A proposta pedagógica do Cristo: uma análise da ação educacional de Jesus a partir de suas parábolas

May 27, 2017 | Autor: D. Vercelino da Hora | Categoria: Ensino, Memoria, Educação Cristã, Parábolas
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FACULDADE TEOLÓGICA BATISTA DE SÃO PAULO

Diogo Vercelino da Hora

A PROPOSTA PEDAGÓGICA DO CRISTO: UMA ANÁLISE DA AÇÃO EDUCACIONAL DE JESUS A PARTIR DE SUAS PARÁBOLAS

SÃO PAULO 2013

FACULDADE TEOLÓGICA BATISTA DE SÃO PAULO

Diogo Vercelino da Hora

A PROPOSTA PEDAGÓGICA DO CRISTO: UMA ANÁLISE DA AÇÃO EDUCACIONAL DE JESUS A PARTIR DE SUAS PARÁBOLAS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito final no curso de Bacharel em Teologia. Orientador: Prof. Jonas Machado

SÃO PAULO 2013

da Hora, Diogo Vercelino A proposta pedagógica do Cristo : uma análise da ação educacional de Jesus a partir de suas parábolas. / Diogo Vercelino da Hora . - São Paulo : Faculdade Teológica Batista, FACULDADE TEOLÓGICA BATISTA DE SÃO PAULO 2013. 51 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Teologia) – Faculdade Teológica Batista de São Paulo Orientador: Jonas Machado Diogo Vercelino da Hora 1.Jesus Cristo - Parábolas. 2 Jesus Cristo – Ensino - Método I. Título. II. Machado, Jonas

CDD 232.904

A PROPOSTA PEDAGÓGICA DO CRISTO: UMA ANÁLISE DA AÇÃO EDUCACIONAL DE JESUS A PARTIR DE SUAS PARÁBOLAS

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________ Prof. Jonas Machado – Orientador ___________________________________________________________________________ Prof. Itamir de Souza Neves – Leitor

SÃO PAULO 2013

DEDICATÓRIA

Aos meus pais, Eduardo e Liliam, que me instruíram por meio do diálogo, mesmo que por vezes silencioso.

A minha esposa Juliana, com que a prática de pensar e conversar se tornou uma prova de amor.

Ao meu Senhor e Deus Jesus Cristo, cujo amor redefiniu minha forma de ser humano.

Agradeço de coração:

A Deus, por me capacitar e abrir meus olhos à questões que, se dependessem de mim, seriam apenas palavras jogadas ao ar.

Aos meus pais, que investiram em um desejo por estudos, mesmo quando este não tinha muita explicação.

A minha esposa Juliana, que me incentivou e me ouviu quando as ideias eram apenas noções e os sonhos, apenas sentimentos.

A Igreja Cristã Evangélica do Mandaqui, por ser a comunidade que me acolheu desde criança de forma completa, garantindo-me amor e espaço para meu crescimento.

Assim, lhes ensinava muitas coisas por parábolas, no decorrer do seu doutrinamento. Marcos, o evangelista.

RESUMO

Este trabalho procura identificar um perfil pedagógico do ministério de Jesus Cristo a partir da análise didática de suas parábolas. A história da interpretação das parábolas mostra que seu caráter pedagógico foi negligenciado pelos principais acadêmicos e teólogos com o passar dos anos, ao mesmo tempo em que a análise das razões de Jesus em usar as parábolas e das potencialidades mnemônicas que elas apresentam demonstram a relação, aplicabilidade e adequação das parábolas com o desafio pedagógico de ensinar aos discípulos coisas que ainda não estavam preparados para aprender. A partir disto, se mostra possível delinear alguns dos valores educacionais que Jesus se utilizou ao aplicar as parábolas como método de ensino. Tudo isto como um convite à reavaliação da prática educativa da igreja cristã. PALAVRAS-CHAVE: Parábolas de Jesus; memória; ensino de Jesus; educação cristã.

ABSTRACT

This paper tries to identify a pedagogic profile of the ministry of Jesus Christ through a didactical analysis of his parables. The history of parables interpretation shows that his pedagogic aspects were neglected by the academics and theologians through the years, while the analysis of Jesus reasons to use the parables as well its mnemonics potentialities demonstrates the relation, applicability and adaptability of the parables with the pedagogic challenge of teaching the disciples something that they weren’t ready to learn. Based on that, it shows possible to delineate some of the educational values that Jesus used while applying the parables as teaching methods. All that put as an invitation to reevaluate the educative practice of the Christian church. KEYWORDS: Jesus’ parables; memory; Jesus’ teaching; Christian education.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO………………………………………………………………………………10 1. AS PARÁBOLAS ATRAVÉS DOS SÉCULOS: UM RESUMO.......................................12 1.1. O surgimento de uma práxis interpretativa............................................................13 1.2. Dezenove séculos de alegoria................................................................................14 1.3. Século 20: o século das parábolas..........................................................................17 1.3.1. O pioneirismo de Jülicher........................................................................17 1.3.2. As pesquisas de Dodd e Jeremias............................................................19 1.3.3. Alternativas interpretativas do século 20................................................20 1.4. Um veredicto acadêmico........................................................................................23 2. 300 ANOS EM TRÊS: O DESAFIO PEDAGÓGICO DE JESUS......................................25 2.1. Recursos mnemônicos das parábolas de Jesus.......................................................26 2.2. As parábolas de Jesus em Mateus 13.....................................................................27 2.3. Uma revisão do uso das parábolas por Jesus..........................................................30 2.4. A necessidade da memorização para os primeiros cristãos....................................34 2.5. Evidências para a memorização das parábolas......................................................36 3. A PROPOSTA PEDAGÓGICA DO CRISTO.....................................................................39 3.1. Parábolas como meios de diálogo..........................................................................40 3.2. Parábolas surgem do contexto dos ouvintes...........................................................41 3.3. Parábolas levam a ser mais....................................................................................43 3.4. Parábolas como ferramentas adequadas ao ensino de Deus...................................44 CONCLUSÃO..........................................................................................................................47 BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................49

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INTRODUÇÃO

Este trabalho se propõe a analisar as parábolas de Jesus a partir de uma perspectiva histórica e pedagógica, tentando, a partir do desenvolvimento teológico nos estudos sobre as parábolas, delinear as potencialidades educacionais e aplicações didáticas de Jesus. A importância deste tema está na expansão das igrejas evangélicas no Brasil e o movimento inversamente proporcional da educação cristã no século 21. Mostra-se necessário rever as práticas pedagógicas da igreja cristã, histórica e protestante, e, para isso, é obrigatório revisitar o centro da fé cristã, Jesus Cristo para reavaliar sua forma de ensino. Considerando que grande parte do ensino de Jesus foi transmitida por meio de parábolas e que algumas parábolas ocupam o lugar de palavras mais conhecidas de Jesus, um primeiro passo à reavaliação da ação educacional da igreja cristã está em reavaliar as parábolas de Jesus, desde seu uso pela igreja ao longo dos séculos, até a forma que Jesus as usou para transmitir seu ensino, assim como a eficácia de tal método. Este é o objetivo deste trabalho. Seu alvo não é propor uma nova perspectiva educacional para a igreja de modo amplo, ou mesmo avaliar a ação pedagógica cristã contemporânea como um todo, mas tão somente iniciar o que seria um primeiro passo para essa revisão necessária ao rever o uso e importância das parábolas de Jesus. Este objetivo traz, pelo menos, três questões a serem respondidas: como as parábolas foram abordadas deste os primórdios da fé cristã; por que Jesus optou pelo uso de parábolas para ensinar; e como Jesus aplicou este método de ensino. A primeira pergunta é o ponto de partida do primeiro capítulo, que se propõe a fazer uma leitura histórica e problematizada da presença, uso e interpretação das parábolas ao longo da história da igreja cristã. O desenvolvimento desta perspectiva histórica se embasou, sobretudo, num exercício que se tornou repetitivo e obrigatório para todo estudo sobre parábolas desde o advento das ciências modernas, isto é, os breves históricos de interpretação das parábolas nos inúmeros livros sobre parábolas, produzidos pelo meio cristão, sobretudo, a partir do século 20. Tal perspectiva histórica é problematizada por conclusões que surgem no início deste século 21 com autores como Klyne Snodgrass (2010) e Craig Blomberg (2012), que admitem, em uma sinceridade quase irônica, que tudo o que foi produzido sobre

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parábolas teria sido um desperdício, visto os esforços em vão contra o problema da alegoria, mas sem conseguir se livrar dele efetivamente. O primeiro capítulo se desenvolve numa tentativa de compreensão deste esforço em vão, tentando enxergar onde estaria o erro dos interpretes cristãos ao longo destes dois mil anos de estudos das parábolas. Esta tentativa de compreensão culmina no capítulo 2, que surge como uma comparação entre a forma como os interpretes ao longo dos séculos compreenderam o uso das parábolas e a forma como uma leitura contemporânea dos evangelhos indica porque Jesus usou parábolas. Assim, o segundo capítulo tem como intento responder a segunda questão. Para tal empreitada, faz-se uma avaliação dos recursos que o gênero parabólico traz em si, enfatizando-se a questão da memória como central para o desenvolvimento do cristianismo primitivo. A partir deste preceito, aborda-se o capítulo 13 de Mateus como um verdadeiro laboratório do ensino de parábolas, para averiguar se o caráter mnemônico das parábolas é válido como fundamento da argumentação. A partir disto, desenrola-se uma reavaliação da compreensão do uso das parábolas por Jesus, trazendo à discussão questões há muito aceitas, como a teoria das fontes para os evangelhos sinóticos, e assumindo uma prerrogativa histórica no desenvolvimento da fé e da identidade cristã nos primeiros séculos de cristianismo. O terceiro capítulo vem em resposta à última questão e averigua a aplicabilidade de Jesus à luz da pedagogia moderna, sobretudo por meio de Paulo Freire. Considera-se questões fundamentais para o método freireano, como o diálogo, a contextualização do ensino e a crença na capacidade humana de ser mais, na busca do que seria uma proposta pedagógica do Cristo, a partir da ótica humana. Talvez por coincidência ou por uma feliz ironia, a pedagogia humana entra em confronto com o que seria uma pedagogia divina, com o pressuposto de que, se há algo de bom na pedagogia humana embasada por Paulo Freire, isto deve ser encontrado e superado no que seria uma pedagogia divina aplicada por Jesus, uma pedagogia do Cristo. Em última instância, este trabalho é um esforço de unir algumas paixões de seu autor, que encontra na tríade acadêmica “história-teologia-pedagogia” os elementos necessários para a compreensão da ação divida no mundo humano, sintetizada no Verbo de Deus que se fez carne, Jesus Cristo (Jo 1.14).

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1. AS PARÁBOLAS ATRAVÉS DOS SÉCULOS: UM RESUMO

Pensar nos ensinamentos de Jesus é, inevitavelmente, pensar em suas parábolas. Os três evangelhos sinóticos são permeados por este gênero literário que caracterizou o ministério de Jesus, entretanto tal gênero não foi uma invenção de Jesus. As parábolas remontam a uma tradição didática que aparece ao longo da história de Israel, seja através de símiles, metáforas, pequenas histórias ou enigmas. Embora Jesus não tenha sido o criador deste recurso didático das parábolas, ele certamente foi um inovador. Jesus dotou suas parábolas com grande originalidade, conferindo-lhes profunda importância espiritual, com dimensões até desconhecidas (LOCKYER, 2001, p.9). As parábolas de Jesus são dotadas, então, de uma profundidade única. Isto, somado ao fato de serem palavras contidas em um texto sagrado e que teriam sido ditas pelo próprio Cristo, fomenta uma grande discussão ao redor destas parábolas. A discussão acerca das parábolas de Jesus é ampla e dois textos do Evangelho de Marcos, 4.10-12 e 4.33, exemplificam a dificuldade de lidar com essa questão: Quando Jesus ficou só, os que estavam junto dele com os doze o interrogaram a respeito das parábolas. Ele lhes respondeu: A vós outros vos é dado conhecer o mistério do reino de Deus; mas, aos de fora, tudo se ensina por meio de parábolas, para que, vendo, vejam e não percebam; e, ouvindo, ouçam e não entendam; para que não venham a converter-se, e haja perdão para eles; E com muitas parábolas semelhantes lhes expunha a palavra, conforme o permitia a capacidade dos ouvintes (Marcos 4.1012; e 33)1

Estes dois textos tratam da forma como Jesus expunha suas parábolas. Enquanto um diz que Jesus fala em parábolas para que os de fora não compreendam, o outro diz que Jesus fala em parábolas adaptando seu ensino ao que os ouvintes podiam entender (ORTIZ apud CETINA, 2004, pp.24-26). Questões como esta têm colocado as parábolas de Jesus em posição privilegiada nas pesquisas bíblicas acadêmicas, entretanto essa problemática nem sempre foi foco de atenções. 1

É válido ressaltar que o primeiro texto em questão, isto é, Marcos 4.10-12, é uma referência direta ao livro

de Isaías. O trecho referido (Is 6.9-10) faz parte do chamamento de Deus ao profeta que dá nome ao livro e seu contexto é de ocultamento explícito da mensagem de Deus a um povo não receptivo. Isto dá um peso maior à aplicabilidade destas palavras de Jesus, visto que não apenas seu significado indica o ocultamento proposital, mas sua relação com a tarefa profética de Isaías valoriza o caráter voluntario de Deus em fazer isto, juntamente com a baixa receptividade dos ouvintes.

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1.1.O surgimento de uma práxis interpretativa

Os primeiros intérpretes das parábolas foram seus primeiros ouvintes, nos quais se enquadram os escritores dos Evangelhos sinóticos. Enquanto alguns acadêmicos debatem as intervenções destes primeiros ouvintes no que teriam sido os ensinos originais de Jesus, Kenneth Bailey traz uma informação que expande a discussão acerca das parábolas de Jesus para além de sua interpretação, abordando seu uso no início do cristianismo. Ele diz que bem cedo na vida da Igreja, pessoas de fora viram os cristãos desenhando sua fé a partir de parábolas. Uma dessas testemunhas teria sido o mais famoso médico do segundo século chamado Galen, a quem Bailey nomeia como sendo o primeiro pagão a dizer coisas positivas sobre os cristãos. Galen teria visto cristãos no segundo século construindo sua fé por meio de parábolas (BAILEY, 2008, p.279). Por volta de 140 d.C. ele escreveu: A maioria das pessoas são incapazes de seguir um argumento demonstrativo consecutivamente; portanto, elas precisam de parábolas e se beneficiam delas ... justamente como agora vemos as pessoas chamadas cristãos desenhando sua fé de parábolas [e milagres] e ainda algumas vezes agindo da mesma forma [como estes que filosofam] ... e em sua busca apurada de justiça, tem alcançado um patamar em nada inferior ao de um filosofo genuíno (GALEN apud BAILEY, 2008, p.279).2

O testemunho de Galen aponta para uma importância das parábolas com uma relevância que as epístolas do Novo Testamento não demonstram. Mas esta prática cristã dos primeiros séculos do Cristianismo não era exclusiva. Paul Veyne, em sua História da vida

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É importante ressaltar a diferença nas concepções grega e hebraica de parábola. Faria (2012) analisa essas

duas concepções de parábolas e aponta que a noção grega, extraída, sobretudo, das teorias retóricas de Aristóteles, entente parábola como uma ilustração e comparação vinculadas às relações humanas que servem à facilitar a compreensão de raciocínios abstratos. A concepção hebraica, por sua vez, tem as parábolas enraizadas na noção de mashal, que incorpora uma amplitude de sentidos muito maior que a percepção grega. Manson (apud FARIA, 2012, p.40), mostra que as parábolas se referem às relações humanas e também às coisas, como um discurso profético. Neste sentido, a concepção limitada dos gregos sobre parábolas é assimilada pela concepção hebraica. No caso da discussão aqui desenvolvida, a referência de Galen ao uso de parábolas se mostra adequada, visto que os cristãos estariam, mesmo que minimamente (baseado no sentido grego de parábolas), se apropriando de um método de ensino e conservação de memória típica da cultura judaica, questão fundamental para o trabalho que se segue.

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privada, vol. 1, relata como o uso de histórias e parábolas era comum para o ensino moral no mundo romano: O rico liberto que foi o pai de Horácio mandou o filho à escola a fim de receber a educação liberal que lhe havia faltado, mas ensinou-lhe pessoalmente a doutrina da sabedoria: para incitá-lo a fugir do vício e dos amores adúlteros, citava-lhe o caso de Fulano que fora pilhado em flagrante delito e perdera a reputação; para ensinar-lhe a prudência na gestão do patrimônio, mostrava-lhe como Beltrano acabara a vida na miséria (VEYNE, 2009, p.164).

A semelhança entre a prática cristã e os métodos de ensino greco-romanos vigentes na época parece facilitar a inserção de formas greco-romanas de interpretação para as narrativas bíblicas, segundo Craig Blomberg. Ele aponta que, para as parábolas, “isto significou que as histórias de Jesus foram tratadas como alegorias elaboradas, com quase todos os detalhes em cada uma expostos como se tivesse um segundo nível de significados espirituais e simbólicos” (BLOMBERG, 2004, p.13). Assim, desde os tempos apostólicos, a alegoria parece ter sido o método padrão para interpretar as parábolas de Jesus. A partir disto, parece justo alguns autores considerarem as interpretações alegóricas dadas pelo próprio Jesus nos evangelhos sinóticos às parábolas – por exemplo, a explicação da parábola do joio em Mt 13.36-41 – como inserção posterior, baseada na tradição e ensino da igreja do primeiro século. A alegoria busca sempre um sentido oculto no texto, indo além e por trás da letra. Ela parte de um pressuposto que entende que o texto inspirado por Deus não pode ficar solto ao azar, e lê a Bíblia como um livro de parábolas sagradas, escrito em uma linguagem simbólica peculiar (LEVORATTI apud CETINA, 2004, p.31).

1.2.Dezenove séculos de alegoria

A ênfase da alegoria como um método interpretativo a posteriori aos eventos dos Evangelhos sinóticos tem como forte embasamento o desenvolvimento deste método nas escolas teológicas da Antiguidade Tardia e seu prolongamento por toda a Idade Média, como método comum de interpretação bíblica. Hunter aponta que o lugar onde a alegoria mais se desenvolveu foi na escola de Alexandria, de Clemente e Origenes (HUNTER, 1960, p.24), mas este método não ficou

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restrito à Alexandria. Mesmo Agostinho adotou o método da alegoria para interpretar as parábolas. Hunter comenta que Agostinho tinha um gosto especial pelo “exercício de ingenuidade que este método exegético gerava”, provavelmente por conta de seu olhar retórico, o que culminou em sua avaliação como pregador, percebendo que a alegoria captava a atenção dos ouvintes (HUNTER, 1960, p.27). Uma reação contemporânea à corrente alegorista de Alexandria foi a escola de Antioquia, de João Crisóstomo, um dos poucos redutos de oposição a tal método (HUNTER, 1960, p.27). Entretanto, o método alexandrino prevaleceu e Hunter, ao comentar este desenvolvimento histórico, parece dar motivos plausíveis ao dizer que “a alegoria de Alexandria prevaleceu sobre o bom senso de Antioquia, condenada por seu método frio e não emocional, enquanto a exegese de Alexandria respondia às necessidades emocionais da época” (HUNTER, 1960, p.28). Mais do que uma preferência dos intérpretes medievais, as parábolas pareciam cumprir seu propósito de alcançar os ouvintes ao serem abordadas como alegorias. Desta forma, ao longo da idade média, a alegoria continuou a se desenvolver. Tomás de Aquino, por exemplo, reforçou o método alegórico por meio de sua coletânea de citações sobre os Evangelhos na Catena Aurea, o que legitimou os pais alegóricos. (HUNTER, 1960, p.29) A alegoria permaneceu firme até mesmo diante das rupturas da Reforma protestante e da crítica textual da modernidade, continuando como a “chave mestra para interpretar as parábolas” (HUNTER, 1960, p.22). Hunter diz que o retorno aos estudos clássicos da Renascença e o novo interesse nas línguas originais da Reforma permitiu uma nova abordagem às parábolas, mas estas ainda foram periféricas e pouco produtivas. Lutero, por exemplo, não fez muito diferente dos pais alegóricos ao abordar as parábolas. A única diferença foi o conteúdo com que encheu as alegorias, isto é, seus princípios favoritos do Evangelho (HUNTER, 1960, p.31-32). João Calvino e alguns outros reformadores tomaram passos mais substanciais, como buscar o significado natural das parábolas e definir o ponto central em uma pequena e clara sentença. Também surgiram algumas reações às parábolas no meio católico na época das Reformas. Hunter apresenta um jesuíta hispânico chamado Juan Maldonado, que criticou o método alegórico ao dizer que todos aqueles detalhes eram apenas decorativos e não precisavam de interpretação especial (HUNTER, 1960, p.33-34). Apesar destes esforços pontuais, Blomberg demonstra que, assim como a maioria dos intérpretes até o final do século

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XIX, os estudiosos continuaram a achar várias lições e símbolos em quase todas as parábolas (BLOMBERG, 2004, p.13). Hunter afirma que nos séculos 17 e 18 a Bíblia foi mantida em uma redoma de vidro, como um livro sagrado intocável (HUNTER, 1960, p.36), o que impediu qualquer desenvolvimento alternativo para o uso e interpretação das parábolas ao longo da Idade Moderna. Isto teria mudado com o surgimento do criticismo bíblico no início do século 19, mas ainda sim, figuras centrais na interpretação bíblica da época, como o arcebispo Trench e A. B. Bruce, mantiveram a prática de alegorização na interpretação das parábolas (HUNTER, 1960, p.36-37). Blomberg diz que, apesar das vozes periódicas clamarem por uma mudança, como Crisóstomo na Patrística, Aquino no período medieval e Calvino na Reforma, mesmo estes foram incapazes de evitar a alegoria consistente em suas exegeses (BLOMBERG, 2012, p.35). A persistência da abordagem alegórica às parábolas por quase 19 séculos parece ter duas razões: a primeira é que, conforme explica Blomberg, “qualquer narrativa com ambos os significados literal e metafórico é em essência alegórica” (BLOMBERG, 2012, p.47), de forma que não basta rejeitar o uso de alegorias se a práxis hermenêutica persiste com as mesmas características; a segunda é que a interpretação alegórica permitia aos intérpretes encontrar suas ideias e doutrinas favoritas em qualquer lugar das Escrituras (BAILEY, 2008, p.282), algo especialmente atraente em uma época de disputas doutrinárias e teológicas como foi a Idade Moderna. Ao longo de 19 séculos, a alegoria se difundiu, se desenvolveu e se aprofundou de tal forma nas parábolas que, conforme Bailey aponta, a confusão e a falta de sentido foram consequências quase que inevitáveis. Esta seria a causa da mudança no uso das parábolas ao longo destes tantos anos. Se o pagão Galen viu cristãos embasando sua fé no segundo século a partir de parábolas, chegamos ao fim do século 19 com as parábolas deixando de ser fonte para a fé cristã e sendo limitadas ao uso ético (BAILEY, 2008, p.282).

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1.3.Século 20: o século das parábolas

Apesar dos esforços da crítica textual, é somente no final do século 19 e início do século 20 que surgem os principais avanços acerca do estudo e interpretação das parábolas de Jesus. Adolf Jülicher foi o pioneiro desta nova fase nos estudos sobre as parábolas. Ele entendia que o verdadeiro propósito da parábola é fazer com que o interlocutor dê seu assentimento ao que está sendo expresso por ela. Isso se dá ao não se referir à coisa de forma direta, mas fazer uma espécie de rodeio através de um relato fictício (LEVORATTI apud CETINA, 2004, p.32). Em outras palavras, a parábola rompe com a resistência de se admitir uma verdade não conhecida ao levar o interlocutor para algo que ele admitiria facilmente.

1.3.1. O pioneirismo de Jülicher

O trabalho de Jülicher foi a inauguração de uma nova época na interpretação das parábolas. Sua proposta de uma nova metodologia de interpretação trouxe as parábolas para o centro da discussão acadêmica do século 20. Para Jülicher, as parábolas visam clarificar a verdade através de um caráter argumentativo. Cada uma delas possui uma única ponta que desprende o princípio hermenêutico. A busca desta ponta é a tarefa do exegeta, levando-o a interpretar a parábola como uma unidade, sem fracioná-la em aplicações parciais. Jülicher questiona a interpretação dada pelos Evangelhos, pois, a seu ver, as parábolas não ilustram uma norma sapiencial, mas sim iluminam uma situação difícil em que se encontra a pessoa que diz a parábola, buscando obter consenso e convencimento (LEVORATTI apud CETINA, 2004, p.33-34). Hunter diz que Jülicher livrou as parábolas da alegoria ao toma-las como símiles e se concentrar no único ponto central de cada uma delas (HUNTER, 1960, p.38). Blomberg detalha melhor esta virada na interpretação das parábolas por Jülicher. O primeiro volume da obra lançada em 1899 por Jülicher mostrou a incoerência entre as múltiplas interpretações parabólicas, pondo em questão, após muitos anos, não as interpretações, mas o método em si. No segundo volume, ele introduziu sua abordagem própria para a interpretação das parábolas insistindo que a forma parabólica é longe de

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alegórica como é concebida e que cada passagem tem apenas um ponto central (BLOMBERG, 2004, p.14). Apesar de seu trabalho inovador e pioneiro na história da interpretação das parábolas, Jülicher não foi bem aceito em todas as instâncias acadêmicas do século 20. Seu trabalho passou a ser constantemente revisto e suas falhas foram constantemente enfatizadas, como a acusação de ter feito a tarefa hermenêutica pela metade ao dizer que a parábola existe para mostrar apenas um ponto central, mas sem apresentar qual é este ponto (HUNTER, 1960, p.38). Outra crítica ao trabalho de Jülicher surgiu especialmente de uma pequena minoria de acadêmicos na primeira metade do Século 20 que estudava as parábolas rabínicas. A crítica partia da origem do pensamento de Jülicher, que criou seu método interpretativo a partir de Aristóteles, isto é, de dentro da filosofia grega e não das práticas judaicas do primeiro século. Estes acadêmicos, diz Blomberg, “notaram como as centenas de histórias contadas pelos rabinos antigos desenvolviam regularmente dois, três ou quatro personagens ou detalhes com direcionamento alegórico, mesmo quando não encontrassem significados simbólicos nos elementos restantes de cada passagem” (BLOMBERG, 2004, p.14), diferente da teoria do ponto central de Jülicher. A crítica ao método de Jülicher ganhou volume quando outros acadêmicos passaram a notar que os intérpretes que adotavam a abordagem de um ponto central continuaram a discordar acerca de qual era esse ponto central em cada parábola, fenômeno semelhante ao que Jülicher criticou no uso das alegorias (BLOMBERG, 2004, p.14). Apesar das críticas e da origem no liberalismo alemão do século XIX, ressalta Blomberg, “quase todos os interpretes ao longo de todo o espectro teológico abraçaram a abordagem de Jülicher mais do que eles discordaram dela” (BLOMBERG, 2004, p.14). A interpretação de Jülicher acabou por colocar as parábolas de volta em sua configuração verdadeira, que é o ministério de Jesus visto como o grande ato escatológico de Deus. Assim, ele abriu caminho para o avanço revolucionário de C.H. Dodd (1935), complementado por Joachim Jeremias (1947) (HUNTER, 1960, p.39).

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1.3.2. As pesquisas de Dodd e Jeremias

Mary Ann Tolbert (1979, p.18) considera que os estudos modernos acerca das parábolas se concentraram em duas perspectivas: as parábolas de Jesus e as parábolas dos Evangelhos. Enquanto esta última lida, sobretudo, com a seita do cristianismo primitivo, a primeira busca informações valiosas da mensagem de Jesus. Na perspectiva das parábolas de Jesus se destaca Joaquim Jeremias. Através de um esforço para chegar, retrospectivamente, à ipssissima verba de Jesus, Jeremias tomou o testemunho da igreja primitiva como ponto de partida e avançou em busca do autêntico sitz im leben das parábolas, que são, normalmente, situações de controvérsia, de forma que as parábolas de Jesus podem ser consideradas armas de combate (LEVORATTI apud CETINA, 2004, p.36-37). O esforço de Jeremias resultou na formulação de uma série de “parábolas de Ur”, construções hipotéticas com base na transmissão oral. Ele mostrou que se alguém deseja falar das parábolas realmente contadas por Jesus, deve confiar nestas construções hipotéticas. A pesquisa de Jeremias, como destaque dessa primeira perspectiva, mostra que ela acabou por focar mais na busca de dados históricos sobre a vida e mensagem de Jesus. Do lado das parábolas dos Evangelhos, o foco foi outro. Buscou-se entender os interesses e intenções teológicos e polêmicas dos escritores dos evangelhos. Jack Dean Kingsbury, por exemplo, considerou as parábolas de Mateus capítulo 13 como instrumento da teologia de seu contexto, de forma que o Evangelho de Mateus se torna a norma para interpretar as parábolas deste capítulo. Estes estudos tendem a focar, sobretudo, no contexto histórico e literal do material dos evangelhos e somente subsidiariamente nas parábolas propriamente (TOLBERT, 1979, p.19-21). A perspectiva das parábolas de Jesus foi a vertente mais produtiva. Tomando Jeremias como seu expoente e percebendo que ele não chegou a reconhecer a especificidade das parábolas enquanto parábolas, já que as reduziu à condição de mero instrumento para formular uma doutrina teológica (LEVORATTI apud CETINA, 2004, p.37), é possível enquadrar C. H. Dodd nesta linha interpretativa. Ele compreende as parábolas como a expressão natural de uma mente que vê verdade melhor em imagens concretas do que em conceber isto em abstrações (DODD, 1965, p.16). Dodd interpreta as parábolas sob o olhar da Escatologia Realizada, de forma que elas usam recursos da ilustração dramática para ajudar os homens a verem, nos eventos diante de seus olhos feitos por Jesus, que Deus os está

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confrontando em seu Reino, poder e glória, ou seja, a parábola marca seu momento como hora de decisão (DODD, 1965, p.147-148). Segundo Dodd, os feitos de Jesus marcam a consumação escatológica, de forma que suas parábolas não são mera analogia, mas possuem uma afinidade intrínseca com a efetivação do Reino de Deus entre a ordem natural e espiritual. Assim, a parábola não é vista enquanto parábola, mas sim como uma manifestação de julgamento da situação presente através da situação imaginada, de forma que sua interpretação não consiste na decodificação dos vários elementos da história (DODD, 1965, p.20-21). Ele não descarta os elementos históricos, mas os coloca em função do presente. Os elementos históricos mostram o caminho certo para aplicar as parábolas na nossa própria nova situação. Dodd, semelhantemente a Jeremias, considera as parábolas como armas em uma situação conflitiva, mas em âmbitos escatológicos. Por isso ele entende que os ensinamentos das parábolas podem ser aplicados e reaplicados de forma frutífera para todo tipo de novas situações que nunca foram contempladas na época em que foram ditas (DODD, 1965, p.146).

1.3.3. Alternativas interpretativas do século 20

Jülicher, Jeremias e Dodd formam uma linha interpretativa que predominou por muitos anos, mas ela não foi a única. A análise profunda das parábolas de Jesus feita por estes autores acabou por enquadrá-las em um método teológico que nem sempre condiz com sua aplicabilidade no ministério de Jesus. Pelo contrário, o não consenso nos pontos centrais das parábolas a partir do trabalho de Jülicher, o caráter fictício das parábolas recriadas por Jeremias e a flexibilidade escatológica das parábolas em Dodd parecem não avançar em muito nos dilemas da variabilidade interpretativa que as parábolas já carregavam com o método alegórico. Assim, outros estudos, como o de Jacques Dupont – que revisa as parábolas como forma de levar o interlocutor a ver posteriormente a situação tal como Jesus vê – e Eta Linnemann – que as entende como um meio de diálogo, destinado a mostrar que se pode ver a realidade de um modo novo e melhor (LEVORATTI apud CETINA, 2004, p.36-37) – tem trazido de volta a questão da funcionalidade das parábolas de Jesus.

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“Dodd e Jeremias restauraram estas belas imagens aos seus quadros perdidos”, disse Hunter (1960, p.41), mas vale ressaltar outras figuras importantes para a interpretação das parábolas ainda no início do século 20. Bultmann e outros autores, a partir da crítica da forma, analisaram as parábolas por uma perspectiva mais prática, mostrando como elas foram usadas pelos primeiros pregadores cristãos. A circulação constante destas histórias teria levado à perda das formatações originais das parábolas conforme os líderes de igreja as reaplicavam às necessidades de suas comunidades (HUNTER, 1960, p.40). Também vale ressaltar autores estruturalistas como Via e Crossan que, apesar de compartilharem de uma mesma escola hermenêutica, chegavam a interpretações diferentes (TOLBERT, 1979, p.28-29). É na segunda metade do século 20 que as principais e mais bem desenvolvidas alternativas de interpretação das parábolas surgem. E isto não apenas por parte de exegetas e acadêmicos, Blomberg ressalta que houve um movimento por parte dos pregadores, que eram encorajados a tornar contemporâneas as parábolas, dando-lhes trajes contemporâneos e tentando recriar o tipo de dinâmica ou efeito que elas teriam tido em seu contexto original (BLOMBERG, 2004, p.15). O próprio Hunter, cujo livro é de 1960, escreve com o propósito de elucidar as parábolas cujos temas do Reino Jesus quis mostrar na época (p.41). Da mesma forma, Mary Ann Tolbert, em seu livro de 1979, apropria-se da semiótica para desenvolver um modelo alternativo. Ela se baseia em Wittig, que entende a parábola como um “duplex semiótico”, onde o significado se transforma no significante, de forma que cabe ao interprete o novo significado a partir do significante. Assim, diferente das correntes originadas em Jülicher, “o significado da parábola reside na interação entre o texto da parábola e o sistema de interpretação trazido pelo interprete para completar o processo de significação” (TOLBERT, 1979, p.36-39). O esforço de Tolbert e da escola interpretativa em que ela se embasa tira o significado da parábola de dentro dela e o deposita no intérprete, pela interação do texto com o contexto em que será aplicada (TOLBERT, 1979, p.49). Assim, “colocar a parábola dentro de qualquer contexto interpretativo resulta essencialmente no alongamento da narrativa para incluir este contexto” (TOLBERT, 1979, p.53). Esta linha interpretativa passa a ter a interpretação das parábolas como arte criativa (TOLBERT, 1979, p.70), de forma que o que importa é o estudo da estrutura narrativa superficial visto que ela incorporará a mensagem da parábola, acrescentada pelo intérprete (TOLBERT, 1979, p.73). "Se a parábola tem algum sentido único e dependente, este é o que a

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mente humana cria significância, e só pode entender-se completamente quando puder se compreender no ato de fazer significado”, diz Wittig (apud TOLBERT, 1979, p.70), apontando para um esforço de interpretação adequado às novas frentes de pesquisa de seu tempo, mas gerando um resultado que não difere muito das múltiplas interpretações e elasticidade das alegorias. Blomberg chama a atenção para outra alternativa hermenêutica do século 20 que vale a pena dedicar atenção: a Nova Hermenêutica, cuja preocupação está em descrever o que as parábolas fazem ao invés do que elas significam (BLOMBERG, 2012, p.155). O ponto central desta alternativa interpretativa está vinculado à uma nova perspectiva sobre metáforas, que diferiria da noção comum de parábolas e anistiaria estes ensinos de Jesus das alegorias. Blomberg (2012, p.154) lista seis diferenças entre a compreensão tradicional e moderna de metáforas por parte da Nova Hermenêutica que Paul Ricoeur, o principal representante do movimento, apresenta: 1.

a unidade fundamental de sentido não é a palavra individual, mas uma sentença inteira;

2.

uma metáfora não é um desvio do sentido literal de uma palavra, mas a criação de tensão por palavras justapostas que não estão normalmente juntas (“o homem é um lobo” ou “o bom samaritano”);

3.

entender a metáfora não vem de notar a semelhança entre o sentido literal e o figurado usado, mas de reconhecer o choque criado pela justaposição de palavras tipicamente incompatíveis;

4.

metáforas não são substitutas da linguagem literal, mas inovações semânticas;

5.

similarmente, elas não são traduzíveis em discurso proposicional, como é tradicionalmente concebida;

6.

metáforas não são meros ornamentos literários, mas mecanismos que transmitem novas informações sobre a realidade.

Em contraposição a esta lista, Blomberg (2012, p.158) coloca seis razões que demonstram como esta nova perspectiva está fundamentalmente enganada: 1.

linguagem performática pressupõe certas verdades proposicionais;

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2.

a ênfase moderna no significado da metáfora como intimamente ligada com o contexto literário mina o interesse da nova hermenêutica na autonomia das parábolas;

3.

o fato de muitas parábolas do Evangelho serem expressas como símiles (“o reino de Deus é como...”), mas com aparentemente pouca, se não nenhuma, diferença em sua função dessas que são metáforas puras (i.e., sem termos comparativos) gera uma distinção rápida e eficaz entre as duas formas seriamente suspeitas;

4.

o grande poder das parábolas de criar um evento de linguagem desafia persuasivamente crenças tradicionais e coloca essas metáforas fora como diferentes das mais enigmáticas que são duras para traduzir em linguagem proposicional;

5.

alguns tipos de metáforas são mais suscetíveis à substituição que outras, mais notavelmente aquelas em que as metáforas são muito restritas para serem sujeitos ou substantivos da sentença;

6.

até mesmo a melhor tentativa em aplicar consistentemente uma abordagem não-proposicional para interpretar a parábola falha.

A conclusão de Blomberg após analisar e criticar a Nova Hermenêutica é quase frustrante após todo o percurso feito ao longo do século 20. Ele diz que “utilizar os métodos da nova hermenêutica pode realmente fortalecer o caso para o caráter alegórico das parábolas” (BLOMBERG, 2012, p.189).

1.4.Um veredicto acadêmico

Ao longo de 20 séculos, cristãos, pregadores, teólogos e acadêmicos interpretaram as parábolas de formas diferentes, mas, por mais dedicados que fossem, não conseguiram ir muito além do espectro da alegoria. Isso leva a um olhar diferenciado sobre a alegoria nas parábolas. O espectro alegórico sobre as parábolas está difundido por todos os intérpretes, uma vez que “ao longo dos séculos, a interpretação das parábolas por estudiosos da Igreja tem sido colorida não apenas por suas

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doutrinas das Escrituras Sagradas, mas também por suas teologias”, assume Hunter, “nisto todos pecamos” (1960, p.21). Tolbert reforça esta noção, dizendo que “o fenômeno das múltiplas interpretações das parábolas independe do tipo de método usado, do contexto cultural do interprete ou do período ou tempo dos estudos” (TOLBERT, 1979, p.33). Parece que a alegoria combatida por tantos anos não só é inevitável, como talvez não seja este mal que por tantos anos se acreditou ser. Blomberg diz que “o erro dos intérpretes pré-modernos está no uso descuidado e anacrônico da alegoria, não no método em si” (BLOMBERG, 2012, p.47) e conclui que, “longe de ser uma forma de arte inferior, evitada pelo mestre professor, a interpretação alegórica é um método inevitável de explicar as parábolas, que até mesmo aqueles que negam isto em teoria não conseguem evitar na prática” (BLOMBERG, 2012, p.46). A história da interpretação das parábolas parece apontar para um esforço muito grande, com muitos frutos, mas nem tantos resultados práticos. Klyde Snodgrass traduz este fenômeno histórico: "um tremendo esforço tem sido gasto tentando distinguir parábola de alegoria, mas no fim temos que admitir que este esforço é um fracasso completo, apesar dos galões de tinta gastos" (apud BLOMBERG, 2012, p.54).

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2. 300 ANOS EM 3: O DESAFIO PEDAGÓGICO DE JESUS

A análise histórica da interpretação das parábolas ao longo de 20 séculos revela que a principal preocupação dos estudiosos foi descobrir como entendê-las, deixando de lado uma questão crucial: como foram usadas. Esta questão é crucial pela forma como elas aparecem nos evangelhos sinóticos. Boa parte de seu ministério na Palestina Jesus passou ensinando. Para isso, ele se utilizou de diversas formas de discurso bem estabelecidas para alcançar seu público com conteúdos distintos. Formas como provérbios, hipérboles e profecias constavam em seus métodos de ensino. Da mesma forma, o uso de parábolas era um método de instrução muito bem conhecido da época (BLOMBERG, 2012, p.69). O evangelho de João revela o desafio pedagógico que Jesus tinha: “Tenho ainda muito que vos ensinar, mas vós não o podeis suportar agora” (Jo 16.12). Jesus tinha um grande conteúdo a passar para seus discípulos, os quais não estavam prontos para receber tudo o que ele tinha a ensinar. Entretanto, não havia muito tempo para transmitir todo este ensino. Uma leitura histórica do cristianismo leva a perceber que o ensino de Jesus ao longo de três anos de ministério deveria permanecer na mente de seus discípulos e primeiros cristãos por, pelo menos, trezentos anos, até que os escritos do Novo Testamento fossem reunidos em um cânon em meados do século 4 d.C., assegurando a preservação escrita de tais ensinamentos. Diante de um desafio de transmitir trezentos anos de ensino em apenas três de ministério, a opção de Jesus pelas parábolas como método de ensino não pode ser à toa. Blomberg relembra que em sociedades majoritariamente iletradas, com a do Mediterrâneo antigo, os documentos escritos tem um papel secundário na manutenção da memória (BLOMBERG, 2012, p.117). No contexto do povo hebreu, a necessidade de amparar a memória através de métodos de ensino se mostra ainda mais forte. Como o historiador Jacques Le Goff diz: “O povo hebreu é o povo da memória por excelência” (LE GOFF, 2012, p.425), sendo ela um mecanismo da própria identidade judaica (LE GOFF, 2012, p.424). Diante dessa realidade que Jesus se deparou ao ensinar, as parábolas foram um instrumento pedagógico preciso. Como Stiller (2005, p.10) chama a atenção, muitos ouvintes

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de Jesus não podiam ler, então a forma com que aprendiam era pela memorização do ensino oral e as parábolas estão enraizadas na cultura oral da Palestina do primeiro século. A própria natureza enigmática dos ensinos de Jesus sugere o uso do recurso da memória, conforme a educação elementar no Oriente Médio, ao instruir que o ensino era para ser apreendido primeiro e depois meditado. Blomberg (2012, p.110) diz que o chamado de Jesus aos seus discípulos em Marcos 13.28 para “aprenderem essa lição” pode apontar para esta prática. Diante disto, a questão de como as parábolas foram usadas por Jesus se mostra crucial, pois mais do que um método de ensino, elas faziam parte de programa pedagógico a longo prazo de Jesus. Mas seriam as parábolas realmente eficientes para a memorização?

2.1.Recursos mnemônicos3 das parábolas de Jesus

Diversos estudos ressaltam as características das parábolas, tanto gramaticais quanto semânticas e interpretativas. E na grande maioria dos estudos a relação com a memória está presente. Zuck (1994, p.234) diz que exageros, hipérboles, inversões e situações atípicas aumentam o impacto de muitas das parábolas, de forma que elas têm sua efetividade garantida nas características que as definem como parábolas. Muilenburg (apud TOLBERT, 1979, p.78) ressalta que a repetição, muito comum nas estruturas gramaticais das parábolas, também é um recurso mnemônico efetivo. Não só os elementos gramaticais cooperam para o caráter mnemônico das parábolas, mas também suas marcas de oralidade. Elas eram concretas e, segundo Stiller (2005, p.10), a concretude da história era crucial para que o ouvinte a guardasse na memória, no contexto da tradição hebraica. A concretude das parábolas é regida pela concisão e simplicidade, uma vez que é linguagem oral em nível popular, o que para Scholz (1999, p.83), é decisivo para que sejam memorizadas. 3

“Mnemônico” vem do grego mnêmonikós que corresponde a algo relativo ou que pertence à memória, que

serve para desenvolver ou facilitá-la em termos de técnicas e exercícios. A etimologia deste termo grego remonta à deusa Mnemosine, personificação da memória, de quem teriam nascido as musas, responsáveis pela inspiração dos poetas gregos por meio da lembrança das histórias antigas.

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A comparação de Stiller parece resumir como os recursos mnemônicos das parábolas operavam para a época de Jesus. Ele diz que “uma parábola, assim como uma piada, é curta; se ela for muito longa, não pode ser lembrada. Por isso, em um aparato literário onde memória era crucial para o aprendizado, brevidade era essencial” (STILLER, 2005, p.10).

2.2.As parábolas de Jesus em Mateus 13

Como averiguação do uso das parábolas por Jesus e seu propósito mnemônico, é válido aqui analisar o maior compêndio de parábolas encontrado nos evangelhos sinóticos e apresentado explicitamente como momento de ensino: o capítulo 13 do evangelho de Mateus. Propõe-se aqui fazer isto a partir de perspectivas clássicas de análise das parábolas neste capítulo para depois atualizar a pesquisa com relação às parábolas e seu caráter mnemônico. Kingsbury traduz uma perspectiva bem aceita por boa parte dos acadêmicos ao entender Mateus 13 como instrumento de afirmação teológica da igreja do primeiro século, sendo que o princípio hermenêutico de suas parábolas está no próprio evangelho. Dodd diz que “o evangelho não é o estabelecimento de verdades religiosas gerais, mas a interpretação daquilo que aconteceu” (DODD, 1965, p.151) e afirma que a fórmula introdutória “o Reino de Deus é como...” – em Mateus, “O Reino dos céus é como...” – pode ser vista como dando a aplicação das parábolas (DODD, 1965, p.27). Em certo sentido, esta afirmação parece corroborar com a ideia de Kingsbury, que interioriza ao evangelho a interpretação de suas parábolas. Apesar de adotar um pressuposto já não tão aceito entre os estudiosos de Mateus, Sandro Gallazzi (2012, p.205-206), comparando a estrutura de Mateus com o Pentateuco, identifica o capítulo 13 como o auge do trecho que corresponderia ao livro de Números, ressaltando as dificuldades e conflitos de uma caminhada na qual se identifica e se fortalece o novo povo que se formou ao redor de Jesus e dos pequenininhos. Assim, ele ressalta que o conflito marca as entrelinhas de todas as parábolas contidas neste capítulo (GALLAZZI, 2012, p.158). Levoratti (apud CETINA, 2004, p.133) divide o capítulo 13 de Mateus em dois momentos: no barco com a multidão (v.1-33) e na casa com os discípulos (v.36-50). D. A.

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Carson (2010, p.355-356) destaca o fato de que este é o único dos cinco principais discursos de Jesus no Evangelho de Mateus que é dirigido às multidões e, baseando-se em Jacques Dupont, identifica que o contraste entre discípulos-multidão é central neste capítulo, relacionando-se com o que é justo ou injusto e com estar, ou não, fazendo a vontade do Pai. Para Carson, a crescente oposição a Jesus encorajou o uso cada vez maior de parábolas (CARSON, 2010, p.360). Considerando

o

eixo

interpretativo

Jülicher-Jeremias-Dodd

e

as

correntes

interpretativas que os seguem, percebe-se que o capítulo de Mateus 13, enquanto discurso parabólico, constitui-se em meio a um cenário de fortes tensões, protagonizado pela multidão e pelos discípulos. Essa tensão parece refletir direta e indiretamente nas oito parábolas deste capítulo. A parábola do semeador (v.1-9) e sua sucessiva explicação (v.18-23) se concentram, segundo Carson, nos solos e apresenta a ideia de avanço do Reino deparando-se com respostas distintas (CARSON, 2010, p.361), isto é, uma tensão cujo objetivo seria levar os ouvintes a pensarem qual é a sua posição, segundo os tipos de solo (CARSON, 2010, p.366). Levoratti acrescenta que a transição da parábola em si para sua explicação dá um novo sentido: do Reino que chega, vai para os perigos que ameaçam a fé, onde o interesse cristológico dá lugar à preocupação moral (LEVORATTI apud CETINA, 2004, p.136), como que transitando entre as instâncias dessa situação de conflito. Gallazzi, por sua vez, faz uma leitura metalinguística desta parábola e considera a própria parábola como a semente lançada (GALLAZI, 2012, p.260), isto é, a parábola é a ferramenta para lidar com a tensão. Diante dessa primeira parábola, Gallazzi reflete na postura de Jesus em meio os eixos de tensão. Ele diz que Jesus complica, no sentido original da palavra que vem do latim “cumplicare”, que quer dizer entrelaçar, estar unidos. Sua ideia está na proximidade dos discípulos com Jesus, de forma que a cumplicidade é a condição necessária para conhecer os mistérios do Reino. Somente aos cúmplices de Jesus é dado a conhecer, tanto é que a explicação desta parábola não se utiliza mais de metáforas e alegorias. Ela é clara e sem ambiguidade, destinada apenas aos discípulos (GALLAZZI, 2012, pp.260-262). Segundo Carson (2010, p.366), essa tensão se dava em todo o ministério de Jesus relatado por Mateus, no qual, de um lado, há a vontade decretada de Deus e o resultado de profecia bíblica e, de outro, há uma terrível rebelião, grave embotamento espiritual e incredulidade crônica. Isso põe a responsabilidade pela rejeição divina sobre aqueles que falham em se tornar discípulos – não se tornam cúmplices – de forma que as parábolas contadas visam desafiar os ouvintes.

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A parábola do joio (v.24-30) e sua explicação posterior (v.36-43) parecem reforçar esse sentido de confronto e desafio, devido ao contexto de tensão. Ela se estrutura como uma afronta à impaciência messiânica de muitos, contrapondo o tempo presente ao dia do juízo (CETINA, 2004, p.136). Para Carson, todas as parábolas, na verdade, pressupõe necessariamente alguma forma de escatologia realizada a fim de fazer com que suas exigências éticas tenham sentido (CARSON, 2010, p.364) e na parábola do joio isso fica claro em sua explicação, onde Jesus se coloca como o Juiz escatológico (CARSON, 2010, p.385). Levoratti (apud CETINA, 2004, p.139) ressalta isso ao dizer que a interpretação desta parábola se faz de forma alegórica e moralizante para a comunidade cristã. A parábola do joio também transita entre os lados de tensão e o confronto pela parábola é feita aos dois lados – afinal, a esperança messiânica era compartilhada pelos discípulos e pelas multidões – porém somente o lado próximo de Jesus recebe sua explicação. Nas duas parábolas complementares seguintes, do grão de mostarda (v.31-32) e do fermento (v.33), a tensão parece ser refletida nos contrastes acerca do Reino. Como Carson afirma, não era preciso enfatizar a grandeza futura do Reino, pois poucos duvidariam disso, mas era importante ressaltar a conexão com o início pequeno através da figura do grão de mostarda. Segundo ele, enquanto a semente de mostarda sugere crescimento extenso, o fermento, transformação intensa. As duas parábolas refutam a instauração apocalíptica e imediata do Reino dos céus, afirmando seu surgimento silencioso e pequeno (CARSON, 2010, p.375-376). Essa parece ser uma resposta à tensão. Independente dela, o Reino se instaura e exige mudança daqueles que desejam participar dele. A leitura metalinguística de Gallazzi novamente aprofunda a ação da parábola nesta questão. A parábola não é apenas ferramenta de anunciação deste fato, mas, assim como o grão enterrado e o fermento misturado, ela permeia nos ouvintes, envolvendo-os, questionando-os e suscitando perguntas, ou seja, sem que se veja, a parábola já está agindo (GALLAZZI, 2012, p.269). Além das duas explicações particulares aos discípulos, cúmplices de Jesus, outras quatro parábolas são propostas exclusivamente a eles. Estas parábolas não só reafirmam o que foi dito à multidão, como expandem seus ensinamentos a questões específicas referentes aos que já se posicionaram ao lado de Jesus e do Reino dos céus. As parábolas do tesouro (v.44) e da pérola (vv.45-46), por exemplo, novamente apresentam um padrão de instauração do Reino distinto da forma apocalíptica esperada, ressalta seu valor oculto (CARSON, 2010, p.386) e coloca aos discípulos a necessidade de um sacrifício que não é extraordinário ou heroico, muito menos impossível, mas alegre e fácil, visto a dimensão e bondade do Reino, que traz

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felicidade total e absoluta (CETINA, 2004, p.140). A parábola da rede (v.47-50) vem embutida com sua explicação e deixa claro que o reinado de Deus será futuro, assim como o julgamento (CETINA, 2004, p.141), ressaltando a ideia de tensão entre dois lados opostos ao explicitar uma classificação completa através do julgamento (CARSON, 2010, p.389). A última parábola vem, curiosamente, após uma pergunta acerca da compreensão das parábolas (v.51). Carson aponta a estrutura quiasmática do capítulo 13 como a razão disto. As parábolas exclusivas aos discípulos nada mais são do que outra forma de apresentar o que foi dito à multidão, sendo, segundo Carson, difícil imaginar como alguém poderia entender uma parte e não entender as demais (CARSON, 2010, p.390). A diferença, segundo a parábola do mestre da lei (v.52), seria a compreensão por parte dos discípulos devido à proximidade de Jesus. O ensino de Jesus é posto como fonte de todas as coisas novas e antigas (CETINA, 2004, p.141) e, como Carson diz, “só os ‘discípulos’ de Jesus são capazes de produzir coisas novas e velhas: os mestres da lei judeus produziriam apenas as velhas” (CARSON, 2010, 393).

2.3.Uma revisão do uso das parábolas por Jesus

No capítulo 13 de Mateus, as parábolas aparecem como instrumento em meio a uma situação de conflito. Elas são aplicadas como reação e resposta a essa situação, instigando tanto a multidão quanto os discípulos a refletirem quanto à sua posição diante do Reino dos céus. Neste meio, Jesus se torna o foco de distinção entre a multidão e os discípulos, isto é, a proximidade e cumplicidade com Jesus é que define a compreensão das parábolas e a afirmação do posicionamento entre as áreas de tensão. Zuck afirma que "a resposta a este dilema está no caráter dos ouvintes" (apud KUNZ, 2007, p.23-24), como se a eficácia do uso de parábolas dependesse de “disposições interiores: para aquele que não quer crer, a parábola, precisamente por sua forma literária simples, obstrui o caminho da compreensão do sentido espiritual; já para os corações simples e bem dispostos, as parábolas são revelação” (LAUAND, 2012, p.37). Entretanto, como Fee e Stuart (2009, p.122) apontam, o evangelho de Lucas dá pelo menos três evidências de que as parábolas poderiam ser compreendidas por todos (Lc 15.3; 18.9; 19.11). Não seria uma questão de disposição interior, visto que, como Fee e Stuart reforçam, “o intérprete da Lei, a

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quem Jesus contou a parábola do Bom Samaritano (Lc 10.25-37), compreendeu a parábola, assim como os principais sacerdotes e os fariseus compreenderam a parábola dos lavradores maus em Mateus 21.45” (FEE & STUART, 2009, p.122). Uma percepção que parece se aproximar mais com o que a breve análise de Mateus 13 feita acima apresentou é o que Manson disse: "a verdadeira parábola (...) não é uma ilustração para ajudar a esclarecer uma discussão teológica; pelo contrário, é uma forma de experiência religiosa" (apud BAILEY, 1995, p.13). O ensino de Jesus por parábolas parece se realizar através de uma troca de conhecimento intimista, onde a proximidade e a experiência dos ouvintes são fundamentais para acessar o “aglomerado de temas teológicos”, como diz Bailey (1995, p.26), “que conjuntamente levam o ouvinte original a tomar a sua única decisão/reação". Para Bailey, as parábolas de Jesus tem um alcance universal, apesar de distinto em cada pessoa, uma vez que “é nesse conglomerado de temas teológicos que encontramos a mensagem para todas as pessoas em qualquer lugar e qualquer tempo" (BAILEY, 1995, p.27). Como Carson bem afirma, Jesus não prega jogando pérolas aos porcos. Para Carson, é ingênuo dizer que Jesus contava parábolas para que todos pudessem apreender a verdade com muito mais facilidade e é simplista dizer que a única função delas para os de fora seria condená-los (CARSON, 2010, p.366). Buscar entender o ensino das parábolas deve começar por analisar o aprendizado de seus ouvintes privilegiados. Os discípulos não são, de forma alguma, idealizados. Eles também necessitam de explicação, entretanto, em contrapartida da multidão, eles seguiram a Jesus de verdade, o que lhes permitiu aprender de forma gradual toda a guinada crítica na história que se desenvolvia neste curso da redenção que Jesus vinha apresentando (CARSON, 2010, p.368). Por isso eles entendiam melhor que a multidão, mas isso não quer dizer que as parábolas não lhes fosse um desafio. Eles, inclusive, são criticados acerca de sua lentidão em entender (Mt 15.16). Se a única diferença entre os discípulos e a multidão é a compreensão devido à proximidade com Jesus, não é difícil admitir que as parábolas, enquanto recurso retórico, foram capazes de causar os mesmos efeitos, tanto nos discípulos como na multidão. Pedro Ortiz (apud CETINA, 2004, pp.20-23) sistematiza algumas das funções didáticas e retóricas encontradas nas parábolas em todo o seu repertório bíblico:

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a. Função didática: proporciona maior claridade, facilitando a captação; tem maior força e vivacidade, capturando a atenção dos ouvintes; e possui uma melhor fixação na memória. b. Função interpelante: estabelece relação direta com o ouvinte, levando-o não apenas a entender, mas também agir. c. Função estética: apela à imaginação e ao sentimento dos ouvintes. d. Função simbólica: expressa, através de imagens, realidades transcendentes.

Diante destas funções, Ortiz denomina o ensino parabólico de Jesus como um ensino esotérico, onde toda a sua linguagem – desde a formulação de suas figuras até a escolha dos termos – é destinada exclusivamente à compreensão dos de dentro (apud CETINA, 2004, p.24). Entretanto, retomando Carson, se Jesus quisesse simplesmente esclarecer algo, o diria diretamente (CARSON, 2010, p.366) e, poder-se-ia complementar, se Jesus quisesse dizer apenas aos de dentro, para que se preocupar em discursar ao mesmo tempo para os de fora? Apesar desta conclusão limitada de Ortiz, sua sistematização das funções das parábolas nos ajuda a identificar essas categorias em outros autores e situações. Levoratti (apud CETINA, 2004, 133) define a parábola como “uma revelação em ato, que atua imediatamente sobre a pessoa que a escuta e é capaz de abrir seu espírito à compreensão”. A razão, para Levoratti, desta abertura possibilitada pela parábola estaria no fato de, no caso de Jesus, serem ensinamentos pertencentes à sabedoria popular, mas que todos deviam aprender e reaprender continuamente. Jesus fazia muito bem isso ao narrar tal sabedoria popular com perspicácia e finura (apud CETINA, 2004, p.30). Assim, o significado da parábola surge de uma combinação de ideias e sentimentos, onde a ironia, o suspense e o clímax apelam simultaneamente aos sentimentos e à reflexão, de maneira que um e outro elemento operam juntos na produção e na captação do sentido. Caso a parábola não produza esse efeito, ela cairá no vazio, mas se tiver sucesso, alcança seu sentido pleno (CETINA, 2004, p.58-59). Herbert Lockyer também lida com a união das funções para a produção do efeito desejado na parábola. Ele entende que uma característica essencial da parábola está em unir duas coisas diferentes, de forma que uma ajude a explicar e a ressaltar a outra (LOCKYER, 2001, p.11). Assim, a parábola presta grande auxílio à capacidade de raciocinar, pois seus significados devem ser estudados e não apenas ouvidos, de forma que apenas os pensadores entendiam seu significado. Para Lockyer, neste ponto é que estaria o propósito de Jesus em

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utilizar as parábolas, pois ele não poderia ensinar nada se não levasse seus ouvintes a ensinar a si próprios, isto é, somente quando as pessoas pensam por si mesmas é que aprendem e nunca esquecem. Somado a esse efeito racional das parábolas, sua linguagem de símbolos é mais poderosa e duradoura do que qualquer outra linguagem abstrata, garantindo a retenção na memória (LOCKYER, 2001, pp.17-18). Esta ação das parábolas na mente dos ouvintes, estimulando o raciocínio e fixando-se na memória, também foi percebida por Dodd. Ele afirmou que o apelo das parábolas à imaginação as fixou na memória e lhes deu lugar seguro na tradição, por isso não há outra parte do registro do Evangelho que tenha, para o leitor, um sinal mais claro de autenticidade (DODD, 1965, p.13). Uma vez que as parábolas tem esse efeito ativo na memória de cada um dos ouvintes, não é de se admirar que em cada um dos evangelhos sinóticos as parábolas aparecem em arranjos distintos. Mesmo se entendidas como tendo apenas um ponto central, como defendeu Jeremias, sua ação ativa faz com que elas sejam dotadas de uma grande plasticidade (CETINA, 2004, p.142). Diante de tantas características didáticas e retóricas das parábolas, é válido o alerta dado por Gallazzi: Mesmo usando a linguagem mais simples, a metodologia mais didática, os exemplos mais quotidianos, ninguém pode ver, ouvir e entender o novo que está acontecendo, se não for capaz de mudar sua lógica, sua compreensão das coisas, sua visão de história. Os compatriotas de Jesus viram, ouviram e entenderam todas as ‘palavras’, mas não conseguiram ver, ouvir e entender que Jesus, longe de ser o mestre douto ou o poderoso taumaturgo, era a semente jogada, o grão enterrado, o fermento na massa, a pérola e o tesouro escondido (GALLAZZI, 2012, p.281).

A partir do momento em que se esquece do lugar histórico de onde se lê a parábola, surge a grande possiblidade de uma condenação injusta dos ouvintes de Jesus e uma incompreensão da amplitude da ação pedagógica do Cristo. Assim como Lucas relata em seu evangelho, que somente após a ressurreição é que o entendimento dos discípulos se abriu para compreenderem as Escrituras (Lc 24.45), as parábolas de Jesus não eram as únicas coisas incompreensíveis. Talvez os discípulos só pudessem compreender o aspecto escatológico daquele ensino quando ele foi realizado, isto é, após a ressurreição. Entretanto, para poderem entender, eles teriam que tê-los na memória até lá, sabendo as diretrizes em que aplicá-los. E isto não só aos discípulos, mas também à multidão que ouviria estes recém-formados apóstolos.

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As parábolas, então, atenderiam à necessidade da memória, em uma espécie de “didática profética” utilizada por Jesus. Em uma situação de tensão, onde o endurecimento do povo é crescente, o discurso parabólico se encaixa perfeitamente. Assim, como Levoratti (apud CETINA, 2004, p.135) afirma, o endurecimento do povo é a causa e não o efeito do discurso parabólico. À luz de Mateus capítulo 13, diante desta nova fase do ministério de Jesus inaugurada pelo discurso de parábolas, aos que tem a capacidade de entender, se abre a possibilidade de uma iluminação e por isso a explicação das parábolas é reservada aos discípulos (CETINA, 2004, p.135). A proximidade com Jesus garantia a eficácia imediata do ensino, enquanto o caráter mnemônico das parábolas permitia que o ensino permeasse e permanecesse até que pudesse ser plenamente compreendido e aproveitado.

2.4.A necessidade da memorização para os primeiros cristãos

A memória também aparece na Bíblia como uma necessidade para os discípulos após Jesus partir. O último discurso de Jesus antes de sua crucificação no evangelho de João, durante a última ceia, enfatiza que seu ensino não pode ser aprendido pelos discípulos, pois estes ainda não estavam aptos a recebê-lo naquele momento (Jo 16.12). Entretanto, isto não quer dizer que Jesus não o transmitiu aos seus seguidores. Jesus, ao apresentar o Espírito Santo como seu sucessor na tarefa de ensinar os discípulos, atribui-o duas tarefas complementares: o ensino e a lembrança (Jo 15.26). A ação instrutora do Espírito Santo não se daria apenas por conteúdo inédito aos discípulos, mas também aprendizagem por rememoração. Jeremias ressalta que a necessidade de memorização dos discípulos não é só uma questão de instrução de Jesus para que se lembrassem no devido tempo (Jo 16.4), mas também reflexo da própria expectativa escatológica do ministério de Jesus. Segundo Jeremias (2004, p.41), entre a cruz e a parusia, a Igreja se interroga acerca das orientações de Jesus e as encontra, entre outras, na medida em que ela toma as parábolas de Jesus que tinham a intenção de acordar a multidão diante da seriedade da hora, tirando delas orientações para a conduta da vida da comunidade, vergando-as de sua acentuação escatológica para a parenética.

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Jacques Le Goff (2012, p.425-426), em uma perspectiva histórica, aponta que o cristão era chamado a viver pela rememoração das palavras de Jesus, como diz em Atos 20.35: “é preciso lembrar-nos das palavras do Senhor Jesus”; e 2Timóteo 2.8: “lembra-te de Jesus Cristo, da Casa de Davi, ressuscitado dentre os mortos”. Le Goff acrescenta que, pelas palavras do próprio Jesus, percebe-se que essa memória não era abolida na vida futura, como demonstra a parábola do Rico e Lázaro, onde Lucas põe as seguintes palavras na boca de Abraão: “lembra-te que recebeste os teus bens durante a vida” (Lc 16.25). A memória de Jesus é transmitida pela cadeia de apóstolos e seus sucessores, tendo como principal exemplo o apóstolo Paulo, instruindo seu sucessor Timóteo: “o que aprendeste comigo na presença de numerosos testemunhos, confia-o a homens seguros, capazes de, por seu turno, instruírem outros” (2Tm 2.2). Como Le Goff bem define, “o ensino cristão é memória, o culto cristão é comemoração” (LE GOFF, 2012, p.426). Halbwachs (apud SMITH, p.186) acrescenta a importância e necessidade da memória para os primeiros cristãos ao trazer à discussão a memória coletiva. Segundo ele, até que as imagens da memória sejam projetadas em um local concreto, seja uma identidade cristã ou o processo de escrita apostólica e a formulação posterior do cânon do Novo Testamento pela reunião destes escritos, elas permanecem fragmentadas em si mesmas. Somente com a interação de uma comunidade e o ato coletivo de lembrar é que seria possível realizar a integração destas imagens específicas formuladas no presente, para então serem associadas ao passado. A memória social, para Blomberg (2012, p.115), é o que provê estabilidade que a memória de uma única pessoa sozinha não pode oferecer. Ou seja, a necessidade de memorização e rememoração por parte dos primeiros cristãos foi um quesito de unidade e integração da comunidade, levando à formação de uma identidade baseada na vivência passada com Jesus e alicerçada na vivência presente, regida pelas recordações dos ensinos de Jesus. Ser cristão, no início do Cristianismo era, necessariamente, viver pela memória de Cristo.

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2.5.Evidências para a memorização das parábolas

A memorização aparece como um recurso didático nos ensinos de Jesus em resposta à necessidade de memorização e rememoração pelos primeiros cristãos, pelo menos até que o cânon do Novo Testamento fosse consolidado por volta do século 4 d.C. e a memória coletiva arregimentada no texto escrito e oficializado. Como Nora (apud SMITH, 2006, p.196) afirma, “o surgimento da escrita e das fontes escritas da história marcam uma transição que afasta a consideração da memória oral como forma de prestígio cultural de recordação”. Esta desconsideração da memória oral como forma de recordação é muito mais intensa no mundo moderno, onde as formas escritas de transmissão de conhecimento se difundiram tanto ao ponto de até mesmo omitir a necessidade de memorização. Esta perspectiva marcou muito os estudos dos evangelhos sinóticos, sobretudo com a hegemônica teoria das fontes que, apesar de não assumir explicitamente o uso de fontes documentais, leva em seu discurso esta forma de transmissão de conhecimento na elaboração de tais evangelhos. Entretanto, pesquisas mais recentes baseadas na crítica da forma vem mudando o paradigma de interpretação dos evangelhos e introduzindo a questão da memória. O apelo de James Dunn é uma evidência desta virada, dizendo que enquanto a quantidade de paralelismos não se tornarem grande o suficiente para sugerir o conhecimento de uma fonte escrita ou demonstrar mudanças motivadas teológica ou estilisticamente dos documentos anteriores, é possível assumir que a diferença entre os sinóticos se funda na liberdade natural de contadores de história oral para variar detalhes menores em suas contas, que não afetam o sentido de suas histórias (BLOMBERG, 2012, p.112). As pesquisas de crítica da forma fazem um esforço de superar a perspectiva comum da modernidade, considerando as fontes sempre documentais, para levar em conta eventos cotidianos da época dos evangelhos que ressaltam o uso das fontes orais e da memória como instrumento de ensino e transmissão de conhecimento. A.B. Lord (apud BOLMBERG, 2012, p.111-112), por exemplo, ressalta como os cantores populares, tanto do passado como do presente, poderiam guardar histórias de até 100.000 palavras na memória. Esta memorização de grandes histórias, explica Lord, possuem uma característica típica dos evangelhos sinóticos, isto é, as pequenas variações de palavras e sequências sem alterar o núcleo da história. Lord comenta que essa variação nos cantores populares é de até 40% de alterações na história entre

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uma apresentação e outra, o que explicaria a transmissão dos evangelhos sinóticos como um processo flexível dentro de certos limites fixos. Robert Stein reforça a argumentação de que os ensinos e histórias de Jesus estão vinculados à oralidade e à memória ao listar seis considerações que defendem o cuidado considerável que os ensinos de Jesus foram guardados pela tradição oral: 1. A presença de testemunhas oculares que poderiam confirmar ou refutar as reivindicações dos primeiros cristãos; 2. A existência de uma liderança central na igreja de Jerusalém para exercitar o controle sobre a tradição; 3. O respeito pela tradição que o resto do Novo Testamento mostra os primeiros cristãos exercendo; 4. A fé da igreja primitiva em transmitir dizeres estranhos ou constrangedores de Jesus; 5. A falta de tradições atribuídas a Jesus lidando com controvérsias importantes que surgiram tardiamente no cristianismo do primeiro século, mas não durante a vida de Jesus; 6. A natureza conservativa da tradição oral em sociedades que não enfatizavam a escrita como o mundo ocidental moderno faz (BLOMBERG, 2012, p.108). Estas seis considerações tem dupla importância no que vem sendo desenvolvido até aqui: primeiro, elas consolidam as evidências históricas do uso da memória como fundamento para a fé cristã dos primeiros séculos; segundo, elas vinculam a ênfase no uso da memória à cultura da qual os primeiros cristãos emergiram: a cultura judaica. Como já foi dito e agora reforçado pela conclusão de Rainer Riesner (apud BLOMBERG, 2012, p.110) ao dizer que a memorização era a prática dominante na educação tanto no Israel Antigo como em seus vizinhos. Soma-se a isto o fato de que as palavras e atos de Jesus não eram vistos como ensinos de um rabi qualquer. As parábolas e as ações parabólicas teriam as mesmas propriedades que a palavra profética, as mesmas propriedades que o mundo bíblico reconhecia à palavra de Deus (KUNZ, 2007, p.12-13). As palavras de Jesus foram totalmente influenciadas pela pessoa que as transmitia, vista como profeta por uns, grande rabi por outros e, finalmente, como o Messias pelos seus seguidores. Sendo assim, as palavras de Jesus seriam eventos únicos na vida dos ouvintes, isto

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é, não havia outro como Jesus, assim como não havia palavras como as de Jesus. Elas precisavam ser guardadas. Sobre isto, Blomberg (2012, p.110) sintetiza bem: Visto como profeta, Jesus teria suas palavras preservadas pelo menos com tanto cuidado quanto as profecias do Antigo Testamento (consideradas por muitos estudiosos por estarem entre as mais fielmente preservadas de toda a tradição do Antigo Testamento). Visto como Messias, ele teria sido esperado como um professor de sabedoria, cujos aforismos requeriam guarda segura. Finalmente, um estudo cuidadoso da forma dos ensinos de Jesus revela que mais de 80% deles são fraseados de modo a torna-los fáceis de lembrar, seja por meio de paralelismo, ritmo ou figuras de linguagem marcantes.

A memorização no ministério de Jesus traz, então, três facilitadores, aos quais pode ser acrescentado mais um. Além do caráter mnemônico dos ensinos de Jesus, sobretudo nas parábolas, juntamente com sua proposta pedagógica de alcançar cerca de 300 anos de ensino em três; da cultura judaica que incentiva o uso da memória como forma principal de ensino e transmissão de conhecimento, o que se tornou característica também dos primeiros cristãos; e da figura de Jesus como alguém cujas palavras devem ser guardadas, Gerd Theissen acrescenta que a repetição destes ensinos por Jesus e pelos discípulos durante o ministério itinerante fez com que a memorização tenha ocorrido também não intencionalmente. Ouvir os mesmos ensinamentos com tanta frequência e, por vezes, serem instruídos a repetir estes ensinamentos (Mt 10 e paralelos) teria cimentado ainda mais tal tradição na memória dos discípulos. Thiessen ressalta que até mesmo a estratégia dos discípulos irem ensinar em duplas ajudava na memorização e conservação fiel das palavras de Jesus, pois se um discípulo errasse algo, não transmitindo o sentido correto de Jesus em suas palavras, o outro sem dúvida o corrigiria (BLOMBERG, 2012, p.111). Por fim, a memorização dos primeiros discípulos tem sua fidelidade reforçada pelo processo de formação da memória coletiva dos primeiros cristãos, até a elaboração do cânon. Uma vez que, na comunidade, ao recontar a história de algo importante vivenciado por outros presentes, há a tendência de se corrigir o contador da história dos detalhes errados, consolidando uma memória comum a todos (BLOMBERG, 2012, p.115). “A memória coletiva”, conclui Blomberg (2012, p.116), “prova a confiança especial quando envolvem eventos únicos e incomuns, cujas testemunhas se envolveram emocionalmente, com muitos detalhes irrelevantes, em um curto período de tempo, com repetição frequente”. Todos estes elementos são encontrados em abundância nas parábolas de Jesus.

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3. A PROPOSTA PEDAGÓGICA DO CRISTO

Nos capítulo primeiro analisamos brevemente uma história da interpretação das parábolas ao longo dos séculos e foi identificada uma ênfase frustrada em confrontar um método interpretativo ou outro, deixando de lado a natureza das parábolas em si e sua funcionalidade. Isto é, a preocupação predominante dos cristãos em certa de dois mil anos foi como entender as parábolas em todas as suas características e não como Jesus usou as parábolas. Esta questão se mostrou valorosa, sobretudo diante das análises do capítulo segundo, mostrando que, a partir do caráter mnemônico, as parábolas tinham um papel fundamental no que se conformou como uma verdadeira proposta pedagógica de Jesus. Analisando as potencialidades didáticas das parábolas e seu uso pelos primeiros cristãos, é possível reconhecer, como Le Goff diz, que “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (LE GOFF, 2012, p.455). O uso da memória, demonstrado através das parábolas, se constituiu uma prática educativa necessária à formação dos primeiros cristãos. Isto se deu, sobretudo, por meio da consolidação da memória coletiva entre os seguidores de Jesus que, ao longo de cerca de trezentos anos, consolidaram essa memória pela escrita de textos inspirados até serem reunidos no que se tornou o cânon do Novo Testamento. Este processo, ressalta Le Goff, é não somente uma conquista, mas também um instrumento de poder, uma vez que permite a dominação da tradição e da recordação, limitando a manifestação da memória (LE GOFF, 2012, p.456). Jacques Le Goff, em seu livro História e Memória, traça uma história do uso e transformação da memória e constata que, neste longo processo, o homem foi conduzido progressivamente a exteriorizar faculdades cada vez mais elevadas, dentre elas a memória (LE GOFF, 2012, p.449). O distanciamento do Evangelho da memória dos cristãos repete esta história escrita por Le Goff, algo que pode ser observado na forma como os cristãos enxergaram as parábolas, um dos principais recursos de manutenção da memória e utilizadas pelo próprio Cristo.

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Assim, é válido aqui revisitar as parábolas a partir de uma perspectiva pedagógica e ressaltar nela seus aspectos práticos, conforme aparecem em sua utilização por Jesus.

3.1.Parábolas como meios de diálogo

Claiton Kunz, ao analisar as ações parabólicas de Jesus, diz que “as parábolas de Jesus sempre deixavam o interlocutor pensativo, evocando uma resposta sua” (2007, p.54). Jesus usava as parábolas como alternativas ao ensino expositivo, sobretudo pela valorização do diálogo. Tanto é que, como nota Bailey ao analisar as respostas de Jesus ao ser questionado, “ao invés da declaração abstrata seguida de uma ilustração elucidadora, temos uma confrontação dramática, expressa com brevidade em termos inesquecíveis" (1995, p.14). Jesus desenvolveu seu ensino por meio das parábolas como situações geradoras de diálogo, uma vez que “a parábola, na sua inteireza, apresenta-se como uma pergunta a qual o ouvinte é convidado a responder. O parabolista não quer impor de forma alguma a sua autoridade; apenas pede a opinião dos ouvintes” (DUPONT, 1985, p.18). Diferente do que se costuma entender do uso das parábolas, apesar de utilizá-las em situações de tensões, elas não tinham o intento de constranger, mas de criar o clima respeitoso que Paulo Freire define em seu livro Pedagogia da autonomia (2011, p.90), “que nasce de relações justas, sérias, humildes, generosas, em que a autoridade docente e as liberdades dos alunos se assumem eticamente, autentica o caráter formador do espaço pedagógico”. As parábolas se mostram extremamente eficazes para uma proposta pedagógica do Cristo na medida em que leva em conta a natureza dos ouvintes e a natureza do interlocutor, isto é, Jesus. Se por um lado elas abrem diálogo, respeitando os ouvintes, por outro não deixam de inserir um conteúdo explicativo e esclarecedor acerca de certos assuntos relevantes aos seus ouvintes. Isto pode ser visto em trechos dos evangelhos como Lucas 18.1. Como Freire afirma, “a dialogicidade não nega a validade de momentos explicativos, narrativos, em que o professor expõe ou fala do objeto. O fundamental é que professor e alunos saibam que a postura deles, do professor e dos alunos, é dialógica, aberta, curiosa, indagadora e não apassivada, enquanto fala ou enquanto ouve” (Pedagogia da autonomia, 2011, p.83).

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As parábolas se mostram um instrumento pedagógico ideal que valoriza a sabedoria do Deus encarnado sem menosprezar a potencialidade dos ouvintes humanos, de forma que Jesus as utilizava “como um meio de diálogo com os interlocutores”, diz Dupont (1985, p.5), “para levar a uma nova visão das coisas, esforçando-se por persuadi-los a partir de uma experiência vivida”. O uso das parábolas como meio de diálogo se mostra própria a uma proposta pedagógica do Cristo não só em sua eficácia, mas também na natureza de Jesus, pois, como aponta Freire na Pedagogia do oprimido (2011), só há diálogo se há um profundo amor ao mundo e aos homens (p.110), assim como é necessário que haja uma intensa fé nos homens, “na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens” (p.112).

3.2.Parábolas surgem do contexto dos ouvintes

Freire define diálogo como “este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu” (FREIRE, Pedagogia do oprimido, 2011, p.109). Segundo ele, não é possível exercer uma educação autêntica pelo diálogo se este não for mediatizado pelo mundo, pois é este que impressiona e desafia os seres humanos, gerando pontos de vista diferentes sobre ele (FREIRE, Pedagogia do oprimido, 2011, p.116). Dupont contabiliza vinte e duas parábolas dos evangelhos que começam com uma interrogação, convidando os ouvintes a responder. Mas estas respostas não surgem pela “imposição de uma argumentação lógica ou de razões que se apoiam na autoridade”, mas da “experiência vivida e da sabedoria concreta de seu ambiente” (DUPONT apud SILVA, 2006, p.101). Os diálogos das parábolas de Jesus só funcionavam porque eram enraizados na vida de seus primeiros ouvintes (DUPONT, 1985, p.20). Roy B. Zuck define parábola como “uma história baseada em fatos do cotidiano com o objetivo de ilustrar ou aclarar uma verdade” (1994, p.225) e Brian Stiller define o propósito das parábolas como “informar, ao descrever alguma forma de realidade, e afetar, ao providenciar uma imagem” (STILLER, 2005, p.9). As parábolas de Jesus, apesar de

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descreverem a realidade do reino de Deus, eram terrenas, diretamente ligadas às histórias comuns do tempo de Jesus. É das imagens comuns do cotidiano dos ouvintes, como moedas, ovelhas, vinhas, pássaros, semente de mostarda, administrador infiel, casamentos e hospitalidade, que Jesus tira lições de ética surpreendentes e verdades do reino (STILLER, 2005, p.16). Não apenas do contexto cotidiano dos ouvintes é que Jesus tirava seus ensinos para as parábolas. Ele também o tirava da cultura judaica de sua época. Como Blomberg (2012, p.98) ressalta, “as similaridades entre partes das parábolas e várias passagens das escrituras hebraicas, junto com certos contos populares bem conhecidos na Palestina do primeiro século, fazem parecer que Jesus usou história e temas já existentes ao compor algumas das parábolas”. Alguns exemplos demonstram como a proposta pedagógica de Jesus por meio das parábolas tem suas raízes no contexto cultural e cotidiano de seus ouvintes, como a parábola do Grande Banquete (Mt 22.1-14; Lc 14.15-24), que vem sendo lida à luz de Deuteronômio 10.5-8 (BLOMBERG, 2012, p.98); a do rico e Lázaro (Lc 16.14-31), que se assemelha a várias versões de contos populares famosos no Egito e na Palestina e encontrados por Hugo Gressmann, apresentando apenas destinos inversos para os personagens (BLOMBERG, 2012, p.99-100); e a da figueira (Mt 24.32-33; Mc 13.28-32; Lc 21.29-33), sendo que no Antigo Testamento a figueira é muito utilizada como símbolo para Israel e tanto seu frutificar com sua esterilidade tinham significados bem estabelecidos na mente dos ouvintes (KUNZ, 2007, p.74). Segundo Francisco C. Weffort (apud FREIRE, 1967, p.5), “Todo aprendizado deve encontrar-se intimamente associado à tomada de consciência da situação real vivida pelo educando”, mas o uso das parábolas por Jesus mostra que esta intimidade não precisa ser necessariamente uma verossimilhança absoluta. Como Dupont comenta, Jesus não contraria a experiência dos ouvintes, mas para instigar a interação e a resposta dos ouvintes, se apropria do incomum e do inusitado (DUPONT, 1985, p.17). Em última instância, Jesus já fazia o que Freire disse: “o que temos de fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente, como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não só no nível intelectual, mas no nível da ação” (FREIRE, Pedagogia do oprimido, 2011, p.120). Em última instância, o vínculo das parábolas de Jesus com o contexto dos ouvintes faz delas um método de ensino universal e totalmente coerente na proposta pedagógica do Cristo,

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uma vez que elas não exigem conhecimento prévio dos ouvintes. Isto é difícil de compreender vinte séculos depois do momento em que as parábolas foram contadas, mas estudos como os de Kenneth Bailey mostram que elas falam diretamente a um conhecimento não oficial. Os ouvintes não necessitam de um “arsenal de informações para entender cada personagem ou trama”, uma vez que “os personagens e experiências do dia a dia são o que os residentes da Palestina praticantes da cultura judaica mais facilmente poderiam entender” (STILLER, 2005, p.16).

3.3.Parábolas levam a ser mais

Jacques Dupont, em seu livro O método das parábolas de Jesus hoje (1985), ressalta outro caráter pedagógico das parábolas de Jesus. Para ele, Jesus faz das parábolas um meio de ação, pelo qual seus destinatários são levados a uma nova visão das coisas, mostrando a possibilidade de uma nova atitude a ser aceita ou rejeitada (DUPONT, 1985, p.27), isto é, Jesus leva seus ouvintes a exercitar o que Paulo Freire chama de “vocação ontológica e histórica de ser mais” (FREIRE, Pedagogia do oprimido, 2011, p.72). Dupont entende que o que interessa a Jesus é fazer seus ouvintes compreenderem que o Reino vem, como vem e o que se deve fazer para entrar nele (DUPONT, 1985, p.32). O ensino do Reino que Jesus traz exige não apenas uma nova perspectiva, mas também uma série de novas atitudes. Para tanto, os interlocutores de Jesus “não podem permanecer como meros espectadores passivos”, diz Dupont (1985, p.21), “eles têm um papel a desempenhar, um consentimento a dar, uma posição a assumir”. Se este é o intuito de Jesus, as parábolas são ferramentas didáticas ideais, pois, como diz Paulo Freire em sua Pedagogia do oprimido (2011), “esta busca do ser mais, porém, não pode realizar-se no isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires” (p.105) e que “diálogo é o encontro dos homens para ser mais” (p.114). Ou seja, uma vez que as parábolas de Jesus levam a um diálogo e interação plena com os interlocutores ao partir do contexto de vida deles, elas se mostram plenamente adequadas para este objetivo de levar os ouvintes a ser mais.

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Isto acontece pelas duas vias já comentadas: uma nova perspectiva e uma nova atitude a ser apropriada pelos ouvintes das parábolas. Com relação à nova perspectiva, Dupont (1985) diz que Jesus “ensina a seus ouvintes a abrir os olhos e a olhar” (p.35) com o convite que as parábolas frequentemente fazem aos interlocutores, permitindo-lhes “descobrir a possibilidade de outra maneira de ver, mais exata do que aquela que resulta de um olhar superficial” (p.36). Dupont pontua também que os ouvintes de Jesus partem deste novo modo de ver as situações cotidianas pelas parábolas para então descobrir por si próprios que esta outra forma de ver é possível e preferível (DUPONT, 1985, p.31). Este desenrolar das parábolas, levando os ouvintes a desfrutar de sua vocação de ser mais, lhes propicia uma mudança na profundidade de compreensão da realidade. Esta “mudança em profundidade que elas [as parábolas] querem provocar”, diz Dupont (1985, p.37), “não seria verdadeira se não traduzissem em atos, se não transformassem a vida”. A nova perspectiva e novas atitudes contempladas pelos ouvintes das parábolas tem a liberdade de se apropriar ou não delas, uma vez que todo o ensino, como já foi argumentado, é construído sobre o diálogo, respeito e amor pelas pessoas. “A liberdade para a decisão e a ausência de dogmatismo é que fará com que o ouvinte possa tecer sua própria interrogação sobre a realidade. É certo que com ela surge o conflito; contudo, também brota o processo de conscientização” (SILVA , 2006, p.102).

3.4.Parábolas como ferramentas adequadas ao ensino de Deus

A sabedoria do Cristo, do Deus encarnado, o amor pelas pessoas, a fé na capacidade dos seres humanos em ser mais, enfim, o próprio caráter de Jesus se espelha na opção pedagógica do uso das parábolas como forma de ensino. É justamente esta combinação que aperfeiçoa os inúmeros valores educacionais que o gênero parabólico traz em si: O gênero parabólico desperta e aguça a imaginação, o sentido artístico, a capacidade de relacionar entre si ideias, sonhos e vida, a agilidade mental, a capacidade de síntese e de análise, o sentido lúdico e teatral da vida. É sempre uma fonte de diálogo. Aproxima da verdade mais clara, algumas vezes menos pungente e outras, mais vivas. Exibe-a com roupagens atraentes e provocantes. A parábola é, simultaneamente, verdade e fantasia, realidade e imaginação. Aproxima os homens da natureza e os irmana (FRANCIA, 1992, p.9).

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Kunz ressalta que o uso que Jesus fez das parábolas não tinha apenas o propósito de levar seus ouvintes à uma percepção nova e mais profunda, mas também à uma respostas decisiva de arrependimento, fé, esperança e amor (KUNZ, 2007, p.23-24). As parábolas, em sua eficácia didática dentro da proposta pedagógica do Cristo é apenas um elemento para a transformação do ser humano e sua história. Como Paulo Freire (1967, p.59) diz, “existir é um conceito dinâmico. Implica uma dialogação eterna do homem com o homem. Do homem com o seu Criador. É essa dialogação do homem sobre o seu contorno e até sobre os desafios e problemas que o faz histórico”. Em resumo, “as parábolas revelam um ato pedagógico mediado pelo diálogo que aponta para um olhar a realidade a partir das comparações que são sugeridas” (SILVA, 2006, p.103) e “sua genialidade está na habilidade de desarmar o ouvinte e persuadi-lo, pegando-o de surpresa” (STILLER, 2005, p.9). Através delas, Jesus fez com que seus ouvintes fossem ativos em seu processo de aprendizagem, tornando-os realmente educandos, conforme define Paulo Freire (Pedagogia da esperança, 2011, p.165), “quando e na medida em que conhece, ou vai conhecendo os conteúdos, os objetos cognoscíveis, e não na medida em que o educador vai depositando nele a descrição dos objetos, ou dos conteúdos”. Por meio das parábolas, Jesus não foi negligente com a dimensão de um ensino divino, ao mesmo tempo em que respeitou a autonomia e dignidade de cada um de seus ouvintes. A partir de Paulo Freire, a pedagogia humana entendeu que: Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de repente aos vinte e cinco anos. A gente vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento é ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade (Pedagogia da autonomia, 2011, p.105).

É de se esperar, considerando o caráter divino do Cristo, que a proposta pedagógica realizada nas parábolas tenha um aproveitamento muito maior das capacidades de ensino e aprendizagem dos seres humanos. Este mesmo caráter faz das parábolas uma ferramenta de ensino própria para todas as gerações. Stiller (2005, p.30) entende que “a forma parabólica foi uma ferramenta poderosa para comunicar a mensagem de Jesus a qualquer cultura e povo” e que hoje esta adequação aumentou ainda mais, pois “a mente pós-moderna é notavelmente aberta para esta forma de pensar sobre a vida. Isso, por fim, é pregação bíblica, mesmo que os ouvintes não pensem dessa forma”.

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As parábolas, enquanto proposta pedagógica do Cristo, podem ser resumidas conforme as palavras de Stiller: Em suas parábolas, Jesus não deixava ninguém permanecer neutro: as pessoas eram forçadas a responder seu chamado de se juntar a ele em seu novo reino. Parábolas foram o meio de Jesus quebrar as mentes resistentes com percepções que atordoam seus ouvintes, não apenas com a surpresa e reviravolta, mas também com uma sabedoria chocante. Apesar de seu conteúdo, aqueles que não ouviram o que esperavam se recusaram a ouvir o que ele estava dizendo. Para entender as parábolas deve-se trabalhar nelas e se não o fizer, você acaba não as entendendo. Pedagogicamente, no processo de aprendizagem, move-se de um nível de entendimento para um nível maior de dificuldade apenas quando se dominam os níveis mais elementares. Estes ouvintes de Jesus – naquela época e hoje – vão para as percepções mais difíceis de seu reino apenas quando eles aprenderem o que é primário (STILLER, 2005, p.15).

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CONCLUSÃO

Desde o momento em que saíram da boca de Jesus Cristo, as parábolas vem cumprindo seu propósito. Seu caráter mnemônico as manteve na memória até que os ouvintes as pudessem compreender, sendo instrumento de formulação da memória coletiva cristã, que, por sua vez, culminaria no cânon do Novo Testamento, afirmado em meados do século 4 d.C. Entretanto, esta apropriação das parábolas pelas faculdades da memória parecem ter dado lugar às análises textuais e figurativas que o gênero alegórico, sobreposto às parábolas, trouxe aos estudiosos cristãos e permaneceu até os tempos atuais. A análise histórica do desenvolvimento do uso e interpretação das parábolas mostrou que a ênfase histórica esteve em como compreender as parábolas, com destaque para a mensagem que elas traziam e esquecendo-se de seu lugar e função no ministério de Jesus. Diversos estudiosos e acadêmicos vincularam os valores educacionais das parábolas às suas mensagens, tentando muitas vezes, como foi visto no primeiro capítulo, repetir a mensagem de Jesus, mas sem a adaptação apropriada dos aspectos pedagógicos contidos nelas. Tal conclusão histórica levou ao imperativo de revisitar as parábolas, agora pelo viés de sua eficácia e aplicabilidade no desafio pedagógico de Jesus, de transmitir todo o conteúdo canônico do Evangelho em apenas três anos e que deveria perdurar até a consolidação da memória coletiva cristã, sobretudo nos escritos que comporiam o Novo Testamento. O segundo capítulo cumpriu essa missão ao avaliar que a memória era a ferramenta ideal para a superação deste desafio de 300 anos de ensinamento em três, a qual estava impregnada na cultura judaica e perfeitamente aplicada no método de ensino por parábolas. Isto mostrou que as parábolas dizem mais a respeito de Jesus do que seu conteúdo explícito. Elas também mostram a eficácia do Mestre Jesus ao ensinar seus discípulos e garantir que seus ensinamentos não fossem perdidos, mas preservados, compreendidos e expandidos conforme a ação do Espírito Santo. As parábolas de Jesus, conforme foi discorrido neste trabalho, são mais do que histórias, mais do que ensino, elas se conformam como uma verdadeira proposta pedagógica do Cristo para superar as limitações da realidade de seus ouvintes, levando-os a se apropriar daquele conhecimento inédito sobre o reino de Deus por meio da memória pessoal e coletiva. Enquanto parte de uma proposta pedagógica, mostrou-se propício avaliá-la à luz da pedagogia

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de Paulo Freire e das conclusões de teólogos mais despertos aos efeitos das parábolas e não apenas aos seus conteúdos. O terceiro capítulo, por fim, realizou essa análise, mostrando que a proposta pedagógica do Cristo em nada perde para uma perspectiva humana e humanitária de ensino. Jesus Cristo se apropriou do diálogo, partiu do contexto de seus ouvintes e esforçou-se para que seus interlocutores subissem ao menos um degrau no conhecimento da realidade do reino de Deus por meio de suas parábolas. Todas estas conclusões surgem do enfileiramento dos capítulos deste trabalho, mas quando estes são postos um ao lado do outro, outra perspectiva deste estudo se faz possível. Se desde o princípio de seu ministério terreno Jesus manifestou seu caráter em uma proposta pedagógica que atendia as necessidades de seu tempo, aproveitando-se das tradições de seu povo e garantindo uma autonomia de aprendizagem aos seus discípulos, ao longo da história e ao se desvincular a identidade cristã da memória individual para dar lugar à memória coletiva e enrijecida no cânon do Novo Testamento, este vínculo entre a ação educativa, eficaz e significativa da igreja se perdeu. As preocupações dos estudiosos cristãos ao longo da história em relação às parábolas marcam o abandono da memória e assumindo o paradigma escolástico e, posteriormente, moderno de transmissão de conhecimento por parte da igreja. O vínculo deste desenvolvimento secular à ação pedagógica da igreja na contemporaneidade é inevitável. Como foi dito na introdução, este trabalho não visa uma reavaliação da prática educativa da igreja cristã e sim uma releitura de seu fundamento na figura de Jesus e na proposta pedagógica do Cristo. As conclusões deste trabalho, assim espera seu autor, apontam para uma necessidade urgente de retorno aos valores educacionais que o próprio Jesus Cristo se utilizou e que, cerca de dois mil anos depois, foi escrito em páginas de uma pedagogia humanista, enquanto a igreja perdia seu lugar de vanguarda na libertação dos seres humanos. Jesus Cristo ensinou conforme a sua natureza. Fica a pergunta: se a natureza da igreja é o próprio Senhor e Salvador Jesus Cristo, está a igreja refletindo sua natureza ao ensinar o mundo?

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