A PUBLICIDADE E O TABAGISMO Estratégias tabagistas e antitabagistas na publicidade

June 6, 2017 | Autor: Sara Gonçalves Devai | Categoria: Advertising, Saúde Coletiva, Tabagismo
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÃO E ARTES Disciplina de Redação Publicitária II

Professor Dr. João Anzanello Carrascoza Aluna: Sara Gonçalves Devai Nº USP 7610351

A PUBLICIDADE E O TABAGISMO Estratégias tabagistas e antitabagistas na publicidade

São Paulo 2013

1. Introdução O cigarro é reconhecidamente um grande vilão para a saúde individual e pública. Segundo a ONU, “o tabaco é a principal causa mundial de mortes que poderiam ser evitadas e mata 6 milhões de pessoas por ano. Ele pode causar câncer, doenças cardiovasculares, diabetes e doenças respiratórias crônicas. A estimativa é de que ele matará 8 milhões de pessoas por ano até 2030” ¹. Com uma longa lista de doenças e sofrimento associadas ao uso do cigarro, sem que haja um único benefício que justifique seu uso, é de se estranhar que um produto assim, tão nocivo, tenha tão alto índice de consumo. A verdade é que a prosperidade da indústria do fumo é altamente dependente da publicidade, o que explica o investimento de 55 milhões de reais anuais dessas empresas em propaganda. Quando essa relação tornou-se evidente aos órgãos responsáveis pela saúde pública, em especial a Organização Mundial de Saúde (OMS), iniciou-se uma série de campanhas que, por um lado, pressionam os países a proibirem a propaganda do cigarro e, por outro, agenciam a mesma força de persuasão – a publicidade – para combater seu uso. Temos, então, uma intrigante batalha publicitária contra um produto cujo alavancamento no mercado é totalmente tributário à ação da própria publicidade. A ação parece ter surtido resultado. De acordo com uma pesquisa da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), citada pela Agência Brasil, “um em cada três brasileiros deixou de fumar depois que medidas que restringiram a propaganda de cigarros na TV e em veículos de comunicação de massa entraram em vigor”². Todos esses fatos chamam a atenção pelas questões que suscitam: de que estratégias a publicidade se valeu para tornar em objeto de desejo um produto que mata lentamente seu usuário? Em contrapartida, a que táticas a própria publicidade recorreu para convencer o consumidor a abandonar o mesmo produto? Este trabalho pretende, sem esgotar o assunto, analisar textos verbo-visuais impressos formulados por ambas as correntes publicitárias (tabagistas e antitabagistas). Serão considerados os conceitos de bricolagem e associação de idéias, bem como do saber enciclopédico.

O corpus selecionado para análise é composto por vários textos verbo-visuais, produzidos em campanhas publicitárias com objetivos opostos: incentivar e desincentivar o uso do cigarro. Os textos dialogam entre si na medida em que os que pretendem conter a adesão do público ao tabaco formulam respostas aos apelos das peças opostas.

2. Fundamentos Teóricos

Segundo Carrascoza, o publicitário é definido como um “bricoleur já que sua missão é compor mensagens, preferencialmente de impacto, valendo-se dos mais diversos discursos que possam servir ao propósito de persuadir o público-alvo.” Para compor essas mensagens “os criativos atuam cortando, associando, unido e, consequentemente, editando informações do repertório cultural da sociedade”. O que se constitui na bricolagem, que “é a operação intelectual por excelência da publicidade” (CARRASCOZA, 2008, p. 18). Em seus estudos, o professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, observa que a associação de idéias é um dos processos criativos mais utilizados no meio publicitário e se realiza quando “uma ideia é ligada, mesclada ou amalgamada à outra, gerando uma nova informação – a resposta dos profissionais que elaboram os materiais publicitários ao desafio proposto em briefing” (CARRASCOZA, 2008, p. 18) e acrescenta que essas associações podem ocorrer por semelhança, contraste ou causa e efeito e devem partir de conteúdo cultural já conhecido pelo público alvo.

Denominado por Mainguenau como “saber enciclopédico”, esse conteúdo cultural corresponde ao “conhecimento do mundo ” que “fica armazenado no estoque de conhecimentos e se torna um apoio para a produção e compreensão de enunciados posteriores” (MAINGUENAU,

2008, 42). Na criação publicitária os criativos

dialogam, então, com a bagagem cultural do target e isso se estabelece “por meio da citação, alusão ou da estilização, o que nos leva às paráfrases (quando um texto cita outro texto para reafirmar suas idéias) e às paródias (quando um texto cita outro para contestar seu sentido)” (CARRASCOZA, 2008, p. 24).

Este trabalho, portanto, apóia-se nesses dois pensadores para fazer as análises de diversos textos visuais da publicidade tabagista e antitabagista.

3. Análise

Analisaremos primeiramente as peças que fazem parte de campanhas publicitárias de grandes empresas de cigarro. Em seguida, passaremos a alguns exemplos extraídas das campanhas de órgãos e entidades que combatem o uso do mesmo. Embora com intuídos evidentemente opostos, ambas se dirigem ao mesmo público – fumantes e potenciais fumantes – para persuadi-los quanto ao uso ou não do tabaco. Em todos os exemplos é possível perceber nitidamente as estratégias de persuasão dos dois os grupos, o diálogo entre essas estratégias e as bases culturais de onde são extraídas. Neste trabalho, abordaremos apenas algumas estratégias, que julgamos mais relevantes para os objetivos propostos. Sendo que os prejuízos causados pelo fumo são inegáveis, a publicidade não pode usar argumentos racionais para convencer o consumidor de que o produto é bom. Portanto, as estratégias de persuasão são sempre elaboradas para que o desejo de fumar não dependa de uma clara percepção da razão para isso, mas da associação do cigarro à imagem de um valor importante ou com a realização de um desejo. Inicialmente voltado para o público masculino, a imagem do cigarro foi muito associada a imagens do universo masculino: carros, esportes e, evidentemente, mulheres, como se vê nas imagens abaixo.

A idéia está clara: fumando tal marca de cigarros você realizará os dois sonhos prediletos dos homens: carros e mulheres. Outra imagem bastante associada ao uso do cigarro é o prazer sexual. Um exemplo disso é o anuncio abaixo em que uma noiva, evidentemente preparando-se para a viagem de lua de mel, coloca um pacote de cigarros na bagagem. A razão para isto não está dita, mas subentendida no sorriso maroto e no olhar, que mira diretamente os olhos do leitor, tornando-o cúmplice e também confidente da ação. Similarmente, o texto não é explicito quanto ao motivo do cigarro Chesterfield ser um item importante na viagem de núpcias (período do casamento especialmente separado para o prazer sexual do casal), mas isto é sugerido de várias maneiras como pelas reticências após o uso das expressões ambíguas “Packed with pleasure ...” (que chama a atenção por estar sublinhado), “RIGHT COMBINATION...”; “all benefits of smocking pleasure...”; “REAL MILDNESS...”. As frases escritas em caixa alta destacam o duplo sentido, o que ocorre também com “COOLER SMOKING” e “BETTER TASTE”. Tudo para sugerir que a lua de mel prometerá muito mais se for acompanhada da utilização da marca de cigarros anunciada.

Outra maneira muito usada de associar o cigarro à virilidade é o uso de imagens masculinas mais rudes e selvagens. No caso do anuncio abaixo, uma queda de braço entre dois homens musculosos, observados por outro que fuma um cigarro. Acontecendo em um lugarejo – sugerido pela mesa grosseira, o suporte improvisado da vela, a rua sem pavimentação e os jipes – a cena não atrai o interesse das mulheres, que conversam alheias à disputa, mostrando um claro distanciamento. Já o mundo do “macho” está simbolicamente retratado na própria disputa, na aparência forte, nos trajes próprios de aventura dos homens, no frasco de pimenta, no copo de bebida e, evidentemente, no maço de cigarros Camel. A sugestão: Fume Camel e seja macho de verdade!

Com o passar do tempo, a indústria do fumo passou a interessar-se pelas mulheres, não apenas como objeto do desejo masculino, mas também como público consumidor. Assim, criou-se a imagem de mulheres lindas, poderosas, independentes e desejadas, sempre acompanhadas de um cigarro entre os dedos. Essa imagem foi extremamente divulgada pelas estrelas de cinema.

A ideia do charme e poder está bem clara no anúncio abaixo, onde vemos uma mulher em primeiro plano, ocupando grande parte do campo visual. Seu traje, seu penteado, sua postura, a expressão de seu rosto identificam uma mulher elegante, sofisticada. No segundo plano, dois homens – com trajes igualmente finos - a observam sorrindo, buscando a atenção da moça. Toda a composição indica um clima de sofisticação e elegância, no qual o gesto da mulher com o cigarro entre os dedos ocupa posição privilegiada. Combinada com o slogan “O importante é ter Charm”, essa peça publicitária sugere que a mulher que fumar o cigarro Charm será vista como elegante e, objeto de desejo de homens finos.

O cigarro Marlboro é um caso curioso de inversão da ação. Esse cigarro, por conter filtro, era primeiramente dirigido ao público feminino. Com a criação do “Marlboro Man”, cuja imagem mais conhecida é do cowboy, em pouco tempo a marca tornou-se muito popular entre os homens.

Os cenários lindos, sugestão de liberdade

sem limites; cavalos correndo, um símbolo do desejo impetuoso, e um belo homem em situações extremamente viris, conjugados a slogans de apelo quase irresistível foi a fórmula para um dos comerciais mais brilhantes de todos os tempos.

Essa associação do cigarro à liberdade também foi bastante explorada nas campanhas da marca Hollywood, que buscou a identificação com o público jovem, através de imagens de garotos e garotas bonitos e felizes, praticando um esporte radical de vanguarda. As cores da marca – azul, vermelho e branco; o logo aparecendo insistentemente; sorrisos, beleza, vitalidade, triunfo, felicidade; tudo isso adicionado a um slogan extremamente poderoso: “O sucesso”. O efeito de sentido é uma convocação do público jovem para entrar nesse mundo através do uso de Hollywood.

É importante observar que essas campanhas tinham grande poder de influência sobre adolescentes e jovens, atraindo novos consumidores nessa faixa etária a cada ano. Conhecendo as perspectivas oferecidas por essa faixa etária, a indústria do tabaco intensificou as campanhas junto ao público adolescente patrocinando eventos esportivos e associando a marca ao sucesso nos esportes. Nos exemplos acima, listamos algumas das estratégias utilizadas pelas agências de publicidade para atrair novos consumidores para o cigarro. Essas estratégias foram realmente efetivas, promovendo um acréscimo acentuado nos lucros das empresas tabagistas. Mas não demorou muito para que os órgãos governamentais percebessem a perversidade desses lucros que representam prejuízos enormes para os clientes dessas indústrias - sofrimento e morte precoce - e a responsabilidade da propaganda como cúmplice dessa tragédia. Em conseqüência, foram elaboradas legislações cada vez mais

severas quanto à publicidade do cigarro e, reconhecendo o poder de persuasão da propaganda, os referidos órgãos recorreram à mesma para conscientizar a população dos resultados funestos do tabagismo. Abaixo, estão algumas das peças publicitárias de maior impacto na divulgação da verdade sobre o cigarro. As estratégias utilizadas se valem do processo de associação, tendo como base, em muitos casos, a bagagem do público acerca do material publicitário utilizado nas campanhas pro uso do cigarro, subvertendo-as, no entanto. Desmistificando a associação do cigarro à virilidade, a primeira imagem mostra um cigarro (que deveria estar ereto) com a parte queimada inclinada para o lado. Claramente associado a um pênis flácido, a mensagem visual é reforçada pela verbal e, contrariando a publicidade tabagista corrente, informa que fumar, longe de tornar um homem mais viril, leva-o justamente para o lado oposto: a impotência. A mesma mensagem é transmitida pela segunda imagem, também com certo tom de humor. O homem nu sugere o momento da relação sexual, sua postura de frustração – revelada em olhar para o pênis, com as mãos em gesto de interrogação – é somada a uma mão feminina em sinal de “negativo”, coincidindo o posição do dedo polegar para baixo com a posição do pênis sem ereção. Como a mão está distanciada do homem e próxima do leitor, o efeito é de um aviso que se opõe ao discurso tabagista: aquele homem está reprovado.

Através de um jogo de oposições, o anúncio abaixo, do Ministério da Saúde, desassocia o cigarro à imagem de beleza, glamour e requinte e o relaciona aos resultados mais reais, desmentindo claramente a publicidade da indústria do tabaco. O lado mais claro da imagem, onde aparece o cigarro, mostra uma boca perfeita, com um sorriso bonito, acompanhado da frase: “o que eles vendem”, isto é, a consumidora compra o cigarro imaginando que isso a fará requintada e feliz. No entanto, a verdadeira conseqüência está representada pelo lado mais escuro, onde aparecem os dentes deteriorados e a boca envelhecida, acompanhados da frase “não é o que você leva”. Ou seja, a indústria do cigarro promete algo, mas, na verdade, oferece o oposto.

Contrapondo-se à idéia de liberdade e plenitude de vida. As imagens abaixo, associam a fumaça do cigarro a instrumentos de morte, sugerindo que fumar equivale a um suicídio. A frase em inglês sugere que se você destruir um cigarro estará salvando uma vida, lembrando as campanhas para combater o suicídio.

Os cenários amplos das propagandas de cigarro, que sugerem liberdade, foram substituídos pelo confinamento, na imagem abaixo, denotando que o cigarro, ao contrário do que a propaganda diz aprisiona seus usuários.

Entre as imagens mais incisivas da publicidade antitabagista está a que usa o final trágico de um dos Marlboro Mans para revelar que o “mundo de Marlboro” não passa de uma ficção. O anúncio se apropria de uma imagem típica dos anúncios da campanha do referido cigarro: cowboys a cavalo e um belíssimo cenário, de amplas dimensões, que inspira liberdade. Assim, mesmo sem mencionar à marca, a peça remete o leitor imediatamente a ela, pois esta já faz parte da competência enciclopédica do mesmo.

No entanto, ao invés de ser convidado a entrar no mundo de Marlboro, o leitor é confrontado com um dado inesperado: o amplo e belo cenário abriga a triste constatação

de que o belo cowboy que atraiu a emulação de tantos homens está morto devido ao uso do próprio produto que anunciou.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As representações, tanto da propaganda da indústria tabagista, quanto da dos órgãos de saúde, possibilitaram o reconhecimento de que algumas estratégias importantes no trabalho de bricolagem dos publicitários. Entre elas reconhecemos a associação de idéias, que se servem da base cultural do público alvo, para a instauração do discurso persuasivo. Os resultados apontam para uma articulação de estratégias linguísticas, a seleção e organização das imagens e palavras, em que cada um a seu modo, disputou a confiança do mesmo público, buscando convencê-lo de seus pontos de vista. Esse embate só não foi mais violento devido às leis que impediram a propaganda do cigarro, fazendo com que as campanhas antitabagistas pudessem reinar sozinhas na mídia brasileira. Como resultado, o número de fumantes, ainda que esteja longe de ser pequeno, diminuiu sensivelmente. De onde é fácil inferir que o poder persuasivo da publicidade é crucial nas decisões de consumo de milhões de pessoas, tendo, no entanto, a capacidade de contribuir para o bem ou para o mal.

Isso, então, propõe reflexões muito profundas sobre a própria razão de ser do fazer publicitário e das motivações para o mesmo. É possível que este fazer esteja tão somente vinculado à obtenção de lucros, podendo as agências publicitárias produzirem material persuasivo indiferente do conteúdo e suas conseqüências para a sociedade? Se for assim, esta não pode criticar a indústria tabagista sem criticar-se a si mesma, por prestar serviço a essa mesma indústria por tanto tempo, sendo impedida apenas pela interferência das leis. Então, pode ser que muito da publicidade se apóie numa ética enviesada, baseada na inconseqüência de que “os fins” (os lucros) “justificam os meios” (descompromisso com a verdade, em prejuízo do consumidor). E se alguém quiser saber a que tal ética sórdida pode levar, pergunte aos publicitários de Hitler.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CARRASCOZA, João Anzanello. Do caos à criação publicitária: processo criativo, plágio e ready-made na publicidade. São Paulo, Saraiva (2008). MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo (2008): Cortez. 1. Disponível em < http://www.onu.org.br/proibir-propaganda-de-cigarro-e-uma-dasformas-mais-eficazes-para-reduzir-consumo-afirma-oms/. Acesso em 23/09/2013. 2. Disponível em < http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-05-28/restricao-depropaganda-de-cigarro-levou-33-dos-brasileiros-deixarem-de-fumar-diz-pesquisa. Acesso em 23/09/2013.

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