pelo presidente chileno, isto é, foi levada a cabo como incumbência de uma “elite tecnocrática”. No rumo da constatação de Lincoln Gordon de que a mudanças educacionais não teriam os resultados esperados, se entregues a discussões de níveis técnicos e de que eram necessários compromissos políticos de alto nível, os tecnocratas da OEA decidiram mover-se após a Reunião de Cúpula de 1967. Nesse sentido, o Conselho Interamericano Cultural reuniu-se extraordinariamente em Washington em 25 e 26 de maio de 1967, sob o lema de “unificar e cooperar”: “Na Declaração [de Punta del Leste de 14 de abril de 1967] se insiste em que os povos da América Latina, como os demais deste hemisfério, têm que viver em função de toda a região, como um povo continental, o que significa que tanto por um passado semelhante, como por necessidades comuns do atual processo histórico, têm que cumprir seu destino mediante o compromisso com as reivindicações necessárias em todos os âmbitos que impõem a interdependência entre os países de uma mesma comunidade. Em poucas palavras, cada país da América Latina deve responder tanto aos seus próprios esforços de povo independente como à cooperação com os demais [países] da comunidade.”26 Para elaborar planos de mudanças educacionais com o propósito acima exposto, o Conselho Interamericano Cultural da OEA decidiu constituir uma Comissão Ad Hoc com especialistas representando os Estados membros. Com base em estudos prévios preparados por cinco especialistas em Educação escolhidos pela Secretaria Geral da OEA, a Comissão Ad Hoc de especialistas, composta por “doze renomados cientistas e engenheiros”, reuniu-se entre 5 e 25 Idem, p. 629. 26 Informaciones y comentários. La Educación. Washington: União Panamericana, nº 45-48, jan.-dez. de 1967, p. 136.

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10 de setembro e entre 30 de novembro e 6 de dezembro de 1967 em Washington.27 Das diversas conclusões alcançadas, é possível resumir os resultados: “Entre as muitas ações recomendadas pelo grupo mencionado [Comissão Ad Hoc] procede mencionar as que se referem à cooperação com o Programa de Educação, para melhorar o ensino das ciências e a formação de professores neste âmbito mediante a realização de seminários, cursos intensivos, análises de novos planos de estudos, métodos de ensino, material didático etc.”28 É com este propósito internacionalista que o Comitê de Ação Cultural do Conselho Interamericano Cultural da OEA enviou ofício em 7 de setembro de 1967 – dois dias após o início do primeiro encontro em Washington dos especialistas da Comissão Ad Hoc para assuntos de Educação – indicando ao Brasil a necessidade de ratificação da Convenção sobre o Ensino da História. Assinado por Alberto Vazquez – representante dos EUA e Presidente do Comitê de Ação Cultural da OEA – o ofício apresentou os artigos da Convenção sobre o Ensino da História, afirmando que: “De acordo com a Carta da Organização dos Estados Americanos e com os acordos firmados na última reunião de Presidentes da América em Punta del Leste, Uruguai, consagra o anseio de conviver em paz e promover mediante uma justa compreensão recíproca e respeito à soberania de cada um de nossos países, o melhoramento de todos na independência, na igualdade e no direito. Neste sentido, a depuração dos textos de história de tudo aquilo que fomente um estreito nacionalismo ou uma atitude de controvérsia contra qualquer povo americano é de imperiosa urgência. A Convenção [sobre Ensino da História] recomenda um tipo de ensino que atenue o espírito bélico e ponha ênfase no estudo da cultura dos povos.”29

27 Idem, pp. 138-142. 28 Idem, p. 143. 29 Ofício de 07/09/1967 enviado pela Organização dos Estados Americanos a Pedro Aleixo – Vice-Presidente do Brasil. Processo 942/67 do Conselho Federal de Educação – CFE – p. 1.550.

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O Ministério da Educação e Cultura brasileiro encaminhou o ofício da OEA ao Conselho Federal de Educação, ressaltando que a ele caberia “o estabelecimento de normas para a revisão do ensino de História em todos os níveis da educação brasileira”.30 Em 8 de maio de 1968, a ratificação da Convenção sobre o Ensino da História foi aprovada pelo Conselho Federal de Educação sob o Parecer 280/68 da Câmara de Ensino Primário e Médio do CFE.31 O MEC, por sua vez, enviou tal aprovação ao Ministério das Relações Exteriores. Em 16 de agosto de 1968, o Governo Federal homologou a ratificação da Convenção sobre o Ensino da História, editada como lei pelo Governo Federal em 8 de dezembro de 1969 com o Decreto nº 65.814. O que propôs a Convenção sobre o Ensino da História – documento internacional recuperado pela Organização dos Estados Americanos em convenções de 1933 da antiga União Panamericana? Em seu preâmbulo a Convenção sobre o Ensino da História – Lei 65.814/69 – estabeleceu: Que é urgente complementar a organização política e jurídica da paz com o desarme moral dos povos, mediante a revisão dos textos de ensino que se utilizam nos diversos países. [...] Que o Brasil, a Argentina e o Uruguai, dando exemplo de seus elevados sentimentos de paz e inteligência internacionais, subscreveram recentemente [1933] convênios para a revisão dos textos de História e Geografia.”32

30 Ofício de 09/10/1967 enviado pelo MEC ao CFE. Processo CFE 942/67, p. 1.557. Grifo executado no documento original quando lido no CFE e repetido em ofícios posteriores. 31 Ofício de 15/05/1968 enviado pelo CFE ao MEC. Processo CFE 942/67, p. 1.561. A tramitação da Convenção sobre o Ensino da História no CFE pode ser acompanhada pela Documenta. Órgão oficial do Conselho Federal de Educação. Rio de Janeiro: CFE, nº 86, maio de 1968, pp. 106-110. 32 Pedro Vicente Bobbio (Org.). Decreto nº 65.814 de 8 de dezembro de 1969 promulga a Convenção sobre o Ensino da História. Lex – coletânea de legislação. São

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O primeiro artigo da Convenção sobre o Ensino da História ressaltou o que foi proposto em seu preâmbulo. Os signatários da Convenção assumiram o compromisso de: “Artigo 1º. Efetuar a revisão dos textos adotados para o ensino em seus respectivos países, a fim de depurá-los de tudo quanto possa excitar, no ânimo desprevenido da juventude, aversão a qualquer povo americano.”33 Em 1969, no auge da ditadura militar, com recomendação da Organização dos Estados Americanos, o Governo Federal do Brasil recuperou um documento elaborado em âmbito internacional durante o Governo Provisório de Getulio Vargas. Esse instrumento seria muito útil aos ditadores brasileiros no início da década de 1970. Não que fosse efetivamente usado, mas a mera existência de lei federal prevendo a revisão dos livros de História de todos os níveis da educação brasileira, segundo grifos documentais do Conselho Federal de Educação e do Ministério da Educação e Cultura, era arma a coagir a indústria editorial brasileira caso fosse necessário. Isto, repita-se, com beneplácito da Organização dos Estados Americanos. Para se ter uma idéia do possível uso da Convenção no controle do conteúdo de livros, no caso de autores que, em plena guerra do Vietnã, provocassem aversão no “ânimo desprevenido da juventude” a um povo americano específico, por exemplo, ao dos Estados Unidos, essa animosidade deveria ser “depurada” dos livros brasileiros de História. A Convenção tinha a pretensão de “depurar” livros de outras matérias, além da História. Tanto no artigo primeiro, como no segundo, não se especificava a História como matéria a ser revista nas publicações didáticas. Segundo esses dois artigos, qualquer matéria educacional deveria ter seu conteúdo examinado: “Artigo 2º. Revisar periodicamente os textos adotados para o ensino das diversas matérias, a fim de submetê-los às mais recentes informações estatísticas gerais, Paulo: Lex Editora, v. 33, nov.-dez. de 1969, p. 2.564. 33 Idem.

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com o objetivo de oferecer neles uma noção mais aproximada e exata da riqueza e da capacidade de produção das Repúblicas Americanas.”34 Esta tentativa de controle estatal dos conteúdos de livros de História, embora patrocinada pela OEA e enviada ao Governo Brasileiro pelo representante norte-americano nessa instituição, não poderia ser ratificada pelos Estados Unidos. Importantíssimo membro da OEA, os Estados Unidos recomendavam aos outros a ratificação da Convenção sobre o Ensino da História, mas apresentavam motivos constitucionais para não fazer o mesmo: “Os Estados Unidos aplaudem calorosamente esta iniciativa e querem antes de tudo declarar a sua profunda simpatia por tudo quanto tenha a propensão de fomentar o ensino da História das Repúblicas Americanas e particularmente na depuração dos textos de História, corrigindo erros, suprimindo toda parcialidade e preconceito e eliminando tudo que puder provocar ódio entre as nações. A Delegação dos Estados Unidos da América quer, entretanto, explicar que o sistema de educação dos Estados Unidos é diferente dos outros países americanos, já que está completamente fora do raio de ação do Governo Federal: é mantido e dirigido pelos Estados, pelos municípios e por instituições e indivíduos particulares. A Conferência compreenderá, por conseqüência, que a Delegação dos Estados Unidos, por motivos constitucionais, não pode assinar este Convênio.”35 Mais importante que o conteúdo em si da Convenção sobre o Ensino da História, geralmente de caráter pacifista, é imprescindível atentar para os mecanismos de controle estatal que esse tratado internacional colocava à disposição dos ditadores brasileiros, no apogeu da escalada autoritária no país. No entanto, é oportuno ressaltar que, se a Convenção fosse implementada, seria apagada dos livros de História, por exemplo, qualquer referência sobre o tema do imperialismo ou de injustiças nas relações internacionais entre as nações. Ainda é necessário pesquisar se a Convenção foi utilizada para coagir editores de livros de História. Em novembro de 2007, no Simpósio Internacional sobre Livro Didático ocorrido na Universidade de São Paulo, após conver34 Idem. 35 Idem, p. 2.565.

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sas não sistematizadas com alguns editores de livros didáticos da década de 1970, verificou-se que possivelmente a Convenção sobre o Ensino da História não teve uso concreto. No entanto, que ela existia como lei federal, não resta dúvida. Seria também útil verificar se esta Convenção, enquanto tratado internacional assinado pelo Brasil, teria valor legal atualmente. Merecem também atenção os procedimentos tecnocráticos da Organização dos Estados Americanos, no que se refere a projetos internacionais de controle do conteúdo de livros didáticos, de História, talvez de Geografia, e de outras matérias, conforme a ambigüidade da redação da Convenção aqui tratada. Cinco “especialistas” em Educação elaboraram um estudo encomendado pela Secretaria Geral da OEA que, tendo como referência o trabalho dos cinco especialistas originais, convida doze “renomados cientistas e engenheiros” para elaborar os projetos educacionais da Organização dos Estados Americanos, objetivando reformas educacionais de seus países membros. Uma das primeiras iniciativas da OEA, entre muitas outras, foi recomendar o controle estatal dos conteúdos dos livros de História, no que foi prontamente acatada pela ditadura militar brasileira. Os Estados Unidos sutilmente alertaram para o fato de esse procedimento não ser democrático, e que em seu país seria inconstitucional. O mesmo não se aplicava, entretanto, à América Latina, que o adotou. Convenções internacionais sobre o ensino de disciplinas escolares podem ter motivos justificáveis, quando de sua origem. Foi o que ocorreu com tratados internacionais de cunho pacifista na década de 1930 sobre o ensino de História. No entanto, em períodos pouco democráticos do ponto de vista institucional, como o que ocorreu nas Américas na segunda metade da década de 1960, a tentação de se recorrer a instrumentos autoritários de controle ideológico é devastadora à liberdade de pensamento. Em nome da democracia, sob eufemismos como o de “depurar” conteúdos inamistosos de livros de História, o que se consegue são instrumentos ditatoriais de censura. Lamenta-se que isso tenha ocorrido sob o incentivo de uma nação geralmente democrática como os Estados Unidos e utilizando-se para tanto um organismo multilateral como a Organização dos Estados Americanos. No auge da ditadura militar brasileira, não necessitávamos de mais esta ajuda.

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