A QUARTA FERIDA NARCÍSICA DA HUMANIDADE: PÓS-HUMANIDADE

June 1, 2017 | Autor: Rafael Silva | Categoria: Cyborg, Pós-Humanismo, feridas narcísicas, cibertecnologia
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO–UNIRIO FACULDADE DE FILOSOFIA

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FILOSOFIA E INFORMAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE

Professora: Valéria Wilke - Aluno: Rafael Silva - Data: 1/7/2106 - Avaliação 2

A QUARTA FERIDA NARCÍSICA DA HUMANIDADE: A PÓS-HUMANIDADE.

O ser humano está fadado a ser ferido por si próprio? Pelo menos é o que nos conta a história das três feridas narcísicas da humanidade, quais sejam, a copernicana, a darwiniana e a freudiana. E não temos motivo algum para duvidar que esse devir, digamos assim, “fera-ferida” tenha chegado ao seu fim com o pai da psicanálise. Depois que Copérnico mostrou que a terra não era o centro do universo, e que sequer o universo tinha centro, a humanidade perdeu a segurança do cosmos fechado para ser jogada sem referencial algum na agorafobia irrecuperável do universo infinito. O primeiro golpe. Com Darwin, a humanidade soube que não era a suma obra-prima do seu divino criador, mas, como todas as demais espécies animais, tinha evoluído, particularmente, e mais traumaticamente ainda, do macaco. O segundo golpe. E o domínio absoluto da realidade pela razão humana, porto assegurado pela metafísica e em seguida pela ciência, perdeu sua segurança com a descoberta do inconsciente, por Freud. O terceiro golpe. Se o nosso destino realmente é auto-golpista, qual será o próximo golpe, isto é, a quarta ferida narcísica? A revolução tecnológica que estamos experimentando nas últimas décadas pode já estar sendo essa nossa “próxima” ferida. A ensaísta e pesquisadora argentina

2 Paula Sibilia, em O Homem Pós-Orgânico: Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais, fala do homem diante de sua experiência com uma gama de investimentos antes inimagináveis, tais como a manipulação protética localizada, isto é, os biochips, e sobretudo a inteligência artificial. Para a autora, evoluções como estas estão levando, ou já nos trouxeram, às novíssimas experiências do homem “pós-orgânico” e da evolução “pós-humana”. Não seriam a entrada absoluta na pós-humanidade e o abandono completo da organicidade, ambas, senão a maior e derradeira, ao menos a próxima grande e irrecuperável ferida da humanidade? A cientista de comunicação brasileira Lucia Santaella, em Pós-humanismo – por quê?, também aponta os novos horizontes que a humanidade abre para si com as tecnologias. Para ela, as sociedades humanas complexas resultaram em uma babilônia informacional capaz de armazenar, transmitir e recuperar informações, em diferentes formas, para quaisquer lugares, a ponto de o mundo estar se tornando uma gigantesca rede de troca de informações. Santaella ressalta que o conhecimento humano duplica a cada dez anos, e que a revolução tecnológica que estamos atravessando no momento é muito mais profunda e modificadora do que a revolucionária invenção do alfabeto, há cerca de 4000 anos. Sibilia caracteriza muito bem a mudança de paradigma que nos colocou diante de nossa pós-humanidade. Humanos, demasiado humanos, nosso moderno esforço para dominar tecnicamente a natureza mediante o conhecimento, para a autora, foi a versão prometeica de nossa evolução. Na mitologia grega, Prometeu foi um defensor da humanidade, conhecido por sua astuta inteligência, responsável por roubar o fogo de Héstia, deusa virgem do lar, da vida doméstica, da família e do estado, e o dar aos mortais. Nas próprias palavras de Sibilia, “o progresso dos saberes e das ferramentas prometeicas redunda em um certo ‘aperfeiçoamento’ do corpo, porém este será sempre naturalista e não-transcendentalista; ou seja, não pretenderá ir além dos limites impostos pela ‘natureza humana’. Vemos aqui que, evoluindo prometeicamente, não cruzaríamos as fronteiras da humanidade, apenas as expandiríamos aos infinitos cantos do universo outrossim infinito. Entretanto, a partir de século XX, o infinito pareceu justo demais. A nossa sociedade prometeica se tornou insaciável. A paulatina e tecnocientífica dominação humana da natureza se expandiu também para a dominação da própria natureza humana. Nas palavras de Sibilia, “tanto para o exterior quanto para o interior do

3 corpo humano”. Prometeu se perdeu na sua velha fronteira. Esse novo movimento, que a autora chama de era fáustica, outra coisa não é que a mudança paradigmática que desbancou as antigas e conhecidas dicotomias metafísicas entre mente-corpo, espírito-matéria, sujeito-objeto, natureza-artifício. Como sabemos, Fausto é o protagonista de uma popular lenda alemã que conta de um pacto com o demônio, baseada na magia e na alquimia do alemão Dr. Johannes Georg Faust. Essa movida fáustica, que para Sibilia é a superação da “condição humana”, inaugurou o que ela chama de “’falências do corpo orgânico’, dos ‘limites espaciais e temporais ligados à sua materialidade’”. Melhorar a condição da existência humana contra as vicissitudes da natureza, até então o esforço prometeico, passou a ser a transcendência do ser humano, o empreendimento fáustico por excelência. O momento fáustico de Sibila, pensado conforme Santaella, mutatis mutandi, seria o cruzamento da fronteira humana para a pós-humana. E nessa póshumanidade supertecnológica imediata, o pós-homem primeiro é o ciberpunk: ser híbrido fascinados pelas interzonas; bastardo do “casamento da subcultura hightech com as culturas marginalizadas das ruas”, aponta a brasileira. Ainda que o ciberpunk seja o colonizador primário dessa realidade fáustica, o primeiro a viver esse “novo continente” deslimitado, mesmo ele já teve de se deparar com a angusta questão, bem colocada por Santaella: “o que é autenticamente humano quando se tornam indefinidas as fronteiras entre humanidade e tecnologia?” Se o punk cibernético, aventureiro colonizador, não conseguiu dar essa resposta de modo satisfatório, os primeiros neonatos nesse novo continente pós-humano, para Santaella os “ciborgues”, não têm como escapar da pergunta, também feita pela autora: “o que é identidade humana, se ela for programável?” Afinal, o que resta dos conceitos de autenticidade e identidade na mistura desenfreada de tecnologia e ser humano? Melhor dizendo, o que surge daí? O termo “ciborgue”, na verdade, foi cunhado por Manfred Clynes e Nathan Kline, em 1960, para dizer da mistura entre cibernética (cyb) e organismo (org), ou seja, hibridismo do humano com algo maquínico-informático, que estende o humano para além de si mesmo. O pós-humano de Santaella! No entanto, o ciborgue, no conceito da autora, é melhor dito “biocibernético”, pois, de um lado, “bio”, de biológico, apresentaria significados mais abrangentes do que “org”, de organismo. De outro, porque “biocibernético”, em vez de “autômato bioinformático”,

4 “biomaquinal” ou “pós-biológico”, exporia “a hibridização do biológico e do cibernético de maneira mais explícita”, aponta a brasileira. Essa hibridização, todavia para a argentina, denota que

o corpo humano, em sua antiga configuração biológica, estaria se tornando obsoleto. Intimidados pelas pressões de um meio ambiente amalgamado com o artifício, os corpos contemporâneos não conseguem fugir das tiranias (e das delícias) do upgrade. Um novo imperativo é internalizado, num jogo espiralado que mistura prazeres, saberes e poderes: o desejo de atingir a compatibilidade total com o tecnocosmos digitalizado. Para efetivar tal sonho é necessário recorrer à atualização tecnológica permanente: impõem-se, assim, os rituais do auto-upgrade cotidiano.

O ser biocibernético, para Santaella, ou o homem pós-biológico, para Sibilia, trata-se da superação, mediante tecnologia, das limitações do organismo humano. Trazendo argumentos de Halberstam & Livingston, pesquisadoras do “corpo póshumano” e das complicações éticas e sociais que ele impõe, a autora brasileira faznos ver que “a história, concebida como história social e cronológica, está morrendo junto com o homem branco da metafísica ocidental. Por isso mesmo, os corpos póshumanos não pertencem à história linear. São do passado e do futuro vividos como crise”. E essa crise é bem representada pela “falha necessária e lastimável de se imaginar o que vem a seguir”. Aqui podemos arriscar dizer que essa senda não resolvida é a vida em curso do niilismo, responsável pela crise da modernidade, aplicado não somente aos fundamentos da razão humana, mas principalmente ao fundamento humano em si mesmo. Um sobreniilismo, racional e biológico, simultaneamente. Robert Pepperell, outro autor trazido por Santaella, diz que a expressão “póshumano” pode ser empregada em três sentidos. Em primeiro lugar, para falar do fim do humanismo, filosofia moral que coloca os humanos como principais numa escala hierárquica. Em segundo lugar, para dizer das profundas transformações no que concebemos por humano. E em terceiro, para apontar a convergência não mais discernível dos organismos humanos com as tecnologias. Para Pepperell, conta-nos Santaella, “essas tecnologias pós-humanas são: realidade virtual, comunicação global, protética e nanotecnologia, redes neurais, algoritmos genéticos, manipulação

5 genética e vida artificial. Tudo isso junto deve representar uma nova era no desenvolvimento humano, a era pós-humana”. Já o brasileiro Francisco Rüdiger, que pesquisa a história das ideias, a teoria social e o pensamento tecnológico, dá outro panorama de pós-humanidade -muito embora não se valha do termo “pós-humano”- diante das forças que ainda lhe são críticas. Trazendo aspectos das relações entre cultura e técnica na era das massas, Rüdiger coloca o que chama de “ciborgue” diante 1) dos populistas tecnocráticos; 2) dos conservadores midiáticos; e, 3) dos cibercriticistas. O autor aborda teorias sobre a interação homem-máquina e o significado coletivo do progresso tecnológico até a figura histórica do ciborgue, que para ele é a “interação homem-máquina, da cibernética à rede social”. E o meio-ambiente do ciborgue, para Rüdiger, é a “cibercultura”. Nas suas palavras, “uma formação prática e simbólica, que expressa e, às vezes, articula para o homem comum as circunstâncias e antagonismos humanos e sociais”. Esse universo cibercultural de Rüdiger, que para Santaella seria o meioambiente da nossa evolução pós-humana, não significaria, contudo, a superação das fragilidades e vulnerabilidades de nossa condição humana. Em uma imagem, uma crítica às mais altas esperanças fáusticas da humanidade. “A meu ver –coloca a autora-, além de simplista, reducionista, essa compreensão é ilusionista”, e isso porque, segue, “tais delírios pseudointelectuais, evidentemente, não podem ser tomados como definidores da problemática do pós-humano”. Santaella diz que embora a condição pós-humana e a revolução biotecnológica coloquem a humanidade diante de dilemas éticos inéditos, hipostasiar a distinção entre evolução biológica e evolução tecnológica pode não ser pertinente, afinal, pressupondo que ambas as evoluções são uma e a mesma, a atual aceleração tecnocientífica que faz o humano se tornar pós-humano poderia ser apenas mais um ciclo evolutivo do homem. A brasileira é contundente ao sugerir que a condição pós-humana pôde desde sempre ter estado “inscrita no programa genético da espécie humana”. Propõe que o humano é um “ser paradoxal, natural e artificial ao mesmo tempo”. Com efeito, Santaella fala da perspectiva de que

6 a técnica, hoje transmutada em tecnologia, remonta às origens da constituição do ser humano como ser simbólico, ser de linguagem, de modo que as tecnologias atuais estão em uma linha de continuidade e representam uma crescente complexificação de um princípio que já se instalou de saída na instauração do humano.

Diz ainda que falar nunca foi natural, pois natural são apenas as funções de sobrevivência básicas, como comer, dormir, beber etc. Para a autora, a fala já é um artifício: “o artifício da maquinaria simbólica que está instalada em nosso próprio corpo”. Todas as demais maquinarias, técnicas, artifícios ou tecnologias, para Santaella, são o desenvolvimento daquilo que já irrompeu em nós quando começamos a falar. Santaella

vai

mais longe

ao

pensar

que

até

mesmo a

nossa

contemporaneíssima Internet já estava em latência quando o ser humano se tornou bípede; quando teve pela primeira vez as mãos livres para comunicar, à distância, o que se passava no “lugar”. Com efeito, e-mails e Whatsapp são novas formas, bem mais sofisticadas, para a ancestral artificialidade humana envolvida na comunicação. Porém, sofisticações digitalizadas daquilo que o homem, uma vez em pé, já podia fazer com gestos mecânicos. Só que essa sofisticália, indo muito além do mero gestual corporal, exige suportes cada vez mais capazes. Essa exigência, por sua vez, potencializa as nossas comunicação, expressão e criação, e assim por diante, num ciclo ascendente que se resolve apenas com mais tecnologia. A autora evidencia que os prolongamentos do nosso corpo e da nossa mente na evolução do gesto e da fala em e-mails e telefones celulares, por exemplo, promovem um crescimento do nosso neocórtex. Só que esse órgão, por razões estritamente biológicas, tem seu limite de expansão. “Não pode continuar crescendo dentro da caixa craniana”, aponta Santaella, para quem “o neocórtex vem crescendo, expandindo-se na biosfera, fora da caixa craniana”. Aí os chips, os bancos de dados, e, hoje em dia, a nuvem. Esse seria o pós-humanismo propriamente dito, a existência humana para além do corpo humano. O homem não mais sendo ele mesmo no seu solipsismo biológico, se é que podemos falar assim, que durante milhares de anos foi o seu horizonte intransponível. O pós-humano, por sua vez, só é se for também, ou quiçá definitivamente, fora de si mesmo. Mais ainda, se o universo inteiro for o suporte dessa pós-humanidade: o infinito prolongamento externo do que ele é

7 internamente; essa expansão ilimitada e desenfreada. Talvez esteja aí a quarta ferida narcísica pela qual estávamos procurando. Retomando: primeiro, perdemos o centro do universo com Copérnico; depois, despencamos do centro da criação divina com Darwin; para, em seguida, perdermos o controle da nossa razão em face do insondável inconsciente evidenciado por Freud. E, por fim, em quarto lugar, no póshumanismo, a própria humanidade deixa de ser o locus de si mesma, tendo de ocupar o universo ao seu redor para poder viver a sua própria evolução. Só que agora, pós-humanamente.

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ADENDO Volta histórica e meia, aquilo que temos de mais valoroso é levado, por nós, a habitar a virtualidade celeste. O homem primitivo, ignorando as causas da realidade e de si mesmo, fez do céu, mais especificamente Deus, o receptáculo de toda a sabedoria que lhe faltava. A medida de Deus sendo proporcional à ignorância humana. Era preciso, portanto, um lugar espaçoso o bastante para que Ele e o Seu infinito conhecimento –ou nós e a nossa imensa ignorância- pudessem subsistir em paz, ilesos de qualquer estupidez mundana. Em uma imagem: Deus foi locado nas nuvens. Com o progresso da ciência, todavia, o divino revelou-se mundano. Assim, as pessoas puderam desfrutar da plena liberdade para conhecer e para dominar a natureza toda, independentemente de Deus. A epopeia enciclopédica do Século XIX foi o download pirata de toda sabedoria divina necessária à vida prática dos homens. E esse conhecimento fundamental, uma vez esparramado pelo chão do mundo pósmoderno, sistematizou-se “em rede”. Doravante, o paraíso esvaziado viveria simplesmente por conta de sua vacuidade. Entretanto, e ironicamente, no cibertecnológico mundo contemporâneo a sabedoria essencial à humanidade volta a ser colocada sobre a cabeça de todos, na

8 “nuvem”. O éter celeste, agora binário, é novamente o receptáculo daquilo que é mais valioso aos humanos: a informação acerca das coisas e deles mesmos. Intrigante é perceber que o céu, ou melhor, “a nuvem”, mais uma vez, convence os homens de que ela é o lugar mais seguro, sem dizer infinitamente possível e expansível, a tudo aquilo de que eles mais necessitam saber. Quando inventou a sua própria ignorância, o homem colocou a sabedoria que lhe faltava bem acima de si, na inabarcável esfera divina. Contudo, uma vez tornado onisciente pela ciência, o homem esvaziou o céu de todo saber fundamental, carregando consigo o que outrora era propriedade de Deus. Porém, uma vez de posse de tamanha informação, repetimos a ancestral elevação do saber essencial às nuvens; ou porque reconhecemos que somos incapazes de carregá-lo todo conosco, ou, em troca, porque não nos livramos da culpa pelo moderno esvaziamento do céu, obra exclusiva da nossa sede de saber.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SANTAELLA, L. Pós-humano – por quê? In: Revista USP, São Paulo, n.74, p. 126-137, junho/agosto 2007 SIBILIA, P. O Homem Pós-Orgânico: Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002 RÜDIGER, F. Introdução às teorias da cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2003. ___________, F. Cibercultura e pós-humanismo: exercícios de arqueologia e criticismo. Porto Alegre: Edipucrs, 2008.

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