A propriedade em Locke: O dinheiro e a dissolução da lei da Razão

June 8, 2017 | Autor: Rodrigo Pinto | Categoria: John Locke
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A propriedade em Locke: o dinheiro e a dissolução da lei da Razão Rodrigo Pinto Universidade de São Paulo
 Dez.2014

Neste documento, irei discutir brevemente o tema da propriedade na obra “O Segundo Tratado Sobre o Governo” de John Locke. A argumentação concernente a esse tema encontra-se principalmente no Capítulo V do livro.

Locke esforça-se para demonstrar como, ainda que Deus tenha dado a terra a todos os filhos do Homem, é possível que alguém venha a ter propriedade de alguma parcela dessa terra. A sua maneira de proceder para responder tal questão será realizada sem recorrer a um pacto expresso feito por todos os membros da comunidade que teria instituído o direito à propriedade. Será pela via do Direito Natural e da demonstração de que antes mesmo do firmamento de qualquer pacto entre os homens, o direito de propriedade já existia como consequência do trabalho empregado pelo sujeito em tal propriedade. Por fim, o inglês irá assinalar como o surgimento do dinheiro corrompeu a sociedade e a partilha justa das terras

Primeiramente, é certo afirmar que Deus deu a terra a todos os homens para o seu sustento e conforto e que ninguém tem um domínio particular sobre os seus frutos à exclusão de todo o resto da humanidade. Logo, todos os territórios da terra surgiram e estiveram como estado comum em que a natureza a deixou. No entanto, a investigação das leis naturais através da Razão revela que um determinada extensão de terra pode tornar-se propriedade de um homem particular, o que significa que determinado espaço dele será propriedade de um único homem de modo que nenhum outro terá direito aos alimentos que daí nascerem.

Mas de que modo uma terra irá se diferir das demais terras livres para tornar-se propriedade de algum ser particular? É mediante o trabalho que esse mesmo ser empregou na terra para retirá-la do estado comum e torná-la em algo que não é mais simplesmente a terra: ela tornou-se a mistura da terra com o seu trabalho. Portanto, o trabalho, que é propriedade inquestionável e individual de um homem, é o que torna a terra sua propriedade e exclui-a do direito comum aos demais homens. Em outras palavras: o trabalho que o homem despende para retirar uma terra do estado comum é aquilo que fixa a sua propriedade sobre ela.

Isso explica porque o homem sobreviveu durante todo o seu estado natural baseando-se nessa lei, isto é, provendo-se daquilo que retirou da natureza pelo seu trabalho sem precisar do consentimento expresso de todos os membros da comunidade,afinal, é bem provável que se esse consentimento fosse sempre necessário, o homem já teria morrido de inanição, como aponta Locke.

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Analisando o valor que o trabalho introduz na terra, nota-se que é o próprio trabalho que forma a maior parte do valor das coisas. Logo, uma terra virgem após ser trabalhada, torna-se infinitamente mais valorizada, o que fortalece o argumento da terra tornar-se propriedade de um indivíduo em função do trabalho empregado por esse mesmo indivíduo nela. Para tornar ainda mais evidente, seguimos o exemplo apresentado por Locke e imaginemos “um acre de terra que produz vinte alqueires de trigo e outro na América que, com o mesmo trabalho agrícola, produza o mesmo, têm, sem dúvida, o mesmo valor intrínseco natural. Contudo, o benefício que os homens recebem de um, num ano, vale uma libra, enquanto do outro não vale possivelmente nem mesmo um pêni, se todo o lucro que um índio dele obtivesse fosse avaliado e vendido aqui; pelo menos, posso dizer, em verdade, nem 1/1000. É portanto o trabalho que confere a maior parte do valor à terra, sem o qual ela mal valeria alguma coisa”.

Em síntese: o homem, em virtude de ser proprietário de sua própria pessoa e de seu trabalho, possui, em si, o fundamento da propriedade, pois mediante o trabalho ele tem o direito de propriedade.

No entanto, pode-se objetar que a injustiça pode surgir em razão de um mesmo indivíduo açambarcar grandes extensões de terra, de maneira que não sobre o suficiente para que o restante se alimente. Contra isso, Locke percorre aquilo que ele denomina revelação e voz da razão para afirmar que Deus nos ofereceu a terra para utilizá-la apenas para a satisfação de nossas necessidades, excluindo daí tudo aquilo que as ultrapasse. Posto isso, o homem deve atentar-se aos limites fixados pela razão para saber a quantidade de terra de que precisa para que suas necessidades sejam saciadas. Além disso, a apropriação de qualquer parcela de terra quase nada significaria, em função de toda uma imensidão de terra continuar disponível, de modo que nunca houve menos para os outros pelo fato de alguém ter delimitado uma parte para si. Tal como afirma Locke: “Ninguém poderia julgar-se prejudicado pelo fato de outro homem beber, mesmo que tenha tomado um bom gole, se houvesse todo um rio da mesma água sobrando para saciar a sua sede. E o caso da terra e da água, quando há bastante de ambos, é perfeitamente o mesmo”.

Todavia, toda essa harmonia a que a humanidade vivenciava em vista da necessidade limitada dos homens e da extensão ilimitada de territórios - “há terra bastante no mundo para o dobro dos habitantes” foi abalada pela invenção do dinheiro e do acordo tácito dos homens de lhe acordar um valor, o que permitiu que os homens passassem a possuir terras maiores e, sobretudo, o direito a estas terras.

Anteriormente, caso os homens se apossassem de uma quantidade de alimentos superior àquela que ele era capaz de consumir, ele estaria estragando os frutos, já que eles iriam apodrecer e, consequentemente, estaria ofendendo as leis comuns da natureza, tornando-se passível de punição. Semelhantemente, caso ele trabalhasse e obtivesse a propriedade de uma extensão de terras que excedesse às suas necessidades, a parcela de terra excedente seria vista como abandonada e livre para tornar-se propriedade de qualquer outro.

O surgimento do dinheiro significou o aparecimento de um intrumento durável pelo qual o homem poderia guardar sem estragar e que, por consentimento mútuo, os homens aceitariam em cambinar pelos

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sustentos de vida, verdadeiramente úteis porém perecíveis. Se, anteriormente, um indivíduo possuir uma terra maior que a de outro era consequência de um maior grau de esforço empregado ou mesmo necessidade, a invenção do dinheiro concedeu a oportunidade dos homens aumentar as suas extensões irrestritamente, pois, uma vez que anteriormente não havia nada que fosse ao mesmo tempo escasso, durável e tão valioso que pudesse ser acumulado, os homens não eram capazes de aumentar suas posses de terra. De que valeria cem mil acres de terra excelente se não houvesse esperança de comerciar com outras partes do mundo que lhe trouxessem dinheiro pela venda dos produtos ?

Assim sendo, os homens, via consentimento, derivaram um valor em dinheiro - em ouro e prata - para todas as coisas. A partir de então, tornou-se possível ter justamente mais terras que aquela cuja necessidade me incumbe, recebendo, em troca do excedente, o dinheiro que pode ser guardado sem prejuízo de quem quer que seja, já que ouro e prata não se deteriora.

O desenvolvimento das sociedades humanas passou a ser fortemente influenciado pela existência do dinheiro. Em várias partes do mundo, o aumento da população e da riqueza, com o uso do dinheiro, tornou a terra rara, e iniciou-se o processo de estabelecer limites nos territórios e regular as propriedades dos homens particulares por meio de leis, pactos e acordos que estabeleceram a propriedade que o trabalho e a labuta haviam começado. Assim, até mesmo os diversos Estados e reinos rejeitaram tacitamente qualquer reivindicação ou direito à terra em posse de outros - mesmo que esse outro estivesse com uma extensão de terra bastante superior a que ele necessitava, pois essa parte excedente era ressignificada em dinheiro abandonando por consentimento suas pretensões ao direito natural comum, que teriam originalmente a tais territórios. Em outras palavras: o processo de transformação iniciado pelo surgimento do dinheiro nos territórios em que ele existia, resultou na extinção de parcelas de terra incultas a serem apossadas pelo trabalho, sendo a propriedade agora definida exclusivamente através dos acordos positivos.

Por fim, conclui-se que o trabalho, no princípio, deu início ao título de propriedade sobre as coisas comuns da natureza e que era precisamente a utilização das mesmas segundo as necessidades que limitava essa propriedade, garantindo que a justiça na partilha das terras e a satisfação das necessidades de todos. No entanto, a partir do surgimento do dinheiro, tornou-se possível ter mais do que aquilo que era necessário, uma vez que o excedente era transfigurado em dinheiro e trocado no comércio. Como consequência da utilização das terras para além do necessário e do aumento da população, o direito a terra foi limitado pois ela, a terra, tornou-se rara em muitas partes e não existia mais conveniência em sua utilização, visto que a intenção dos proprietários era ter extensões de terra cada vez maiores uma vez que isso significava um lucro crescente.

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