A PSICANÁLISE ENTRE A DESCONSTRUÇÃO DO INDIVÍDUO E UMA NOVA PERSPECTIVA CULTURAL

June 1, 2017 | Autor: Ces Revista | Categoria: Psychoanalysis, Individualism, Psicanálise, Individuo
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A PSICANÁLISE ENTRE A DESCONSTRUÇÃO INDIVÍDUO E UMA NOVA PERSPECTIVA CULTURAL

DO

Lauro Ângelo Gonçalves de Moraes* Luíse Rodrigues Gonçalves* Rúbia de Jesus Braga* Tarcísio Concolato Greggio* Regina Coeli Aguiar Castelo Prudente**

RESUMO Os debates acerca da cientificidade da Psicanálise podem extrapolar os limites de uma discussão epistemológica. Ao introduzir uma ciência (ou uma práxis, ou um saber) do sujeito, Freud abriu diversos caminhos e possibilidades para a construção de uma nova perspectiva cultural. Partindo de uma tradição historiográfica, este artigo pretende analisar a evolução do conceito de indivíduo na história das mentalidades, comparando-o, posteriormente, ao surgimento do paradigma científico moderno e ao eventual mal-estar causado pela Psicanálise ao contradizer as verdades cartesianas já estabelecidas no século XIX. Elaborada como ciência, desenvolvida como práxis, mas localizada muitas vezes no campo da estética, a Psicanálise atravessou um século de paradoxos naturais e outros desconchavados os quais mobilizaram um debate que reúne desde historiadores à filósofos da ciência a fim de responder uma questão aparentemente simples: onde situar a Psicanálise? Este artigo se limita a uma revisão epistemológica do que já foi dito sobre este tema, ao passo que tenta apontar, a partir de uma vasta articulação de autores, um lugar possível para a localização da Psicanálise. Palavras-chave: Psicanálise. Ciência. Indivíduo. ABSTRACT The discussions concerning the Psychoanalysis may exceed the limits of an epistemological debate. By introducing a science (or some praxis, or a knowledge) of the subject, Freud opened many paths and possibilities for the construction of a new cultural perspective. From a historiography tradition, this article intends to analyze the evolution of the concept of individual in the history of mentalities, comparing it, after, with the beginning of the modern scientific paradigm and, finally, to compare this context with the eventual discomfort created by the * Alunos de graduação em Psicologia do CESJF. ** Professora do curso de Psicologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Mestre em Psicologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora.

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Psychoanalysis when it had been contradicted the Cartesian paradigm which were already solidified in the XIX century. Proposed as a science, improved as praxis, but localized many times in the aesthetical field, the Psychoanalysis had come through a whole century of natural paradox and other nonsense ones which have mobilized a debate that gathers many science fields. This effort is just to try answering an apparently simple question: where does the Psychoanalysis can be localized? This article limits itself to make an epistemological revision of what were already said about this matter. And then, from a huge connection among several authors, we will try to find a possible place to spot the Psychoanalysis on. Keywords: Psychoanalysis. Science. Individual.

1 INTRODUÇÃO O século XVII viu os padres darem lugar aos cientistas; e os critérios de verdade serem postulados pela também dogmática ciência. Os homens saíram dos campos para trabalharem nas fábricas das cidades; saíram os nobres e entraram os burgueses. (HOBSBAWM, 1977). Trocaram-se terras por símbolos: papéis e metais preciosos. O mundo mudava rapidamente. Era a lógica Moderna que se impunha agora como Idade, deixando de habitar a filosofia de Descartes ou mesmo a produção Renascentista e vindo fazer parte do cotidiano daquela Europa que não seria mais a mesma. Política, religião, economia: nada mais cabia no passado. O iluminismo incipiente e todas as invenções provenientes dele foram a resenha perfeita de um homem que deixou de pensar em honra e terras ou vida eterna e agora pensava em liberdade, democracia e riqueza. Até Cristo havia se transformado, Ele não mais falava em pecado, mas sim em prosperidade econômica. Os anos passaram e o sistema que posteriormente chamaram de capitalismo criou raízes profundas: a ciência se desenvolveu de maneira inimaginável, e o ser humano foi capaz de feitos até então possíveis só a Deus. Acreditava-se que a humanidade finalmente havia acertado: o homem entrara no trem da história cuja locomotiva chamava-se Progresso e se sentia capaz de tudo. (SOUZA, 2005). No entanto, a dialética, que não havia perdoado nenhuma civilização anterior, não perdoaria também a modernidade. Se a última guerra da História 240 CES Revista, v. 22

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preocupou; (HUIZINGA, 1944); a guerra de Hitler foi a barbárie. Os olhos da humanidade foram abertos à força de dois conflitos mundiais, e então se percebeu que o avanço tecnológico e as revoluções feitas em nome do progresso haviam custado muito caro: o indivíduo. Sobre os resquícios de um homem que outrora fora capaz de inovar, de transitar livremente pelos desconhecidos caminhos da razão humana, de reinaugurar a si mesmo; (BURCKHARDT, 1991); sobrepunha-se uma massa anestesiada pelo mito da igualdade econômica e pelas utopias francesas. Assim, a lógica do pensamento iluminista fez do Mundo Medieval trevas, do Humanismo erudição e do Renascimento apenas história. Erguia-se, definitivamente, um novo tempo. Em tempos como esse, a Europa viu surgir as grandes potências políticas e reconhecia-se orgulhosa diante do espelho, pensando ter acertado em suas escolhas, pensando ter tocado as leis do Espírito Universal. A soberba da ciência penetrava a alma dos homens e atrofiava-lhes a razão. (HUIZINGA, 1944). No século XIX, enquanto a burguesia bebia o suor das massas e brindava as conquistas da Revolução Industrial, Sigmund Freud usava palavras que incomodavam os ouvidos daquela Europa tão cheia de si. Falava de uma realidade que era conhecida, mas que já não era mais necessária: falava do indivíduo. A humanidade não precisava mais de homens, e sim de braços. Em outras palavras, a Psicanálise não desafiou tão somente a ordem moral, mas também a ordem lógica da sociedade moderna. (PLASTINO, 2001). O mundo não estava, verdadeiramente, preparado para as palavras de Freud. 2 A CONSTRUÇÃO DA PSICANÁLISE - FREUD NATURWISSENSCHAFTEN1 OU GEITESWISSENSCHAFTEN2

CIENTISTA:

“Compreendi que daquele momento em diante eu passara a fazer parte do grupo daqueles que perturbaram o sono do mundo [...]” Freud, 2006.

Quando Freud começou a noticiar suas descobertas, houve um grande movimento de hostilidade, repúdio e críticas irônicas às suas idéias, uma vez que não se aplicavam à cientificidade exigida pela cultura do final do século XIX, frustrando o seu desejo de reconhecimento como um homem da ciência. 1 2

Naturwissenschaften . Ciências físicas e naturais. Geiteswissenschaften Ciências do espírito.

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(MEZAN, 1982). Suas pesquisas científicas realizadas na universidade, como admitiu em sua autobiografia de 1925, foram executadas com satisfação, demonstrando sua inclinação a continuar nessa trajetória e desejando obter reconhecimento na comunidade científica. Freud confessou que nunca desejara tornar-se médico, todavia, além de ter interesse pela área de Direito e dedicar-se a atividades sociais, buscou compreender o mundo, influenciado pela cultura vienense, pelas teorias de Darwin, por Goethe e seus ensaios sobre a Natureza e pela história da Bíblia: Fui compelido, [...], durante meus primeiros anos de universidade, a fazer a descoberta de que as peculiaridades e limitações de meus dons me negavam o sucesso em muitos campos da ciência nos quais minha jovem ansiedade me fizera mergulhar. Assim aprendi a verdade da advertência de Mefistófeles: Vergebens, dass ihr ringsum wissenchaftlich schweift, Ein jeder lernt nur, was er lernen kann.3 (FREUD, 2006, v. XX, p.17)

Apesar do isolamento a que foi submetido por muito tempo, Freud manteve ao longo de seus estudos o ideal de ser um cientista e, em seu trabalho Sobre o narcisismo: uma introdução, escreve: [...] devemos recordar que todas as nossas idéias provisórias em psicologia um dia se basearão numa subestrutura orgânica [...]” e explica “[...] Estamos levando em conta essa probabilidade ao substituirmos as substâncias químicas especiais por forças psíquicas especiais. (FREUD, 2006, v. XIV, p. 86).

Em 1873, ao ingressar na universidade, comenta em sua autobiografia que o fato de ser judeu colocou-o numa situação de exclusão, levando-o a perceber que aqueles que o cercavam julgavam-no inferior por sua ascendência ou raça, como ironicamente diziam, fato que ele jamais aceitou. (FREUD, 2006, v. XX). Essa condição será, doravante, na trajetória de Freud, um aspecto que deixará traços de mágoa, levando-o a registrar momentos de solidão diante de sua descoberta da Psicanálise. Em As resistências à Psicanálise, declara: [...] Talvez sequer seja inteiramente um item do acaso que o primeiro advogado da Psicanálise fosse um judeu. Professar crença 3

“É em vão que se vagueia de ciência em ciência: cada um aprende somente aquilo que pode aprender.” – Goethe, Fausto, parte I, cena 4. (tradução do original apud FREUD2006, v. XX, p.17).

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nessa nova teoria exige determinado grau de aptidão em aceitar uma situação de oposição solitária – situação com a qual ninguém está mais familiarizado do que um judeu. (FREUD, 2006, v. XIX, p.247).

Em 1885, Freud vai a Paris estudar na Salpêtriére, com Dr. Charcot, que já investigava a histeria e estava certo de que os sintomas apresentados pelas histéricas não tinham base neurológica. Excluindo o componente físico de tal perturbação, elabora a teoria do trauma, através da qual Freud observa elementos relativos à sexualidade, iniciando um estudo profundo para tentar explicar os fenômenos histéricos por meio de seus conhecimentos científicos. (GARCIA-ROZA, 1996). Dez anos depois, Freud e Breuer, este último médico de grande renome em Viena, amigo e protetor de Freud, publicam Estudos sobre a Histeria, entretanto, não conseguiram evitar divergências entre os respectivos postulados a respeito da etiologia das neuroses. Este embate teórico culminou na ruptura dessa parceria, cabendo a Freud prosseguir seus estudos sozinho. (FREUD, 2006, v. II). Segundo Garcia Roza (1996) esses processos mentais e outros ainda mais complexos que Freud estava construindo foram descritos de forma científica em 1895, no seu trabalho denominado Projeto para uma psicologia científica, que precedeu um de seus mais importantes trabalhos – A interpretação dos sonhos, enviado apenas ao seu amigo Fliess e publicado somente onze anos após a morte de Freud. Garcia Roza delineia o caminho que Freud percorreu na construção de sua teoria, a qual fornece os fundamentos para a prática clínica. Explica que o termo metapsicologia foi empregado por Freud, pela primeira vez, em 13 de fevereiro de 1896, numa carta a Fliess:- “Tenho-me preocupado continuamente com a psicologia – na verdade, com a metapsicologia [...]” (MASSON, 1986, p. 173). Num estudo ulterior, Os instintos e suas vicissitudes, 1915, Freud inicia o texto observando novamente a questão da cientificidade que sempre regulou as críticas à sua grande descoberta: “Ouvimos com frequência a afirmação de que as ciências devem ser estruturadas em conceitos básicos claros e bem definidos.[...]” e completa: “A física proporciona excelente ilustração da forma pela qual mesmo ‘conceitos básicos’,[...]sob a forma de definições, estão sendo constantemente alterados em seu conteúdo.” (FREUD, 2006, v. XIV, p.123). 243 Juiz de Fora, 2008

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Gay (1989, p. 15) refere-se ao sentimento de certo orgulho que Freud tinha em relação às críticas feitas à Psicanálise e considerava-se “o servo fiel da veracidade científica”. Cita o fragmento de uma carta de Freud a Sándor Ferenczi em 1910: “A verdade é para mim o objetivo absoluto da ciência”. E vinte anos depois, repetiu a Albert Einstein: “Não mais considero um dos meus méritos o fato de sempre dizer a verdade tanto quanto possível; tornou-se meu ofício.” Freud pagou um alto preço pela descoberta do inconsciente: acumulou ressentimentos com as dissidências de grandes companheiros, foi segregado pela sociedade vienense, que refutou a importância da Psicanálise, e ainda confrontou-se com o anti-semitismo. Porém, o inventor da Psicanálise conservou até o final de sua existência um profundo amor pela humanidade. Em Algumas lições elementares de Psicanálise, escreve: “O conceito de inconsciente por muito tempo esteve batendo aos portões da psicologia, pedindo para entrar. A filosofia e a literatura sempre o manipularam distraidamente, mas a ciência não lhe pôde achar uso.” (FREUD, 2006, v. XXIII p. 306). Por fim, demonstra sua preocupação para com as compreensões equivocadas quanto ao saber psicanalítico sobre o inconsciente: A Psicanálise apossou-se do conceito, levou-o a sério e forneceulhe um novo conteúdo. Por suas pesquisas, ela foi conduzida a um conhecimento das características do inconsciente psíquico que até então não haviam sido suspeitadas, e descobriu algumas das leis que o governam. Mas nada disso implica que a qualidade de ser consciente tenha perdido sua importância para nós. Ela permanece a única luz que ilumina nosso caminho e nos conduz através das trevas da vida mental. Em consequência do caráter especial de nossas descobertas, nosso trabalho científico em psicologia consistirá em traduzir processos inconscientes em conscientes, e assim preencher as lacunas da percepção consciente [...] (FREUD, 2006, v. XXIII, p. 306).

3 A CONSTRUÇÃO DA PSICANÁLISE E SUA PRÁXIS Por mais paradoxal que possa parecer, a Psicanálise já nasce com o seu fim anunciado e, aliando-se a esse, outro paradoxo se instala: desde o final do século XIX e início do século XX – época do seu surgimento – até os dias atuais, seu desaparecimento nunca se efetivou e, hoje, talvez, seus estudos e sua 244 CES Revista, v. 22

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aplicabilidade estejam mais vivos do que antes, apesar da tão anunciada crise. Ainda, a Psicanálise abriga em seu cerne outra ambiguidade: se é um saber que se pretende científico, isto é, não arbitrário e com um corpo de conhecimentos manipuláveis, (KUHN, 2001), por outro lado não se pode prescindir de sua aplicabilidade terapêutica, fato que atribui à Psicanálise o estatuto de práxis. Nesse sentido, é mister que se busquem pressupostos esclarecedores em torno de sua práxis ou, em outras palavras, em torno da Psicanálise aplicada. Se, por um lado, seu surgimento se fixou como uma das correntes ideológicas mais fortes da Europa – fato que se explica pelo contexto científico vigente –, sustentando, ao longo de mais de um século, a discussão a respeito de sua cientificidade e, gerando, segundo Bakthin (2004), um mal estar no meio acadêmico-científico; por outro viés, há uma corrente significativa que a entende como práxis, nem por isso tirando-lhe o mérito. Popper, contemporâneo de Freud e, inicialmente, empolgado com a Psicanálise, vai, através da idéia do racionalismo crítico, expor suas insatisfações quanto ao status científico não só da Psicanálise, mas de outras teorias: Após o colapso do Império Austríaco, a Áustria havia passado por uma revolução: a atmosfera estava carregada de slogans e idéias revolucionárias; circulavam teorias novas e frequentemente extravagantes. Dentre as que me interessavam, a teoria da relatividade de Einstein era sem dúvida a mais importante; outras três eram a teoria da história de Marx, a Psicanálise de Freud e a “psicologia individual” de Alfred Adler. [...] Durante o verão de 1919, comecei a me sentir cada vez mais insatisfeito com essas três teorias ... passei a ter dúvidas sobre seu status científico. Meu problema assumiu, primeiramente, uma forma simples: “O que estará de errado com o marxismo, a Psicanálise e a psicologia individual? Por que serão tão diferentes da teoria de Newton e especialmente da teoria da relatividade?” (POPPER, 1972, p.64 apud MARINHO, 2001, p.11-12)

Para Popper (1972 apud MARINHO, 2001), a teoria psicanalítica é um empreendimento racional e não científico, constituindo-se num conjunto de hipóteses, quer sejam ou não passíveis de testabilidade. Segundo os seus critérios, a Psicanálise requer, ainda assim, uma discussão crítica de suas proposições e implicações. Em se tratando da cientificidade proposta por Freud, instala-se 245 Juiz de Fora, 2008

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desde já um primeiro obstáculo: trata-se do empirismo lógico, doutrina que se atém a conhecimentos práticos e experimentais. Daí segue o impasse: se a Psicanálise quer se fundamentar como Ciência, deve sujeitar-se às indagações científicas lançadas ao discurso freudiano. Reforçando esse impasse, Birman, pesquisador mais recente, indaga: Seriam teoricamente sustentáveis os argumentos freudianos sobre a etiologia sexual das neuroses e sobre a existência do psiquismo inconsciente? As hipóteses freudianas poderiam ser experimentalmente verificadas e enunciadas em linguagem quantitativa, como se exigia então para a validação e reconhecimento de qualquer formulação científica? O campo clínico da experiência e sua eficácia terapêutica na resolução dos sintomas das neuroses poderiam ser considerados como critérios seguros de positividade para a construção da Psicanálise como um discurso científico? (BIRMAN, 1994, p.30)

A indagação de Birman encontra ressonância em Japiassu (1989), ao defender que a situação da Psicanálise, relativa às ciências humanas, situa-se à margem, como uma contraciência, já que adota uma perspectiva crítica de todas as instâncias que se aplicam à idéia de homem: crítica da consciência, do sujeito, do indivíduo, da normalidade, da criação artística, etc. “É ela que situa as ciências humanas, não fazendo parte delas. Ela atravessa sem, no entanto, justificá-las” (JAPIASSU, 1989, p. 55). No entanto, articulando esses e outros pensamentos, é através de Lacan que a discussão e o processamento da Psicanálise como práxis é efetivada. Para Lacan, práxis é uma ação realizada pelo homem que o põe em condição de tratar o real através do simbólico (LACAN, 1998 apud PEDÓ, 2006). Real este compreendido como impossibilidade lógica da relação sexual e o simbólico como cadeia significante (LACAN, 1998 apud KAUFMANN, 1996). Ao entender Psicanálise e Ciência a partir de Lacan, Prudente (2002) enfatiza que é necessário considerar que o objeto de estudo da Psicanálise é o sujeito do inconsciente, é o sujeito sob a perspectiva do desejo. Lacan trata a Psicanálise como uma práxis, que é desprendida das realidades fixas e imutáveis para alcançar a verdade e, principalmente, tratar do inconsciente atemporal e singular. A discussão sobre a cientificidade da Psicanálise, portanto, não é simples; já que, se viesse a ser considerada uma ciência cartesiana, a Psicanálise ainda 246 CES Revista, v. 22

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guardaria características problemáticas e questionáveis, como, por exemplo, a questão da subjetividade do indivíduo e a teoria das pulsões (PEDÓ, 2006). Nesse sentido, para Birman (1994), ao discurso psicanalítico retirouse-lhe qualquer consistência científica ao ter sido este inserido no campo da estética em razão da abrangência excessiva de seus enunciados teóricos e de sua leitura qualitativa dos fenômenos mentais. Assim, ao fazer a Psicanálise habitar a fluidez de pertencer ao campo da estética, a resistência científica a um saber não empírico, mas funcional, colocou também o discurso freudiano no lugar da oposição, nutrindo-o, desse modo, ao mesmo tempo em que tentava refutá-lo. O resultado dessa querela é um debate intelectual cíclico o qual somente se espiralaria caso a imprevisibilidade dos processos evolutivos tornasse semântica a infalibilidade dos paradigmas, sejam eles de qualquer natureza. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Face ao exposto, e diante das possibilidades culturais que podem emanar do inegável processo de evolução, retornamos à questão: onde situar a Psicanálise? A evolução é um processo transcendente, no qual há a síntese de seus elementos anteriores e a agregação de componentes absolutamente novos. (WILBER, 2001 apud KONDER, 1981). Uma mudança numa determinada totalidade ocorre, segundo Engels, através de períodos lentos de alterações quantitativas e posteriormente por uma aceleração neste processo que precipita alterações qualitativas. Isto é, o processo de evolução e atualização seriam constantes e nunca atingiriam um estágio finito (WILBER, 2001). Os paradigmas, conjunto de perspectivas dominantes relacionados a um saber, também estão sujeitos a esse processo evolutivo. Segundo Kuhn (2000), novos fenômenos são observados seguindo-se um paradigma, entretanto, as suas descobertas requerem para sua assimilação, a elaboração de um novo conjunto. Depois de assimilarem novas descobertas, os cientistas encontram condições de dar conta de um número maior de fenômenos ou explicar mais precisamente alguns dos fenômenos previamente conhecidos. Tal avanço somente é possível porque algumas crenças ou procedimentos anteriormente aceitos são descartados e, simultaneamente, substituídos por outros. (KUHN, 247 Juiz de Fora, 2008

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2000). Quando um paradigma se firma e ganha estabilidade ele causa um sentimento de naturalização, uma concepção de ‘verdade’, que por vezes é excludente e impede a crítica. Assim, “[...] uma perspectiva paradigmática organiza e ao mesmo tempo limita o pensamento”. (PLASTINO, 2001, p. 22). Focalizado o paradigma moderno podemos perceber uma excessiva polarização entre os conceitos de natureza e ser humano, que se desdobra em outros: objeto/sujeito, corpo/psiquismo, por exemplo. O primeiro é concebido como um “[...] objeto racional a ser conhecido e o ser humano como sujeito racional desse conhecimento” (PLASTINO, 2001, p. 23). A ciência prioriza a objetividade e as generalizações em seu paradigma excluindo o conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo. (PLASTINO, 2001). Assumindo uma perspectiva dialética, percebemos que essa cisão radical e auto-excludente abstém-se da mediação e superação quando não assume a “determinação reflexiva que considera que os conceitos funcionam como pares inseparáveis [...] como duas faces da mesma moeda” (KONDER, 1981, p. 56), além do princípio da interpenetração dos contrários: Os diversos aspectos da realidade se entrelaçam e, em diferentes níveis, dependem uns dos outros, de modo que as coisas não podem ser compreendidas isoladamente, uma por uma, sem levarmos em conta a conexão que cada uma delas mantém com coisas diferentes. (ENGELS apud KONDER, 1981, p. 58-59).

Nesse sentido, Freud assume que a partir da segunda teoria pulsional a Psicanálise se valeu de uma linha argumentativa hipotética e que a partir daí “as idéias nela contidas tinham adquirido tamanho poder sobre ele que lhe era impossível pensar de outra maneira” (PLASTINO, 2001, p. 92). A teoria freudiana se fundamenta numa articulação entre observação clínica e especulação, o que não lhe confere um caráter objetivo e não a enquadra dentro do paradigma moderno de ciência. Marx diz que “o concreto é concreto porque é a síntese de várias determinações diferentes, é unidade na diversidade”. “O concreto é o resultado de um trabalho”. (MARX apud KONDER, 1981, p. 45). Mas o que dificulta esse trabalho de ir além do que já foi? Sintetizar o conteúdo da Psicanálise nas ciências é uma tarefa complexa, 248 CES Revista, v. 22

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pois é estudar o irracional e o subjetivo sob uma perspectiva racional e objetiva. Tarefa difícil, mas não impossível, pertinentemente oportuna, inclusive. É amplamente conhecido o fato de que Freud desejava à sua Psicanálise o status de ciência. Seguindo a dialética engelsiana (KONDER, 1981), aparece o princípio da “negação da negação” em que: A afirmação engendra necessariamente a sua negação, porém a negação não prevalece como tal: tanto a afirmação quanto a negação são superadas e o que acaba por prevalecer é uma síntese, é a negação da negação. (KONDER, 1981, p. 59).

Embora a Psicanálise tenha se formado sobre o paradigma moderno, ela se distanciou do mesmo, na medida que seu objeto de estudo baseia-se numa “relação intersubjetiva caracterizada por relações de afeto, isto é, por resistências, transferências e contratransferências”. (PLASTINO, 2001, p. 22). Freud, de acordo com os conceitos de Kuhn (2001), descobriu algumas anomalias dentro das teorias relativas ao paradigma moderno, como o inconsciente, por exemplo; o que gerou uma crise dentro da validação do paradigma, uma pré-condição para a formulação de novas teorias. É não só admissível, entretanto, como pertinente, que se busque uma inter-relação entre a Psicanálise e a ciência objetiva para assim, formar-se um novo paradigma que supere o de ambas. É o que se vê mobilizado no campo da Neuropsicanálise. Essa proposição surge como uma proposta de sínteses mais elaboradas, a partir da comparação do objetivo das Neurociências Cognitivas e o subjetivo da Psicanálise, o que em termos dialéticos representaria uma tese e uma antítese que levaria à uma síntese provisória, mas que superaria as suas predecessoras. Partindo do pressuposto de que tudo está interligado, relembrando o princípio da interpenetração dos contrários, a Neuropsicanálise aparece, assim, posta sob o signo da dialética, como já se afirmou, tornando-se apenas uma via possível, uma vez que as revoluções no paradigma vigente podem vir dos diversos campos do saber. Basta ressaltar que muitas contribuições para a superação do paradigma moderno possivelmente podem derivar da Teoria Quântica. Assim, princípios físicos também se inter-relacionam com os psíquicos (KONDER, 1981). Eis a oportunidade para uma progressiva concretização do sonho de Freud: o 249 Juiz de Fora, 2008

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rompimento com diversos conceitos rígidos que por vezes impedem aplicação de um rico conjunto de conhecimentos. Em outras palavras, a legitimidade da Psicanálise não depende necessariamente da figura histórica de Freud ou mesmo dos próprios conceitos psicanalíticos. Pois a aceitação de um novo paradigma científico está sobremaneira aliada a uma inversão cultural, a qual, neste caso, corresponderia à possibilidade de uma nova ordem que considerasse formas de saber as quais fugissem do roteiro cartesiano. Artigo recebido em: 11/09/2008 Aceito para publicação: 20/10/2008

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