A PRUDÊNCIA POLÍTICA NA FILOSOFIA DE EDMUND BURKE

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FACULDADE ARQUIDIOCESANA DE MARIANA – DOM LUCIANO MENDES GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Luiz Henrique de Moraes Silva

A PRUDÊNCIA POLÍTICA NA FILOSOFIA DE EDMUND BURKE

Mariana 2014

Luiz Henrique de Moraes Silva

A PRUDÊNCIA POLÍTICA NA FILOSOFIA DE EDMUND BURKE

Monografia apresentada ao curso de graduação em Filosofia da Faculdade Arquidiocesana de Mariana - Dom Luciano Mendes como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Filosofia. Orientador: Ms. Rodrigo Alexandre de Figueiredo

Mariana 2014

Luiz Henrique de Moraes Silva

A PRUDÊNCIA POLÍTICA NA FILOSOFIA DE EDMUND BURKE

Monografia apresentada ao curso de graduação em Filosofia da Faculdade Arquidiocesana de Mariana - Dom Luciano Mendes como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Filosofia. Orientador: Ms. Rodrigo Alexandre de Figueiredo

Aprovada em ____/____/____

Banca examinadora

_________________________________________________________ Ms. Rodrigo Alexandre de Figueiredo – FAM (Orientador)

___________________________________________________________ Esp. Pe. Euder Daniane Canuto Monteiro (Leitor)

AGRADECIMENTOS

Ao Senhor Deus Altíssimo, Uno e Trino, pelo Seu terno Amor, pelos bens que nos concede sem que os mereçamos, pelo chamado ao Seu santo serviço, pela Sua clementíssima paciência e pela Sua imensurável misericórdia; à beatíssima Virgem Maria, Senhora Aparecida e Senhora das Graças, por ser minha especial protetora, mãe clemente e auxiliadora, bem como a todos os santos e bemaventurados que por mim intercedem do Céu e ao anjo do Senhor que me guarda e guia; a todos os ministros, servos e servas de N. Senhor Jesus Cristo na Sua Igreja Católica e Apostólica, que de algum modo me auxiliaram para que eu chegasse até aqui; aos meus pais, Luiz Ferreira e Maria Rosa, pelo seu amor, seu exemplo, seus conselhos e pelo apoio generoso em todas as minhas escolhas, bem como à minha querida tia Carminha, pelas orações, conselhos e pelo carinho; ao Seminário São José da Arquidiocese de Mariana, que me acolheu, mesmo eu não sendo nativo da região, e sobretudo aos clérigos formadores que me acompanharam até aqui neste processo vocacional: padre Adilson Couto, por se dispor a me ouvir e compreender com solicitude paterna, padre Anderson Nascimento, pelos conselhos amigos e orientações espirituais, padre Edmar José, pelo testemunho de dedicação, compreensão e paternidade espiritual no exercício do sacerdócio, padre José Geraldo Coura, pela amizade e disponibilidade, padre Edvaldo Antônio, pela amizade e por aceitar me orientar no tema e autor que escolhi para este trabalho, embora depois tenha necessitado transferir a outro professor esta tarefa, cônego Lauro Barbosa, pelos incentivos e orientações vocacionais, padre Geraldo Buziani, pela escuta e pelas orientações espirituais, padre José Vicente Guedes, pela disponibilidade e pelo pio testemunho de vida, Mons. Roberto Natali, pelos atendimentos penitenciais e pelas valiosas palavras de incentivo e aconselhamento, Mons. Flávio Carneiro, pelo testemunho de espiritualidade, pelos pios conselhos e pela disponibilidade, padre Valter Magno, pela amizade, e Dom Geraldo Lyrio Rocha, pela acolhida em sua grei, pelo seu pastoreio, pelos conselhos e pela escuta; ao padre Euder Canuto, pela leitura e avaliação generosa deste trabalho, bem como pelas partilhas intelectuais e espirituais; às comunidades de São José, no morro da Cartuxa, Nossa Senhora da Glória, em Passagem de Mariana, e Nossa Senhora das Mercês, em Antônio Pereira, juntamente com seus respectivos párocos e vigários, que me acolheram nos estágios pastorais e contribuíram muito com a minha formação nessa dimensão;

ao meu reverendíssimo pároco, padre Paulo Dionê Quintão, por tudo o que me ensinou através do exercício de seu ministério, de suas homilias e das conversas que tivemos, por ter me encaminhado para o seminário, por todo o seu apoio ao meu discernimento vocacional e pela modo fraterno e generoso com que me recebe sempre que estou em Viçosa; aos fiéis, ajudantes e vigários da paróquia Santa Rita de Cássia de Viçosa, de um modo especial aos sacerdotes padre Paulo Nobre e Cônego José Geraldo Vidigal de Carvalho, bem como às amigas colaboradoras Lia, Maria do Carmo, Eliane, Cida e Sônia Arruda; ao prestativo orientador deste trabalho prof. Ms. Rodrigo Figueiredo, que aceitou a missão de acompanhar a fase final desta pesquisa, com coragem e disponibilidade (gratidão pela paciência, atenção e incentivo); aos professores que me incentivaram no desenvolvimento de um espírito de pesquisa e reflexão filosófica, bem como aos funcionários e funcionárias da FAM e do seminário pela generosidade e amizade que me prestaram nestes anos de convivência; aos amigos e bons companheiros de seminário, especialmente os irmãos Rafael Costa, Cristóvão Guingo, Delvair Xavier, Euclides Marçal, Geraldo Fábio, Fernando Honorato, Humério Souza, Marcelo Gomes, Carlos Renato, Marcelo Costa, Irineu Altair, Júnior César, Gilsimar Tavares, Luiz Carlos Santana, Gregory Rial, Fabrício Sampaio, Hiago Fonte Boa, Eliomar Rodrigues, Fernando Paulo, Alan Ferreira e Francisco de Assis Lana; aos meus valorosos amigos conterrâneos, irmãos na Fé e no bom combate: Luciana Greggio, Fernando Coradini, Kelly Rabello e Gilberto Nazaré (Pelas orações, partilhas de vida e momentos de alegre e edificante convivência! A amizade de vocês é para mim motivo de orgulho e gratidão a Deus!); agradeço também aos amigos, confrades e consócias da conferência vicentina Menino Jesus de Praga, na pessoa de seu orientador Tiradentes, e da academia de artes marciais Kombat, na pessoa do kiosanin Jones Claro; enfim, a todos os meus familiares, formadores, amigos e benfeitores. Deus recompense e abençoe copiosamente a todos!

“A mente moderna vê-se forçada na direção do futuro pela sensação da fadiga – não isenta de terror – com que contempla o passado. Ela é propelida para o futuro. Para usar uma expressão popular, é arremessada para meados da semana que vem. E a espora que a impulsiona avidamente não é uma afeição genuína pela futuridade, pois a futuridade não existe, pois que ainda é futura. É antes um medo do passado: um medo não só do mal que há no passado, senão também do bem que há nele. O cérebro entra em colapso ante a insuportável virtude da humanidade. Houve tantas fés flamejantes que não podemos suportar, houve heroísmos tão severos que não somos capazes de imitar, empregaram-se esforços tão grandes na construção de edifícios monumentais ou na busca da glória militar que nos parecem a um tempo sublimes e patéticos. O futuro é um refúgio onde nos escondemos da competição feroz de nossos antepassados. São as gerações passadas, não as futuras, que vêm bater à nossa porta.” G. K. Chesterton

“Como a filosofia política deriva sua sanção da ética, e a ética da verdade da religião, é somente ao retornar à fonte eterna da verdade que poderemos ter esperança em alguma organização social que não venha, até a destruição eterna, a ignorar algum aspecto essencial da realidade.” T. S. Eliot

RESUMO Discorremos, neste trabalho, a respeito dos componentes teóricos fundamentais da filosofia política de Edmund Burke, pensador irlandês que advogou por uma conduta política regulada especialmente pela virtude da prudência, que considerava indispensável a legisladores e estadistas em geral. Ao criticar a Revolução Francesa de 1789, Burke denuncia a impetuosidade e os erros da ideologia que serviu de combustível para aquela insurreição. Ele adverte, nesse contexto, que não são os princípios abstratos fabricados pelo intelecto que devem reger a ação política, mas sim a consideração realista e ponderada das circunstâncias particulares de cada tempo e lugar. Antevendo, já em 1790, que o regime jacobino acarretaria em violências ainda maiores posteriormente, Burke discute os dogmas da mentalidade revolucionária, questionando inclusive a acuidade da razão pretensamente esclarecida dos philosophes iluministas. Burke contesta as noções iluministas relacionadas a um estado primitivo e a direitos primitivos dos homens, bem como a ideia de que a natureza humana, sendo plástica e perfectível, poderia ser artificialmente melhorada por um Estado esclarecido. O seu ceticismo diante das utopias revolucionárias e seu apreço pelas instituições tradicionais levaram as gerações posteriores a nomeá-lo pai do conservadorismo moderno. O pensador irlandês sustenta a convicção de que há uma Ordem e uma Lei Natural acima do Estado e da sociedade com a qual as instituições humanas devem conformar-se progressivamente para alcançar a realização de seus fins. A observância das doutrinas encontradas nas fontes cristãs da Revelação divina e a valorização da tradição moral, institucional e espiritual que os antepassados nos transmitiram seriam os meios mais seguros para manter os laços entre o que é temporal, contingente e humano e o que é eterno, natural, e divino. Burke defende, ainda, que um estadista prudente deve sempre levar em conta as experiências passadas, aprender com erros e com os acertos dos ancestrais e estar disposto a preservar as instituições salutares legadas pelos antepassados, sem deixar de melhorá-las quando as circunstâncias permitirem. Diante de estruturas e sistemas que se tornam ineficazes para atender as necessidades dos cidadãos, Burke propõe, como alternativa ao método revolucionário, a reforma gradual, paciente e orgânica, que permite conservar o que permanece vantajoso nas velhas instituições e fazer reajustamentos posteriores para melhor adequar as mudanças políticas ao todo do organismo social.

Palavras-chave: Prudência; Política; Conservadorismo; Revolução Iluminismo; Lei Natural; Tradição; Reforma Institucional; Edmund Burke.

Francesa;

ABSTRACT We discourse, in this paper, about the essential theoretical components of Edmund Burke’s political philosophy. This Irish author advocates for a political procedure regulated specially by the virtue of prudence, which he consider indispensable to lawmakers and statesmen in general. While Burke was criticizing the French Revolution of 1789, he denounces the impetuosity and the errors of the ideology that was the fuel for that insurrection. He warns, in that context, that the abstract principles fabricated by intellect should not drive the political action, but the realistic and weighted consideration of the particular circumstances of each time and site. In 1790, foreseeing the bigger violence that the Jacobin regime would bring about later, Burke discusses the revolutionary mind’s dogmas, quarrel also the accuracy of the French philosophes and his so-called enlightened reason. Burke contests the Enlightenment notions related to the primitive status and the primitive rights of mankind, just like the idea of the plasticity and perfectibility of human nature that could be improve artificially by an Enlightened State. His skepticism up against the revolutionary utopias and his regard for traditional institutions lead the subsequent generations to nominate him the father of the modern conservatism. The Irish philosopher believes in a natural Order above the society and in a natural Law, which the social and political institutions must progressively agree with to reach the fulfillment of their purposes. Valuating the doctrines founded in the Christian sources of the divine Revelation and being fond of the moral, institutional and spiritual tradition transmitted by the ancestors are the secure means to keep the bonds between what is temporal, contingent and human and what is eternal, natural and divine. Burke also stand up for the idea that a prudent statesman must always consider the experiences from the past, have the disposition to preserve the favorable institutions received by legacy from the ancestors and be able to improve them when the circumstances allow that. When the structures and systems become inefficient to satisfy the citizen’s needs, Burke propose, like an alternative to revolutionary method, a gradual, patient and organic reformation that allows to conserve what remains beneficial at the old institutions and permit subsequent enhances to adjust the political changes to all the social organism.

Key-words: Prudence; Politics; Conservatism; French Revolution; Enlightening; Natural Law; Tradition; Institutional Reformation; Edmund Burke.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................10

1 UMA REAÇÃO AO JACOBINISMO E À ILUSTRAÇÃO..................................13 1.1 A presciência de Burke..............................................................................................15 1.2 O realismo burkeano..................................................................................................19 1.3 Imprudências e vícios da atitude revolucionária.......................................................21 2 BASES ANTROPOLÓGICAS E ÉTICO-METAFÍSICAS....................................25 2.1 Visão antropológica restrita.......................................................................................26 2.2 Heranças greco-cristãs...............................................................................................28 2.3 O jusnaturalismo burkeano........................................................................................33 3 A PRUDÊNCIA COMO VIRTUDE NORTEADORA DA POLÍTICA................36 3.1 A experiência dos antepassados................................................................................36 3.2 Considerações sobre o governo civil.........................................................................39 3.3 Representatividade política........................................................................................41 3.4 As instituições e valores consolidados pelas gerações..............................................46 3.5 Reformas orgânicas em vez de revoluções................................................................50

CONCLUSÃO................................................................................................................53

REFERÊNCIAS.............................................................................................................56

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INTRODUÇÃO Uma filosofia política que não prescreva grandes mudanças, transformações repentinas, ou revoluções violentas como solução para os problemas do sistema vigente, pode não ser considerada, por todos, digna de compor o cânon dos grandes paradigmas do pensamento político ocidental. Isso não significa, contudo, que ela não ofereça uma contribuição filosófica significativa que nos permita contemplar a política de um outro ângulo de visão e com outros critérios de juízo. Um dos objetivos desse trabalho é verificar se é possível pensar temas políticos de forma pertinente sem pretender oferecer fórmulas teóricas para a construção de um sistema virtualmente perfeito e sem sugerir solapar as bases institucionais de um sistema político qualquer a fim de desconstruí-lo e dar ocasião ao surgimento de uma nova ordem civil. Averiguaremos também, tendo por esteio o pensamento filosófico de Edmund Burke, se é possível assegurar uma filosofia política conservadora que não se limite à crítica das posturas revolucionárias e proponha meios mais sustentáveis e seguros de aprimoramento das estruturas sociopolíticas. Edmund Burke foi um filósofo irlandês, nascido em Dublin, que entrou para a história como o pai do conservadorismo político moderno e o mais ferrenho crítico da Revolução Francesa. Não obstante sua obra seja um marco da filosofia política conservadora, Burke foi líder do partido whig (liberal) no parlamento britânico, onde atuou como deputado pelo condado de Bristol. Alguns o classificam como liberalconservador; liberal no que tange à economia e pela importância que a liberdade individual tem em seu pensamento, conservador no que se refere à cultura, à moralidade pública e à própria política. Em sua atividade parlamentar, destacou-se como notório antiabsolutista, com um histórico de denúncias contra os abusos britânicos na Índia e de luta política contra as pretensões absolutistas do rei George III. Embora fosse de confissão anglicana e um monarquista convicto, empenhou-se na defesa dos direitos dos católicos irlandeses e dos colonos separatistas e republicanos da América do Norte. O livro sobre o qual dissertaremos com maior frequência para discorrer sobre a filosofia política burkeana teve, de acordo com o próprio autor, origem epistolar. As Reflexões sobre a Revolução em França nasceram de uma carta enviada pelo autor a um “jovem fidalgo de Paris”. Esse jovem era Charles-Jean-François Depont, que interrogara Burke acerca da sua opinião sobre o estado de coisas na França após a Revolução de 1789. Nas

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primeiras páginas do texto, o deputado irlandês explica ao leitor a origem e o intento da obra. Por suas palavras iniciais, podemos inferir que as discussões acerca da referida revolução estavam pululando por toda a Europa naqueles primeiros anos após o levante jacobino. O ano em que Burke redige suas Reflexões sobre a Revolução em França é 1790, ano seguinte ao da Queda da Bastilha. A missiva que se tornaria um tratado político célebre em todo o Ocidente foi, na verdade, uma reação do autor, na forma de carta a Depont, a certos elogios públicos que se faziam no Reino Unido à revolução gaulesa. A troca de correspondência entre o parlamentar irlandês e o “jovem fidalgo de Paris”, embora real, teria sido apenas a ocasião que o primeiro encontrou para fazer vazar suas críticas à insurreição jacobina para o público comum.1 Com isso, Burke pretendia advertir as massas para evitar que as ideias revolucionárias ganhassem mais entusiastas entre os britânicos, o que era para ele motivo de grande preocupação. As Reflexões, entretanto, não encerram toda a obra do filósofo dublinense. No conjunto dos escritos filosóficos de Burke incluem-se muitos outros textos, que abarcam seus discursos no parlamento, correspondências diversas e até mesmo um tratado de Estética redigido como “investigação filosófica” sobre a origem das ideias do Belo e do Sublime. Para este trabalho monográfico interessam-nos, contudo, apenas os escritos de Burke dedicados à política. Assim sendo, procuraremos aqui apresentar a visão política de Burke enfocando as noções que formam a espinha dorsal de sua argumentação nessa matéria, tais como herança, circunstâncias, natureza, experiência, liberdade e, sobretudo, prudência. Tangenciamos também o entendimento do filósofo acerca do justo exercício do poder, da representatividade dos cidadãos perante o governo, da apropriada atuação do estadista frente aos interesses sociais conflitantes, da injustiça inerente à conduta revolucionária, da imprudência inerente à mentalidade subversora, da deferência devida às instituições civis consagradas, das configurações possíveis de um Estado, entre outros motes. Se for adequada a distinção feita entre ciência política e filosofia política que define a primeira como o estudo pragmático das estruturas e mecanismos de 1

Quem apresenta essa informação sobre a ocasião em que surgiu a obra-prima de Burke é Francis Canavan, S. J., em prefácio para as Reflexões encontrado na edição de 2012 da Topbooks, pág. 12.

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governo, bem como das relações políticas que perfazem o aparato estatal e a sociedade, enquanto concebe a segunda como a fundamentação ética e metafísica de um projeto ideal de Estado e de uma conduta ideal dos agentes políticos, podemos dizer que Burke fez tanto uma quanto outra. No primeiro capítulo, encetaremos com uma retomada das circunstâncias históricas nas quais foi deflagrada a Revolução Francesa – evento determinante para a produção filosófica de Burke – e apresentaremos dados referentes aos desdobramentos daquela sublevação que corroboraram o parecer inicial do filósofo sobre a mesma. Também evidenciaremos as reações manifestas de Burke àquele acontecimento, que aparecem na forma de denúncias, advertências e apreciações contestatórias do pensamento revolucionário e iluminista. E abordaremos, ainda, o realismo burkeano frente às promessas utópicas que então ganhavam prestígio. No nosso capítulo inicial, portanto, prevalecem temas que ressaltam o caráter reativo e contestador do filósofo. No segundo capítulo, discorreremos sobre as noções antropológicas, éticas e metafísicas que alicerçam e permeiam o pensamento político burkeano. Procuraremos expor algumas características da antropologia restrita adotada pelo autor, sua confiança nas antigas virtudes clássicas e numa Ordem cosmológica natural com a qual devem conformar-se as convenções humanas, bem como seu apreço pelos valores do cristianismo, e também sua convicção de que os direitos naturais da humanidade procedem de uma Lei natural eternamente estabelecida. Neste capítulo aparece, portanto, um Burke que, não obstante preferisse ser prático, é também metafísico. No terceiro e último capítulo do nosso trabalho, à medida que apresentarmos as recomendações do filósofo para uma práxis política baseada, sobretudo, na virtude da prudência, sobressairá um Burke mais propositivo. Assim, procederemos a uma exposição das propostas práticas do filósofo para que os homens de Estado sejam norteados por uma salutar circunspecção e uma judiciosa sensatez na gestão da coisa pública. Mostraremos como a política da prudência surge como uma alternativa à política revolucionária e visa firmar uma relação de confiança recíproca entre governo e sociedade civil, possibilitando que toda mudança sócio-institucional seja sempre gradativa, orgânica e resulte em proveito do maior número possível de cidadãos.

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1 UMA REAÇÃO AO JACOBINISMO E À ILUSTRAÇÃO Discorreremos, neste primeiro capítulo, acerca do modo como Edmund Burke manifestou sua oposição ao triunfo dos jacobinos na França, às medidas revolucionárias que aqueles tomaram e às ideias iluministas que os moviam. Apontaremos, também, determinadas ocorrências da França oitocentista que confirmaram as advertências de Burke sobre as consequências da Revolução. A reação do deputado irlandês àquele evento histórico contrariou o que, segundo Espada (2010), se esperava dele após a Queda da Bastilha em 1789. Na Câmara dos Comuns, a expectativa era que Burke apoiasse a insurreição gaulesa, como fizera em relação à Revolução Americana, que já havia tornado os EUA um país independente em 1776. Entretanto, o parlamentar liberal manifestava-se com críticas veementes ao levante dos jacobinos, algo que seus compatriotas esperavam naturalmente dos tories (conservadores), mas não de um whig. A oposição de Burke não se explica apenas pelas notícias que chegavam até ele a respeito da escalada de violência que se desencadeava naquele processo revolucionário, mas também por sua experiência anterior com ideólogos cujas concepções motivaram o levante. Por volta de 1773, isto é, dezesseis anos antes da revolução, Burke teria viajado a Paris, onde teve contato com alguns iluministas franceses2. Na ocasião, Burke teria percebido neles não só uma hostilidade com relação à religião cristã, mas também um acentuado apego a princípios teóricos e direitos universais abstratos, como os de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, em nome dos quais se poderia até desprezar os direitos individuais, tendo em vista um pretenso “bem comum” e os supostos interesses da coletividade. Burke teria, então, já naquele ano, percebido que concepções perigosas começavam a insuflar um movimento revolucionário na França. A mentalidade revolucionária, eivada de um caráter dogmático, utopista, subversivo e, muitas vezes, violento, inquietava Burke. Certamente impressionavam-no as palavras de ordem e frases como: “Só haverá liberdade quando o último rei for enforcado com as vísceras do último padre”, disseminada pelos iluministas. Ou: “Antes faremos da 2

Conforme a Introdução de Conor Cruise O’Brien presente na 2ª edição brasileira das Reflexões sobre a Revolução em França lançada pela Editora Universidade de Brasília em 1997.

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França um cemitério do que deixaremos de regenerá-la”, atribuída a Jean-Baptiste Carrier, o principal carrasco dos resistentes de Vandée. Contudo, Burke ponderava (1997, p. 72) que a França pré-revolucionária – apesar da crise financeira e dos problemas que vinham se acumulando, não só por este motivo, mas também por causa do comodismo do rei e dos excessivos privilégios da aristocracia – tinha uma história notável, um legado de bons valores e de ancestrais sábios e virtuosos que os franceses, em sua opinião, deveriam ter aprendido a respeitar. O deputado britânico lembra que a França não era uma nação recente em 1789, não era um “povo de ontem” que fora escravizado até as vésperas da Revolução (como o discurso jacobino procurava denotar), e que depois dela se tornara livre e renascido. Logo, não se poderia desculpar os crimes dos revolucionários com o pretexto de que seriam “abusos da liberdade” cometidos por um povo desacostumado a ser livre (ibidem). “A França comprou miséria com crime!”, denunciava Burke (1997, p. 73). E vociferava contra o encarceramento da família real, o confisco dos bens da Igreja, os exílios de dissidentes, as execuções dos guardas e servos da realeza (idem, p. 97), acusando a Revolução inclusive de corromper o comportamento do povo na medida em que estendia a toda a população as “funestas corrupções que geralmente eram taras apenas de ricos e poderosos” (idem, p. 73). Burke elencava, já dois anos antes da fase mais crítica do “terror”, algumas das primeiras consequências observáveis daquela sublevação: “leis não cumpridas e tribunais destituídos; a indústria aniquilada e o comércio se extinguindo; impostos não pagos e, no entanto, o povo empobrecido; a Igreja pilhada sem que o Estado se beneficie com isso; a anarquia civil e militar...” (idem, p. 74). Em tudo isso, Burke via a concretização das ideologias da dita “ilustração”, elaboradas por “pioneiros que demoliram e abaixaram tudo ao nível de seus pés” e que, não obstante instigassem o povo às armas, “não derramaram uma só gota de sangue para o país que arruinaram” (ibidem). Mostrando-se sempre cético com relação ao novo estado de coisas na França, o autor manifesta também, ainda no início do texto, seu desejo de que a França seja “animada de um espírito de liberdade racional”, bem como suas “dúvidas sobre vários pontos importantes de suas últimas operações.” (BURKE, 1997, p. 48). Em sua carta-resposta que acabou se tornando um tratado de filosofia política, Burke deixou claro que o seu parecer não pretendia representar nenhum partido inglês e que, se cometesse erros de

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julgamento, estes seriam de sua “inteira responsabilidade” (ibidem). Com isso, procurou dar um caráter de análise apartidária às suas considerações, sem deixar de admitir que, além de seus desejos de liberdade e prosperidade para a França, motivavam-no suas preocupações a respeito das consequências da Revolução Francesa para o Reino Unido, uma vez que as ideias oriundas da nação gaulesa influenciavam a Grã-Bretanha e vários outros países (idem, p. 103). Na Inglaterra, duas entidades promotoras dos ideais da chamada Revolução Gloriosa, ocorrida em 1688, apoiavam o regime da Assembleia Nacional francesa e começaram a difundir princípios jacobinos na Grã-Bretanha. A reverberação dos discursos revolucionários em solo inglês inquietava Burke, que temia que a ideologia estrangeira afetasse a percepção do povo britânico a respeito de suas próprias instituições. Na missiva, o autor como que procura convencer seu interlocutor de que a aprovação de tais clubes britânicos à Revolução Francesa não representava o parecer do parlamento e tampouco a maioria dos ingleses. A Assembleia Nacional francesa, no entanto, recebera tais declarações favoráveis a ela como se aquelas atestassem a aprovação do Reino Unido ao novo estado de coisas na França, razão pela qual Burke queria mostrar que a importância atribuída àquelas moções de apoio redundava numa impostura de ambas as partes, isto é, uma “fraude” (BURKE, 1997, p. 50).

1.1 A presciência de Burke Há comentadores, como Cobban (1960, p. 11), que ressaltam a clarividência e a presciência de Burke, atribuindo-lhe certo “profetismo” que lhe permitiu antever, já em 1790, as consequências futuras do processo revolucionário gaulês. Aos abusos de poder que observara já então, Burke classificou ironicamente3 como um “esboço” das barbáries que estavam por vir: Esboçou-se, sem dúvida, com audácia, uma série de regicídios e de sacrílegos atentados, mas foi apenas esboçada. Infelizmente, restou inacabado, no grande quadro da história, o massacre dos inocentes. Veremos mais tarde qual lápis endurecido de um grande mestre da escola dos direitos do homem o terminará. (BURKE, 1997, p. 98). 3

O recurso à ironia é frequente ao longo da obra Reflexões sobre a Revolução em França, especialmente quando o autor intenta criticar conceitos do pensamento iluminista, como “os direitos do homem”, a conduta revolucionária francesa ou seus adeptos britânicos.

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A violência insólita do chamado Reino do Terror, que durou da queda dos girondinos, em 1792, à prisão de Robbespierre, em 1794, mais que confirmou as advertências de Burke. E, se a Revolução sustentou o princípio da “igualdade” em algo, certamente o foi na aniquilação de dissidentes, executando pessoas de origens e profissões muito distintas: de camponeses a aristocratas, de monjas a cientistas, como o próprio Antoine Lavoisier, pai da química moderna, cuja vida também teve seu desfecho na guilhotina. Nos anos do terror revolucionário, os crimes da ditadura de Robespierre marcaram a história da França: os afogamentos de Nantes (Noyades), o massacre de Vandée e as cerca de dezessete mil execuções na guilhotina, na qual decapitaram desde os opositores manifestos da Revolução, incluindo os nobres (entre eles, o próprio rei Luís XVI), até as inofensivas monjas carmelitas de Compiégne4. Otto Flake menciona também o morticínio desenfreado de Jean-Baptiste Carrier (FLAKE, 1937, p. 187), um revolucionário que ficou famoso por sua crueldade, sobretudo contra os clérigos, e pelos abusos sexuais que cometia contra algumas vítimas antes de executá-las. A Carrier é atribuída a invenção do método de execução denominado “casamento republicano”, o qual consistia em amarrar duas vítimas nuas, uma defronte a outra (e, às vezes, padres com freiras, para zombar de sua castidade), para depois atirá-las no rio Loire. De acordo com Messori (2004, p. 65), três mil padres teriam sido assassinados pelo governo revolucionário, muitas religiosas violadas e torturadas até a morte e dezenas de camponeses esquartejados, sobretudo na província de Vandée, onde os católicos haviam organizado uma resistência armada, bem como nas demais localidades que se opuseram ao totalitarismo revolucionário a fim de preservar suas tradições. Há historiadores que consideram o massacre de Vandée como o primeiro genocídio da história moderna (ibidem), uma antecipação jacobina e anticristã da “solução final da questão judaica” implementada

pelo

governo

antissemita

do

Partido

Nacional-Socialista

dos

Trabalhadores Alemães no século XX. Em todas as regiões alcançadas pela cólera revolucionária jacobina, inclusive em terras italianas, podem ter havido massacres ou perseguições aos crentes (MESSORI, 2004, p. 66). 4

A memória do martírio delas foi perpetuada pela beatificação da Igreja, pelo romance histórico de Gertrude Von Le Fort (A Última ao Cadafalso) e pela peça de teatro de Georges Bernanos (Diálogo das Carmelitas), a partir da qual produziu-se também um filme com o mesmo título da peça.

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Quanto aos resistentes antijacobinos, sabe-se que organizaram, em algumas regiões da França, milícias de reação ao totalitarismo ateu republicano semelhantes àquelas formadas no México da década de 19205. Tais reações tiveram um caráter amplamente religioso e popular, de maneira que a resistência era composta majoritariamente por pessoas do campesinato, i. e., milícias de plebeus movidos pelo desejo de conservar sua fé, sua liberdade, seus costumes tradicionais e sua cultura cristã-católica (MESSORI, 2004, p. 66). Os combatentes católicos traziam, em seus casacos, pedaços de pano costurados com a imagem devocional do Sacre Coeur de Jésus, assim como em seus estandartes.6 O lema dos resistentes de Vandée era Dieu et le Roy (“Deus e o Rei”), uma vez que desejavam também a restauração da monarquia, provavelmente por compreenderem esta forma de governo como uma maneira de assegurar a conservação da religião e de todo o legado cultural cristão da França. A resposta da Paris jacobina e revolucionária aos resistentes foi a destruição de suas casas e edifícios públicos, a devastação de suas colheitas e o extermínio de inocentes, inclusive mulheres e crianças. Terminada a guerra, o general jacobino Westermann escrevia triunfalmente a Paris, ao Comitê de Salvação Pública, aos adoradores da deusa Razão, da deusa Liberdade e da deusa Humanidade: “A Vendée já não existe, cidadãos republicanos! Foi morta pela nossa livre espada, com suas mulheres e crianças. Acabo de enterrar um povo inteiro nos pântanos e nos bosques de Savenay. Executando as ordens que me haveis dado, esmaguei as crianças sob os cascos dos cavalos e massacrei muitas mulheres, que assim não poderão parir mais bandidos. Não tenho que lamentar nenhum prisioneiro. Exterminei todos.” Da parte de Paris, responderam elogiando a diligência posta em “purificar completamente o solo da liberdade desta raça maldita”. (MESSORI, 2004, p. 68, tradução nossa)7.

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Quando houve uma reação popular às perseguições anticatólicas do governo mexicano que levaram à chamada Guerra Cristera ou Cristiada. 6 Note-se que estes dados históricos apresentados por Messori contrariam tanto os historiadores marxistas que afirmam que a reação ao terror revolucionário partiu de uma Igreja e de uma nobreza ávidas por preservar privilégios do Antigo Regime, quanto a concepção marxiana segundo a qual os grandes empreendimentos históricos teriam sempre motivações socioeconômicas de fundo. 7 el general jacobino Westermann escribía triunfalmente a París, al Comité de Salud Pública, a los adoradores de la diosa Razón, la diosa Libertad y la diosa Humanidad: “¡La Vendée ya no existe, ciudadanos republicanos! Ha muerto bajo nuestra libre espada, con sus mujeres y niños. Acabo de enterrar a un pueblo entero en las ciénagas y los bosques de Savenay. Ejecutando las órdenes que me hábeis dado, he aplastado a los niños bajo los cascos de los caballos y masacrado a las mujeres, que así no parirán más bandoleros. No tengo que lamentar ni un prisionero. Los he exterminado a todos.” Desde París contestaron elogiando la diligencia puesta en “purgar completamente el suelo de la libertad de esta raza maldita”.

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A propaganda iluminista contra a aristocracia e contra a Igreja não se limitava à realidade dos fatos, mas criava factoides para instigar os rebeldes contra seus adversários. De acordo com Carvalho (2007), os iluministas promoveram uma “vasta campanha de difamação destinada a cobrir a Igreja de infâmia por todos os meios inescrupulosos disponíveis”. Cita como exemplo o notável enciclopedista iluminista Diderot, que fabricou a história de uma jovem noviça (La Religieuse) mantida na clausura de um mosteiro contra a sua vontade. Com o intuito de gerar revolta contra uma Igreja que era capaz de oprimir e manter moças inocentes cativas nos porões de um convento, Diderot difundiu esta ficção como se fosse um relato verídico. Em carta a Jacob Grimm, o enciclopedista teria dito que “estourava de rir” ao fazer tantos acreditarem na veracidade daquele embuste e se escandalizarem com ele. Em decorrência de falácias como essa, os revolucionários jacobinos puderam revestir de sentimentos humanitários o seu furor homicida ao exterminar tantos religiosos e religiosas durante a Revolução.8 No momento em que Burke escreve as Reflexões, as perseguições anticlericais violentas ainda não haviam começado (ou, pelo menos, o autor ainda não havia tomado conhecimento delas), mas o novo regime francês já havia feito mudanças estruturais e intervenções despóticas na Igreja. E o deputado irlandês vislumbrava, com clareza, qual era a finalidade daquelas medidas políticas: O poder atual da França, entretanto, tem como principal preocupação a pilhagem da Igreja. [...] Em resumo, senhor, parece-me que essa nova estrutura eclesiástica será temporária e visa à destruição completa da religião cristã sob todas as suas formas, na época em que os homens estiverem já preparados para este último golpe. (BURKE, 1997, p. 150-151).

E o que prepararia os homens da França para as formas mais extremas de abuso de poder seria a corrupção cultural-ideológica da sociedade, a dissolução dos princípios mantenedores da estabilidade social. Uma sabotagem que se efetivaria substituindo, por exemplo, a antiga lealdade pelo crime preventivo:

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Em 1966, o cineasta Jacques Rivette transformou o embuste de Diderot em um filme de sucesso. E em 2013 foi lançada uma nova versão de La Religieuse para o cinema, dirigida por Guillaume Nicloux.

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A usurpação que, a fim de subverter as antigas instituições, destruiu os velhos princípios, conservar-se-á no poder por meios semelhantes àqueles pelos quais o obteve. Quando estiver extinto da mente dos homens o velho espírito feudal da Lealdade9, que, ao liberar os reis do medo, liberou, ao mesmo tempo, os reis e seus súditos das precauções contra a tirania, os complôs e os assassinatos serão evitados pela morte preventiva e pela confiscação preventiva e pela aplicação daquela longa lista de máximas sinistras e sanguinárias que formam o código político do poder, o qual não repousa em sua própria honra, nem na honra daqueles que devem obedecê-lo. (BURKE, 1997, p. 102).

1.2 O realismo burkeano O autor das Reflexões percebia o potencial destrutivo das ideologias utópicas que, movidas por um “sentimento de humanidade abstrato”, prometem um “benefício futuro e incerto” a pessoas que só existem idealmente, em troca de submeter os cidadãos concretos do presente a verdadeiras “calamidades” (BURKE, 1997, p. 9). De acordo com Russel Kirk (2005, p. 3), Burke era um homem que preferia a particularidade, o concreto e o experimentável, mas que, diante do triunfo das ideias deletérias dos philosophes10 iluministas, não teve outra escolha senão entrar na discussão dos princípios abstratos da política, ainda que lhe aborrecesse o domínio da abstração. Em geral, as obras políticas conservadoras surgem como reação à ascensão da mentalidade revolucionária e são produzidas com certa relutância, atesta Kirk (2013, p. 133). Burke tinha uma visão bastante modesta e, podemos dizer, realista, a respeito da capacidade da razão humana. Em sua perspectiva, a reflexão de pensadores contemporâneos, por mais inovadora, atraente e promissora que seja, vale muito menos que a razão legada pela tradição. A razão inovadora seria, portanto, menos digna de consideração do que a razão tradicional. Isso porque esta última é o produto da reflexão testada pelo tempo, confirmada por experiências que atravessaram os séculos e qualificada por homens prudentes de muitas gerações diferentes. Destarte, suprimir modelos institucionais e culturais que já foram testados e aprimorados por várias gerações a fim de substituí-los por incertos projetos brotados das “frágeis e falíveis

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Valor que funcionava, quando respeitado, como sustentáculo da sociedade medieval, como base dos vínculos e responsabilidades mútuas entre as classes sociais feudais. 10 Palavra francesa para “filósofos”, usada geralmente para designar os autores iluministas que nem sempre eram propriamente dedicados à filosofia, mas escreviam sobre temas gerais de humanidades.

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invenções da nossa razão” (BURKE, 1997, p. 69) não parecia uma opção viável para o espírito um tanto cético do autor. O filósofo irlandês considerava demasiadamente pretensiosos os intelectos isolados e modernos que aspiravam, a partir de suas especulações teóricas, conhecer perfeitamente e fazer valer os “direitos dos homens”, construindo uma nova ordem política baseada neles. Burke acreditava que os direitos humanos devem ser reconhecidos “não em virtude de princípios abstratos” (BURKE, 1997, p. 68), mas pela recepção de um patrimônio de valores civilizacionais derivados de uma Lei natural reconhecida e confirmada pela sabedoria e pela experiência dos antigos. Sua percepção da falibilidade da razão humana, uma marca característica do pensamento conservador, fez dele um implacável adversário daqueles que prometiam elaborar um paraíso na terra, de acordo com Kirk (2005, p. 4). Guillermo Margadant afiança um “rechaço total”, da parte de Burke, às fórmulas abstratas com pretensão de validade absoluta na política. Para ele, o filósofo quis “expulsar da política todo dogmatismo que tenda a uma aplicação mecânica, cega, de alguma teoria abstrata” (MARGADANT, 1994, p. 117, tradução nossa)11. Isso porque o pensador irlandês atentava para o fato de que os promissores modelos políticos que tais teóricos propagandeavam muitas vezes implicavam em altíssimos e inaceitáveis custos humanos, sociais e culturais, como se observou na própria Revolução Francesa. O valor dos princípios gerais e das instituições, para o autor, é circunstancial, não absoluto. As circunstâncias de cada tempo e situação devem ser avaliadas para que os princípios gerais que norteiam a ação política não sejam aplicados inadequadamente. Para Burke, até mesmo os melhores e mais nobres princípios não podem ser absolutizados desconsiderando as circunstâncias concretas e as consequências de sua aplicação em cada caso. Não se trata, evidentemente, de ver os princípios e as instituições como coisas sempre provisórias e relativas – Burke acreditava na solidez e na durabilidade de muitos deles –, mas sim de lhes dar a adequada e devida aplicação:

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expulsar de la política todo dogmatismo que tienda a la aplicación mecánica, ciega, de alguna teoría abstracta

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São as circunstâncias – circunstâncias que alguns julgam desprezíveis – que, na realidade, dão a todo princípio político sua cor própria e seu efeito particular. São as circunstâncias que fazem os sistemas políticos bons ou nocivos à humanidade. (BURKE, 1997, p. 50).

Para legitimar a sua casuística – a sua apologia ao exame dos casos particulares –, Burke usa os exemplos do governo e da liberdade; uma instituição e um princípio que, não obstante sejam considerados geralmente como bens, nem sempre podem ser matéria de felicitações, uma vez que não são bons em toda e qualquer circunstância: Falando-se em abstrato, o governo, assim como a liberdade, é bom; no entanto, há dez anos, teria eu podido, em sã consciência, felicitar a França por possuir um governo (pois ela tinha um) sem ter, de antemão, inquirido o que era este governo e de que maneira funcionava? Posso hoje felicitar esta nação por sua liberdade? A liberdade é, sem dúvida, em princípio, um dos grandes bens da humanidade; no entanto, poderia eu seriamente felicitar um louco que fugiu de seu retiro protetor e da saudável obscuridade de sua cela, por poder gozar novamente da luz e da liberdade? Iria eu cumprimentar um assaltante ou um assassino que tenha fugido da prisão, por terem readquirido seus direitos naturais? (BURKE, 1997, p. 50-51).

1.3 Imprudências e vícios da atitude revolucionária O filósofo avalia que certas posturas que pautavam a ação dos revolucionários na França deveriam ser desterradas da política, a fim de evitar males que podem levar uma nação inteira ao colapso e prejudicar muitas gerações à frente. Algumas delas seriam: a ousadia aventureira, o racionalismo excessivamente otimista e pretensioso, o progressismo imoderado e irrefletido, o lidar com os bens públicos de modo arriscado e imprudente, o desprezo pelos costumes e instituições históricas, a falta de circunspecção e de um juízo equilibrado. São posturas motivadas por ideologias inovadoras que os revolucionários aplicam ao que é comum, público, mas que provavelmente não aplicariam ao lidar com suas importâncias pessoais: “Aí eles deixam o todo à mercê de especulações não experimentadas; abandonam os mais caros interesses do público àquelas vagas teorias, às quais nenhum deles sonharia confiar o menor de seus interesses privados.” (BURKE, 2012, p. 365). A própria composição da Assembleia Nacional francesa incomodava o deputado irlandês, que lamenta a impetuosidade, a insensatez e a imponderação de seus membros. Burke vê o poder político deste órgão, configurado para perseguir as metas do regime

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revolucionário, como um poder “semelhante ao princípio do mal, de subverter e destruir” (BURKE, 1997, p. 95), ou uma espécie de oficina de demolição e sabotagem institucional, elaborada para demolir tudo o que fosse resquício do antigo regime, e incapaz de “construir algo diferente das máquinas que fabricam maiores subversões e destruições” (ibidem). O filósofo acusa a mentalidade revolucionária de querer adaptar, à força, o mundo real a seus projetos ideológicos, como se houvesse, da parte daqueles, uma aversão à realidade ou como se quisessem aprisionar a realidade em seus conceitos, algo que, mesmo antes da Revolução, a propaganda iluminista já fazia na medida em que se empenhava para estigmatizar o sistema vigente, cobrindo-o de descrédito12. Burke reprova, deste modo, as posturas políticas que ignoram a realidade da “composição real de um Estado” e dos “princípios públicos” de uma sociedade no intuito de fazê-la encaixar-se, na marra, em esquemas teóricos extremistas (1997, p. 92). E critica também o projeto iluminista de uma Educação Cívica destituída de valores religiosos e “fundada em um conhecimento das necessidades [meramente] físicas dos homens” (BURKE, 2012, p. 342). Para o autor, semelhante educação não seria capaz de cultivar nos educandos nada mais do que um “egoísmo iluminado” (ibidem). Indignava-o, sobretudo, o desprezo dos revolucionários pelos valores morais e religiosos que plasmaram a história da França e a tornaram a nação que fora até a Queda da Bastilha. Para o parlamentar irlandês, espezinhar a história, a cultura e os princípios espirituais de um povo pacífico, em favor de um “progresso” violento que supostamente teria o potencial para dar à luz uma sociedade mais livre, fraterna e igualitária, é uma atitude demasiado pretensiosa, uma maquinação nociva engendrada por pessoas que consideram “um país como se fosse uma tábula rasa onde pudessem escrever aquilo que melhor lhes convém” (BURKE, 1997, p. 157). Tendo em vista aquelas arbitrariedades, apesar da aparência de “democracia pura” que revestia a autoridade então vigente na

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Na historiografia brasileira, há registros dos anos anteriores e imediatamente posteriores à Proclamação da República (instaurada em 1889) que mostram a ocorrência, no Brasil, de campanhas semelhantes de depreciação do regime monárquico-parlamentarista. Recorde-se, ainda, que o Brasil teve também a sua própria Vandée: no episódio que ficou conhecido como Guerra de Canudos, a população monarquista do vilarejo baiano de Belo Monte foi massacrada pelo exército republicano. Analisando as razões ideológicas que levaram o governo da república a dar ao povo de Belo Monte esse trágico desfecho, compreende-se por que o historiador Boris Fausto classificou os republicanos brasileiros da época como “jacobinos” (FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp, 1995. p. 257-258).

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França, o filósofo sugeriu que ela se tornaria, em breve, “uma ignóbil e malévola oligarquia” (BURKE, 1997, p. 135). A excessiva concentração de poder num grupo político deliberativo que reúna atribuições legislativas, executivas e judiciárias, como parecia ser o caso da Assembleia Nacional, também foi criticada pelo autor. Embora se pretendesse uma instância representativa dos cidadãos franceses, guiada pelas “luzes” da ilustração filosófica e conduzida sob a égide dos “direitos do homem”, o poder quase ilimitado da Assembleia dava-lhe ocasião para os erros e abusos que abundavam. Por isso, o deputado irlandês, a respeito daquela poderosa entidade, lastimava: não tem nada que a possa frear: nem a lei fundamental, nem convenção estrita, nem costume respeitado. Ao invés de ser obrigada a respeitar uma Constituição estabelecida, ela tem o poder de elaborar uma que seja conforme seus objetivos. Não há nada, nem no céu nem na terra, que possa controlá-la. (BURKE, 1997, p. 78).

Encontra-se também na missiva várias advertências a respeito ao risco de se conferir poder a homens que instrumentalizem o Estado para se servirem dele, tendo em vista não o bem comum, mas seus próprios “interesses particulares” (BURKE, 1997, p. 77). O filósofo atenta para as “negociatas lucrativas que acompanham sempre as revoluções no Estado, e sobretudo as grandes e violentas transferências de propriedade.” (ibidem). Burke não pensa, contudo, que todos os revolucionários são sempre movidos pela ambição e por interesses pecuniários. Mas certamente considerava que aqueles que acreditam, sincera e honestamente, nas promessas da revolução, iludem-se ao pretender criar um governo simples norteado por princípios simples, uma vez que “a natureza do homem é complicada”, e os “objetivos da sociedade”, a política, a gestão da res pública, revelam-se, na realidade, atividades “da maior complexidade”. (BURKE, 1997, p. 90). Por conseguinte, o filósofo recomenda que as funções públicas de maior importância sejam exercidas por pessoas “de espíritos mais assentados e de inteligências mais abrangentes.” (BURKE, 1997, p. 77). Ao passo que deplora as consequências práticas das ideias iluministas, Burke ufana-se por a Grã-Bretanha não ter sido, até então, influenciada significativamente por elas. Além disso, critica, naquelas, a pretensão de terem revelado grandes verdades e princípios até então inéditos:

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Não fomos convertidos por Rousseau; não somos discípulos de Voltaire; Helvetius não teve sucesso entre nós. Nossos pregadores não são ateus; nem nossos legisladores loucos. Sabemos que nós não fizemos descoberta alguma; e julgamos que não há descobertas a serem feitas no campo da moral, nem tampouco no campo dos grandes princípios do governo e das ideias de liberdade; que eram compreendidos bem antes de nascermos e que continuarão a ser até muito depois que a terra tiver se acumulado sobre a sepultura de nossa presunção e o silêncio do túmulo tiver se imposto sobre a nossa impertinente loquacidade. (BURKE, 1997, p. 107).

Como se percebe, Burke não via sequer sinais de reta intenção na prática dos revolucionários; ou, pelo menos, não na prática dos dirigentes deles. Pelo contrário, o pensador irlandês, em diversos trechos de suas Reflexões, parece convencido da má-fé dos jacobinos que lideravam as mudanças na França. Considera a Assembleia Nacional francesa como nada mais que “uma associação voluntária de homens que se aproveitam das circunstâncias para tomar o poder do Estado” (BURKE, 2012, p. 363). O autor ainda ajuíza que a recusa dos jacobinos a recorrer aos “métodos regulares” para sanar as desordens políticas comuns do antigo regime fora uma escolha derivada “não só de um defeito de compreensão, mas [...] de alguma malignidade de disposição.” (BURKE, 2012, p. 371). Embora não negasse que certas mudanças do novo regime traziam “melhorias superficiais” aos franceses (idem, 1997, p. 221), o filósofo chama mais a atenção para as violências e “erros fundamentais” da Revolução cujos dirigentes, em seu parecer, “tratam a parte mais humilde da comunidade com o maior desprezo, e, ao mesmo tempo, fingem querer transformá-la no receptáculo de todo o poder.” (idem, p. 86).

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2 BASES ANTROPOLÓGICAS E ÉTICO-METAFÍSICAS Este segundo capítulo dedica-se a explorar as noções antropológicas e ético-metafísicas fundamentais que sustentam a visão política de Burke. Apresentaremos algumas das principais asserções filosóficas e crenças que serviram de esteio à cosmovisão burkeana, mormente à sua concepção de uma Ordem inerente à natureza do mundo e do homem. Natureza esta que, embora esteja radicada na essência de ambos, é passível de ser contrariada ou subvertida pelo último, no entendimento do autor. A concepção de uma Ordem cosmológica estável que pode e deve plasmar a artificialidade das sociedades humanas, inclusive o Estado, está, notavelmente, na base da filosofia política de Burke. Neste sentido é que o autor fala de uma “prodigiosa sabedoria que preside à misteriosa coesão das sociedades humanas” (BURKE, 1997, p. 69). E é patente a sua convicção de que as instituições legais do Reino Unido, naquele final do século XVIII, correspondiam satisfatoriamente – embora não perfeitamente – àquela ordem natural e àquelas necessidades humanas mais legítimas e caras às famílias britânicas. Dessa dupla correspondência é que procedia, no entendimento do autor, a solidez do seu sistema político, que era tradicional e monárquico sem ser absolutista, pois preservava a coroa, a nobreza e, ao mesmo tempo, as liberdades comuns e os direitos caros ao povo, graças ao seu caráter constitucional e parlamentarista bicameral. Em decorrência daquela dupla correspondência, Burke acreditava que o núcleo do sistema do Reino Unido era capaz de se perpetuar “em meio às decadências, quedas, renovações e progressos” (BURKE, 1997, p. 69). Entretanto, tal confiança não significava que Burke via-o como algo acabado e completo, nunca necessitado de melhorias e reformas. Pelo contrário, a mesma possibilidade de ser aprimorado, sem que perdesse o que nele permanecia proveitoso, o tornava mais adequado àquela Natureza e àquelas necessidades e afetos caros às famílias britânicas: Assim, pelo emprego de métodos da natureza na conduta do Estado, aquilo que melhorarmos não é nunca completamente novo, e aquilo que conservarmos não é nunca completamente velho. Permanecendo ligados a nossos ancestrais, não é pela superstição da antiguidade que nos deixamos conduzir; mas pelo sentimento da analogia filosófica. Adotando este princípio da herança, demos à nossa construção política a imagem de um parentesco pelo sangue; ligamos a nossa Constituição a nossos mais caros vínculos domésticos, dando a nossas leis fundamentais um lugar no seio de nossas afeições de família. (BURKE, 1997, p. 69).

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2.1 Visão antropológica restrita Dentre as concepções que sustentam a lógica subjacente ao edifício teórico político de Burke, sobressai uma “visão restrita” acerca da natureza do ser humano, identificada nos textos do filósofo por comentadores como Thomas Sowell (2011). Trata-se de uma visão restrita não no sentido de “limitada” ou de “particularizada”, mas no sentido de “realista”, de “desiludida”, uma visão antropológica livre de ilusões e otimismos pouco razoáveis em relação à nossa espécie. Esta visão antropológica restrita desconfia das capacidades da razão humana e espera a priori que haja vícios na conduta dos cidadãos e de seus representantes políticos, independentemente da configuração de Estado ou de sociedade que se queira adotar. Nessa perspectiva se inserem as considerações do filósofo sobre as “frágeis e falíveis invenções da nossa razão” (BURKE, 1997, p. 69) bem como sua noção de uma “enfermidade geral da natureza humana” (BURKE, 1877c, p. 437, tradução nossa)13, uma enfermidade entendida não apenas como fragilidade biológica, mas também como deficiência ética e epistemológica. A desilusão antropológica inerente a esta visão conservadora se contrapõe, por exemplo, ao pensamento de Jean Jacques Rousseau, para quem a natureza humana, sendo essencialmente virtuosa e irrestrita, fora corrompida pela sociedade. Na lógica da antropologia irrestrita, a natureza humana é dotada de uma plasticidade e de uma perfectibilidade naturais. Logo, sendo ela plástica, o Estado revolucionário poderia remodelá-la para que ela tornasse a ser tão virtuosa quanto era no seu estado original. E, sendo ela perfectível, o Estado poderia eliminar os elementos da sociedade que a corrompem, dirigir o seu aperfeiçoamento e, assim, chegar a uma solução final para os problemas e injustiças sociais. Portanto, procedimentos de engenharia social e reconfiguração forçada da mentalidade das massas poderiam, nessa ótica, tornar a sociedade mais justa e virtuosa. E parece ter sido isso o que o regime instaurado após a Revolução Francesa procurou fazer ao tentar suprimir os traços da influência aristocrática e eclesiástica na cultura comum, banindo não só as tradições da nobreza e as festas religiosas, mas até mesmo o calendário gregoriano e os dias da semana. No horizonte da visão irrestrita combinada com a ideologia revolucionária, pode ser acatado como vantajoso um projeto político que prescreva grandes sacrifícios iniciais 13

general infirmity of human nature

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em prol de benesses futuras. Nessa perspectiva, podem parecer aceitáveis até mesmo os sacrifícios mais violentos, como eliminar os adversários, calar os dissidentes e destruir algumas instituições apreciadas pelo povo. Esta visão irrestrita da humanidade, no que toca à plasticidade e à perfectibilidade que ela atribui ao homem, favoreceu o caráter utópico e totalitário da Revolução Francesa, de acordo com Sowell (2011, p. 40). Uma antropologia irrestrita, além de dar ocasião ao surgimento de ideologias utopistas, facilitaria a legitimação de líderes políticos com pretensões absolutas que são apresentados como a encarnação das “virtudes naturais” do homem. Na contramão da mentalidade revolucionária irrestrita, a filosofia política conservadora advoga que a busca quimérica por um estado de perfeição terrena esbarra não só nas imperfeições intelectuais dos homens, que os tornam incapazes de alcançar aquele estado, mas também nos conflitos de interesses que frequentemente se dão nos relacionamentos humanos. Conflitos existentes não apenas entre as diferentes classes, mas inclusive entre famílias de uma mesma classe e, eventualmente, entre indivíduos de uma mesma família. Nesta compreensão, reconhecer a imperfeição intelectual humana, bem como nossa falibilidade natural e a pluralidade de interesses dos diversos tipos de cidadãos, requer que o estadista adote uma conduta humilde, prudente, conciliadora e de rechaço às tentações utópicas e totalizantes. Burke observava que as deficiências presentes nas instituições humanas não são outra coisa senão o reflexo amplificado das deficiências presentes na própria natureza de cada homem. O filósofo dublinense acreditava que o bom estadista deve ter a imperfeição humana como premissa e levá-la em conta na gestão dos bens públicos. Tomando os homens por criaturas irremediavelmente restritas, naturalmente marcadas por impulsos egoístas e às vezes perigosos14, Burke pensava que o Estado deve lidar com os interesses conflitantes adotando estratagemas sociais e oferecendo contrapartidas, em vez de pretender suprimi-los à força (cf. BURKE15 apud SOWELL, 2011, p. 29). Importa, ainda, que, visando à preservação de bens fundamentais, como a liberdade, o Estado tenha certo grau de tolerância para com os defeitos humanos, mesmo quando 14

Não se trata, porém, de uma visão similar à do estado de natureza hobbesiano, no qual, sem a força coercitiva do Estado, imperam o caos e a guerra de todos contra todos. Não. Neste ponto, Burke se aproxima mais do conceito cristão de concupiscência, que denota uma inclinação do homem para o egoísmo, adquirida no pecado original, mas que pode ser refreada pela vontade individual aliada à Graça. 15 The Correspondance of Edmund Burke. Chicago, University of Chicago Press, 1967, v. VI, p. 392

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estes geram certos prejuízos sociais. Neste sentido, dizia que quem “tem de lidar com homens” (BURKE, 2012, p. 336) deve aprender a suportar as deficiências humanas até que elas ultrapassem os limites de uma justa aceitação, ou seja, deve “tolerar fraquezas enquanto elas não degeneram em crimes.” (ibidem). Na opinião do autor, um estadista prudente deve saber oferecer compensações viáveis aos cidadãos insatisfeitos, em vez de se aventurar a perseguir grandes projetos arriscados que exigem, muitas vezes, altos custos e acarretam males piores do que aqueles que se pretendia combater. Fatalmente, as contrapartidas e concessões feitas para aplacar insatisfações circunstanciais podem, por sua vez, gerar novos problemas e exigir algumas renúncias.16 Por isso, o filósofo avalia que exercer a política implica em “contrabalancear” bens e males e em “computar” as “quantidades morais” em jogo (BURKE, 1997, p. 91). Desafios novos surgem sempre e o estadista deve seguir procurando conciliar interesses, agradar as diversas partes dentro do que for possível, e melhorar a sociedade sem afoitezas e sem a pretensão de resolver todos os problemas de uma só vez, de modo que ela se aprimore organicamente, como um sistema social que nunca será perfeito para todos, mas que pode ser satisfatoriamente funcional. Os males latentes nas invencionices mais promissoras são cuidados à medida que vão surgindo. Uma vantagem é tão pouco quanto possível sacrificada a uma outra.Compensamos, reconciliamos, equilibramos. Somos capacitados a unir em um todo consistente as várias anomalias e princípios conflitantes que se encontram nas mentes e negócios dos homens. (BURKE, 2012, p. 370).

2.2 Heranças greco-cristãs As influências conceituais mais marcantes que formam a base ético-metafísica da obra política de Burke certamente são clássicas, principalmente gregas, e cristãs, com notas escolásticas. Os laços da cosmovisão burkeana com essas fontes são claros. Russel Kirk recorda que Burke, em resposta aos intelectuais que então ganhavam destaque na Europa, como Rousseau e Bentham, sustentava que “os primeiros princípios na esfera

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O gozo do sossego público, por exemplo, exige certas renúncias no que tange à liberdade individual, enquanto que o gozo das liberdades civis exige também, por sua vez, renúncias de outra ordem.

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moral vem a nós através da revelação e da intuição e não das caprichosas especulações de filósofos sonhadores.” (KIRK, 2005, p. 3-4, tradução nossa)17.18 Por “intuição”19, Burke compreendia a sensibilidade – não apenas no sentido sensorial, mas também no de sensibilidade psicológica – que permite a captação do real pelo intelecto. E por “revelação” Burke compreendia justamente aquele conjunto de crenças e preceitos morais legados ao mundo ocidental pelo cristianismo. Embora acreditasse que a política é mais uma ciência experimental do que um receituário de fórmulas a priori a serem aplicadas pelo Estado (cf. BURKE, 2012, p. 223), o filósofo entendia que a realização teleológica das coisas que são da ordem temporal e humana depende da sua conformação com os princípios que emanam da Ordem eterna e divina. Assim como o velho Platão e outros filósofos menos velhos do que ele, Burke concebe uma ordem inteligível da qual a ordem sociopolítica deve ser sufragânea. Tal ideia se expressa, por exemplo, na proposição de que uma sociedade pode aprimorar seu Estado e suas instituições públicas na medida em que mantém seus vínculos com o “grande contrato primitivo da sociedade eterna” (BURKE, 1997, p. 116), contrato este que “liga o visível ao invisível” (ibidem) e encerra os princípios supremos que regem a ordem da criação. Em Burke, o exercício legítimo do poder político tem que estar de acordo com “aquela lei eterna e imutável na qual vontade e razão são a mesma coisa” (BURKE, 2012, p. 269), o que nos sugere já uma influência tomista, visto que, em Tomás de Aquino, a vontade de Deus coincide necessariamente com a Sua inteligência20. Joseph Pappin (1993, p. 53) também identifica marcas da tradição aristotélico-tomista em Burke e o insere na linhagem dos realistas clássicos, embora admita que o pragmatismo burkeano permite ao leitor encontrar nele também abordagens que se aproximam do utilitarismo. Não obstante sua aversão pela especulação teórica absolutizadora de princípios abstratos e sua preferência pela evidência, pela circunstância e pela experiência, Burke esteve longe de ser um anti-metafísico, sugere Pappin (1993, p. 94). O filósofo irlandês apenas fazia a devida distinção entre as 17

first principles in the moral sphere come to us through revelation and intuition, not the fanciful speculations of dreamy philosophers. 19

intuitive glance (Burke, 1877a, p. 456) TOMÁS DE AQUINO. Seleção de Textos de São Tomás de Aquino e Dante. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988. Cap. 33. 20

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abstrações artificiais produzidas pela imaginação humana e aquelas que, no seu entendimento, são as verdadeiras fundações diretivas universais, constituídas na ordem da criação para reger o universo e orientar a conduta do homem e as sociedades humanas. Em outras palavras, Burke distinguia uma vã teoria baseada em abstrações puramente convencionais do legítimo conhecimento da razão suprassensível que rege o mundo (1997, p. 116). Em Burke, a filosofia política não é uma atividade puramente especulativa, mas diz respeito ao exercício da sabedoria prática. Em Aristóteles (Ética a Nicômaco, VI, 8), a sabedoria prática é a genitora de toda reflexão ética e implica diretamente nas relações sociais e políticas. Para o filósofo grego, a sabedoria prática e a ciência política, embora essencialmente distintas por se dirigirem a objetos diferentes (a primeira, ao indivíduo, e a segunda, à polis), aparecem como a mesma disposição mental; ambas aparecem como razão aplicada ao modo de orientar a ação humana para atingir o bem, ou a eudaimonia (felicidade), de onde se apreende a proximidade entre a compreensão burkeana e a aristotélica no que tange à reflexão política. Em Burke, Deus é o “Autor e Protetor da sociedade civil” (BURKE, 1997, p. 117), pois Ele não apenas fornece as diretrizes para a reta ordenação da vida e das sociedades humanas, mas, ao criar o homem com o potencial para organizar-se racionalmente em sociedade, cria por extensão também o Estado. Burke reconhece que o Estado e a sociedade são convenções humanas, mas também admite que o homem e sua razão são apenas a causa imediata dessas convenções, sendo a Causa do homem a causa primeira das mesmas. Logo, toda a autoridade política humana, inclusive a do cidadão, vem de Deus; não por uma especial determinação divina, mas pelo simples fato de Deus ter criado o homem como um animal político por natureza. Burke sustenta, assim, a ideia de uma politicidade natural. E a noção burkeana da origem divina da política pode ter sido inspirada pela escolástica tardia, segundo Canavan (2012, p. 26), uma vez que Francisco Suárez21 a apresentou de forma elaborada nos primórdios da modernidade. A posição de Burke sobre a origem divina da autoridade política humana, contudo, não deve ser confundida com a teoria da origem divina do poder real de Jacques Bossuet22, 21 22

Filósofo escolástico espanhol do século XVI. Teólogo francês nascido no século XVII.

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pois difere fundamentalmente dela. Enquanto em Bossuet apregoa-se a eleição divina do soberano como uma investidura espiritual especial, que dá margem inclusive para a defesa do absolutismo monárquico, em Burke apenas é reafirmada a proposição de que Deus criou o ser humano como um animal político (zoon politikón, definia Aristóteles) e lhe delegou poder sobre a ordem temporal, fazendo-o capaz para o governo da criação terrena. Note-se ainda que, para Burke, o Criador não abandonou os homens à própria sorte após ter concluído a criação, mas continua lhes concedendo os “dons da Providência” (1997, p. 69), isto é, continua a intervir favoravelmente nos assuntos humanos quando estes o consentem. Há em Burke também uma teleologia de inspiração aristotélica, como identificou Canavan (2012, p. 29) e Pappin (1993, p. 94). Para o filósofo dublinense, o ser humano tem em si o potencial para o seu próprio aperfeiçoamento, conforme a natureza que lhe foi dada pelo Criador. E quanto mais o homem cultiva a sua racionalidade e permite que ela predomine em todos os aspectos da vida, inclusive sociopolíticos, mais ele permanece enraizado na natureza, mais ele se aprimora e mais se conserva em correspondência com a sua Causa primeira, cujo bem é refletido nas criaturas naturalmente boas. O próprio Estado, enquanto instituição produzida pela razão humana e propícia ao aprimoramento da sociedade e dos cidadãos, deve nortear-se pela ordem arquetípica constituída desde sempre por aquela sua Causa original. Disto resulta que, em Burke, não é possível pensar um Estado irreligioso ou regulado por princípios meramente seculares, uma vez que Deus é o governante e o legislador supremo pelo qual devem pautar-se as sociedades humanas. Embora preveja a possibilidade de um aperfeiçoamento não linear do ser humano e das instituições humanas, a teleologia adotada por Burke se distingue do perfectibilismo antropológico iluminista por diversas razões. Uma delas é que, em Burke, o homem não é naturalmente virtuoso em seu estado primitivo, mas é naturalmente limitado, defectível e, ao mesmo tempo, possui o potencial natural para o seu aperfeiçoamento. Este potencial existe não só por causa de fatores intrínsecos, como as faculdades do intelecto, mas também graças a fatores extrínsecos, como o estímulo da família e da comunidade e a assistência do Criador. Ademais, na compreensão iluminista e irrestrita, o aperfeiçoamento humano é possível graças à plasticidade do homem e deve ser conduzido por dirigentes esclarecidos, por um Estado revolucionário que dirija os

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cidadãos no sentido de fazer cada homem voltar a ser tão justo, livre e fraterno quanto era o homem primitivo, levando-o a cumprir o seu papel para que todo o corpo social se aperfeiçoe. Por outro lado, em Burke, os homens e o tecido social que eles constituem não podem ser aperfeiçoados pela direção de um Estado totalizante governado por uma elite de intelectuais. O aperfeiçoamento é, na reflexão do pensador irlandês, fruto de um processo espontâneo de desenvolvimento moral e espiritual da sociedade, que só é capaz de evoluir neste sentido se mantiver os vínculos com a sua Origem divina, se valorizar as experiências dos antepassados, aprendendo com seus erros e acertos, e se conservar as instituições e os costumes benéficos recebidos da tradição; reformando-os para melhorá-los, quando necessário, sem cismar em destruí-los. Ou seja, para Burke o aperfeiçoamento humano é naturalmente possível, mas não é dirigível, não pode ser conduzido artificialmente por dirigentes esclarecidos e estruturas governamentais. A influência aristotélica no pensamento burkeano é perceptível também no reconhecimento do papel dos hábitos na formação da conduta moral. Para Aristóteles, “a virtude ética nasce do hábito”23. Na concepção ética de Burke, o hábito também desempenha um papel importante, como podemos conferir na seguinte passagem das Reflexões, que também manifesta a rejeição do autor pela proposta revolucionária supracitada de moldar artificialmente os homens para aperfeiçoá-los: “não há nome, poder, função, instituição artificial que possa fazer homens, que compõem um sistema de autoridade, diferentes daquilo que Deus, a natureza, a educação e seus hábitos de vida lhe fizeram.” (BURKE, 1997, p. 75) Na dimensão ética, haveria, ainda, certa similaridade entre o arquétipo político platônico e o modelo de estadista burkeano, sendo que tanto para Platão quanto para Burke, a prudência deve ser a maior das virtudes do estadista (KIRK, 2013, p. 107). Vale lembrar, entretanto, que o modelo de Estado idealizado por Platão distancia-se da política burkeana, entre outras coisas, pelo caráter artificial e utópico do sistema que o filósofo grego propôs. Na constelação das virtudes aristotélicas, figura também a magnanimidade, associada à grandeza de espírito e ao cultivo das virtudes em alto grau. O filósofo grego sugere ser 23

Ética a Nicômaco, II, 1, 1103a 1518.

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ela “uma espécie de coroa das virtudes, porquanto as torna maiores e não é encontrada sem elas.”24 Em Burke, essa virtude também aparece de forma destacada no contexto de um de seus discursos políticos e é elencada entre as virtudes que devem cultivadas pelo estadista: “A magnanimidade na política é, não raramente, a verdadeira sabedoria” (BURKE, 1877b, p. 181, tradução nossa)25. Burke ainda cita expressamente Aristóteles (1997, p. 135) para expressar suas reservas em relação ao regime democrático; assunto do qual trataremos no capítulo terceiro.

2.3 O jusnaturalismo burkeano Apesar de algumas colocações de Burke aparentemente sugerirem que nada há de superior, no campo do direito, à tradição jurídica constitucional britânica, o filósofo certamente admite a existência de um direito natural anterior e superior a ela. A Lei da natureza, para o autor, se manifesta e se implanta nas sociedades humanas por meio da sabedoria prática das gerações, quando esta sabedoria se atualiza como o “efeito feliz de uma conduta que imitou a natureza” (BURKE, 1997, p. 69), em vez de ser mero artifício das “frágeis e falíveis invenções da nossa razão” (ibidem). Burke contrasta os direitos herdados da tradição não com a Lei natural, mas sim com os “direitos dos homens” (idem, p. 68), isto é, com os supostos direitos originais que os homens tinham em seu estado primitivo, no sentido iluminista. Por isso, o filósofo defende a tradição política na qual está situado; porque a compreende como penhor de direitos, leis e valores sagrados fundados na natureza. Russel Kirk (2005, p. 6) confirma que Burke rejeita a doutrina iluminista sobre os direitos naturais do homem. O comentador recorda que as proposições de jusnaturalistas célebres como John Locke, David Hume, Jean-Jacques Rousseau e Jeremy Bentham, por exemplo, diferem significativamente do jusnaturalismo burkeano. Kirk afirma também que Burke foi buscar numa tradição mais antiga a base para o seu jusnaturalismo: na concepção de ius naturale (lei natural) do filósofo romano Marco Túlio Cícero, bem como na filosofia cristã e na commom law inglesa, que surgiu no século XII, sob o reinado de Henrique II, como um sistema jurídico-legal unificado. A

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Ética a Nicômaco, IV, 3 Magnanimity in politics is not seldom the truest wisdom

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noção de direitos humanos, em Burke, não tem a ver apenas com o que é devido ao próprio homem, mas também, e em primeiro lugar, com o que é devido ao seu Criador. Burke compreendia a Lei natural, da qual dimanam os legítimos direitos, como a conformação do costume humano à intenção divina. Consequentemente, o deputado whig atribuía os direitos e as liberdades dos quais os britânicos gozavam à assimilação da Lei natural26 por seus antepassados e à influência benéfica da Revelação divina sobre aquelas gerações precedentes, bem como à experiência acumulada e ao legado cultural e institucional deixado por elas. É a estes direitos e valores herdados, sobretudo, que Burke se refere quando escreve sobre o “legado que nós recebemos de nossos antepassados e que devemos transmitir à nossa posteridade” (BURKE, 1997, p. 69). O filósofo faz questão de defender que o legado de direitos comuns que beneficia os britânicos sustenta-se “não em virtude de princípios abstratos” (idem, p. 68), mas porque segue “funcionando segundo o padrão da natureza” (BURKE, 2012, p. 186). Burke comunga da proposição de Cícero de que há uma Lei de procedência divina, da qual deriva também o Direito. Esta Lei, sendo eterna e absolutamente justa em suas determinações, vincula-se à própria “razão da Natureza” (CÍCERO, 1967, p. 42), alusão também encontrada em Burke. Para o filósofo romano, contudo, a Razão natural que concebe o Direito e a Lei suprema se permite acessar pelas “inteligências comuns” dos homens (idem, p. 50). Mas, para Burke, os direitos naturais não nos são inteligíveis em sua forma pura e integral; daí a necessidade que temos do auxílio da Revelação e da experiência das gerações. Nessa perspectiva, as sociedades humanas cujas leis mais se conformam àqueles mandamentos revelados por Deus seriam as que mais respeitam a natureza e a finalidade ontológica do gênero humano, uma vez que o Criador onisciente sabe o que é melhor e mais adequado à natureza de sua criatura. Por si só, o homem não poderia saber o que é melhor para si e mais adequado à sua natureza, uma vez que, como vimos, sua capacidade de conhecimento é restrita, limitada e falível. Historicamente, as tentativas das sociedades humanas de conformação ao mandamento divino teriam gerado um legado de experiências cristalizado na forma das instituições, direitos 26

O conceito de Lei Natural, em Burke, deriva tanto do filósofo romano Cícero, quanto da filosofia cristã de inspiração escolástica e paulina (Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo II, versículos 14 e 15).

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reconhecidos e tradições. E estes são o fruto da “razão acumulada dos séculos, [que afirma valores e promulga leis] combinando os princípios da justiça original com a infinita variedade de interesses humanos” (BURKE, 1997, p. 115). Burke considera que os direitos positivos recebidos de uma longa e profícua tradição – enraizada na Lei Natural e iluminada pela Revelação divina – são naturalmente mais proveitosos aos cidadãos do que supostos direitos originais reclamados por racionalistas ilustrados de uma única geração. Isso porque os “direitos originais do homem”, elaborados a partir de princípios abstratos e de uma crença num idílico estado primitivo da humanidade, não foram experimentados e testados, enquanto os direitos positivos tiveram que ser amadurecidos, nuançados e equilibrados entre as reivindicações conflitantes até chegarem à sua forma última. Assim, os direitos baseados na revelação do Criador e na experiência (sabedoria prática) das gerações precedentes seriam melhores, ainda, porque os direitos naturais da humanidade que os iluministas quiseram elencar teoricamente sequer nos são acessíveis em sua forma pura: Esses direitos metafísicos penetrando na vida comum, como raios de luz penetram por um meio denso, sofrem, pelas leis da natureza, uma refração de sua linha reta. De fato, na rudimentar e complicada massa de paixões e preocupações humanas, os direitos primitivos do homem sofrem uma tal variedade de refrações e reflexos, que se torna absurdo falar deles como se continuassem na simplicidade de sua direção original. (BURKE, 2012, p. 224).

É possível, ainda, que a compreensão jusnaturalista de Burke seja um eco da noção de Lei natural defendida por Tomás de Aquino. Para o filósofo escolástico, toda lei estabelecida pelo homem só tem natureza de lei na medida em que deriva da lei da natureza, de modo que, se a lei positiva discorda da lei natural, deixa de ser lei e tornase uma corrupção da verdadeira lei.27 Certamente, a convicção de Burke nesta “lei eterna e imutável” (1997, p. 115), ou na “natureza [que] nos ensina a reverenciarmos os indivíduos” (idem, p. 70), poderia ter motivado, por exemplo, o engajamento do filósofo na campanha contra a escravidão (cf. SOWELL, 2011, p. 221), ou nas denúncias contra a abusiva taxação dos súditos da coroa inglesa que viviam nas colônias.

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TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q. 95, a.2.

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3 A PRUDÊNCIA COMO VIRTUDE NORTEADORA DA POLÍTICA Como já sinalizamos anteriormente, Burke acreditava que um estadista, para lidar com a complexa arte da política, deve cultivar virtudes como a humildade, a magnanimidade e a prudência. Tais são virtudes necessárias ao homem de Estado porque lidar com a política implica em lidar com uma multiplicidade de interesses sociais conflitantes e com os defeitos sociais provenientes das falhas próprias do que é humano. Nessa dinâmica, a prudência tem um papel de destaque enquanto virtude política. Ela permeia todas as proposições burkeanas que dizem respeito à gestão da coisa pública. A prudência é a base da práxis conservadora. Burke a considera “a primeira de todas as virtudes” (1877a, p. 314, tradução nossa)28. É a judiciosa prudência que recomenda “seguir a natureza ao invés de nossas especulações” (BURKE, 1997, p. 70). Nos tópicos seguintes, iremos apresentar algumas das principais proposições do autor nas quais a prudência se sobressai enquanto virtude norteadora do agir político. 3.1 A experiência dos antepassados Se a política é uma ciência prático-experimental, que não se faz por meio de prescrições a priori (BURKE, 2012, p. 223), logo é sensato o estadista que dá mais crédito aos dados resultantes das experiências políticas já realizadas do que às suas próprias impressões pessoais. Burke avalia que, na ciência política, a experiência de longo prazo é a que fornece os resultados mais adequados para um acurado discernimento. E a experiência de vida de uma só geração não é bastante; é preciso considerar as experiências dos que viveram antes de nós e que, não raramente, enfrentaram problemas semelhantes aos nossos. O autor acredita que nada se perde por admitir que há uma sabedoria acumulada subjacente à tradição cultural, moral e institucional que uma geração recebe das anteriores. Se fossem desprezadas totalmente as salutares tradições que compõem este vínculo intergeracional, “os homens valeriam pouco mais que moscas de verão” (BURKE, 1997, p. 115), pois os frutos da experiência humana seriam tão fugazes quanto a vida de cada geração sobre a terra. A civilização seria impossível se cada nova geração 28

the first of all virtues

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desdenhasse absolutamente de tudo o que a geração anterior logrou construir e conhecer. Por isso, o autor deplora a insensatez daqueles que pretendem “tudo refazer a partir do nada” (idem, p. 71). O filósofo irlandês ainda relaciona o respeito aos antepassados à responsabilidade que se deve ter para com as gerações futuras. Valorizar ou desprezar o passado implica em consequências para o futuro; como se escutar os mortos fosse algo crucial para garantir a segurança daqueles que ainda estão por nascer. Em uma de suas acusações aos jacobinos, Burke censura-lhes a soberba, afirmando que eles se arvoram em “mestres absolutos” e agem “sem se importar com o que tenham recebido de seus ancestrais ou com o que é devido à posteridade” (1997, p. 115), de maneira que se arriscam a “não deixar àqueles que virão depois deles nada além de ruína no lugar de uma habitação” (ibidem). Por isso, uma sociedade prudente, na perspectiva burkeana, afirma-se como uma comunidade coesa que respeita o cabedal cultural da tradição e que “não imitará métodos cuja experiência nunca tenha realizado, nem retomará métodos que a experiência mostrou ser nocivos.” (idem, p. 63). Na visão iluminista, é a intervenção engenhosa e revolucionária dos homens esclarecidos que, suprimindo completamente a sociedade tradicional com os seus vícios, pode dirigir a coletividade para uma perfeição uniforme e para uma ordem civil racional, justa, igualitária, libertária e fraterna. Porém, na concepção burkeana, como vimos, o aprimoramento do corpo social e institucional acontece, antes, no desenvolvimento espontâneo de uma sociedade que mantém seus vínculos com a Lei Natural e com o patrimônio espiritual e material herdado dos antigos. Tal patrimônio inclui a história e as lições dos antepassados. Aprende-se com os erros e com os acertos deles. E, se a política de uma nação deve ser conduzida de modo seguro e prudente, é útil aprender com os ancestrais e reconhecer o que há de bom e virtuoso no legado deixado por eles. Para falar desta herança institucional e cultural, Burke usa a imagem de uma árvore cujo “velho tronco” os britânicos souberam preservar, tendo o cuidado de “não enxertar nenhuma muda estranha à [sua] natureza” (BURKE, 1997, p. 67). De fato, o seu modelo de monarquia constitucional atravessou séculos sem sofrer mudanças radicais desde a Idade Média. A própria Revolução Gloriosa de 1688 fora uma “revolução relutante”

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que não visou derrubar o sistema tradicional, mas “restaurar as antigas liberdades constitucionais consagradas na Magna Carta de 1215” (Espada, 2010). João Carlos Espada salienta a reverência pela tradição como uma característica distintiva da corrente conservadora da qual Burke faz parte; uma vertente políticofilosófica que visa à conciliação entre permanência e mudança. Ao se dispor a orientar a práxis política, o político conservador, longe de querer estagnação ou retrocesso, propõe incentivar a evolução orgânica do Estado e da sociedade sem deixar que se invalidem, a cada mudança de governo, as conquistas passadas. Trata-se, portanto, de uma política que pensa o futuro em respeitoso diálogo com o passado; que planeja o futuro para deixar à posteridade o que de bom foi recebido da ancestralidade, não com uma fixidez anacrônica, mas com as melhorias requeridas pelas circunstâncias de cada época: a ideia de herança fornece meios seguros de conservar e transmitir, sem excluir os meios de melhorar. Ela deixa a liberdade de adquirir; mas fixa aquilo que se adquire. Um Estado que se inspira nestas máximas incorpora, como em uma espécie de bem de família, todas as vantagens que ele se proporciona, ele cria uma espécie de usufruto eterno. (BURKE, 1997, p. 69).

O teor dessa corrente filosófica para a qual Burke deu uma significativa contribuição pode ser haurido também das obras de G. K. Chesterton, por exemplo. Chesterton foi um autor profícuo no início do século XX e, tal como Burke, se tornou célebre por sua crítica filosófica e suas reações criativas às tendências ideológicas da moda. Ele, inclusive, retoma (e enriquece) a imagem da velha árvore para defender o legado da tradição e criticar a mentalidade revolucionária a modo burkeano: A árvore vai crescendo e, dessa forma, mudando, mas o que se modifica é apenas o cerco que rodeia uma parte imutável. Os anéis situados no centro continuam sendo os mesmos de quando era um broto. Deixaram de ser vistos, mas não deixaram de ser centrais Quando nasce um ramo na parte superior de uma árvore, ele não se desprende de suas raízes, antes, ao contrário, quanto mais alto se elevam os ramos, com mais força a árvore terá de se prender às suas raízes. Este é o verdadeiro conceito do que deve ser o progresso sadio e vigoroso do homem, das cidades, ou de toda uma espécie. Mas quando os progressistas a que estou aludindo falam de evolução, não se referem a isto. Eles não desejam que mude a parte externa de um centro orgânico e permanente, como numa árvore; objetivam a modificação total e absoluta de cada parte a cada minuto, como a transformação que sofrem as nuvens. Mas se adotarmos como filosofia uma evolução similar à das nuvens, ou seja, uma evolução de algo que não tem esqueleto, não haveria lugar, então, para o passado e a civilização estaria incompleta; o que hoje existe pode desaparecer amanhã, inclusive amanhã mesmo. Pois bem, não creio nesse progresso perpétuo que acarreta apenas um caos perpétuo, creio na evolução orgânica, ordenada e de acordo com o projeto e a natureza de cada coisa. (CHESTERTON, 2013, p. 8-9).

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3.2 Considerações sobre o governo civil Se, no que concerne à natureza do ser humano, Burke tem uma visão mais “restrita” que a dos iluministas franceses, podemos dizer que, quanto às possíveis configurações dos sistemas políticos, o filósofo irlandês é menos restrito do que os chamados philosophes. Burke critica tanto os “fanáticos” monarquistas, por apregoarem que a monarquia hereditária é o “único modo legítimo de governo”, quanto os “fanáticos” republicanos, que pretendem impor a ideia de que a eleição popular é a “única fonte legítima do poder” (BURKE, 1997, p. 64). Assim, se Rousseau proclamava que todo poder emana do povo, para o nosso missivista tal postura parecia indefensável. Nem toda autoridade, para ser legítima e benéfica aos cidadãos, precisa necessariamente ser eleita pelo povo, na visão de Burke. Assim como um governante eleito nem sempre é bom para o povo, uma autoridade que recebeu seu poder por transmissão hereditária não é necessariamente ruim para os cidadãos: “Nós temos uma coroa hereditária, um pariato hereditário, uma Câmara dos Comuns e um povo que detém, de uma longa linha de ancestrais, seus privilégios, suas franquias e liberdades.” (BURKE, 1997, p. 69). E não se trata aqui apenas de uma defesa da monarquia inglesa, pois o filósofo considera também outras formas de poder que dispensam o sufrágio popular – como o poder jurídico, a autoridade policial ou a autoridade eclesiástica – e que são usualmente reconhecidas como legítimas e úteis à sociedade. Com relação ao regime democrático, Burke afirma que a democracia absoluta, direta e baseada na vontade da maioria, não é uma forma legítima de governo, assim como não o é a monarquia absoluta. Para Burke, uma forma absoluta de democracia pode tornar a maioria dos cidadãos “capaz de exercer, sobre a minoria, a mais cruel das opressões” (BURKE, 1997, p. 135). Trata-se do risco da tirania da maioria, a respeito da qual também alertou, mais tarde, Alexis de Tocqueville29. Para corroborar seu ponto-devista, Burke recorre ao filósofo estagirita: “Aristóteles observava que a democracia apresenta, em muitos aspectos, uma grande semelhança com a tirania.” (ibidem).

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Filósofo francês do século XIX, autor do clássico A Democracia na América, que também escreveu sobre a Revolução Francesa e é considerado, ao lado de Burke, um dos principais expoentes da tradição liberal-conservadora.

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Contudo, como era de se esperar de um membro da Câmara dos Comuns, Burke reconhecia que a democracia é algo salutar quando equilibrada com outras instâncias de poder e balizada pelos artigos de uma Constituição capaz de proteger os princípios irrenunciáveis e os direitos de todos, inclusive das minorias. A democracia nunca foi, para o deputado irlandês, a bandeira política suprema, como era, ao menos no discurso, para os jacobinos. Mas Burke de fato apreciava o grau de democracia que havia no sistema britânico, uma democracia moderada e intermediada: “Resolvemos conservar uma Igreja estabelecida, uma aristocracia estabelecida, e uma democracia estabelecida, cada uma no grau em que existe e não em um maior.” (BURKE, 1997, p. 112). O filósofo defende a importância do dissenso político no interior de um governo, útil inclusive para evitar determinações pouco refletidas e unilaterais na administração pública e preservar, assim, o princípio da prudência. O dissenso emerge sob a forma de “oposições e conflitos” que servem como “um freio salutar a todas as resoluções precipitadas”, na medida em que “tornam a deliberação uma necessidade, e não uma questão de escolha” (BURKE, 1997, p. 71). As resoluções de Estado acrisoladas pelo debate e pelo dissenso tendem a ser melhores, na visão de Burke, do que aquelas definidas num governo de partido único ou de autoridade absoluta. Em sua percepção, o dissenso faz brotar certa “harmonia do conjunto das lutas recíprocas de poderes discordantes” (ibidem). Assim, as oposições políticas “evitam males terríveis produzidos por reformas brutais, repentinas e absolutas, e tornam impraticáveis as ações inconsideradas do poder arbitrário.” (ibidem). Lastimando o autoritarismo e a truculência dos dirigentes revolucionários, Burke afirma que seria desejável que os líderes “temessem um pouco os indivíduos que eles conduzem” (BURKE, 1997, 75) e que se sentissem sujeitos à avaliação popular e a punições que coibissem qualquer abuso de poder, de modo que os cidadãos “pudessem julgar com peso e autoridade reais a influência que se pretende exercer sobre eles” (ibidem). Além disso, o autor considera que, ao estadista, importa ter “experiência prática nos negócios públicos”, uma vez que essa experiência tende a reduzir o risco das ousadias típicas dos “homens só de teoria” (ibidem). O seu padrão de estadista é aquele que tenha reunidas, simultaneamente, uma “disposição a preservar [os direitos, as liberdades e as instituições benéficas consolidadas] e uma capacidade de melhorar” (BURKE, 2012, p. 353).

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Num governo que pretenda conciliar os interesses díspares dos cidadãos, a prudência atua como uma ponderação cuidadosa das compensações. O estadista deve saber lidar com a “infinita variedade de interesses humanos” (BURKE, 1997, p. 115), para que as vontades de uns não venham a violar os direitos de outros. O governante deve ser capaz de conciliar liberdade e sujeição, de modo que permita a seus cidadãos o justo gozo da liberdade, mas coíba os excessos. O exercício dos direitos de cada cidadão deve equilibrar-se com os direitos dos demais e acomodar-se aos preceitos da ordem pública. O autor pondera, por exemplo, que a liberdade boa e legítima deve harmonizar-se com outros princípios, sem os quais a mesma liberdade não seria vantajosa, nem duradoura: Por tal razão, eu deveria me abster de felicitar a França por sua nova liberdade até que tivesse conhecimento de como esta liberdade se harmoniza com o governo, com o poder público, com a disciplina e a obediência dos exércitos, com o recolhimento e a boa distribuição dos impostos, com a moralidade e a religião, com a solidez da propriedade, com a paz e a ordem, com os costumes públicos e privados. À sua maneira, todas estas coisas são bens, e se elas vierem a faltar, a liberdade deixa de ser um benefício e perde a chance de durar muito tempo. (BURKE, 1997, p. 51).

3.3 Representatividade política Burke discorda da opinião segundo a qual qualquer homem é apto para exercer funções políticas e representar devidamente seus semelhantes. O deputado britânico pensa que nem todos são capazes de governar ou de compor um parlamento. Mas a falta de aptidão para a qual o filósofo atenta não é devida ao sangue ou à carência de títulos nobiliárquicos; antes, ele se refere a deficiências relacionadas à qualidade moral e intelectual dos candidatos, à educação por eles recebida, à sabedoria por eles adquirida. Cargos de grande prestígio e responsabilidade exigem candidatos que estejam à sua altura, que possuam vasto conhecimento e reconhecida idoneidade, no parecer do autor. O legislativo, por exemplo, deveria ser composto sempre por homens graves, circunspectos, de princípios construtivos e, preferencialmente, com alguma experiência política. O pensamento político burkeano comporta, assim, uma espécie de visão meritocrática do funcionalismo público. Entretanto, nem só de predicados racionais devem ser dotados os parlamentares que representam um povo. O bom representante

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público também se enobrece por cultivar a virtude da caridade e por ter certo temor diante do poder que lhe foi confiado: “O verdadeiro legislador deveria ter um coração cheio de sensibilidade. Ele deveria amar e respeitar sua espécie, e temer a si mesmo.” (BURKE, 2012, p. 369). Burke também crê que, entre os representantes do povo, devem estar homens de propriedade, homens que possuam bens privados em abundância. A representação dos proprietários no parlamento é útil, segundo o autor, para defender a propriedade privada, grande e pequena, das investidas daqueles que usam sua habilidade política para promover a abolição da propriedade, ignorando que a propriedade privada assegura a liberdade e a prosperidade de uma nação (1997, p. 82-83). Aliás, para Burke, assim como para Adam Smith30, a própria desigualdade social31 é condição sine qua non para a subsistência material de uma sociedade, sendo útil tanto aos proprietários quanto aos camponeses e operários. Já a ideia de igualdade material plena é recebida como uma fantasia impraticável na realidade, pois, uma vez imposta pelo Estado, geraria carência de mão de obra para diversos serviços, escassez insuportável de produtos e serviços básicos, falência da indústria, crise de abastecimento e caos social. Para representar fielmente as comunidades que compõem uma nação e os segmentos políticos que formam o Estado, cada instância de poder deve respeitar as demais e cumprir as obrigações públicas que lhe competem. Essa proposta de Burke, contudo, não pode ser associada ao princípio da separação dos poderes de Montesquieu, uma vez que provém de uma tradição bem mais antiga que remonta à Magna Carta, um documento com caráter de constituição legal incipiente redigido no século XIII. Nas Reflexões, fica patente a oposição de Burke às ingerências indevidas de certas esferas de poder em âmbitos que não são de sua competência, bem como a exigência de que cada qual cumpra os deveres que tem para com as outras:

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Filósofo e economista escocês do séc. XVIII, considerado o pai da economia moderna.

Não se deve confundir, aqui, desigualdade social com pobreza. Esta desigualdade prevista pelo liberalismo econômico é considerada, antes, um remédio contra a pobreza geral. Argumenta-se que a existência de classes e funções sociais distintas é natural, necessária e contribui para a prosperidade do todo. Afirma-se, ainda, que a possibilidade de ascensão social numa sociedade liberal é sempre aberta aos que se destacam pelo trabalho, pelo talento, pela criatividade ou por outros dotes laborais e intelectuais.

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As partes constituintes de um Estado devem respeitar as obrigações públicas que elas têm umas em relação às outras e em relação a todos os que derivam algum interesse sério de seus compromissos, da mesma forma que um Estado, como um todo, é obrigado a manter sua palavra face a comunidades separadas. De outra forma, competência e poder seriam logo confundidos, e as leis nada mais seriam que injunções da força vitoriosa. (BURKE, 1997, p. 60).

Como já sinalizamos anteriormente, uma legítima e favorável representatividade dos cidadãos não está necessariamente atrelada à eleição popular dos representantes, na opinião de Burke. O deputado whig não apenas acreditava que a monarquia parlamentarista representava bem o povo britânico, mas também afirmava que ela garantia uma valiosa estabilidade sociopolítica à nação, bem como a manutenção de liberdades e direitos civis tradicionais que estariam, de alguma forma, vinculados à coroa. Confiante na estima que a maioria de seus compatriotas mantinha por seu sistema e na rejeição que expressariam ante a proposta da implantação na Grã Bretanha de um regime semelhante ao dos jacobinos, argumentava: A lei de transmissão hereditária da coroa aparece-lhe [aparece ao povo britânico] como um de seus direitos, não como um dos seus deveres; como uma vantagem, não como um abuso; como uma garantia de suas liberdades, não como o selo de sua escravidão. Ele olha a estrutura da coisa pública, na forma em que ela existe atualmente, como um bem de valor inestimável; e a transmissão pacífica da coroa aparece-lhe como a garantia da estabilidade e da perpetuidade de todas as outras partes de nossa Constituição. (BURKE, 1997, p. 63).

A bem da verdade, importa relembrar que o poder político no Reino Unido não está concentrado apenas na coroa e na aristocracia, sendo que há uma instância parlamentar que é formada por congressistas eleitos pelos distritos: a Câmara dos Comuns, que é muito expressiva politicamente e tem nomeado a maioria dos ministros de Estado. Além da Câmara dos Comuns, o parlamento britânico também é formado pela Câmara dos Lordes32, composta por nobres e membros do episcopado, e pelo(a) monarca, que não governa na prática, mas é detentor(a) das chamadas “prerrogativas reais”, que incluem a sanção das leis, a concessão de honras, o reconhecimento de países estrangeiros, a declaração de guerra, o título de “chefe de Estado”, a autorização do uso das forças

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No tempo em que o Brasil também tinha um monarca, o primeiro modelo de senado criado no país foi inspirado na Câmara dos Lordes britânica e era chamado de Senado Imperial do Brasil. Após a Proclamação da República, em 1889, o nosso senado foi reconfigurado de acordo com os modelos dos Estados Unidos e da Argentina.

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armadas em seu próprio território, a formalização da nomeação do primeiro-ministro, entre outras. A política britânica pode ser dita, ao mesmo tempo, tradicional e evoluída: uma democracia liberal altamente representativa no seio de uma monarquia. Essa síntese, porém, não teve origem na modernidade, segundo Espada (2010). A Magna Carta de 1215 que, de certa forma, funda essa tradição, foi escrita para impedir o exercício do poder absoluto pelo rei John, bem como para garantir direitos aos lordes e aos demais súditos do rei, e ainda reformar a justiça, regular o comportamento da corte, livrar a Igreja da ingerência do monarca, dar direito de julgamento aos acusados, entre outras resoluções antiabsolutistas. O modelo britânico foi configurado de modo que cada uma das instâncias de poder pudessem complementar e, ao mesmo tempo, limitar as demais. Por conseguinte, a proposta de um governo limitado é uma “velha tradição” muito anterior a John Locke, embora este tenha sido um de seus principais entusiastas, atesta Espada (2010). Tomando-a emprestada de Winston Churchill33, Espada recupera a imagem da “corrente de ouro”34 que liga o passado e o presente, unindo tradição e progresso. E sugere que essa corrente resistiu aos séculos na Grã-Bretanha não só por causa da solidez de suas instituições e valores, mas também porque não foram exercidas pressões indevidas sobre ela como aquelas que derrubaram o antigo regime francês. Poder-se-ia questionar, contudo, o que teria levado o mesmo Burke que se opôs com tanta veemência à Revolução Francesa e às concepções jacobinas, a defender os direitos dos colonos americanos e se posicionar a favor da Revolução Americana de 1776. De acordo com João Pereira Coutinho (2014, p. 73), não é possível ver nisso qualquer tipo de incoerência da parte do filósofo irlandês. E não há incoerência, inclusive, porque vários dos mesmos motivos que o levaram a criticar a Revolução Francesa tinham-no levado, antes, a se posicionar a favor do levante que trouxe a independência aos Estados Unidos da América.

33

Ex-primeiro ministro do Reino Unido que se tornou célebre por sua atuação política durante a Segunda Guerra Mundial. 34

Golden chain, no idioma de Churchill.

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Os colonos norte-americanos não suportavam mais pagar impostos abusivos ao governo de Londres sem receber a justa contrapartida da metrópole. Por muito tempo eles apelaram, por seus legítimos direitos, à constituição arbitrariamente suspensa pelo rei George III. Sem lograr sucesso em suas reivindicações por seus direitos constitucionais – uma atitude genuinamente “conservadora”, segundo Coutinho (2014, p. 73) –, os colonos passaram a exigir não serem taxados por um governo que não os representava efetivamente35. Nota-se, então, que a questão da (falta de) representatividade foi um dos fatores que motivou a postura condescendente de Burke frente ao levante americano. Não tinham os americanos, inicialmente, a pretensão de criar uma nova ordem a partir de novos direitos e princípios teóricos, mas queriam apenas que lhes fossem restituídas as “velhas liberdades”, isto é, os direitos da “velha ordem” que lhes eram negados. Em outras palavras, os colonos americanos desejavam tão somente ter os mesmos direitos que tinham os velhos homens livres da velha Inglaterra. Como a coroa e o parlamento permaneceram teimosamente inflexíveis, negando-lhes o pouco que pediam, eles insurgiram-se contra a metrópole e, uma vez independentes, implantaram uma república que restituía muitas daquelas “velhas liberdades”.

Tal postura os distinguia

radicalmente dos jacobinos e dava um caráter conservador à insurreição americana e à sua demanda por independência. Em circunstâncias extraordinárias de “grandes abusos” sendo cometidos por um governo legítimo, o autor das Reflexões considerava legítima a insurreição como “último recurso dos homens inteligentes e virtuosos” (BURKE, 1997, p. 67). Atos sediciosos, como a deposição de um rei ou a instituição de um novo governo, embora devam ser evitados ao máximo, poderiam de fato ser tomados como último recurso, no parecer do autor. No caso de um governo que já não representasse razoavelmente seus governados e ainda os oprimisse com impostos e perseguições, a insurreição se justificaria. Como se vê, a postura diversa de Burke em relação às duas revoluções – a francesa e a americana – sinalizam, na verdade, uma notável coerência inerente aos seus critérios de juízo. Em vista de posturas como essa, Jean-Jacques Chevallier qualifica-o como “brilhante defensor da liberdade política” (1999, p. 213).

35

Conforme o célebre bordão “no taxation without representation” (“nenhuma taxação sem representação”).

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Burke pode ter se inspirado, mais uma vez, na filosofia tomista ao aquiescer com o juízo de que seria legítimo, quando todos os outros recursos estivessem esgotados, punir um soberano que estivesse causando grandes males a seus súditos. Tomás de Aquino concordou com a legitimidade do recurso ao tiranicídio em circunstâncias extremas36, e lembrava, inclusive, que Cícero considerara justo o assassínio do imperador romano Júlio César. Embora monarquista convicto, Burke também chega a afirmar que, em casos extremos, “a punição de reis tiranos é um ato de justiça nobre e grandioso” (1997, p. 105). Assim, fica parente que, na visão do autor, os impulsos deletérios da mentalidade revolucionária não constituem a única ameaça possível a uma ordem política fundada na natureza e na experiência. Pois um governante empossado legitimamente que cobiçasse o poder absoluto para si e espezinhasse os direitos dos súditos para alcançá-lo também poderia ser tão perigoso, subversivo e irrepresentativo quanto um levante revolucionário insuflado por intelectuais utopistas.

3.4 As instituições e valores consolidados pelas gerações A prudência política também diz respeito ao modo como o estadista compreende as instituições antigas de um país. Burke acredita que o governante deve reconhecer que elas passaram por uma espécie de seleção natural (no sentido evolucionista darwiniano), por um processo que as burilou até a sua forma atual, que as consolidou e as tornou aptas a responder satisfatoriamente às necessidades de um povo. Entre estas instituições, incluem-se também os direitos cujo reconhecimento pelo Estado foi fruto de conquistas históricas. Note-se, por exemplo, que, quando o autor se refere aos “privilégios” do povo britânico, não se trata de regalias ou vantagens de classe, mas de direitos positivos e liberdades comuns que então faziam os britânicos “privilegiados” em relação a outros povos. Estes “privilégios” são compreendidos não como concessões do governo, mas como uma herança recebida dos antepassados. Em suas Reflexões, em diversos trechos o autor afirma, em relação à tradição política do Reino Unido, que ela “sempre levou os habitantes deste reino a considerarem seus direitos e franquias mais sagrados como uma herança.” (BURKE, 1997, p. 68). Atesta, 36

TOMÁS DE AQUINO. Comentário ao Livro das Sentenças de Pedro Lombardo, II, 44. 2. 2.

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ainda, que a confiança dos britânicos em seu sistema se sustenta “não em virtude de princípios abstratos” (ibidem), mas graças à transmissão de um patrimônio de direitos e valores “legado pelos seus antepassados” (idem, p. 68). Patrimônio este que remonta ao século XIII e cujos valores constituem o eixo central de seu sistema, o fator unificante de suas leis, o fundamento comum das diversas partes de sua Constituição. A sabedoria dos antepassados, no parecer de Burke, é produto não apenas da experiência humana, mas também das revelações feitas por Deus à humanidade ao longo dos milênios, como já indicamos anteriormente. Portanto, toda tradição que transmite valores, direitos, instituições e princípios normativos legítimos é derivada da experiência acumulada das gerações precedentes e da Revelação divina. O filósofo acreditava que as instituições tradicionais erigidas sob os auspícios da cristandade e seus códigos de valores são o produto desse progressivo norteamento divino da humanidade. Encontramos em Burke a convicção de que as instituições de um país devem estar de tal modo enraizadas na realidade, na natureza e na história, que sejam capazes de garantir a coesão social e uma paz duradoura. Deste modo, o filósofo enaltece a tradição que sustenta as instituições de seu país porque a vê sob a égide de uma ordem natural e de uma sábia ancestralidade: Graças a uma política constitucional calcada sobre a natureza, nós recebemos, possuímos e transmitimos nossas propriedades e vidas. Recebemos e legamos a outros as instituições políticas, da mesma maneira que transmitimos os bens da fortuna e os dons da Providência. [...] O mesmo plano que nos fez conformar nossas instituições artificiais à natureza, e chamar seus seguros e poderosos instintos em socorro das frágeis e falíveis invenções de nossa razão, nos fez derivar outras vantagens, e não menores, do fato de que consideramos nossas liberdades como uma herança. (BURKE, 1997, p. 69).

O filósofo considera que entre os antigos se encontrava, com mais frequência do que entre os modernos, pioneiros que deveriam servir de inspiração às novas gerações, que se destacaram como “modelos de virtude e de sabedoria” (1997, p. 72). Estes pioneiros entraram para a história, em muitos casos, por terem criado ou reformado instituições que se tornaram venerandas e atravessaram os séculos. O autor acredita que tais instituições fazem parte do patrimônio comum da humanidade e não merecem ser desmanteladas em nome de impetuosas e irrefletidas inovações revolucionárias. A

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concepção burkeana que subjaz a essa postura é a de que o conhecimento da humanidade não é resultante somente dos esforços individuais de mentes brilhantes, mas é um fundo depositário comum, com o qual várias gerações contribuem. Evidentemente, os pioneiros do passado foram os inovadores de seu tempo. Sua engenhosidade muitas vezes também encontrou resistência quando eles propuseram algo de novo. E, se eles não tivessem inovado, as gerações seguintes não poderiam desfrutar de suas criações. Contudo, Burke refere-se aos antigos que, mesmo ousando inovar, respeitaram o direito e a ordem natural. Os pioneiros que Burke enaltece são aqueles que não tinham a pretensão de destruir tudo indiscriminadamente e construir algo inteiramente novo. Antes, ele se refere àqueles que inovaram, mas sem o ímpeto demolidor dos jacobinos, que erigiram coisas novas, mas sobre fundamentos já existentes, não raramente a partir das contribuições de “gigantes”37 ainda mais antigos. Para o filósofo dublinense, é certo que a razão de um único indivíduo, ou de uma só geração, é mais limitada do que a razão de várias gerações. Sendo a experiência passada mais sábia do que as modas ideológicas, as instituições antigas deveriam ser tidas em alta consideração, pois elas são o produto do capital experiencial das épocas. Elas passaram pelos testes do tempo e resistiram aos reveses de cada período. Por isso, elas gozam do princípio da consagração pelo uso; tendo sido experimentadas, testadas e aprovadas por muitas gerações, o seu mérito torna-se inegável. Assim, o autor considera que tais instituições merecem ser tratadas, inclusive, com certa reverência, com o respeito que é devido, por exemplo, a um ancião ou a um veterano de guerra. Tendo por premissa que a sociedade provida de instituições tradicionais favorece a transmissão hereditária de direitos e liberdades civis (BURKE, 1997, p. 70), o filósofo exorta à confiança nas instituições “cujos méritos forma confirmados pelo sólido testemunho da longa experiência e por crescentes força popular e prosperidade nacional” (idem, p. 88). Aqui, percebe-se uma compreensão mais positiva da sociedade civil do que aquela manifestada pelos teóricos que sustentam uma antropologia irrestrita. Se, na perspectiva irrestrita, a sociedade civil erigida sobre os baldrames da tradição é vista como uma força de degenerescência que adultera a natureza 37

Referimo-nos, aqui, à imagem usada por sir Isaac Newton em sua famosa frase: “Se vi mais longe foi por estar de pé sobre ombros de gigantes.”

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intrinsecamente boa do homem, em Burke a sociedade fundada na tradição é, desde que permaneça enraizada na ordem natural, um fator de aperfeiçoamento dos homens. Se, para os iluministas, a sociedade é um fator de corrupção que afasta o homem do seu estado de virtude original e o priva de seus direitos naturais, para o conservador ela é um lugar privilegiado de mútua cooperação, de mútuo benefício e de salutar exercício dos deveres e direitos comuns e individuais. Por conseguinte, o estadista prudente não deve menosprezar, em seu governo, a sabedoria experiencial encerrada nas instituições consolidadas: Sendo, portanto, a ciência do governo, tão prática em si mesma e dirigida para a solução de questões igualmente práticas, uma ciência que requer experiência, - ainda mais experiência do que aquela que um indivíduo pode adquirir durante sua vida, não importa sua sagacidade ou capacidade de observação,- é com infinita precaução que se deve aventurar a derrubar um edifício que vem, há séculos, respondendo toleravelmente bem aos propósitos da sociedade, ou construí-lo novamente sem ter à vista modelos e moldes cuja utilidade tenha sido comprovada. (BURKE, 1997, p. 90).

Isoladamente, cada instituição social não pode socorrer a todas as necessidades humanas sem as demais. O Estado não pode substituir a família, e tampouco a Igreja, como pretenderam os jacobinos. As instituições sociais devem coexistir e cumprir seus papéis de forma a corresponder, inclusive, aos sentimentos da população: “unimos em nossos corações, para querê-los com o calor de todos os nossos sentimentos combinados, nosso Estado, lares, túmulos e altares.” (BURKE, 1997, p. 69). A cada instituição cabe respeitar as demais e cumprir bem sua missão, sem violar as jurisdições alheias. Ao afirmar, por exemplo, que “as leis não podem se fazer escutar por entre o barulho das armas, e os tribunais caem por terra com a paz que eles não são capazes de manter” (idem, p. 66), Burke lembra que as instituições são tão mais duráveis quanto mais eficazes conseguirem ser no cumprimento de sua missão. Dentre as instituições que desempenham trabalhos fundamentais na sociedade civil, Burke considerava que a Igreja, enquanto guia moral e espiritual, cumpre um papel singular. Tanto que o filósofo avalia que, quando a religião é suprimida de um país, ela faz mais falta ao povo do que o comércio e a indústria (BURKE, 1997, p. 103). E denunciava que a propaganda ateísta fanática que se espalhava pela França jacobina estaria conseguindo corromper progressivamente não apenas as estruturas, mas também os sentimentos do povo (idem, p. 155).

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Contudo, Burke se opunha abertamente à ideologização política do discurso religioso. Para ele, cada instituição deve tratar do que lhe diz respeito, do que é de sua alçada, do que é próprio do seu caráter. O autor aceitava que as instituições tradicionais pudessem ser reformadas, como veremos adiante, mas considerava inadmissível que elas fossem desvirtuadas. Por isso, critica os pregadores eclesiásticos que eram simpáticos aos jacobinos, protestando que eles, “sob o nome de religião, nada ensinam além de política insensata e perigosa” (BURKE, 1997, p. 92). Nesse sentido, o filósofo dedicou boa parte de suas Reflexões a criticar um sermão pregado pelo ministro Richard Price em novembro de 1790. O discurso de Price, apesar de travestido de exortação religiosa, elogiara o novo regime de Paris, criticara o velho regime de Londres e, com isso, contrariara Burke profundamente, fazendo-o temer que as próprias instituições do Reino Unido fossem instrumentalizadas para instilar as ideias revolucionárias no país: Detesto as revoluções, sei que frequentemente é do púlpito que se dá o sinal para o seu desencadeamento. Vejo reinar na França um desprezo absoluto por todas as instituições antigas quando se lhes apresenta como opositoras à maneira atual de conceber as coisas, ou à direção das inclinações de hoje. Temo que este desprezo se estabeleça entre nós. (BURKE, 1997, p. 63).

3.5 Reformas orgânicas em vez de revoluções Não obstante seu apreço pelas instituições antigas, Burke não sugere que elas devam permanecer sempre imutáveis, mesmo quando começam a dar sinais de desgaste. Pelo contrário, o filósofo irlandês deplora a “obstinação que rejeita toda melhoria” (2012, p. 369) tanto quanto a “leviandade que fica cansada e enjoada de tudo que possui” (ibidem). Uma sociedade sábia, no seu parecer, não só preserva as instituições e costumes benéficos legados pela tradição, mas também se dispõe à reforma gradual e paciente das instituições que se tornam ineficazes ou prejudiciais. A possibilidade de mudanças pontuais, de reformas prudentes e adequadas, é considerada útil à própria conservação do Estado: “Um Estado onde não se pode mudar nada, não tem meios de se conservar. Sem meios de mudança, ele arrisca perder as partes de sua Constituição que com mais ardor desejaria conservar.” (BURKE, 1997, p. 61). Burke põe em evidência, assim, a afluência concomitante de dois princípios na administração das instituições públicas: o da “conservação” e o da “correção” (BURKE, 1997, p. 61). Tais princípios, se estiverem equilibrados e simultaneamente presentes em

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cada ato de governo, convergem para o aperfeiçoamento do Estado e da sociedade. Quando as instituições de uma sociedade se deterioram moralmente, por exemplo, é perfeitamente legítima a aplicação de uma reforma normativa, a fim de empregar “os melhores meios para formar um tal sistema que sua religião, leis e liberdades não corram mais o perigo de serem subvertidas” (BURKE, 1997, p. 68). Uma reforma institucional só será prudente quando for orgânica, isto é, quando for adaptável ao todo do organismo social, quando “o que for acrescentado for adequado ao que é retido” (BURKE, 2012, p. 368), de modo que não haja incompatibilidade entre o acréscimo e o que permanece, entre o novo componente e o velho38. Até porque toda reforma parte do que foi dado pela tradição e, para que ela seja bem-sucedida, os reformadores devem consultar o repositório experiencial das épocas, a fim de não repetir os erros cometidos por reformadores de outros tempos. Tendo em vista essa prudência que deve nortear o procedimento reformista e evitar os erros da celeridade, Burke considera que, quando as circunstâncias demandam um reparo institucional que acarrete qualquer mudança para os cidadãos, tal reforma deve ser planejada e implantada sem precipitação. Ademais, ela deve ser corrigível, reajustável conforme o que melhor convir aos que serão por ela atingidos, visto que não há receita a priori que garanta o sucesso de uma medida reformadora. Como observa Coutinho (2014, p. 78) a respeito deste método conservador de aprimoramento sociopolítico, o reformador deve proceder de modo que procure “avaliar no prazo devido as consequências mais tangíveis de cada ação reformista antes de se avançar para uma nova ação do mesmo tipo.” Compete ao governante, ainda, ajuizar que as reformas devem ter sempre um caráter pontual e restrito, devem “limitar a mudança à parte deteriorada” (BURKE, 1997, p. 60), a fim de evitar qualquer “pretensão de decompor todo o corpo civil e político” (idem, p. 61). Assim, ao examinar os defeitos de uma antiga instituição nacional, cuidese para que “nunca se imagine começar sua reforma pela sua subversão” (idem, p. 116). 38

Há, aqui, certa proximidade com a visão política do empirista David Hume, com quem Burke manteve contato pessoal (1997, p. 168). Hume também defendia que o estadista sensato deve adaptar as melhorias e inovações necessárias “o mais possível” às antigas instituições, “conservando intactos os principais pilares e sustentáculos da Constituição”, além de igualmente ver a experiência passada como parâmetro para a política e considerar dignas de respeito as instituições que trazem as “marcas do tempo” (HUME, David. Ideia de uma república perfeita. Col. Os Pensadores São Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 261).

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Os reformadores devem ter em vista garantir maior estabilidade e eficiência institucional por mais tempo e da forma mais tranquila, de modo que seja afastado o risco de a mudança gerar desarmonias sociais, crises, perturbação ou conflitos. A lentidão das reformas cuidadosas é, para o filósofo irlandês, não apenas aceitável, mas até mesmo desejável, de modo que a vagarosidade de um procedimento reformista que só muda as coisas passo a passo é, em última análise, uma de suas excelências, uma vez que diminui a incidência dos erros próprios das mudanças apressadas. Burke advoga que, enquanto processo de aprimoramento sócio-institucional, a reforma gradual é “um método em que o tempo é um de seus assistentes” (2012, p. 369). O autor ainda recorda que nunca são demasiadas a paciência e a prudência que se mantêm ao planejar quaisquer mudanças que possam ter implicações graves na vida dos cidadãos: Se circunspecção e cautela fazem parte da sabedoria quando trabalhamos apenas com matéria inanimada, certamente elas fazem parte do dever também quando o objeto de nossa demolição ou construção não é tijolo e madeira, mas seres humanos, pela súbita alteração de cujo estado, condição e hábitos, multidões podem se tornar infelizes. (BURKE, 2012, p. 369).

Deste modo, o parlamentar irlandês recomenda, no lugar das grandes mudanças repentinas instigadas por ideologias utópicas e perfectibilistas, reformas controladas e consequentes, que funcionem como um mecanismo favorável à conservação do que é benéfico e à melhoria gradativa do que está deteriorado.39 Ao discorrer sobre o antigo regime francês, Burke admite que ele, de fato, precisava de reformas para atender satisfatoriamente as necessidades dos cidadãos da França. Mas também ressalta que o Ancien Régime tinha vantagens apreciáveis – como a grande independência política de seus parlamentares –, embora os jacobinos não o reconhecessem. Nas suas Reflexões sobre a Revolução em França, empregando mais uma vez sua peculiar ironia, o autor contrapõe a conduta revolucionária com o pacífico espírito reformista: Para algumas pessoas, complôs, massacres e assassinatos tornam-se um preço pequeno para a consecução de uma revolução. Parecem-lhes insípidas e vulgares uma reforma barata e sem sangue e uma liberdade sem culpa. (BURKE, 1997, p. 93). 39

Na contemporaneidade, Karl Popper repropôs essa alternativa de modo muito similar à intuição de Burke: “o método utópico deve levar a uma perigosa adesão dogmática a um projeto pelo qual se fizeram incontáveis sacrifícios. Poderosos interesses devem ligar-se ao sucesso dessa experiência. Tudo isso não contribui para a racionalidade, ou para o valor científico, da experiência. Mas o método gradual permite experiências reiteradas e contínuos reajustamentos.” (POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. Vol I. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1974. p. 178)

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CONCLUSÃO As Reflexões sobre a Revolução em França, para além de uma mera composição textual destinada a criticar um acontecimento histórico específico e fundamentar teoricamente essa crítica, dão-nos a conhecer um pensamento que delineia uma proposta consistente de ação política. Deste modo, a obra ultrapassa o evento histórico particular que motivou a sua escrita. Esse pensamento político, porém, não se encerra totalmente no texto das Reflexões, mas é complementado por outros textos de menor importância ainda não traduzidos para a língua portuguesa, como o Apelo dos Novos Whigs para os Velhos, o Discurso sobre a Independência do Parlamento, as Cartas sobre uma Paz Regicida, os Discursos sobre a Conciliação com a América e os Pensamentos sobre a Causa dos Presentes Descontentamentos. Contudo, pela leitura atenta das Reflexões, pudemos divisar claramente uma filosofia política que vai muito além das críticas aos iluministas e jacobinos, uma vez que propõe positivamente uma práxis política que é válida mais para as circunstâncias ordinárias de estabilidade sócio-institucional do que para aquelas que demandam reação a um processo revolucionário já em curso. Assim, a pesquisa empreendida para a confecção deste trabalho possibilitou-nos o contato com as temáticas centrais do pensamento político burkeano e corroborou a hipótese de que Burke não se limita a criticar a Revolução e os métodos de transformação política que preveem a subversão das estruturas existentes, mas recomenda, como alternativa, um mecanismo conservador de aperfeiçoamento políticoinstitucional. Este mecanismo, que é a reforma gradativa e orgânica, é indicado pelo filósofo porque tende a ser mais seguro e sustentável na medida em que é pautado pela virtude da prudência e pelos princípios da conservação e da correção. Acreditamos que a reflexão de Burke nos mostra, dessa maneira, que é possível pensar uma ação política aprimoradora conjugada com os preceitos de uma ética comum e universal baseada na tradição filosófica clássica e cristã. Cremos ter obtido êxito também ao demonstrar a pertinência da crítica de Burke à política de viés revolucionário, na qual a violência é justificada sob os estandartes de princípios coletivistas e direitos abstratos coletivos que, uma vez absolutizados, acabam por sobrepujar os direitos fundamentais dos indivíduos concretos e até aniquilá-los. Comprovamos, assim, que Burke se insere numa linhagem de filósofos políticos que

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advogam pela salvaguarda das liberdades civis organicamente ordenadas e pelo respeito aos direitos individuais. Como observa João Pereira Coutinho, a tradição política conservadora é uma das poucas que pode se orgulhar por “não ter sangue nas mãos”. Esperamos também ter chamado a atenção para os méritos de uma tradição políticofilosófica de matriz anglo-saxã40, da qual Burke foi um dos maiores e mais indispensáveis expoentes, que é largamente ignorada no Brasil, não obstante tenha transmitido valores e critérios de juízo a diversas gerações de filósofos, estadistas e eleitores da Europa e das Américas. A reflexão do filósofo-parlamentar irlandês nos fornece ferramentas conceituais ainda úteis para analisarmos a atuação dos agentes políticos de hoje. Sobretudo porque os utopismos e os princípios abstratos coletivistas descolados da realidade ainda estão presentes em diversos movimentos ideológicos hodiernos. Entre nós há grupos que continuam a reivindicar, por exemplo, um Estado socialista centralizador que assegure uma igualdade material plena para todos, desdenhando as experiências históricas de países que arcaram e ainda arcam com os altíssimos custos humanos cobrados por aventuras revolucionárias dessa natureza.41 Ademais, tais grupos indicam que ainda há um número preocupante de pessoas que ignoram aspectos essenciais da natureza humana; que ignoram, por exemplo, que os seres humanos são desiguais por natureza, uma vez que possuem habilidades, preferências, talentos e disposições laborais desiguais que geram, consequentemente, condições materiais diferentes. A ampla falta de atenção a esses fatores elementares também é causa da sobrevivência das tentações político-ideológicas propensas à engenharia social e à homogeneização totalitária. O pensamento de Burke nos sugere manter certo ceticismo para com todas as formas aparentemente promissoras de engenharia político-social. Sua obra também nos ajuda a meditar, por exemplo, sobre a questão da autonomia dos poderes, principalmente nas circunstâncias em que um mesmo grupo partidário pode cobiçar o controle de todas as instâncias de poder, aparelhando inclusive o judiciário. O autor nos faz repensar, ainda, a questão da representatividade política, sobretudo nos contextos onde um governo,

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Uma das poucas tradições políticas que podem se orgulhar por não ter “sangue nas mãos”, recorda João Pereira Coutinho (2014, p.18) 41

Só no século XX, como é de conhecimento geral, mais de 150 milhões de vidas humanas foram ceifadas por atos políticos de regimes alçados ao poder pela força das ideologias utópicas.

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servindo mais a projetos partidários e ideológicos do que ao bem comum, consegue manter-se no poder, embora não represente os verdadeiros valores e anseios dos cidadãos, pelo abuso do erário público, inchando a máquina estatal com a multiplicação de quadros e expandindo políticas populistas insustentáveis. Esperamos ter feito transparecer que o conservadorismo de Burke não é uma espécie de ideologia aristocrática elaborada numa tentativa frustrada de resguardar privilégios de classe ante a ascensão de uma burguesia revoltosa. Até porque, como vimos, Burke não fazia parte da Câmara dos Lordes, não falava pelos nobres, mas era um deputado da Câmara dos Comuns eleito pelo povo do condado de Bristol. Ademais, mostramos que sua política é alicerçada na defesa de direitos e liberdades comuns, em experiências históricas e nas tradições e instituições consagradas pelos povos. Fosse de outro modo, não se poderia esperar de Burke qualquer condescendência para com os colonos indianos, americanos ou para com os católicos irlandeses, e tampouco qualquer compreensão sua a respeito das circunstâncias críticas que podem legitimar a deflagração de um processo revolucionário. Importa notar também a inadequação de se associar o conservadorismo burkeano a um imobilismo político de qualquer espécie, como se prescrevesse um conformismo inerte perante o status quo. Suas cartas, seus discursos e suas intercessões no parlamento denotam, ao contrário, um estímulo à dinamicidade política. Aliás, suas reações à divulgação das ideias jacobinas no Reino Unido revelam não apenas um filósofo apto a analisar ideias, examinar acontecimentos e tecer críticas, mas um representante político preocupado em alertar as massas sobre o potencial destrutivo de uma ideologia que, então, a muitos empolgava. Se os britânicos não tivessem sido advertidos por reacionários como Burke, talvez o terror jacobino tivesse inspirado também outras pilhagens e carnificinas acima do Canal da Mancha. E, nisso, podemos dizer que Burke mostrou-se coerente com o axioma que, apesar de não constar em nenhuma de suas obras conhecidas, lhe é atribuído: Tudo o que é necessário para o triunfo do mal é que os bons façam nada.

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REFERÊNCIAS

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