A QUESTÃO AFRICANA NA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA PORTUGUESA E A SUA CONFIABILIDADE: O CASO DA HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA DE ANTÓNIO J. SARAIVA E ÓSCAR LOPES

July 13, 2017 | Autor: Elias Torres Feijó | Categoria: African Studies, Portuguese Studies, Historiografia, Literaturas africanas de língua portuguesa
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Descrição do Produto

ISSN 1980-1858

GUAVIRA LETRAS Programa de Pós-Graduação em Letras UFMS/Campus de Três Lagoas

Guavira Letras

Três Lagoas, MS

n. 19

403 p.

ago./dez.2014

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Reitora Célia Maria da Silva Oliveira Vice-Reitor João Ricardo Filgueiras Tognini Diretor do Campus de Três Lagoas José Antônio Menoni

Editores Rauer Ribeiro Rodrigues (Chefe) Kelcilene Grácia Rodrigues (Adjunta)

Editoração e Diagramação Rauer Ribeiro Rodrigues

Organizadores do Dossiê deste volume Pablo Javier Pérez López (Universidade Nova de Lisboa) Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS)

Os autores são responsáveis pelo texto final, quanto ao conteúdo e quanto à correção da linguagem.

© Copyrigth 2014 – os autores Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (UFMS, Três Lagoas, MS, Brasil)

G918

Guavira Letras: Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Programa de Graduação e PósGraduação em Letras. – v. 19 (2. semestre, 2014), 403 p. - Três Lagoas, MS, 2014 Semestral. Descrição baseada no: v. 11 (ago./dez/ 2010) Tema especial: Literatura e Cultura Portuguesa: Diálogos, crítica, pensamento, trânsito, (re)apropriações, outras vozes Organizadores: Pablo Javier Pérez López (Universidade Nova de Lisboa) Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS) Editor: Rauer Ribeiro Rodrigues ISSN 1980-1858

1. Letras - Periódicos. 2. Estudos Literários I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Programa de Graduação e Pós-Graduação em Letras. II. Título. (Revista On-Line: http://www.pgletras.ufms.br/revistaguavira/revista_online.htm) CDD (22) 805 _____________________________________________________________________________________ ____________________

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Conselho Editorial Eneida Maria de Souza (UFMG) João Luís Cardoso Tápias Ceccantini (UNESP/Assis) José Luiz Fiorin (USP) Paulo S. Nolasco dos Santos (UFGD) Maria do Rosário Valencise Gregolin (UNESP/Araraquara) Maria José Faria Coracini (UNICAMP) Márcia Teixeira Nogueira (UFCE) Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG) Rita Maria Silva Marnoto (Universidade de Coimbra – Portugal) Roberto Leiser Baronas (UNEMAT) Sheila Dias Maciel (UFMT) Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos (UEM) Silvane Aparecida de Freitas Martins (UEMS) Vera Lúcia de Oliveira (Lecce – Itália) Vera Teixeira de Aguiar (PUC/Porto Alegre)

Conselho Consultivo Águeda Aparecida da Cruz Borges Alexandre Huady Torres Guimarães Amanda Eloina Scherer Ana Lúcia Trevisan Pelegrino Angela Stube Angela Varela Pessoa Brasil Arlinda Cantero Dorsa Aurora Gedra Ruiz Alvarez Beatriz Eckert-Hoff Celina Aparecida Garcia de Souza Nascimento Diana Luz Pessoa de Barros Elisa Guimarães Pinto Elzira Yoko Uyeno Eunice Prudenciano de Souza Fátima Cristina da Costa Pessoa

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Gloria Carneiro do Amaral Graciela Inés Ravetti de Gómez Ivânia Neves João Cesário Leonel Ferreira José Batista de Sales José Guilherme dos Santos Fernandes Kelcilene Grácia Rodrigues Lília Silvestre Chaves Lílian Lopondo Luís Heleno Montoril del Castilo Maralice de Souza Neves Marcelo Módolo Márcia Aparecida Amador Máscia Márcia Regina do Nascimento Sambugari Maria do Perpétuo Socorro Galvão Simões Maria José Rodrigues Faria Coracini Maria Lucia Marcondes C. Vasconcelos Maria Luiza Guarnieri Atik Mariana de Souza Garcia Marilúcia Barros de Oliveira Mário Cezar Silva Leite Marisa Philbert Lajolo Marlon Leal Rodrigues Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos Rauer Ribeiro Rodrigues Regina Celia Fernandes Cruz Regina Helena Pires de Brito Regina Mutti Ronaldo de Oliveira Batista Sílvio Augusto de Oliveira Holanda Simone de Souza Lima Simone de Souza Lima Tania Maria Sarmento-Pantoja Thomas Massao Fairchild Valéria Augusti Vera Lucia Harabagi Hanna Véronique Marie Braun Dahlet

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Todos os pareceristas são professores doutores. Os laudos, circunstanciados, foram — quando necessário — enviados aos autores, para que os artigos passassem por revisão, correções e ajustes. Os artigos que compõem esta edição foram recebidos ou reapresentados no segundo semestre de 2014 e aprovados até meados de dez./2014.

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APRESENTAÇÃO

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DIÁLOGOS COM A LITERATURA E A CULTURA PORTUGUESA Guavira Letras 19 - Apresentação Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS) Editor-Chefe da Guavira Letras

Este número da Guavira Letras reúne, no Dossiê “Literatura e Cultura Portuguesa: Diálogos, crítica, pensamento, trânsito, (re)apropriações, outras vozes”, organizado pelos Professores Pablo Javier Pérez López (Universidade Nova de Lisboa) e Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS), congrega trabalhos sob as seguintes diretrizes: 1. Diálogos. 2. Crítica. 3. Pensamento. 4. Trânsitos. 5. Outros textos, outras vozes. 6. (Re) apropriações. A edição se apresenta com ensaios, análises e estudos dos pesquisadores Benjamin Abdala Junior, Consuelo de Paiva Godinho Costa, Michael Douglas Silva Dias, Edvaldo A. Bergamo, Elias J. Torres Feijó, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Laura Cavalcante Padilha, Isabel Cristina Rodrigues, Jane Tutikian, Manuel Ferro, Maria do Amparo Tavares Maleval, Tatiana Batista Alves, Luciana Ferreira Leal, Antonio Cardiello, Pablo Javier Pérez López, Filipa de Freitas, Ana Paula Arnaut, Petar Petrov, Teresa Cristina Cerdeira e Maurício Silva. Traz, ainda, na Seção de tema livre, estudos de Suzel Domini dos Santos e Susanna Busato, e de Kamila Rodrigues Lima e Tânia Sarmento-Pantoja. Entre os autores estudados, Fernando Pessoa e seus heterônimos, Saramago, Vergílio Ferreira, Camões, Ana Miranda, Conceição Lima, Gil Vicente, Eça, sem esgotar a lista; os temas vão da guerra ao feminismo, da lírica à narrativa, da tradição à modernidade. Acrescente-se estudos de lín gua portuguesa, comparativo de autoras latino-americanas e de semioses distintas, e temos um volume que une o prazer do estudo ao prazer da leitura. Confira a seguir.

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SUMÁRIO

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Guavira Letras 19 Dezembro /2014

Guavira Letras 19 - Apresentação

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Rauer Rbeiro Rodrigues (UFMS)

DOSSIÊ Literatura e Cultura Portuguesa: Diálogos, crítica, pensamento, trânsito, (re)apropriações, outras vozes Organizadores: Pablo Javier Pérez López (Universidade Nova de Lisboa) Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS) O FATALISMO DA POBREZA(?): O MIÚDO PORMENOR INTERESSA À HISTÓRIA (LEVANTADO DO CHÃO, DE JOSÉ SARAMAGO) Ana Paula Arnaut

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A LITERATURA, A POLÍTICA E O COMUNITARISMO SUPRANACIONAL Benjamin Abdala Junior

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O ROMANCE HISTÓRICO DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO BRASIL: O RETRATO DO REI, DE ANA MIRANDA Edvaldo A. Bergamo

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A QUESTÃO AFRICANA NA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA PORTUGUESA E A SUA CONFIABILIDADE: O CASO DA HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA DE ANTÓNIO J. SARAIVA E ÓSCAR LOPES Elias J. Torres Feijó

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ENTRE-DOIS: TRADIÇÃO E INOVAÇÃO NA NARRATIVA

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PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA

Isabel Cristina Rodrigues

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O POEMA “PORTA ABERTA TOCHA ACESA”, DE CONCEIÇÃO LIMA Jane Tutikian

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DO SILÊNCIO À CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA FEMININA DAS GUERRAS EM ÁFRICA Laura Cavalcante Padilha

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A TRADIÇÃO E (RE)APROPRIAÇÃO DOS CLÁSSICOS NA PÓS-MODERNIDADE: O CASO EXEMPLAR DO DIÁLOGO DA LUSOFONIA COM CAMÕES E A OBRA CAMONIANA Manuel Ferro

153

DA RETÓRICA DO FRANCISCANISMO NAS MORALIDADES DE GIL VICENTE Maria do Amparo Tavares Maleval

175

IBERIA Y BRASIL EN FERNANDO PESSOA Pablo Javier Pérez López

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A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA EM QUESTÃO: ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA E ENSAIO SOBRE A

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LUCIDEZ, DE JOSÉ SARAMAGO

Petar Petrov

POÉTICA CORPORAL E ERÓTICA VERBAL: A ESCRITA DE JOSÉ SARAMAGO Teresa Cristina Cerdeira

223

ÁLVARO DE CAMPOS: DÚVIDAS E QUESTÕES DE MÉTODO Antonio Cardiello

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ÁLVARO DE CAMPOS: AS DISPOSIÇÕES DO POETA NA ODE

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MARÍTIMA

Pablo Javier Pérez López Filipa Freitas

A EFABULAÇÃO TRÁGICA EM A TRAGÉDIA DA RUA DAS FLORES E OS MAIAS Luciana Ferreira Leal

297

A FICÇÃO DO PORTUGUÊS

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Tatiana Batista Alves

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VERGÍLIO FERREIRA E O ESPANTO DE EXISTIR: UMA INTERPRETAÇÃO DE APARIÇÃO Maurício Silva

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O ACENTO NO PORTUGUÊS DO BRASIL: ANÁLISE ACÚSTICA DOS GRAUS DE TONICIDADE EM DIFERENTES POSIÇÕES SILÁBICAS Consuelo de Paiva Godinho Costa Michael Douglas Silva Dias DIVERSOS Estudos Linguísticos Estudos Literários ESTUDO COMPARADO ENTRE CIRANDA DE PEDRA E A CASA DOS ESPÍRITOS: A LITERATURA E O PENSAMENTO PÓS-GUERRA NA PROSA LATINO-AMERICANA Kamila Rodrigues Lima Tânia Sarmento-Pantoja

358

RENÉ MAGRITTE E MANOEL DE BARROS: INTERSECÇÕES ENTRE PINTURA E POESIA Suzel Domini dos Santos Susanna Busato

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NORMAS PARA SUBMISSÃO

397 403

Contato

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DOSSIÊ

Literatura e Cultura Portuguesa: Diálogos, crítica, pensamento, trânsito, (re)apropriações, outras vozes

Organizadores: Pablo Javier Pérez López (Universidade Nova de Lisboa) Rosana Cristina Zanelatto Santos (UFMS)

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O FATALISMO DA POBREZA(?): O MIÚDO PORMENOR INTERESSA À HISTÓRIA (LEVANTADO DO CHÃO, DE JOSÉ SARAMAGO) Ana Paula Arnaut 1 RESUMO: Partindo da análise de alguns excertos de Levantado do Chão, propomo-nos avaliar as estratégias utilizadas por José Saramago para veicular a ideia de manutenção de quadros opressivos (e de pobreza) no latifúndio alentejano do Portugal do Estado Novo. Em simultâneo, verificaremos a evolução da tomada de consciência de classe trabalhadora e as implicações ideológicas daí decorrentes. Palavras-chave: Miséria; Opressão; Dor; Ideologia; Revolta. ABSTRACT: Beginning with an analysis of selected extracts from Levantado do Chão, we propose to evaluate José Saramago’s strategies for conveying a sense of how the structures of oppression on the great landed estates of Portugal’s Alentejo region (and in consequence poverty) were maintained during the years of the Estado Novo (the ‘New State’). At the same time we will examine the development of class consciousness among the workers of that region and the implications that arise from it. Key words: Misery; Oppression; Suffering; Ideology; Revolt Os meus heróis / Prezo os símbolos, o rasto e os sinais / da minha nostalgia portuguesa. Mas / os meus heróis verdadeiros não vêm na história, / não têm monumentos nas praças domingueiras / nem dias feriados a lembrarlhes o nome, / são heróis dos dias úteis da

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Centro de Literatura Portuguesa / Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

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semana / levantam-se antes do sol e recolhem apenas / quando a noite se fecha nos seus olhos, / lavram a terra, o mar, e são jograis / colhendo a virgindade pudica da vida, / sobem aos andaimes, descem às minas / e comem entre dois apitos convulsivos / um caldo de lágrimas antigas, / são os construtores do meu país à espera / mouros no trabalho e cristãos na esperança / famintos do futuro, como se a madrugada / fosse a seara imensa apetecida / onde o sol desponta nas espigas sobre o casto silêncio da montanha. António Arnaut, in Recolha poética (19542004) Os meus heróis verdadeiros não são, também, os heróis que a História oficial se encarregou de não esquecer e de não fazer esquecidos. São-no, pelo contrário, aqueles que uma certa Literatura tem vindo gradualmente a recuperar, concedendo-lhes honras de primeiro plano narrativo e, desse modo, impondo a sua presença em memórias individuais que, em tudo, contribuem para a construção da memória coletiva. Talvez devêssemos, então, incorporar neste nosso breve estudo algumas das mais conhecidas obras do Neorrealismo, pelo que nelas se configura em “batalha pela dignificação dos homens aviltados”, em denúncia da “exploração descarnada do homem pelo homem”, tomada “nos seus aspetos mais crus, na lâmina viva do dia-a-dia”, como escreveu Alves Redol (REDOL, 1965, p. 22 e 28). Talvez devêssemos avaliar a forma como se acentua a pragmática ideológica, como se dá conta das desigualdades sociais, do abismo existente entre ricos e pobres, em romances como Gaibéus (1939), do já citado Alves Redol, ou Esteiros (1941), de Soeiro Pereira Gomes, para mencionar apenas dois dos mais importantes nomes de neorrealistas portugueses. Talvez devêssemos, ainda, proceder a uma ilustração objetiva de que, como um dia escreveu Josué de Castro, a pobreza, ou na sua dimensão mais estreita, “a fome[,] não é um fenómeno natural e sim um produto artificial de conjunturas económicas defeituosas: um GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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produto de criação humana e portanto capaz de ser eliminado pela vontade criadora do homem” (CASTRO, 1960, p. 26). Porém, não o faremos. Ou melhor, fá-lo-emos, mas recorrendo, antes, a um romance que, embora com evidentes afinidades com o Neorrealismo, faz já parte de uma outra ordem estética: a do Post-Modernismo. No romance que abordaremos, Levantado do Chão, de José Saramago, a temática da pobreza, entendida em primeira instância no seu plano material, traduzir-se-á, ainda, no uso de estratégias simbólicas profundamente significativas no que toca à ideologia do autor e permitirá, também, convocar, em segunda instância, uma outra variante: a que se refere à sua dimensão intangível, isto é, a que respeita à pobreza de espírito e à(s) reapropriação(ões) da dignidade do Homem, resultado, sempre, afinal, de ancestrais desejos materiais que transformam o ser humano em predador do seu semelhante. E, por isso, falaremos, necessariamente, de dor, ou, de modo mais explícito, de representações literárias da dor e, naturalmente, da forma como se constroem os dignos heróis de um mundo que se quer livre, justo e fraterno. Assim, é certo que o romance de 1980 (aqui citado a partir da 3ª edição de 1982) oferece, desde o início, com a geração de Domingos Mau-Tempo, a hipótese de lermos relatos que, de modo claro e objetivo, denunciam a fome e a miséria da classe trabalhadora. Tal sucede quando sabemos, por João Mau-Tempo, e por oposição ao “latifúndio [que] alimentava a família com largos excedentes” (SARAMAGO, 1982, p. 54), da necessidade de o seu irmão Anselmo pedir esmola porque a “mãe não tem dinheiro para o avio” (SARAMAGO, 1982, p. 52), ou quando o narrador dá conta de que o dinheiro que conseguiam juntar dava, apenas, para “não gemerem de fome constante” (SARAMAGO, 1982, p. 60), ou, ainda, quando, de forma pungente, se apresenta o conflito que, por questões salariais, opõe os trabalhadores do norte e os do sul: Dizem os do norte, Temos fome. Dizem os do sul, Também nós, mas não queremos sujeitarnos a esta miséria, se aceitarem trabalhar por este jornal, ficamos nós sem ganhar. Dizem os do norte, A culpa é vossa, não sejais soberbos, aceitai o que o patrão oferece, antes menos que GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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coisa nenhuma, e haverá trabalho para todos, porque sois poucos e nós vimos ajudar. Dizem os do sul, É um engano, querem enganar-nos a todos, nós não temos que consentir neste salário, juntem-se a nós e o patrão terá de pagar melhor jorna a toda a gente. Dizem os do norte. Cada um sabe de si e Deus de todos, não queremos alianças, viemos de longe, não podemos ficar aqui em guerras com o patrão, queremos trabalhar. Dizem os do sul, Aqui não trabalham. (...) Então o primeiro do norte avançou para o trigo com a foice, e o primeiro do sul deitou-lhe a mão ao braço, empurraramse sem agilidade, rijos, rudes, brutos, fome contra fome, miséria sobre miséria, pão que tanto nos custas (SARAMAGO, 1982, p. 3738). Outros exemplos, entre muitos, podem ser colhidos quando se expõem as assimetrias sociais e, progressivamente, o jogo de forças entre opressores e oprimidos. Recordem-se, a propósito, os episódios que envolvem os grevistas (inicialmente constituído por Manuel Espada, Augusto Patracão, Felisberto Lampas e José Palminha e, depois, engrossado com nomes de outros trabalhadores, como João Mau-Tempo (cf. SARAMAGO, 1982, p. 101, 103, 142-145), ou relembrem-se, em concomitância, duas citações que contêm, ainda, a ideia da manutenção e da fatalidade da pobreza: Então, porque entre o latifúndio monárquico e o latifúndio republicano não se viam diferenças e as parecenças eram todas, porque os salários, pelo pouco que podem comprar, só serviam para acordar a fome, houve aí trabalhadores que se juntaram, inocentes, e foram ao administrador do concelho pedir melhores condições de vida (SARAMAGO, 1982, p. 34).

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Não mudaram as coisas depois de Lamberto Horques (SARAMAGO, 1982, p. 115), numa referência ao episódio em que, quinhentos anos antes, um dos estrangeiros que viera com o “alcaide-mor de Monte Lavre” obriga uma donzela a deitar-se com ele (SARAMAGO, 1982, p. 24). Se os comentários que acabamos de apresentar se revelam ilustrativos da existência de linhas de objetividade narrativa (que, porém, sempre denunciam a sensibilidade de quem escreve), outros há mais elaborados e mais trabalhados artisticamente. Comentáriosrelatos onde a pobreza e a dor não são manifestamente expressas, mas que antes se adivinham nas entrelinhas de jogos simbólicos, de comportamentos e de estados de espírito. Atentemos, a título de exemplo, que, mais uma vez ilustra o carácter continuado (a fatalidade?) da pobreza, no seguinte excerto: O latifúndio é um mar interior. Tem seus cardumes de peixe miúdo e comestível, suas barracudas e piranhas de má morte, seus animais pelágicos, leviatãs ou mantas gelatinosas, uma bicheza cega que arrasta a barriga no lodo e morre sobre ele, e também grandes anéis serpentinos de estrangulação. É mediterrânico mar, mas tem marés e ressacas, correntes macias que levam tempo a dar a volta inteira, e às vezes rápidos surtos que sacodem a superfície, são rajadas de vento que vem de fora ou desaguamentos de inesperados fluxos, enquanto na escura profundidade se enrolam lentamente as vagas, arrastando a turvidão da nutriente vasa, há quanto tempo isto dura. São comparações que tanto servem como servem pouco, dizer que o latifúndio é um mar, mas terá sua razão de fácil entendimento, se esta água agitarmos, toda a outra em redor se move, às vezes de tão longe que os olhos o negam, por isso chamaríamos enganadamente pântano a este mar, e que o fosse, muito GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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enganado vive quem de aparências se fia, sejam elas de morte. (…) A este mar do latifúndio chegam ressacas, pancadas, empurrões das águas, é quanto às vezes basta para derrubar um muro, ou simplesmente saltá-lo, como em Peniche soubemos que aconteceu, por aqui se vê como sentido tem virmos nós falando de mar, que Peniche é porto de pescadores, e forte prisional, mas fugiram, e deste fugimento muito se irá falar no latifúndio, qual mar, qual nada, o que isto é, é terra as mais das vezes seca, por isso é que os homens dizem, Quando será que matamos a sede que temos, e a outra que tiveram os nossos pais, e mais a que debaixo desta pedra se prepara para os filhos que havemos de ter, se assim será. Chegou a notícia que não foi possível ocultar, e o que os jornais não disseram não faltou quem explicasse, debaixo deste sobreiro nos sentemos, esta é a informação que tenho. É a ocasião de levantarem mais alto voo os milhanos, gritam sobre a grande terra, quem os entendesse muito haveria de contar, por agora baste-nos esta linguagem de homens. Por isso é que dona Clemência pode dizer ao padre Agamedes, Acabou-se o sossego que nunca houve, parece uma contradição, e contudo nunca esta senhora foi tão certa no seu falar, são os tempos novos que estão a vir muito depressa, Isto parece uma pedra a rolar pela encosta do monte, assim lhe respondeu o padre Agamedes porque não gosta de empregar as palavras próprias, ficou-lhe o hábito do altar, mas enfim tenhamos nós a evangélica caridade de o entender, quer ele dizer na sua que se não GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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se afastarem do caminho da pedra, sabe Deus o que acontecerá, perdoemos-lhe esta nova negaça, bem se vê que não é preciso esperar por Deus para saber o que acontece a quem se deixar ficar no caminho da pedra que rola, nem cria musgo nem poupa Lamberto (SARAMAGO, 1982, p. 319-320) (destacados nossos). Como já escrevemos em outra ocasião2, os sentidos implícitos no primeiro parágrafo apresentam-se sob a forma de uma alegoria em que a vida no latifúndio é veiculada através da imagem do mar interior. Neste encontramos: “cardumes de peixe miúdo e comestível” (trabalhadores), “barracudas e piranhas” (latifundários, os -bertos, feitores), “animais pelágicos, leviatãs ou mantas gelatinosas” (representantes da igreja/guarda, criada e sustentada para bater no povo). Esse mar/latifúndio contém, enfim, “uma bicheza cega que arrasta a barriga no lodo e morre sobre ele” – deste modo se (re)inscrevendo a manutenção do quadro social opressivo – e, “também[,] grandes anéis serpentinos de estrangulação”. Estes são passíveis de ser entendidos em duplo sentido: por um lado, podem remeter para a opressão exercida pelos senhores e seus acólitos e, por outro lado, podem aludir à revolta que vai germinando no seio da classe oprimida. Note-se, no entanto, que, na impossibilidade de falar de todos aqueles que sofreram na pele a indignidade de um tratamento subhumano (SARAMAGO, 1982, p. 152) é, essencialmente, a partir das vidas dos Mau-Tempo (quatro gerações, desde antes da Primeira República até à Revolução de Abril de 1974 e à subsequente ocupação das terras) que o leitor toma conhecimento das misérias vividas e das atrocidades sofridas. Em termos mais particulares, podemos dizer, ainda, que é em João Mau-Tempo que se centra a ilustração da tomada de uma consciência político-social.

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Ver ARNAUT, 2002.

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É ele o símbolo de todo um povo-bonifrate que, antes de se consciencializar de que a união faz a força, unindo-se em “cardumes de peixe-miúdo” que sacudirão as águas do latifúndio pela oposição aos senhores sem rosto (SARAMAGO, 1982, p. 96), parece aceitar ter sido feito “para viver sujo e esfomeado” (SARAMAGO, 1982, p. 73), para viver oprimido pela santíssima trindade (igreja, estado e latifúndio, (SARAMAGO, 1982, p. 223-224 e 119) num longo espaçotempo em que, todavia, se verificam as tais “marés e ressacas, correntes macias que levam tempo a dar a volta inteira, e às vezes rápidos surtos que sacodem a superfície”. Surtos de revolta passiva, como a que decorre nos encontros clandestinos na Terra Fria (SARAMAGO, 1982, p. 205-213); surtos de revolta mais ativa, como a que ocorre depois de chegada a República (SARAMAGO, 1982, p. 33 ss) ou como a protagonizada por Manuel Espada, Augusto Patracão, Felisberto Lampas ou José Palminha (SARAMAGO, 1982, p. 103 ss) e por causa da qual “virá a guarda buscá-los pelas orelhas e a pontapé no rabo” (SARAMAGO, 1982, p. 104), por causa da qual, também, não arranjarão patrão nem trabalho (SARAMAGO, 1982, p. 108). Revoltas várias, portanto, que culminarão no confronto que ocorre em Montemor, em 23 de Junho de 1958 e onde é assassinado José Adelino dos Santos (SARAMAGO, 1982, p. 313-316). O mar do latifúndio não foi, nunca, pois, um pântano, já que os “cardumes de peixe miúdo” sempre se encarregaram de agitar as águas, de mudar as marés e de, perseverantemente, tentar trazer novos ventos a esse opressivo e hipócrita continuum espácio-temporal. Um continuum de violação aos mais elementares direitos do Homem que não é dado, apenas, pela exposição repetida das duras condições de vida dos trabalhadores. O poder continuado, ancestral, dos que controlam os homens tornados bonifrates é passível de ser lido simbolicamente através do exercício de uma estratégia bem peculiar. Referimo-nos, em primeiro lugar, ao facto de o nome dos latifundiários apresentar o mesmo segundo elemento: -berto (Norberto, Alberto, Dagoberto, Sigisberto, Adalberto, Ansberto, Gilberto, Contraberto, Angilberto, Floriberto, ou, tão somente, Berto – SARAMAGO, 1982, p. 139, 196). Numa linha extensional, a manutenção do quadro opressivo decorre, ainda, do facto de espaços e situações do passado recente serem nomeados com vocábulos que remetem para um espaçoGUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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tempo de um passado remoto. Assim acontece quando, na insurreição de 23 de Junho, em Montemor, se “ouve gritar do castelo” o “Matemnos a todos” (SARAMAGO, 1982, p. 315); assim acontece, também, quando, já depois da revolução, se refere estar “toda a dinastia de Lamberto Horques” “reunida em cortes, ou sentada ao redor de suas távolas redondas” (SARAMAGO, 1982, p. 354) (destacados nossos). O mesmo tipo de estratégia é aplicado ao nome das mulheres dos -bertos, as que brincam à caridadezinha e à santa compaixão à quartafeira e ao sábado. Também a estas é atribuído o mesmo irónico nome – Clemência. De uma dona Clemência diz o narrador ser a “esposa e o cofre de virtudes desde Lamberto ao último Berto” (note-se que, no caso, a relação de superioridade é simbolicamente lida no facto de a esmola distribuída vir de um nível superior àquele em que se encontram as crianças que pedem, através de uma lata pendurada por um cordel; além disso, o narrador sublinha que a caridadezinha praticada decorre mais do desejo de assegurar a salvação da alma do que propriamente de razões humanitárias – SARAMAGO, 1982, p. 187-189); De modo semelhante, em terceiro lugar, também o padre mantém o nome inalterado – Agamedes era na geração de Domingos, Agamedes continua a ser na geração de João e de Maria Adelaide Mau-Tempo (a confirmação, praticamente desnecessária, vem do próprio narrador, (SARAMAGO, 1982, p. 219). O mesmo parece acontecer, em quarto lugar, com um dos representantes do poder estatal, na pessoa do tenente Contente, zeloso defensor dos latifundiários no início do século e não menos zeloso repreendedor do povo em geração posterior à de Domingos (SARAMAGO, 1982, p. 34, 162, 311, por exemplo). A história contada por Sigismundo Canastro (SARAMAGO, 1982, p. 228-229) no casamento de Manuel Espada com Gracinda Mau-Tempo acaba, então, por poder ser lida como a metáfora das tensões entre opressores e oprimidos, entre os dois sentidos que atribuímos aos “anéis serpentinos de estrangulação”. O esqueleto do cão Constante, com o nariz esticado, a pata levantada a marrar o esqueleto da perdiz retrata a perseverança dos trabalhadores na sua luta. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Esta perseverança é provocada por uma progressiva tomada de consciência de que é necessário passar de um estado de submissão a um estado de rebelião, de que é essencial acabar com o sossego “que nunca houve”, provocar a vinda dos “tempos novos”, qual pedra que rola encosta abaixo sem criar musgo nem poupar Lamberto. Referência que, claramente, remete para o desfecho da Ação, para esse dia “levantado e principal” da ocupação das terras; o mesmo dia em que João Mau-Tempo porá “o seu braço de invisível fumo por cima do ombro de Faustina”, acompanhando assim tantos “outros de quem não sabemos os nomes, mas conhecemos as vidas (...), os vivos e os mortos” (SARAMAGO, 1982, p. 365-366), unidos na tentativa de fazer cumprir o seu tempo... Antes que chegue, contudo, a ocasião de “levantarem mais alto voo os milhanos”, João Mau-Tempo, como já dissemos o representante dos “cardumes de peixe miúdo e comestível”, o cão que marra contra a perdiz, deverá passar por um processo lento e difícil de heroicização, de aquisição de uma consciência social e política. Esta, depois de uma fase respeitante à falta de forças para discordar do poder (SARAMAGO, 1982, p. 90, 95), levará à instalação do gérmen da revolta (SARAMAGO, 1982, p. 119-120) e completar-se-á pela informação, e também pela formação, que recebe dos papéis que lê e do que ouve nos encontros clandestinos (SARAMAGO, 1982, p. 141), até que, finalmente, depois de anos a sentir na pele a indignidade de um tratamento que não mata a sede (que, vinda do passado, se estende pelo presente e se projeta no futuro), conscientemente se verbaliza a insubmissão e a revolta: “Ficará a seara no pé, que nós não vamos por menos” (“trinta e três escudos” a jorna) (SARAMAGO, 1982, p. 141) (ARNAUT, 1996, p. 33-34). Paralelamente ao tratamento da temática da opressão exercida pela santíssima trindade, da consequente revolta dos trabalhadores e da não menos consequente exposição dos valores de liberdade e de igualdade, outras linhas temáticas se consubstanciam no excerto apresentado. Referimo-nos, agora, quer à denúncia da censura existente no regime ditatorial quer ao ateísmo tantas vezes confesso de José Saramago. A problemática englobante da censura, ou, se preferirmos, dos diversos tipos de censura obliquamente denunciada ao longo do GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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romance através dos vários modos da repressão exercida, aflora claramente no excerto apresentado a propósito dessa “notícia que não foi possível ocultar”, mesmo não tendo os jornais fornecido as informações devidas. A notícia, clandestinamente explicada sob um qualquer sobreiro (SARAMAGO, 1982, p. 320), é a da fuga de Álvaro Cunhal (e de outros militantes da esquerda oposicionista ao regime de Salazar) do Forte prisional de Peniche, em 3 de Janeiro de 1960. Um ‘saltar do muro’ que não se pretende noticiado com demasiados pormenores, pois a sobrevivência do sistema opressivo/de exploração social passa pelo facto de se manter o trabalhador alienado, na ignorância – “A grande e decisiva arma” (SARAMAGO, 1982, p. 72) – de que, algures, outros lutam também para trazer novas marés e novos ventos ao país. Menos claro no excerto, mas subliminar e ironicamente apresentado na globalidade da tessitura narrativa é a crítica à pobreza de espírito de um Deus e de uma religião que, ao invés de se colocar ao lado dos mais desfavorecidos, se posiciona do lado dos poderosos. Relembre-se a convivência do padre Agamedes com os -bertos, note-se o comentário à ausência de necessidade de esperar por Deus “para saber o que acontece a quem se deixar ficar no caminho da pedra que rola” (SARAMAGO, 1982, p. 320); registe-se a desalentada, dolorosa e irónica constatação de que “a prova de que Deus não existe é não ter feito os homens carneiros, para comerem as ervas dos valados, ou porcos para a bolota” (SARAMAGO, 1982: 79). A presidir a este e a outros comentários afins que, de diversas maneiras, ilustram a estupidez humana, encontra-se um narrador claramente preocupado em pautar o romance quer por alusões a personagens e entidades reais (Salazar, Germano Santos Vidigal, a PIDE), quer por efemérides acreditadas pela História oficial (a implantação da República, as duas Grandes Guerras ou a Revolução de Abril de 1974). Tal como acontece em outros romances do autor, também neste é a arraia-miúda que sobe para primeiro plano. O que de facto parece interessar é dar voz aos mais desfavorecidos, seja diretamente, seja por via dos comentários de um narrador ideologicamente empenhado em contar o outro lado da História, até porque, “tudo isto pode ser contado de outra maneira” (SARAMAGO, 1982, p. 14). E nesta outra maneira GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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contam-se os triviais pormenores que não interessariam à História oficial. De acordo com o próprio autor, corrige-se a História, não no sentido de “corrigir os factos da História, pois essa nunca poderia ser tarefa do romancista, mas sim de introduzir nela pequenos cartuxos que façam explodir o que até então parecia indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido” (SARAMAGO, 1990, p. 19). E nessa substituição fica bem patente, pela ironia ou pelos elementos simbólicos usados, a dor dos trabalhadores, obrigados a trabalhar de sol a sol por mísero salário, e, evidentemente, a dor do autor, ou do narrador por ele, ao constatar o quadro opressivo em que se vive no grande espaço do latifúndio. Fica ainda bem clara a dor sentida pela alienação dos trabalhadores, já que, sendo “a ignorância” “a grande e decisiva arma” em que se tenta manter o povo, o latifúndio consegue roubar os indivíduos/trabalhadores a si mesmos, não lhes permitindo, pela instrução, desenvolver a sua personalidade e, por consequência, reconhecer as injustiças e os desajustes sociais do mundo em que vivem. Significativa a este propósito, num registo cujo tom oscila entre o humor dorido e o desencanto, é a perplexa resposta da mãe da criança (bem como o comentário do pai) que, ingenuamente, se interroga sobre o facto de o povo não ter quem o defenda: Mas diga-me, senhora mãe, bate também a guarda nos donos do latifúndio, Credo, que esta criança não regula bem da cabeça, onde é que tal se viu, a guarda, meu filho, foi criada e sustentada para bater no povo, Como é possível, mãe, então faz-se uma guarda só para bater no povo, e que faz o povo, O povo não tem quem bata no dono do latifúndio que manda a guarda bater no povo, Mas eu acho que o povo podia pedir à guarda que batesse no dono do latifúndio, Bem digo eu, Maria, que esta criança não está em seu juízo, não a deixes andar por aí a dizer estas coisas, que ainda temos trabalhos com a guarda (SARAMAGO, 1982, p. 72-73). GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Registe-se, também, extensionalmente, a dor, de um narrador que se sente indignado pela opressão religiosa exercida sobre os trabalhadores, numa linha temática ilustrada quer através da aceitação de que, como tranquilamente diz Sigisberto, “Foi Deus que quis assim as coisas” (SARAMAGO, 1982, p. 72), quer, de modo (mais) recorrente, através do controle exercido pelo padre Agamedes. Este, nos seus sermões, encarrega-se de caucionar a ordem estabelecida, pregando a obediência “aos que mais sabem da vida e do mundo” e, por conseguinte, fazendo do púlpito lugar de combate (contra)ideológico, recomendando (num registo discursivo semelhante ao do tenente Contente por ocasião da libertação dos conspiradores – SARAMAGO, 1982, p. 163) a que não deem “ouvidos a esses diabos vermelhos que andam por aí a querer a nossa infelicidade, que não foi para isso que Deus criou a nossa terra”. Na tentativa de conservar aquela sua terra “no regaço amantíssimo da Virgem Maria, e dirigindose em particular aos que não têm coragem para o fazer no posto da guarda (contrariando aberta e assumidamente a lei do sigilo), oferece o confessionário como espaço de denúncia dos que os querem “desencaminhar com falinhas mansas” (SARAMAGO, 1982, p. 120). Mas é, sem dúvida, no episódio da tortura de Germano Santos Vidigal que melhor se patenteia a dor causada pela violência e pela pobreza de espírito, agora respeitante a uma polícia política, a PIDE, encarregada de garantir uma ordem só conveniente para alguns. Vejamos a citação, longa mas necessária: Tomemos esta formiga, melhor, não a tomemos, que seria pegar-lhe, consideremo-la apenas por ser uma das maiores e levantar a cabeça como os cães (...). Caiu o homem outra vez. É o mesmo, disseram as formigas (…), não há confusão possível, porque será que é sempre o mesmo homem que cai, então ele não se defende, não se bate. São critérios de formiga e sua civilização, ignoram que a luta de Germano Santos Vidigal não é com os seus espancadores Escarro e Escarrilho, mas com o seu próprio corpo, agora a fulminante dor entre as pernas, testículos em linguagem de manual GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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de fisiologia, colhões neste grosseiro falar que mais facilmente se aprende (…). A formiga maior deu a volta ao que faltava de parede (...), vai decorrer seu tempo antes que volte e então achará tudo mudado, é um modo de dizer, três continuam a ser os homens, mas os dois que não caem nunca entretêm-se (…) a empurrar o outro contra a parede, agarram nele pelos ombros e atiram-no de cambulhão e então é conforme calha, ou bate de costas e vai dar com a cabeça em cheio, ou vai de frente e é o pobre rosto já pisado que se estampa na cal e nela deixa ficar, não muito, algum sangue, deste que lhe corre da boca e da arcada direita. E se aí o largam escorrega sem sentido, o sangue não, o homem, pela parede abaixo, até ficar no chão enrodilhado, ao lado do carreirito das formigas, de repente assustadas ao sentirem cair aquela grande massa do alto, que afinal não as atinge nem de raspão. E pelo tempo que ali o deixaram ficar, uma formiga se lhe agarrou à roupa, quis vê-lo de mais perto, a estúpida, vai ser a primeira a morrer, porque no preciso lugar onde agora está cai a primeira cacetada, a segunda já não a sente, mas sente-a o homem, que, com a dor, não ele, mas o estômago lhe salta, e outra vez se derruba, em ânsias, é o estômago, o violento coice em cheio ou patada e outro logo a seguir nas partes, palavra tão de comum que não ofende os ouvidos. (...) a formiga grande, que calhou estar na sua sétima viagem e vai agora a passar, levanta a cabeça e olha a grande nuvem que tem diante dos olhos, mas depois faz um esforço, ajusta o seu mecanismo de visão e pensa, Que pálido está este homem, nem parece o mesmo, a cara inchada, os lábios rebentados, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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e os olhos, coitados, dos olhos, nem se vêem entre os papos, tão diferente de quando chegou (...). (...) Germano Santos Vidigal deixa cair os braços, a cabeça descai-lhe para o peito, a luz apaga-se dentro do seu cérebro. A formiga maior desaparece debaixo da porta depois de ter completado a sua décima viagem. (...) (SARAMAGO, 1982, p. 169-175). E para que a memória da ficção se torne consciência do real, citamos breves mas elucidativos excertos de um vero relato de uma exprisioneira da PIDE: Fui presa no dia 21 de Abril de 1965. (...). De madrugada, levaram-me para o Forte de Caxias (...). No dia 6 de manhã levaram-me outra vez na carrinha celular para a sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso. (...) Os interrogatórios foram feitos pelo [inspector] Tinoco e pelo Serra. Nesse mesmo dia o Tinoco deu ordens à mulher «pide» desse turno (...) que não me deixasse ir à casa de banho enquanto não falasse e que as necessidades eram feitas ali na frente deles e limpas com a minha própria roupa. (...). Primeiro tiram-me a camisola de malha, depois a blusa e a seguir a saia, para limparem as necessidades (...). No dia 7 já não consegui comer. (...) Tinha febre e pedi um médico. Foi-me recusado. (...). No dia seguinte comecei a ver bichos nas pernas de uma mesa, coisas monstruosas nas paredes e no chão. Já mal me aguentava de pé. (...). Os agentes saíram e ficaram só as «pides». Continuaram as provocações e as palavras obscenas. A Madalena começou aos pontapés e GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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a puxar-me o nariz, a bater-me na cara. (...) Surge então um «pide» a dizer que me vinha ver nua e ela respondeu-lhe que não valia a pena ver uma «merda» destas, mas para os comunistas qualquer coisa serve; basta ter um buraco e fazer movimentos. Disse ainda: «Vamos embora, que esta puta, esta merda, não diz nada, não fala, e se eu fico aqui mais tempo espatifo-a toda». Veio um «pide» com uma máquina fotográfica. O Serra dava-me murros no queixo para eu levantar a cabeça e nessa altura o flash batiame nos olhos. Tiraram-me imensas fotografias (ou fingiram que tiravam), sempre o Serra a empurrar-me, a pegar-me pelas axilas, pois, já sem forças, não conseguia manter-me de pé. (...)3. Mas voltemos ao romance de José Saramago. O episódio que referimos, bem mais longo do que a transcrição que fazemos, recupera a importância da simbologia dos nomes escolhidos para as personagens. Não se trata, agora, contudo, como no caso dos -bertos, ou do Padre Agamedes, de evidenciar a manutenção do quadro opressivo, também não se trata de recorrer a uma nomeação irónica, como no caso da(s) Dona(s) Clemência(s). Trata-se, sim, lembrando o dito atribuído a Roque Lozano (SARAMAGO, 1986, p. 71), sobre a necessidade de duas condições “para que as coisas existam” (“que homem as veja e homem lhes ponha nome”), de optar, precisamente, por denominações cuja carga semântica é, neste como em outros contextos, profundamente negativa. Referimo-nos à escolha dos nomes Escarro e do seu derivado, Escarrilho, para os dois espancadores de Germano Santos Vidigal. Com efeito, sendo embora reflexo de uma condição física (libertação

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Maria da Conceição Matos Abrantes, “Testemunhos sobre a PIDE”, in MEDINA, 1990: 188.

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do muco causado pelo inchaço das mucosas do corpo), a verdade é que o escarro (e, com ele, o neologismo escarrilho) não só não é um ato socialmente aceite, como, além disso, convoca a impressão, se não a certeza (do narrador e no leitor) de algo (e por consequência, de alguém) repugnante, asqueroso, imundo e nauseante. Acresce ao exposto que o excerto citado conta, ainda, e agora em uma outra dimensão, situada no polo oposto à que acabamos de propor, com o uso de uma interessantíssima estratégia que não veicula só, simbolicamente, as dores sentidas pelo autor e pela personagem, mas também as transporta além texto para o mundo do leitor, pelo menos do leitor sensível às atrocidades cometidas no regime ditatorial. Referimo-nos ao facto de toda a cena ser narrada recorrendo ao ponto de vista de uma formiga que, no decurso das dez compridas viagens entre o formigueiro e o quarto em que se encontra Germano (SARAMAGO, 1982, p. 169-176), se encarregará de mostrar a forma como os agentes da PIDE quebram – até à morte – a vontade de um homem que mais não fez do que defender os seus direitos. O efeito que se obtém ao seguir a marcha lenta, lentíssima, da formiga de cabeça grande é, em primeiro lugar, o de um processo de isocronia que, pelo viés da extensão, isto é, do “prolongamento artificial do tempo da história” (Reis e Lopes, 1996, p. 34, 154), contribui para a sensação de alongamento do tempo4 do discurso e, por conseguinte, intensifica a duração da violência exercida (a resistência do homem, também). Mas, em segundo lugar, o efeito que decorre desta delegação de competências de focalização, contribui, inegavelmente, para a instauração de um processo de reflexão extratextual5 que, em última análise, levará, em convergência com o posicionamento da entidade 4

A consciência da dificuldade em narrar o tempo fica patente no seguinte excerto: “Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais”. (Saramago, 1982 [1980]: 59).

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“Escrever”, como afirma Saramago, “é uma transfusão de sangue para o lado de fora” (apud Gómez Aguilera (ed.), 2010: 207).

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narrativa, à regulação da simpatia do leitor pelos mais fracos e, quem sabe, ao despertar de consciências ideologicamente adormecidas. De acordo com o que vimos dizendo, não se estranha, pois, que, no decorrer de um enredo onde a arraia-miúda é diariamente protagonista de tratamentos indignos e aviltantes (contra os quais, apesar das contrariedades, e como já dissemos, alguns se vão gradualmente insurgindo), a revolução de Abril6, tardiamente conhecida no latifúndio, surja, num primeiro plano (centrado na personagem Maria Adelaide Espada), como episódio redentor, induzindo a choros e a abraços de alegria ao “ouvir na rádio, Viva portugal” (SARAMAGO, 1982, p. 351-354). Num segundo plano, no entanto, que em muito contribuirá para o ensombramento destas alegrias e contentamentos, o narrador dá-nos a saber que, tal como no passado (em que não se viam diferenças entre “o latifúndio monárquico e o latifúndio republicano” – SARAMAGO, 1982, p. 34), também agora, depois da Revolução, a fatalidade da pobreza continua a perseguir o Povo. É certo que os tempos se tornam outros, ou não soubéssemos nós que os senhores sem rosto do grande mar do latifúndio choram em cortes reunidos com os seus acólitos (por motivos bem diversos dos de Adelaide Espada, porém) (SARAMAGO, 1982, p. 356). Sem força e sem poder para continuar a manipular o Povo, uns fogem para o estrangeiro, outros ficam pelo Alentejo. Em todo o caso, azeda a esperança na mudança propugnada pelos ventos da revolução e se começa a ouvir-se que acaba a guerra em África, não se ouve falar do acabar da guerra no latifúndio (SARAMAGO, 1982, p. 357). Não deixam os -bertos que restam ceifar o trigo das suas searas e, não havendo trabalho, continuam os rigores e as dificuldades do passado próximo, como se “o futuro” nada mais fosse do que “o presente a andar lentamente para trás” (JORGE, 1980, p. 159). A revolução parece anoitecer “tão pouco tempo (…) depois de Abril e de Maio” (SARAMAGO, 1982, p. 357) e, longe de Lisboa, o povo alentejano parece ter sido abandonado pelos ideais democráticos e pelos responsáveis pela sua consecução. Assim, numa tentativa de

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Sobre algumas representações do 25 de Abril nas obras de José Saramago e de outros autores portugueses, ver ARNAUT, 2005.

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recuperar os direitos não atribuídos, a população subleva-se, fazendo a sua própria rebelião, ocupando, nesse dia que, como já dissemos, se apoda de “levantado e principal” (SARAMAGO, 1982, p. 366), os montes e herdades dos Norbertos e Gilbertos ausentes (SARAMAGO, 1982, p. 364). Atitude extrema para uma situação extrema, não restam dúvidas. Não parecem restar, pelo menos, para um narrador ideologicamente empenhado que, desde o início, vinha sintonizando o seu ponto de vista e a sua simpatia com os mais desfavorecidos. E se acreditarmos que quem lê a obra lê o autor, então não ficam, também, quaisquer dúvidas sobre o posicionamento social de José Saramago. Afinal, como afirmou em entrevista de 1982, “O escritor é um homem do seu tempo ou não é. O que escreve será sempre acção política ou omissão” (SARAMAGO, apud GÓMEZ, p. 205), mas desta última não corre o escritor o risco de ser acusado. Bibliografia ARNAUT, Ana Paula, Memorial do Convento. História, ficção e ideologia. Coimbra: Fora do texto, 1996. ARNAUT, Ana Paula, “Leituras da obra literária e ensino da literatura. Processos simbólicos em Levantado do Chão”, in Actas das II Jornadas Científico-Pedagógicas de Português (5 e 6 de novembro de 2001), Coimbra: Almedina, 2002, pp. 209-221. ARNAUT, Ana Paula, “Representaciones del 25 de abril en la literatura portuguesa”, in Cuadernos Hispanoamericanos, nº 660, Junio 2005, pp. 23-36 (Artigo também publicado em Rivista di studi portoghesi e brasiliani, VI, 2004, pp. 13-22). CASTRO, Josué, O livro negro da fome. Editora Brasiliense: São Paulo, 1960. GÓMEZ Aguilera, Fernando (ed.), José Saramago. Nas suas palavras. Lisboa: Caminho, 2010.

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JORGE, Lídia, O Dia dos Prodígios, 2ª ed. Lisboa: Europa-América, 1980 [1980]. MEDINA, João (dir.), História contemporânea de Portugal. Vol. I / Estado Novo. Camarate: Multilar, 1990. REDOL, Alves, “breve memória para os que têm menos de 40 anos ou para quantos já esqueceram o que aconteceu em 1939”, in Gaibéus. 6ª ed. Lisboa: Publicações Europa-América, 1965. REIS, Carlos e LOPES, A. C. Macário, Dicionário de narratologia. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1996. SARAMAGO, José, Levantado do Chão. 3ª ed. Lisboa: Caminho, 1982 [1980]). SARAMAGO, José, A Jangada de Pedra. Lisboa: Caminho, 1986.

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A LITERATURA, A POLÍTICA E O COMUNITARISMO SUPRANACIONAL Benjamin Abdala Junior 1 RESUMO: O presente artigo tem como objetivo um estudo sobre os diversos tipos de diálogos, sejam eles culturais, literários, políticos etc. que ocorrem na literatura explanando sobre um contexto de criação a partir de interações que permitem um “acesso” à tradição para uma nova formulação literária. Assim, durante a redação do texto nos valeremos de estudos acerca de diálogos interculturais/interliterários a fim de que possamos traçar uma trajetória de relações acerca da literatura, política e seus possíveis diálogos em formação. PALAVRAS-CHAVE: Comunitarismo.

Interações;

Literatura;

Política;

RESUMEN: El presente artículo tiene como objetivo un estudio de los diferentes tipos de diálogos, ya sean culturales, literarios, políticos, etc que se manifiestan en la literatura explicitando un contexto de creación a partir de interacciones que permiten un “aceso” a la tradicción en una nueva formulación literaria. De este modo, durante la redacción del texto nos haremos valer de estudios sobre los diálogos interculturales/interliterarios con el fin de que podamos esbozar una trayectoria de relaciones sobre la literatura, política y sus posibles diálogos de incipiente formación. PALABRAS CLAVE: Comunitarismo.

Interacciones;

Literatura;

Política;

1. Comparações/interações entre sujeitos e o lugar de onde acessamos o mundo A primeira consideração que nos parece fundamental na análise comparatista é a necessidade de o crítico ter consciência de 1

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seu lócus enunciativo, o lugar de onde ele acessa o mundo. Esse lugar, como todas as formações socioculturais, é de natureza híbrida e envolve análises tanto em termos multi/interdisciplinares, como também em termos político–culturais. É importante que tenhamos a consciência de que os campos do conhecimento, estabelecidos pela práxis social em nossa trajetória histórica, constituem escaninhos de ordem prática. Não obstante, em razão da dialética de nosso processo histórico, podem vir a espartilhar os horizontes de seu próprio campo, pois que o conhecimento está sempre em interações/fricções, motivado sobretudo pelas relações interdisciplinares com outras áreas do conhecimento. Vêm justamente dessas interações/fricções a possibilidade que se abre para novas e criativas conformações. As interações, se inovadoras, pressupõem reciprocidades, quer em relação a esses campos, como também a situações políticosociais. Importa, nesse sentido, que se leve em conta que o pólo de que partimos não pode subordinar ou, se quisermos do ponto de vista da história política, “colonizar” o outro; ou, em sentido contrário, deixar-se “colonizar” por ele. Se acessamos o mundo através da literatura, isso significa que o modo de conhecimento da realidade para quem se situa nesse campo pode se abrir à política, sociologia, história, linguística etc., para nos ater às esferas das Humanidades, mas também às áreas das chamadas ciências duras, biológicas e da saúde. Não podemos, entretanto, nos deixar colonizar por critérios dessas outras áreas, como muitas vezes ocorre. A atividade crítica deve partir e voltar para o próprio objeto literário que está sendo analisado, que é um modo de conhecimento da realidade afim das ciências humanas e sociais. Nossa posição, quando buscamos articulações com outras áreas, é colocarmo-nos igualmente como sujeitos do conhecimento. Num outro campo podemos encontrar formas de conhecimento que vêm de experiências históricas que não figuram nos escaninhos de nossa área. Cabe-nos, então, incorporar criticamente essas experiências, revitalizando a nossa práxis, através de reconfigurações em que sejamos igualmente sujeitos e não objetos, reproduzindo especularmente o conhecimento. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Trata-se, pois, de comparar, para com isso afastar práticas rotineiras em torno de mesmices que se estabelecem em nosso campo e, ao mesmo tempo, aberturas para articulações da vida cultural em sentido amplo, abarcando inclusive a cultura material. Observação semelhante vale para o comparatismo entre objetos literários. Uma inclinação, pois, entre sujeitos que se comparam, considerando o sentido das diferenças, sem deixar de considerar o lócus enunciativo de quem compara. Por extensão, o afirmado sobre as interações entre as áreas do conhecimento vale para o comparatismo literário dentro ou fora de fronteiras políticas estabelecidas. A tendência a ser evitada é a deixar-se “colonizar” por parte de quem se reveste de hegemonia em termos de poder simbólico, isto é, das assimetrias dos fluxos culturais. E também em sentido oposto, ao analisarmos narrativas de um povo ágrafo, precisamos considerar o fato de que esse povo possui uma experiência que não temos. Não podemos impor uma metodologia a eles estranha, apenas para procurar legitimar nosso ponto de vista, colocando-os subalternamente nos “devidos” compartimentos administrados por formulações que possam legitimar nossa hegemonia. Vem dessas postulações, em relação aos países hegemônicos, que administram a hegemonia dos fluxos culturais, a inclinação para não aceitar tais imposições, embora sabendo que eles possuem formas de saberes diferentes dos nossos e que podemos aprender com a experiência deles. É imprescindível, entretanto, considerarmos devidamente, a condição política de sujeitos do conhecimento, matizando essas experiências nas redes do lócus de onde eles falam, que tem sua historicidade e configurações socioculturais, que não deixam de configurar geneticamente o sentido das assimetrias dos fluxos culturais subjacentes. Nesse sentido, no campo dos estudos comparados das literaturas de língua portuguesa, para quem se situa no Brasil, impõe

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relevar circunstâncias político-culturais que apontamos em Literatura Comparada & relações comunitárias, hoje2: 1º) o fato de estarmos num momento de crise do modo de pensar a realidade que veio das esferas financeiras, que culminou no crack de 2008, em que foi naturalizada a “imagem utópica do mundo das finanças: desregulamentação e flexibilidade como modelo para a economia, um desenho “naturalmente” extensivo às práticas sociais e culturais. De acordo com a reiterada agenda que vem pautando os meios de comunicação, nesse processo de naturalização de hábitos, desregulamentação se afinaria com liberdade e, esta, nas esferas socioeconômicas, com a competitividade, colocada, assim, como critério de eficiência e aspiração maior não apenas das empresas, mas também do indivíduo e da própria democracia. O individualismo associado à condição da vida democrática, e, mais, como uma das inclinações fundamentais do humanismo”3; 2º) relacionado a essa situação, temos de levar em consideração que o “atual momento político solicita, no âmbito do Brasil e da comunidade mundial, reconfigurações de estratégias e repactualizações, o que já vêm ocorrendo nas relações internacionais. No plano da vida cultural, em nosso país, a compreensão do sentido dessa repactualização ainda é muito ligeira, desconsiderando as esferas culturais. Nossa intelectualidade, em geral, tem-se colocado a reboque dos acontecimentos, com discursos legitimadores das hegemonias, voltando-se mais para a administração da diferença nas balizas do sistema estabelecido. E diante das novas solicitações é de se entender que essas vozes da intelectualidade, muitas vezes melancólicas e contemplando ruínas, devem assumir atitudes mais ativas e prospectivas, para criar ou redesenhar, com matização mais forte, tendências de cooperação e solidariedade, que sempre embalaram ideais democráticos. Pelas margens do sistema das assimetrias hegemônicas, abre-se a possibilidade real de se estabelecer efetivos contrapontos ao 2

Cotia: Ateliê Editorial, 2012. 327 p.

3

Op. cit., p. 9.

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paroxismo da competitividade, que envolve e se coloca como paradigma da vida econômica, social e cultural, de acordo, com a lógica dessas assimetrias dos fluxos econômicos e culturais”4; 3º) essa inclinação para a “regulação da vida social já se manifestava, na situação anterior ao crack, justamente como reação aos efeitos perversos dos modelos articulatórios do capital financeiro, que flexibilizaram fronteiras nacionais para impor as assimetrias de sua ordem hegemônica. Foi pelas brechas desse sistema – já que toda hegemonia é porosa - que se firmou a necessidade de conexões amplas, abrindo a possibilidade de articulações comunitárias de sentido supranacional. Nesta nova situação, essas associações comunitárias tornam-se ainda mais urgentes, e envolvem a possibilidade de novas articulações, amplas e estruturadas em múltiplos níveis, desde a vida econômica às esferas da vida sociocultural”5. 4º) entre os comunitarismos supranacionais (que são múltiplos e envolvem as porosidades das fronteiras hegemônicas) é politicamente relevante que desenvolvamos laçadas de cooperação e solidariedade com os países de língua portuguesa e espanhola, enlaçando a iberoafroamérica. Mais particularmente, devemos considerar que “inclinações comunitárias linguístico-culturais sempre embalaram as tendências democráticas, nos países de língua portuguesa. A situação atual é evidentemente diferente do que acontecia no período colonial e também no estabelecimento e consolidação de nossos sistemas republicanos, como o próprio conceito de fronteiras. O comunitarismo afirma-se, na atualidade, envolvendo pluralidade nas articulações políticas, pautadas sempre pela supranacionalidade. Relevantes são as ações políticas na forma de blocos, com linhas de ação amplas, da vida econômica à cultural. Blocos politicamente mais eficazes para estabelecer contrapontos às assimetrias dos fluxos hegemônicos supranacionais do novo

4

Op. Cit., p. 10.

5

Op. cit., p. 10-11.

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imperialismo, e também em suas correspondências nacionais e/ou, mesmo, estratificações sociais”6; 5º) impõem-se, pois, mudanças de atitudes também em termos de comparatismo literário. Não podemos nos limitar à análise das redes estabelecidas entre as esferas do conhecimento, mas que problematizemos os fatores que lhes são subjacentes e que geraram sistemas de hierarquização em suas articulações econômicas e socioculturais. Como indicou Lucien Goldmann em seu “Balanço Teórico” (em cores talvez excessivamente fortes e que devem ser em parte mediatizadas), é necessária a busca dessas bases para que a crítica se afaste “de qualquer posição moralizante como, por exemplo, a da Escola de Frankfurt e, em especial a de Herbert Marcuse. Para esses pensadores, que criticam e condenam a sociedade contemporânea sem perguntar em que medida essa crítica é baseada numa força social interna a essa sociedade, as únicas perspectivas tornam-se o isolamento do pensador no mundo de seus pares, ou a ditadura provisória e temporária dos filósofos que deveriam transformar a sociedade”7. Diríamos, nessa perspectiva, como afirmamos em nossa tese de livre-docência na Universidade de São Paulo (1988), com o título Imagem (n/a/ç/ã/o) política, como a imaginação política, pela ação de escritores, pode reconstruir cacos da nação, advindos das assimetrias dos fluxos culturais (hegemonias evidentemente que não se limitam apenas ao colonialismo). A versão em livro foi publicada um ano depois, com o título Literatura, história e política8 Essa imaginação política é fundamental também para a atividade critica, pois remove os muros da especialização meramente acadêmica, que a circunscreve apenas à chamada “produtividade”, como numa esteira industrial, ou mesmo ao estabelecimento de laços de solidariedade restritos aos atores dessa área do conhecimento. Na verdade, o campo meramente acadêmico acaba assim por ser 6

Op. Cit., p. 11.

7

Löwy, M. e Naïr, S. Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. p. 153.

8

2. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2007. p. 278-279.

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administrado, levando-o a pairar como nuvens distantes da vida social, como pode ocorrer inclusive com a própria imaginação sociológica que por ali acaba por circular apenas entre pares. Para além dos escaninhos do ensimesmamento desse campo intelectual9, importa que sejam configuradas articulações contextuais mais amplas e problemáticas pela diversidade das esferas econômicas, sociais e culturais envolvidas, que levem esse campo de produção do conhecimento a interagir com as esferas públicas, de sentido político. 2. Cooperação/solidariedade e o princípio de juventude Neste momento de repactualização internacional, por oposição ao império do mercado, são relevadas formas de cooperação à escala planetária. São enfatizados, pela hegemonia que busca legitimidade e também por aqueles que se colocam contra essa hegemonia, ideais de respeito às diferenças de toda ordem e à democracia. Não obstante, as inclinações comunitárias, a contrapelo da hegemonia que pretende administrar a diferença, emergem para primeiro plano, como forma de mediação entre os múltiplos campos da vida social e do estado. Diante dos novos desafios de ênfase no comunitarismo, particularizando nosso campo de trabalho, parecemnos importantes que os estudos de literatura comparada, sejam vistos numa dimensão política e sociocultural. Sabemos que veio de nosso processo histórico as assimetrias de poder simbólico afeitas ao processo de colonização e, depois, da permanência dos hábitos de colonizados, comutando centros hegemônicos. Verificar essas bases da circulação cultural, com viés crítico e sem assimilacionismos, pode ser uma forma de nos situar criticamente 9

O conceito de campo intelectual e, mais especificamente, literário, foi cunhado por Pierre Bourdieu em 1992 (Edição brasileira: As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996). Trata-se de uma estrutura complexa que vai da economia à cultura em sentido amplo, envolvendo relações entre escritores e seus leitores, editores, críticos etc. Isto é, articulações múltiplas em que o autor e suas produções mostram-se imbricados com a vida social.

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diante dos fluxos inclinados à continuidade dessa colonização de nosso imaginário. Nas atitudes de atores culturais do passado, podem ser configuradas, assim, linhas que são imprescindíveis para a melhor compreensão de nossa atualidade sociocultural. Entretanto, a restrição às assimetrias desse comparatismo, mesmo se nos pautarmos pela criticidade, não é suficiente. Temos proposto outra forma de comparatismo. Um comparatismo prospectivo, pautado por relações comunitárias, um comparatismo da solidariedade, da cooperação. Comparar diante de problemáticas que nos envolvem a todos para nos conhecer naquilo que temos de próprio e em comum. Enlaces comparatistas em que as particularizações do passado devem ser reconfiguradas em termos prospectivos e tendentes a ações de reciprocidade. Não mais a histórica relação sujeito/objeto, mas agora de sujeito/sujeito, que se comparam em aproximações e fricções, tendo em conta desafios que se colocam em termos da atualidade sociocultural. Neste momento de crise e de repactualizações políticas, tornam-se importantes atitudes pautadas por otimismo crítico. Acreditar que o mundo possa ser diferente e melhor do que ele é. Para além da necessária inclinação da negatividade inerente ao pensamento crítico, a motivação e o embalo de um princípio de juventude, consubstanciado em projetos e ações político-culturais mais amplos. Se é próprio da melhor literatura se voltar para aquilo que falta, há, pois, que renovar atitudes no âmbito da crítica literária, em sentido prospectivo, para nos valer ainda de um paralelismo com os anos de 1930, descartando agora o enredo de ambiência melancólica, que veio das frustrações que marcaram a Modernidade. Uma nova atitude implica ter a esperança como princípio10. Ao contrário da ideologia do fim da história e da inculcação de que vivemos no melhor dos mundos, é imprescindível acreditar em nossa potencialidade subjetiva e objetivá-la em

10

Cf. Bloch, Ernst. O princípio esperança. 3 volumes. Rio de Janeiro: Eduerj/Contraponto, 2005/2006.

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projetos inclinados para o futuro. Como explicita o poeta Carlos de Oliveira, “Na poesia,/ natureza variável/ das palavras,/ nada se perde/ ou cria,/ tudo se transforma:/ cada poema, no seu perfil/ incerto/ e caligráfico,/ já sonha/ outra forma.11” Articulações, como as do poema de Carlos de Oliveira, disputam o poder simbólico no campo intelectual. Elas se atualizam através da porosidade do modo dominante de pensar a realidade, articulando-se contra a estaticidade das formas poéticas. O poeta ao se valer de articulações provenientes do campo científico, atualiza, na simbolização do texto literário, um modo dinâmico de pensar a realidade onde as formas, inclusive as políticas, devem ser vistas em movimento, em processo. E essa permeabilidade de articulações que migram de um campo para outro nos leva a considerar as imbricações mais gerais, que saem do campo econômico e atinge as esferas políticas, sociais e culturais. Uma articulação hegemônica só provoca impactos nas esferas culturais sob a mediação da sociedade e do estado. Se nos estados democráticos atuais há uma relativa autonomia entre essas formas de organização e de poder (não cabe aqui falar em neutralidade), suas conformações formais favorecem a permeabilidade dessas articulações dominantes. Por entre as formas do estado, são exercidas hegemonias que vêm do campo social e das formas mentis dominantes. E também, por serem hegemônicas, elas desenvolvem estratégias de legitimidade e podem acabar por serem naturalizadas, fazendo parte do senso comum. Ou, se nos recorrermos a Terry Eagleton, que, por sua vez cita Pierre Bourdieu, “Qualquer campo social é necessariamente estruturado por um conjunto de regras não enunciadas para o que pode ser dito ou percebido validamente dentro dele, e essas regras, portanto, operam como um modo do que Bourdieu denomina ‘violência

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“Lavoisier”. Obras de Carlos de Oliveira. Lisboa: Editorial Caminho, 1992. p. 223.

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simbólica’. Como a violência simbólica é legítima, geralmente não é reconhecida como violência. Trata-se, como observa Bourdieu em Outline of a Theory of Pratice (BOURDIEU, 1977: 192), ‘a forma suave, invisível da violência, que nunca é reconhecida, a violência de crédito, confiança, obrigação, lealdade pessoal, hospitalidade, presentes, gratidão, piedade’. No campo da educação, por exemplo, a violência simbólica opera não tanto porque o professor fala ‘ideologicamente’ com seus alunos, mas porque o professor é percebido como tendo a posse de uma quantia de ‘capital cultural’ que os estudantes precisam adquirir (EAGLETON, 1997, p. 142). Para quem se situa no Brasil, no âmbito da cultura, o momento é de relevar blocos de nossa comunidade linguísticocultural, de forma correlata às estratégias de ordem econômica que vêm sendo desenvolvidas pelo país. Mais particularmente, importa estreitar relações com nosso bloco linguístico-cultural e também, numa laçada mais ampla, com os países iberoamericanos. As redes, na atualidade, são mais amplas, planetárias, e envolvem desde as esferas dos recortes do conhecimento até às da geopolítica. Configuram um mundo de fronteiras múltiplas e as questões identitárias devem ser vistas no plural12. Outras articulações supranacionais se configuram, ao lado daquelas que vieram de nossa formação histórica, como ocorrem igualmente nas relações econômicas. O comunitarismo linguístico-cultural constitui um ponto de partida político e estabelece, para nós, um “nó”, em termos de redes comunicacionais, de onde abrimos “janelas” igualmente múltiplas. Pelo comunitarismo cultural, podemos mostrar rostos

12

Cf. Abdala Junior, Benjamin. Fronteiras múltiplas, identidades plurais. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002.

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diferenciados, em diálogo com outros. Num mundo em que o inglês tornou-se uma espécie de língua franca, é importante que também falemos em português como língua de cultura, numa associação mais particularizada com a língua espanhola. Importa à crítica literária, para tanto, uma mudança de atitudes, descartando a melancolia. É necessária uma perspectiva otimista: ter esperança, pautando-nos pelo princípio de juventude, o que implica a atualização de gestos prospectivos, tal como ocorreu no passado com a literatura social do período entre-guerras, posterior ao crack financeiro de 1929. A grande diferença de situação, quando se compara os dois cracks financeiros (de 1929 e de 2008), é que em 1929 a intelectualidade acreditava que as coisas poderiam ser diferentes e agora essa manifestação do desejo se mostra mitigada, envolvida pelos modelos articulatórios da utopia do mundo desenhado pelas finanças. De acordo com esses modelos, viveríamos no melhor dos mundos – um eterno presente, da produção e competição. Mais do que a força das idéias e da reflexão, continuam dominantes sistemas de modelizações do pensamento e de condutas afinados com um individualismo narcisista reverenciado pela mídia, que só destaca quem se coloca nas passarelas daquela que já foi chamada “sociedade do espetáculo”. 3. Marcas eurocêntricas e a sobrevivência das formas Estamos longe, nos estudos comparatistas, das tendências eurocêntricas positivistas dos estudos das “fontes”, mas os cânones continuam a vir dos países hegemônicos da Europa Ocidental e em suas reconfigurações norte-americanas. São as literaturas “maiores” e as outras, ao sul da Europa e próprias do mundo colonizado, as “menores”. Em literatura comparada, esse primeiro modelo de estudo correspondeu à hegemonia teórica francesa, substituída pela norte-americana em meados do século XX, onde os recortes nacionais, pelo viés formalista, foram vistos em suas interações supranacionais. Como indica Cláudio Guillén, afirma-se, então, o momento da supranacionalidade, para além das fronteiras GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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nacionais13. Desloca-se a hegemonia, em termos de literatura comparada, para a outra margem do Atlântico Norte. As hegemonias nunca são absolutas, mas porosas, é de se reiterar. Se nessas teorizações da década de 50 aparecem formalismos e desconsiderações político-sociais, surgirão, nas décadas finais do século, novas perspectivas para os estudos comparados, imbuídos de sentidos políticos, presentes, por exemplo, nas obras de Fredrick Jameson14 e de Edward W. Said, para nos referirmos aos EUA. São as contradições dentro do mesmo sistema, que envolvem a imagem de vida democrática, um princípio de legitimidade de quem se vale das assimetrias dos fluxos culturais e que não deixa de estar presente nos discursos oficiais da hegemonia. Na atualidade e em decorrência desse comparatismo Leste/Oeste em que foram importantes teóricos que se deslocaram para os centros hegemônicos, surge uma outra tendência comparatista, a da chamada “Literatura Mundo”. Do ponto de vista político, consideramos necessário, como estamos argumentando, a consideração de laçadas comunitárias, por sobre a porosidade das hegemonias estabelecidas. A articulação comunitária configura formas de poder simbólico contra uma pastichização que interessa apenas para as configurações hegemônicas. Edward W. Said desenvolveu a tese, na perspectiva de sua crítica política, de que a cultura integra a ação colonizadora, um espaço de tensões/conflitos. O próprio conceito de Oriente foi cunhado para justificar o domínio imperial sobre os “outros”, sempre inferiores15. Um desenho análogo ao dos povos africanos, para justificar sua escravidão pelos “civilizados” colonialistas. Para Said, a análise dessas tensões entre o império e as colônias envolve 13

Introducción a La literatura comparada (Ayer y hoy). Barcelona: Tusquets Editores, 2005.

14

Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século XX. Trad.: Simon, I.; Xavier, I. e Oliboni, F. São Paulo: Editora HUCITEC, 1985.

15

Cf. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad.: Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

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tratar cultura e imperialismo numa relação de interdependência. E é com esse horizonte, que é importante estudar a forma mentis desse processo. Em termos de intersubjetividade, o desenho que envolve relações de dominação, no plano interno dos blocos hegemônicos e das regiões subalternas, corresponde aos gestos coloniais, que continuam a marcar a vida subjetiva e cultural desses povos, seus universos simbólicos. Foi assim que desde os tempos coloniais o eurocentrismo procurou estabelecer a inteligibilidade e, principalmente, a legitimidade necessárias às práticas de dominação, justamente porque inferiorizavam, tanto em discursos científicos quanto leigos, os espaços, povos e culturas das colônias e apontavam a sua necessidade de evolução em amplos sentidos. Hoje, essa inclinação persiste nos olhares, práticas e representações que permitem a continuidade da dominação e manutenção de determinadas hegemonias e hierarquizações, mesmo que de forma sutil, ininteligível, naturalizada ou compartilhada por todos. Um amplo sistema de modelização de pensamento e de conduta, em dimensão planetária. Não podemos nos esquecer de que na Europa e nos EUA há numerosas comunidades marginalizadas, como os irlandeses, ciganos, negros, latino-americanos, judeus, muçulmanos, os habitantes das periferias, gays, lésbicas etc. Foi nesse contexto situacional híbrido e de fricções que apareceram as obras de Fredrick Jameson, Edward W. Said, Homi K. Bhabha16 e Stuart Hall17, entre outros. O eurocentrismo corresponde hoje à ocidentalização, que não tem precisão geográfica, mas tem suas bases políticas e econômicas. Envolve toda uma série de repertórios secularmente acumulados, de onde vêm as reflexões e práticas espalhadas pelo mundo, ao ritmo das assimetrias dos fluxos culturais. Evidentemente, convém enfatizar, aprendemos com a experiência 16

O local da cultura. Trad.: M. Ávila, E. L. L. Reis, G. R. Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

17

Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org: Liv Sovik. Belo Horizonte-Brasília: Editora UFMG/UNESCO, 2003.

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do outro. Afinal, somos todos misturados. As identidades são sempre plurais. Não obstante, uma certa hibridização que conflui para uma espécie de pastichização indefinidora de fronteiras, que, na verdade, são configuradas e múltiplas, pode ser estratégia similar à da mestiçagem das elites brasileiras: mesclagens tendentes a formulações eurocêntricas. Preferimos considerar que as fronteiras são múltiplas e não líquidas, indefinidas. Se existe a tendência à fragmentação posmoderna, afim do modo de administrar e pensar o mundo pelo viés das finanças, podemos situar as fronteiras de acordo com processos de articulações que se alternam, sobrepõem e se imbricam, mas que não se liquefazem, de acordo com a teorização de Zygmunt Bauman18 Somos igualmente múltiplos do ponto de vista identitário e, na verdade, uma visão crítica das implicações políticas desses caracteres (nível individual, nacional, social), verificará que eles se atritam e não deixam de estabelecer hegemonias ou dominâncias, que podem ser reversíveis. Assim são os hábitos19, que em suas linhas articulatórias impregnam os atores sociais, mesmo em situações políticas que poderiam contraditá-los. Observe-se, nesse sentido, o romance Mayombe, de Pepetela, escrito em plena guerrilha das lutas de libertação nacional de Angola. O sentido crítico do narrador destaca linhas de articulação de hábitos, que impregnam suas personagens, 18

Tempos líquidos. Trad.: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.

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Associamos o conceito de habitus, de Pierre Bourdieu, ao de modelo de articulação que vem da práxis (o homem com ser ontocriativo). Para Bourdieu o “habitus, como indica a palavra, é um conhecimento adquirido e também um haver, um capital (de um sujeito transcendental da tradição idealista) o habitus, a hexis, indica a disposição incorporada, quase postural -, mas sim o de um agente em acção: tratava-se de chamar a atenção para o `primado da razão prática´ de que falava Fichte, retornando ao idealismo, como Marx sugeria nas Teses sobre Feuerbach, o `lado activo´ do conhecimento prático que a tradição materialista, sobretudo com a teoria do reflexo, tinha abandonado (O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. Lisboa: Difel / Rio de Janeiro: Bertrand, 1989. p. 61.

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deixando à mostra as reais motivações dos guerrilheiros, mitificados pelos discursos oficiais. Citemos uma personagem feminina, que de um ângulo periférico analisa a situação que experimenta: “Isso é que me enraivece. Queremos transformar o mundo e somos incapazes de nos transformar a nós próprios. Queremos ser livres, fazer a nossa vontade, e a todo momento arranjamos desculpas para reprimir nossos desejos. E o pior é que nos convencemos com as nossas próprias desculpas, deixamos de ser lúcidos. Só covardia. É medo de nos enfrentarmos, é um medo que nos ficou dos tempos em que temíamos a Deus, ou o pai ou o professor, é sempre o mesmo agente repressivo. Somos uns alienados. O escravo era totalmente alienado. Nós somos piores, porque nos alienamos a nós próprios. Há correntes que já se quebraram mas continuamos a transportá-las conosco, por medo de as deitarmos fora e depois nos sentirmos nus.”20 Vieram de nossa formação hábitos alienados e as formas culturais, tal como as formas políticas, sociais e econômicas, resistem. Há nelas, de um lado, uma experiência acumulada; e, de outro, implicações ideológicas que tendem a justificar hegemonias. Constituem desenhos ou linhas que resistem e determinam a formação de caracteres, com papéis sociais marcados. O grande problema, do ponto de vista político, é que tais impregnações fazem parte do cotidiano e configuram as expectativas de cada ator, dirigente ou dirigido. Nos EUA, houve um transplante mais efetivo da população européia e o estabelecimento de um estado dos “brancos”, originalmente puritanos, que se recusaram à mistura. Consequência: extermínio dos ameríndios e o apartheid dos ex-escravos. Só a partir da segunda metade do século XX, essas populações das margens começaram a fazer valer seus direitos de cidadania. E ganharam peso político-social e cultural, mais recentemente, pela presença ativa da grande população de migrantes, que vieram de outras margens. A discussão sobre a mestiçagem, escamoteada pelas elites norte-americanas, ganhou então as universidades e já é

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São Paulo: Ática, 1982. p. 208.

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matéria de sua indústria cultural, tendo em vista a busca de legitimidade para a preservação da hegemonia desse país. 4. Experiência histórica e fronteiras culturais O processo colonial fixou hábitos, repertórios literários e culturais, que vieram dessa experiência histórica e dos contatos culturais entre povos que até então não se conheciam. Se há hoje toda uma inclinação crítica para mudanças de paradigmas, sejam eles filosóficos, estéticos, em relação às áreas do conhecimento, entendemos que essa tendência não pode se naturalizar sobre um rótulo genérico de um “pós”, uma redução ao obsoleto de toda uma experiência que se consubstancia no presente. Pior ainda pode ocorrer em relação às instâncias políticas, onde o “pós”, afeito às condições da mídia e dos produtos moda, procura tudo reduzir a uma tabula rasa, sem passado. A experiência histórica e suas realizações passam a ser situadas como um repertório passivo, para a estilização sem história, formas restritas a uma espécie de repertório passivo, desconsiderando-se o processo que as modelizou. Temos de levar na devida consideração o fato de que a teorização pós-colonial tem discutido convenientemente questões relativas à mundialização econômica, com implicações socioculturais, aos deslocamentos dos povos e ao processo de americanização do mundo, sob o impacto da mídia e do consumo mercadológico. Em relação às questões político-sociais, entretanto, ela pode tender a inclinações genéricas. São igualmente póscoloniais quaisquer sociedades marcadas pelo colonialismo, sem maior consideração sobre sua historicidade, nivelando países que se emanciparam no período pós-Segunda Guerra Mundial, aos que se emanciparam desde o século XIX. Falar de pós-colonialismo, sem consciência dessas especificidades, implica nivelar uma cultura como a do Canadá, ou da África do Sul, por exemplo, à complexa situação cultural da Índia – ambas ex-colônias britânicas. Só uma análise das redes políticas, econômicas e socioculturais pode revelar de que pós-colonialianidade se trata. Essa situação se torna ainda mais complexa, se vinculada – como acontece - à ênfase ao GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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nomadismo diaspórico dos estudos pós-coloniais. Coloca-se novamente a necessidade de se considerar nesse processo de onde fala o crítico e os laços socioculturais que acabam por enredar suas formulações discursivas. São muitos os pós-colonialismos. Há, por exemplo, o póscolonialismo do ex-colonizador, que encontramos num romance como Os cus de judas, de Lobo Antunes21; e, para contrastar, o do ex-colonizado, como em Mayombe, de Pepetela22. O primeiro vai desconstruir mitos e fazer de sua memória individual um depoimento que se quer história. Pepetela, numa direção oposta, embala-se por mitos, sem deixar de criticar indivíduos que se querem mitos. Nessa crítica, evidencia posturas etnocêntricas do passado que se reproduzem no presente. Em Lobo Antunes, enfatiza-se a desconstrução dos mitos e a distopia; em Pepetela, na formação de um novo estado nacional, a construção e a utopia. Há ainda o pós-colonialismo dos colonizadores que permaneceram na metrópole e dos ex-colonizados que migraram. A clara delimitação do chamado lócus enunciativo e de sua historicidade é, pois, imprescindível para uma crítica que pretenda afastar-se da generalidade. Refletir sobre especificidades nacionais implica situá-las num processo de agenciamentos comunitários que tem um solo histórico e relações de poder simbólico. Temos destacado o sentido político de se discutir literatura no âmbito do comunitarismo iberoafroamericano, mas – voltamos a insistir - as articulações comunitárias podem ser de muitas ordens e politicamente nos parece importante relevar que o mundo atual é de fronteiras múltiplas e identidades plurais, seja numa perspectiva individual ou nacional. São interações que levam à consideração de um complexo cultural híbrido, interativo, onde a cultura brasileira, por exemplo, é multifacética e se alimenta produtivamente de pedaços de muitas

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Os cus de judas. Lisboa: Editorial Vega, 1979.

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São Paulo: Ed. Ática, 1982.

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culturas, sem deixar de sofrer os efeitos das assimetrias dos fluxos culturais. Tais considerações, para além das especificidades nacionais, torna necessária a associação com o repertório enfaticamente híbrido de nossa formação cultural. Na apropriação desse repertório, a consciência dessa historicidade e relações de poder que ensejou, pode contribuir para o afastamento de produções miméticas, afins da convenção ou do estereótipo. A criticidade é necessária para o desenvolvimento de inclinações abertas à criatividade e que às vezes acabam para o questionamento de espartilhos ideológicos e identidades míticas. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o poema “Camões: história, coração, linguagem”, de Carlos Drummond de Andrade, escrito numa situação histórica pós-Revolução dos Cravos. Ao se apropriar de imagens e procedimentos poéticos camonianas, o poeta brasileiro estabeleceu um diálogo com a historicidade das leituras do poeta português e a da nova situação histórica, democrática, de Portugal. Diz Drummond: Dos heróis que cantaste, que restou senão a melodia do teu canto? As armas em ferrugem se desfazem, os barões nos jazigos dizem nada. Nessa desideologização das apreensões conservadoras, em especial da época salazarista, sem deixar de seguir imagens e ritmos camonianos, o poeta brasileiro termina por afirmar: Luís, homem estranho, que pelo verbo és, mais que amador, o próprio amor latejante, esquecido, revoltado, submisso, renascente, reflorindo em cem mil corações multiplicado. És a linguagem. Dor particular deixa de existir para fazer-se dor de todos os homens, musical, na voz de órfico acento, peregrina . (Abdala Jr., 1993, p. 62). GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Em Literatura, história e política, analisamos a circulação cultural entre o Brasil, Portugal e África, tendo como motivo condutor a imagem de Pasárgada, de Manuel Bandeira. Procuramos então discutir essa figuração utópica por recorrência ao poeta caboverdiano Osvaldo Alcântara (pseudônimo poético de Baltasar Lopes) . Osvaldo Alcântara, com os “pés” em Cabo Verde, sonha à Bandeira com uma pasárgada que existiria em outra margem do oceano. Se o poeta brasileiro imagina um reino com um rei bonachão que lhe permitiria todas as “libertinagens” (título da coletânea do poeta brasileiro), Osvaldo Alcântara tem saudade de uma pasárgada futura que encontraria no “caminho de Viseu” (valese da referência à canção popular portuguesa “...indo eu, indo eu,/a caminho de Viseu”23) . Osvaldo Alcântara, repetimos, estava com os pés em Cabo Verde, mas a cabeça inclina-se para fora, para as possibilidades de se encontrar plenitude na imigração. Sua perspectiva é aquela que historicamente sempre se colocou para seu povo de migrantes e ele não deixa de ter consciência crítica de que “esta saudade fina de Pasárgada/é um veneno gostoso dentro do meu coração”24, em outro poema. A identificação no repertório comum não implica mimetismo, tanto em Osvaldo Alcântara, como em Drummond. A distância crítica advém de fricções de quem estabelece suas bases poéticas na persistência de uma mesma linguagem comunitária. Ampliando essas observações, podemos afirmar que são importantes do ponto de vista crítico estudar esses diálogos, embutidos – explicitamente ou não - nos repertórios literários, que circulam entre os países de língua portuguesa. Por outro lado, não se pode deixar de relevar do ponto de vista críticos as relações de poder que envolvem essa circulação que pode ser uma forma de se afastar da celebração, seja da mimese ou de um pretenso sincretismo ou do hibridismo, que desconsidera as relações de poder e encaminha atitudes assimilacionistas tendentes à cultura do 23

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ABDALA Junior, Benjamin. 2. ed. Literatura, história e política. Cotia: Ateliê Ed., 2007. p. 81. Idem. Ibidem. p. 81.

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colonizador. Não se pode, entretanto, deixar de considerar devidamente o fato de que a plasticidade da língua literária portuguesa vem desde sua formação nos tempos medievais e só pode ser estudada adequadamente na dinâmica das tendências dos campos intelectuais supranacionais, nos processos de mundialização das culturas européias. 5. A administração da diferença À flexibilidade da circulação dos produtos culturais, ao ritmo nômade do capital financeiro, que se articula em rede, sempre reduzindo distâncias por velocidade, sempre desdobrável, parecenos importante contrapor estratégicas contra-hegemônicas, associadas aos comunitarismos supranacionais. Esse processo vertiginoso de estandardização dos produtos culturais, por parte da economia de mercado, não se restringe à estandardização de massa. Convém não nos esquecermos de que a hegemonia possui bases amplas, que não deixam de ser mercadológicas, e procura incorporar em suas redes mesmo a contestação de seu próprio sistema. Trata-se da perspectiva da administração da diferença, que temos insistido em apontar. A diferença como administração política e abertura de nicho de mercado. Noutro sentido, esta incorporação pode contribuir para a dinamização do sistema: mudar para que as coisas continuem estruturalmente as mesmas. Ou, como aparece no livro/filme O leopardo, de Giuseppe Lampedusa/Luchino Visconti, “É preciso que algumas coisas mudem, para que tudo continue na mesma”. A emergência parcial do novo, sob controle político-social das estruturas préestabelecidas e que faz valer sua hegemonia para controlá-lo, ao mesmo tempo em que se beneficia de sues influxos para atualizar suas redes numa nova configuração histórica. Neste momento que se afigura em processo pós-neoliberal, a afirmação de uma tendência mais tolerante, que procura valer-se da estratégia de administrar da diferença, afim, por exemplo, do multiculturalismo de matização liberal, pode constituir uma maneira mais inteligente e de longo prazo de se preservar e mesmo promover a hegemonia. Estratégia para um capitalismo GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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administrado, um retorno, em nossas bases, dos princípios norteadores do governo Roosevelt. Seria uma espécie de um novo New Deal, de onde – já que as coisas são misturadas - foi possível surgir, não obstante, a obra de um Caldwell, Hemingway, Dos Passos, Gold, Steinbeck, Faulkner etc. E também a organização das Nações Unidas e da carta que estabelecia o princípio da autodeterminação dos povos. Tal eurocentrismo de matização norte-americana pode vir a ser agora atenuado, na nova configuração que se esboça, como uma das tendências possíveis da política imperial. Fala-se insistentemente na necessidade de “tolerância”: tolerância liberal, uma nova modalidade dos pressupostos de caridade, uma via de mão única, sem reciprocidade. A aproximação dos excluídos, que foi uma das bases fortes da eleição do presidente Barack Obama e que fez a diferença, não é evidentemente relevada. Para além dessa modulação da tolerância, é imprescindível ao pensamento crítico descortinar também as relações de poder envolvidas. Sem a discussão dessas relações, o discurso multicultural que, ao que parece, pode se afirmar ainda mais, apesar do ultraconservadorismo, não deixará de ser um veículo conceitual de administração da diferença, tendo em vista a manutenção da hegemonia norteamericana, vale dizer, de suas elites. Falta a esse multiculturalismo de tintas liberais a consideração de vozes simultâneas em tensão, uma espécie de um áspero concerto polifônico construído pelas diferenças. Logo, uma perspectiva crítica capaz de contraditar formulações discursivas hegemônicas, tendentes ao nivelamento de uma espécie de “branqueamento” eurocêntrico, uma forma mentis análoga à que se produziu nas elites brasileiras, desde o século XIX. Reiteramos, pois, no contraponto ao que naturalizou até o momento do crack econômico de 2008, de que o acesso à rede supranacional se faz num lócus enunciativo determinado e ele é fundamental para a crítica. Se na vida universitária, por exemplo, um docente situa-se numa universidade norte-americana, ele não pode desconsiderar o fato de que seu discurso pode estar associado a estratégias hegemônicas desse país. Estas são considerações relativas a uma hegemonia que procura legitimar-se nas esferas intelectuais e públicas, em que a sociedade civil se articula com as GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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esferas de estado, formando um consenso supranacional. Junto com tais estratégias que procuram legitimar assimetrias, em que a ação da mídia é igualmente importante, há evidentemente formas de dominação despótica que operam desde o campo econômico ao militar, mais ou menos atuantes, conforme as oscilações das relações políticas, estabelecidas sobretudo por motivações econômicas. Em termos de consenso hegemônico, na atualidade, ele se efetua não apenas no sentido da aceitação, mas sobretudo de promover a capitalização da diferença. Uma diferença que se consubstancia em produtos, desde o da imagem democrática do país hegemônico até a mercadorias mais explicitamente comercializáveis. Para ilustrar a abrangência do processo de mercantilização que atinge inclusive a identidade individual, podemos nos valer de um poema de Carlos Drummond de Andrade, “Eu Etiqueta” (Corpo, 1984). As mercadorias aí já não apenas espreitam, mas introjetam-se em todas as pessoas, inclusive e de forma irônica, no próprio poeta. As pessoas perdem suas identidades, transformadas numa espécie de vitrine de mercadorias. E as marcas consumidas (etiquetas) valem menos pelo valor de uso e, mais, pelo status que conferem. Um consumo acrítico que, no processo de simbolização literária, não deixa de se associar a hábitos que vêm desde os tempos coloniais, como o autoritarismo denunciado em A rosa do povo (1945), do mesmo poeta. Etiquetas, quase sempre produtos, marcas ou modelos importados situados como superiores. E talvez pudéssemos acrescentar, já que a simbolização poética o permite: esse mesmo gesto é correlato a hábitos que perduram no campo científico ou na crítica literária – a importação sem sentido crítico. Uma citação nos estudos literários não poderia ter a função de uma etiqueta? Uma etiqueta conforme foi similarmente observada pelo olhar irônico, pretensamente menor do poeta, que se vê como “homem-anúncio itinerante, / Escravo da matéria anunciada. /

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Estou, estou na moda. / É doce andar na moda, ainda que a moda / Seja negar minha identidade (...)”25. Em relação a essas práticas que oscilam entre a hegemonia que procura se legitimar e o despostismo de quem tem o poder, não se pode esquecer a posição dos Estados Unidos como único país a defender a inserção da cultura como “produto”, na Organização Mundial do Comércio. Para além do produto diretamente comercializável – particularizando nosso campo de atuação profissional -, a hegemonia implica um “reconhecimento” internacional da instituição onde esse crítico trabalha, o que certamente atrairá alunos e docentes, inclusive dos países nãohegemônicos. A partir dessa situação, serão criadas condições para convênios interinstitucionais com esses países, tendentes à preservação da hegemonia estabelecida. Só uma efetiva reciprocidade entre os atores da comunidade universitária envolvida poderá atenuar essas assimetrias. Isto é, a consciência da dimensão política que envolve a pesquisa científica. A busca da “eficácia”, aparentemente neutra, mas no fundo mimética e sem criticidade, pode mascarar processos que respaldam a continuidade das assimetrias dos fluxos culturais e também da legitimidade do poder simbólico hegemônico a elas associado. 6. Imagens literárias, para finalizar O romance A jangada, de Júlio Verne, vale-se, além de fontes documentais, de um imaginário literário que aponta para mundos paralelos. São mundos que estão em nossa cabeça, como a ilha utópica. A ilha da Utopia, de Morus, como a “ilha desconhecida”, de José Saramago. Há toda uma tradição literária que se alimenta dessas formulações. Dialogar com ela é uma forma de exteriorizar nossa vontade, nossos desejos. E, de uma certa forma, impulsionar nossos gestos. Em Júlio Verne, o fluxo do rio Amazonas (do interior do continente para o Atlântico) leva as riquezas para fora. Para dentro,

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ANDRADE, Carlos Drummond. Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984.

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vem a modernização européia que cria as bases para a exploração da natureza. A imensa jangada de madeira que segue o “fluxo natural” do rio Amazonas, se desfaz quando chega a Belém (Pará), para que sua estrutura de madeira (troncos de árvores) seja vendida para a Europa, enquanto o proprietário da imensa jangada de madeira, onde coube toda uma propriedade rural, com a família e empregados voltam para o interior da Amazônia num barco a vapor. Não é o que ocorre com o romance A jangada de pedra, de José Saramago, publicado um século depois. Este romance, escrito quando se discutia a integração de Portugal na então Comunidade Econômica Européia, hoje União Européia, é exemplar para a discussão do sentido comunitário entre as nações ibero-afroamericanas., como o fizemos no ensaio “Necessidade e solidariedade nos estudos de literatura comparada”.26 Organizado em torno de estratégias geopolíticas e associado à situação histórica pós-Abril, esse romance permite repensar a cultura portuguesa em face da dupla solicitação: a integração européia e a singularidade peninsular. Esta singularidade liga-se às perspectivas que marcaram a história de Portugal: a atlanticidade, a ibericidade e a mediterraneidade. Se a jangada de Júlio Verne desfaz-se em contato com o Atlântico, a jangada de Saramago, que reúne o conjunto das regiões e comunidades ibéricas, tem nesse oceano uma de suas razões de ser históricas. É a atração atlântica que leva a Ibéria a se desprender da Europa. Sem o peso do império, podem agora os ibéricos se aproximar para o diálogo com suas ex-colônias. Do ponto de vista literário, embora Saramago faça referências, às vezes irônicas, à literatura de seu país e também dos países hegemônicos, ele tem em mira o realismo maravilhoso latinoamericano. O direcionamento vetorial da factura da escrita e as formulações do imaginário subjacente não vêm assim da Europa, mas da América Latina. Em epígrafe ao romance de José Saramago, o cubano Alejo Carpentier opõe ao ceticismo que a enunciação credita à Europa a 26

Revista brasileira de literatura comparada. “Necessidade e solidariedade nos estudos de literatura comparada”. Rio de Janeiro: ABRALIC, 1996. p. 87-95.

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perspectiva de que "Todo futuro es fabuloso". Tão fabuloso na efabulação desse romance que esse futuro, na vida como na arte, torna-se avesso ao pragmatismo cético da Europa. Um "futuro fabuloso" próprio de um momento de fratura, onde "principia a vida". "Todo futuro es fabuloso", diz Carpentier. Tão maravilhoso, diríamos, que permite uma efabulação - fabula ficcional de ação política - que, num direcionamento temporal inverso, permite a atualização, na jangada de Saramago, de matéria sonhada para amanhã ou depois. Esse deslocamento temporal operado pelo jogo artístico do sonho do escritor não nos traz imagens literárias à deriva, mas imagens-ação que aportam no presente da escrita literária, impulsionando-a por "mares nunca dantes navegados" (Camões). São imagens-ação políticas que motivam uma nova épica, agora social, num movimento recursivo que é, ao mesmo tempo, partida e encontro. Desprende-se a península de uma situação convencional de apêndice europeu para, no faz-de-conta ficcional, encontrar-se consigo mesma. Quando se encontra em sua identidade, a jangada ibérica é capaz de movimentos surpreendentes, já que não se (con)forma ao cais europeu, para ela "cético" e "rotineiro", onde aportou há muito tempo, com dificuldades, dando origem à calosidade dos Pirineus. "Mudam-se os tempos" e a "vontade" (Camões) aponta para outras perspectivas, para driblar, pelas laterais do jogo ficcional, um outro jogo, geopolítico, que acabou por enredar a Ibéria. Numa espécie de útero aquático, o conjunto comunitário ibérico estaciona numa região geopolítica que não é de calmarias, só para contrariar nações hegemônicas: o presidente norteamericano dá um murro na mesa. Preserva-se assim a especificidade ibérica, como se ela fosse uma ilha. Envolvida no útero aquático, a Ibéria, como uma criança, espera onde aportar, sem calosidades como as das regiões pirenaicas, ficando num ponto de diálogo entre a América Latina e a África. Num mundo de fronteiras múltiplas, relevar o comunitarismo cultural é uma forma compartilhada de fazer face ao processo de estandardização assimétrica que move as estratégias globalizadoras. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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O ROMANCE HISTÓRICO DA COLONIZAÇÃO PORTUGUESA DO BRASIL: O RETRATO DO REI, DE ANA MIRANDA Edvaldo A. Bergamo1 RESUMO: O retrato do rei (1991), de Ana Miranda, figura a Guerra dos Emboabas, no século XVIII, pelo controle do ouro encontrado nas Minas Gerais. Em destaque, o misterioso desaparecimento do retrato do rei de Portugal, D. João V, correlacionado diretamente com a trajetória existencial de Mariana de Lancastre, protagonista do enredo. Discutindo literatura e história, analisaremos a colonização lusitana por uma perspectiva que privilegia o olhar feminino acerca do mencionado conflito. PALAVRAS-CHAVE: Romance histórico; Colonização lusitana; Ana Miranda; Feminino. Considerações iniciais Nosso objetivo, neste trabalho, resultante de um projeto de pesquisa em andamento sobre a ficção histórica contemporânea em Língua Portuguesa com o título “Literatura e História: diálogos transatlânticos na ficção de Língua Portuguesa”, é analisar as implicações estéticas e ideológicas da relação literatura e história no romance brasileiro O retrato do rei (1991), de Ana Miranda, por meio, principalmente, do exame do itinerário da personagem-protagonista feminina que dá a ver, na composição narrativa, o processo de colonização do nosso território, sob domínio luso na época do ciclo do ouro, e, assim, a obra em tela, no intuito de reimaginar o passado, evidencia um ângulo de visão inquiridor, reflexivo e problematizante de acontecimentos marcantes da empresa colonial lusitana em terras tropicais, num século caracterizado pela disputa desenfreada pelas riquezas minerais em abundância no solo brasileiro.

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Curso de Letras da Universidade de Brasília (UnB)

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1. Romance histórico: aportes teóricos Para Fredric Jameson, O romance histórico [...] não será a descrição dos costumes e valores de um povo em um determinado momento de sua história (como pensava Manzoni); não será a representação de eventos históricos grandiosos (como quer a visão popular); tampouco será a história das vidas de indivíduos comuns em situações de crises extremas (a visão de Sartre sobre a literatura por via de regra); e seguramente não será história privada das grandes figuras históricas (que Tolstói discutia com veemência e contra o que argumentava com muita propriedade). Ele pode incluir todos esses aspectos, mas tão-somente sob a condição de que eles tenham sido organizados em uma oposição entre um plano público ou histórico (definido seja por costumes, eventos, crises ou líderes) e um plano existencial ou individual representado por aquela categoria narrativa que chamamos personagens (2007, p. 192). Os parâmetros do romance histórico foram delineados durante o período romântico, no início do século XIX (Lukács, 2011). O escocês Walter Scott foi o responsável pela criação e divulgação das convenções formais modelares desse subgênero narrativo, apesar delas serem alteradas, já na mesma época, pelo francês Alfred de Vigny. Entre os princípios básicos dessa modalidade romanesca, destacam-se a reconstituição rigorosa do ambiente focalizado, o distanciamento temporal bem demarcado, o convívio de personagens fictícios e históricos e, principalmente, a movimentação de um herói mediano, protagonista de uma intriga fictícia, dentro de um enquadramento histórico que caracteriza a atmosfera ideológica de um determinado tempo. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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A ruptura do modelo scottiano estabeleceu-se em definitivo com a crise mimética instaurada pelo romance moderno, colocando-se em xeque alguns pressupostos básicos do romance histórico tradicional, principalmente a possibilidade de reconstrução fidedigna do passado, mediante uma recomposição totalizadora de fatos fundamentais de outrora. O descrédito do relato linear e da noção de tempo cronológico inviabilizou o enredo romântico e/ou realista típico e a reconstituição naturalista de certos ambientes, abalando-se a confiança do romancista num acesso irrestrito ao passado. O romance histórico contemporâneo (Esteves, 2010), tendência literária iniciada na segunda metade do século XX, é tributário dessa renovação que deu amplo fôlego a esse subgênero, caracterizada pela reformulação dos parâmetros estéticos e ideológicos do romance histórico clássico, cuja influência provinha fortemente das diretrizes conceituais da Nova História. Ao retratar o passado, essa tipologia romanesca procura explorar os meandros negligenciados ou intencionalmente obscurecidos pela chamada história oficial, de orientação positivista, ou, ainda, intenta proceder à humanização e reavaliação de importantes heróis que o mármore da história parecia haver esculpido em definitivo. Esse subgênero possui, igualmente, como característica fundamental, a releitura crítica da História, como acontecimento social e ação individual. Sem desprezar prontamente as fontes documentais, o romancista prefere retratar os fatos por uma perspectiva preferencialmente paródica ou carnavalizada, procurando reavaliar/reaver os eventos por um ângulo desestabilizador de padrões estereotipados. Assim, no afã de revisitar o passado, o escritor procura demonstrar que não tem compromisso com nenhuma ideologia vigente, optando por uma visão dialógica dos acontecimentos. O interesse crescente pela temática histórica demonstra que o "breve século XX" não superou terminantemente a crença no historicismo, desencadeada pelo Romantismo. Porém, sob novos pressupostos estético-ideológicos, o romance histórico contemporâneo revisita a história, preferindo uma visão porventura mais problematizadora do passado e procurando compreender tanto a ficção quanto a história como formação discursiva manipulável e questionável, numa evidente tentativa de subverter modelos conceituais como “verdade”, “realidade”, “certeza”, “fidelidade”, etc. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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O romance histórico contemporâneo pode ser examinado, ainda, levando-se em conta certos parâmetros teóricos dos chamados estudos pós-coloniais (Leite, 2012). Os debates recentes sobre identidade cultural de países colonizados e colonizadores fomentam o debate sobre nação, história e sujeito. O termo pós-colonial, para uma subseqüente acepção cronológica, pode significar um modo de desmistificar, de superar os discursos hegemônicos representados pelo pensamento eurocêntrico, discutir o período de pós-independência das colônias americanas e africanas, e mesmo as conseqüências da descolonização em ex-nações imperialistas, além de problematizar o legado do processo de colonização européia. Cada processo histórico resultou em identidades culturais específicas, com situações de dominação peculiares, o que, todavia, não impossibilita a comparação, a aproximação de experiências sociais análogas vislumbradas no romance histórico contemporâneo. O modelo de colonização lusitano, particularmente, impôs, de maneira similar, estratégias violentas de conquista e dominação, mesmo assim, a identidade o sujeito póscolonial continua historicamente assinalada por diversos aspectos da identidade individual e coletiva múltipla, que dizem respeito à classe social, à etnia e ao gênero em território geográfico, social e cultural marcado pelo legado da experiência colonial inapagável. A propósito, Renato Cordeiro Gomes (1996, p. 124), no artigo “O histórico e o urbano – sob o signo do estorvo duas vertentes da narrativa brasileira contemporânea” afirma: (...) o viés que essas narrativas elegem, são as ligações, os nós, entre a literatura e a mímesis da História, tentando ler os claros que a História oficial deixou. Tecem uma história outra de que não exclui os vencidos e o cotidiano até então desprezado. De maneira muitas vezes alegórica, lêem as ruínas do passado na mira do olhar do presente. Lêem no passado as ruínas do agora. História e memória imbricam-se. Os relatos extraem um momento do passado, para perturbar a sua tranqüilidade, para redimi-lo, desrecalcando-o através da lembrança. E ainda mais: frente a GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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um presente esfacelado nas cidades ilegíveis, onde o homem fragmentado pelas vivências de choque fecha-se no individualismo exacerbado, perdida a possibilidade da experiência válida para a comunidade, voltamse esses relatos para o passado em busca da possibilidade da narrativa. Nostalgia da história, da estória, de ter o que contar parece ser o signo com o qual pretendem preencher o vazio do presente. Sendo assim, vejamos sucintamente como o romance selecionado, O retrato do rei, de Ana Miranda, aborda as contradições próprias da condição colonial, sob uma perspectiva pós-colonial, dando ênfase ao olhar feminino sobre o acontecimento, no âmbito de uma revisitação histórica problematizadora do império lusitano. 2. O retrato do rei: a colonização lusitana no feminino De maneira geral, os romances de Ana Miranda focalizam, na narrativa de extração histórica, o contexto social e ideológico de cada momento singular vivido pelas figuras ilustres ou anônimas, fazendo transparecer a complexidade das opções políticas e ideológicas de cada um deles. E, ao mesmo tempo, os processos de formação, afirmação e reafirmação da condição nacional. Os romances revelam outras fronteiras marcadas pelo contexto espacial e temporal, mas igualmente delineiam, de certo modo, a revisitação dos discursos sobre o Brasil produzido por cronistas e/ou historiadores. O projeto romanesco de Ana Miranda percorre os caminhos da nossa história, num tempo colonial ou não, dando a ver uma reflexão sobre o caráter nacional de nossa literatura. Assim, apropriarse do estilo e da linguagem de escritores e/ou historiadores, de forma intertextual ou paródica, significa apropriar-se dos discursos sobre a nação, ou mesmo do modo de pertencimento a uma determinada “comunidade imaginada”, que estes intelectuais problematizam no curso da história da literatura e da cultura brasileira, em romances como Boca do inferno e Desmundo, para citar obras bem representativas da questão. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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O retrato do rei (1991), segundo romance de Ana Miranda (1951), é uma narrativa que recria o episódio histórico da Guerra dos Emboabas, considerado por historiadores como o primeiro movimento nativista brasileiro, na qual paulistas e portugueses se defrontaram, no início do século XVIII, pelo controle da região do ouro nas Minas Gerais. No centro desse embate, paira o mistério do desaparecimento do retrato de D. João V, o único elemento que talvez pudesse ter evitado o colapso social de uma batalha sangrenta. Trata-se, na verdade, de um mote narrativo diretamente correlacionado com a trajetória existencial de Mariana de Lancastre, protagonista do enredo. Tal correlação entre a simbologia da efígie de um rei poderoso e a trajetória de autoconhecimento de uma aristocrata arruinada é o eixo e cerne do mencionado romance histórico contemporâneo. O livro é organizado em seções: O contrato da carne; O retrato do rei; A herança; A guerra; À ventura; Pós-escrito. O conflito começa em razão de o contrato da carne ter sido retirado das mãos do frei Francisco, o qual passa a arquitetar ações para que a guerra ocorra e depois ajuda os portugueses a vencer o mesmo entrevero. O retrato do rei de Portugal foi enviado a Minas Gerais para ficar com os paulistas e mostrar aos portugueses de que lado o monarca estava, mas a efígie acaba sendo escondida por Mariana de Lancastre, que é uma fidalga portuguesa que vai a Minas para reatar relações com o pai prestes a morrer, o qual manda um paulista desbravador ir buscá-la no Rio de Janeiro: Valentim Pedroso. Um longo e penoso caminho rumo ao interior do Brasil marcará suas vidas no plano individual com um saldo amoroso jamais quitado. Os paulistas são representados como mais valentes e habilidosos no combate, mas os portugueses conseguem confiscar as armas deles de forma habilidosa. Refugiam-se em Sabará para fortalecerem-se para a guerra, e cortarem a estrada que traz a carne a ser comercializada vinda do norte. Os adversários, por seu turno, atacam, ateando fogo em todo o vilarejo. Outras batalhas acontecem, mas os paulistas só são definitivamente derrotados quando são covardemente massacrados pelos portugueses depois de seis dias de fome e cerco. Mariana, que estava vagando por Minas atrás de Bento do Amaral, que lhe roubou o retrato do rei, assume para si o amor que sente por Valentim e vai para São Paulo atrás dele. Ao chegar lá e vêGUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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lo noivo de outra, rouba novamente o retrato da Câmara dos vereadores e foge para o mato, onde, num cenário feérico, joga-se entre as chamas de uma grande queimada, segurando o famigerado retrato do rei. A matéria histórica de O retrato do rei fica por conta da Guerra dos Emboabas e do ciclo do ouro em Minas Gerais, episódio relativamente pouco valorizado pelo discurso historiográfico oficial. Como em Desmundo, essa narrativa também acomoda os acontecimentos em berço colonial, no século XVIII. Bandeirantes paulistas e forasteiros portugueses reclamavam o direito de explorar terras, e as jazidas de ouro existentes no território mineiro. O desaparecimento de uma relíquia, o retrato de D. João V, personagem histórico insofismável, desencadeia a guerra, bem como é um dos vetores das idas e vindas de Mariana de Lancastre, personagem principal do livro. Uma mulher/aristocrata arruinada é a personagem basilar do conflito da Guerra dos Emboabas e do sumiço do retrato do rei D. João V. Mariana de Lancastre é uma heroína em seus atributos convencionais, vivendo os dilemas do início do século XVIII. A narrativa se desenvolve em, basicamente, três territórios: um Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Mariana descobre que está falida e que seu pai, à beira da morte em Minas Gerais, lhe deixou uma herança. Segue, então, em busca da legítima na companhia da figura heróica da trama, Valentim Pedroso, um dos principais representantes paulistas dos conflitos nas Minas. Em meio à sua bagagem, Mariana descobre o retrato do rei, o qual decide salvar das mãos dos emboabas e dos paulistas. A presença da imagem do rei é venerada por quem se vê diante do retrato, é uma compleição constante em toda a narrativa e, talvez, esse retrato, se entregue como combinado aos paulistas, tivesse evitado a guerra travada pelo ouro. O retrato do rei representa/figura a Guerra dos Emboabas e algumas das personagens mais “ilustres” desse acontecimento de parte da História do Brasil. A História “oficial” da Guerra dos Emboabas é bastante lacunar, sabe-se os motivos que levaram ao entrevero entre paulistas e portugueses, os nomes dos principais envolvidos no conflito e pouco mais. Na versão oficial dos acontecimentos, a guerra eclode e não há mais como o governador do Rio de Janeiro, menos ainda o rei GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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D. João V, controlar as armadilhas e as cruéis chacinas promovidas em nome da posse do ouro. Nomes são citados como importantes nesse acontecimento: Manuel Nunes Viana, Frei Francisco de Meneses, Fernando de Lancastre, Francisco do Amaral, Bento do Amaral Coutinho, Valentim Pedroso de Barros. Apesar de o retrato ser inserido na ficção para dar movimento e caráter simbólico à trama, a imagem do rei - se o fato estivesse nos compêndios de História -, provavelmente, não seria tratada de forma muito diversa, como o foi no âmbito ficcional. O rei D. João V é descrito pelo cânone historiográfico com os cognomes de o magnânimo ou o rei-sol português, em virtude do luxo de que se revestiu o seu reinado; alguns historiadores recordam-no também como o freirático, devido à sua conhecida apetência sexual por noviças. O narrador de Ana Miranda mostra-se um conhecedor da monarquia absolutista portuguesa, atuante nos conflitos desencadeados nas Minas, a ponto de tomar o partido dos paulistas. A recorrência à efígie na ficção levanta questionamentos sem respostas, próprios do texto literário: qual a importância do retrato do rei D. João V para a eclosão e resolução dos conflitos? Mariana aparece e desaparece ao longo de toda a narrativa, mas sempre que ressurge é como se fosse um recomeço, com a hipótese de que Valentim a encontrará e que os dois lutarão juntos contra os emboabas, e contra certas convenções sociais vigentes. Além de tudo isso, a introdução de uma personagem com o perfil de Mariana, em meio à luta pelo ouro, desperta outras indagações, como a situação da mulher do início do século XVIII: como era a sobrevivência daquela que não tinha a proteção financeira e/ou familiar? Como sobrevivia no tempo das minas de ouro, numa época de homens ávidos pela sua posse do ouro e pelo desejo de luxúria? A desventura de Mariana deixa muitos questionamentos, afinal, certas versões históricas não estão preocupadas em investigar tais aspectos, ou não estavam tempos atrás, mas apenas em apresentar os fatos, aqueles que tiveram “real” importância para a História. Ana Miranda, entretanto, com muita sagacidade, mostra as razões conhecidas para o trágico desfecho histórico, apresentando outras possibilidades historiográficas, nas quais a mulher daquele tempo poderia apresentar atuação pública e privada significativa. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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As referências às figuras femininas nos episódios que configuram a Guerra dos Emboabas são uma constante em O Retrato do Rei. Ao saber que seu pai está morrendo, Mariana começa a pensar se deve realmente ir para Minas Gerais, questiona seu amanuense a respeito das mulheres que vivem lá, se existem “damas”. O retrato delineado das mulheres do início do século XVIII desperta um sentimento de solidariedade com a figura de Mariana, ao se imaginar uma menina de apenas treze anos sendo obrigada a casar-se com um velho e atender às expectativas de semelhante marido que faz dela a imagem do sofrimento e da incompreensão. Por isso quando, já em São Paulo, ela retira - novamente - o retrato do rei D. João V da moldura e se martiriza numa queimada, abraçada ao retrato do soberano de Portugal, para livrá-lo da indiferença dos súditos brasileiros, é que se compreende a solidão existencial que domina Mariana, a falta de esperanças e sonhos, pois sem Valentim Pedroso, só lhe resta o retrato e com ele em mãos procura a autodestruição. É significativo verificar que com esse desfecho - morte de Mariana e o sumiço definitivo do retrato do rei – desaparece na verdade da trama/da ficção os personagens que nunca “existiram” na versão histórica consagrada, talvez nem nas variantes mítico-lendárias, mas que são centrais na trama de Ana Miranda. Parece haver um consenso entre a narrativa literária e a narrativa histórica de que Mariana de Lancastre e o retrato português do rei D. João V não devem fazer parte do campo de atuação da história-ciência, visto que, como a Mariana do romance de Ana Miranda, muitas outras Marianas desapareceram para sempre, consumidas no fogo metafórico da História, talvez sem deixar vestígios. Considerações finais Face ao exposto, podemos afirmar que o romance O retrato do rei, de Ana Miranda, incorpora diversas características consideradas fundamentais para a configuração do romance histórico na contemporaneidade, tais como a ressignificação de acontecimentos pretéritos sob o ponto de vista do subalterno, a dilatação de fatos históricos relevantes, o uso do paratexto, o redimensionamento de certas figuras históricas, dentre outros recursos temáticos e formais. Assim, a reescrita da História, sob a ótica de uma voz narrativa que GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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privilegia o ponto de vista de uma fidalga arruinada e abandonada, redimensiona o discurso historiográfico e reavalia o passado, dando nova espessura ideológica, por certo um significado alternativo ou divergente a acontecimentos pregressos, nos quais o olhar privilegiado do oprimido pode perscrutar, vislumbrar outros modos de revisitar a história e reescrevê-la por uma perspectiva disjuntiva, tão problematizadora quanto reveladora de uma “História vista de baixo“ (BURKE, 1992, p. 39). SUMMARY: O retrato do rei (1991), Ana Miranda, figures Emboabas War in the eighteenth century, for control of the gold found in Minas Gerais. Featured, the mysterious disappearance of the portrait of the king of Portugal, D. João V, correlated directly with the existential trajectory of Mariana de Lancastre, the protagonist of the story. Discussing literature and history, we analyze the lusitanian colonization by a perspective that privileges the feminine look about the cited conflict. KEYWORDS: Historical Romance; Lusitanian colonization, Ana Miranda; female.

REFERÊNCIAS: BURKE, Peter (org.). A escrita da História. Trad. de Magda Lopes. São Paulo: Unesp, 1992. GOMES, Renato Cordeiro. O histórico e o urbano – sob o signo do estorvo: duas vertentes da narrativa brasileira contemporânea. Revista Brasileira de Literatura Comparada. Rio de Janeiro, nº 3, p. 121- 130, 1996. ESTEVES, Antonio Roberto. O romance histórico brasileiro contemporâneo. São Paulo: Unesp, 2010. JAMESON, Fredric. O romance histórico ainda é possível? Trad. de Hugo Mader. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, nº 77, 185-203, 2007. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & escritas pós-coloniais. Estudos sobre literaturas africanas. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012. LUKÁCS, Georg. O romance histórico. Trad. de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011. MIRANDA, Ana. O retrato do rei. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

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A QUESTÃO AFRICANA NA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA PORTUGUESA E A SUA CONFIABILIDADE: O CASO DA HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA DE ANTÓNIO J. SARAIVA E ÓSCAR LOPES Elias J. Torres Feijó1 RESUMO: A Historiografia portuguesa, aqui no caso a obra de Saraiva e Lopes, apresenta défices importantes de confiabilidade em relação ao tratamento de autores, obras e conteúdos relativos aos países africanos de língua portuguesa, ex-colônias, que mostram o seu caráter dependente do campo do poder e a impossibilidade de uma História literária como alegoria nacional. Palavras-chave: confiabilidade.

Historiografia;

literatura,

Portugal,

África,

Os objetivos do presente texto são os de conhecer os eventuais róis de algumas produções literárias vinculadas ao mundo africano de língua e/ou colonização portuguesa (como corpus previsto de histórias e dicionários de literatura portuguesa) e focar o tratamento da questão e as eventuais mudanças ao longo do tempo; por razões de espaço, fica restrito a edições da obra presente no título. Pretende-se inserir em e contribuir para estabelecer quadros de reflexão sobre as coordenadas epistemológicas, académicas e ideológicas da crítica e da análise cultural, investigar as relações cultura-linguagem-poder, compreender a estrutura e a dinâmica dos campos culturais e propor eventuais vias de trabalho e pesquisa historiográficos. É a nossa hipótese que a Historiografia literária costuma apresentar uma componente heterónoma e subjetiva nas suas elaborações seletivas que não obedecem a critérios que garantam a veracidade das propostas de verdade que elas fazem. As Histórias da Literatura costumam aparecer e ser recebidas como coerentes biografias literárias da nação (e a nação como estado); e os Dicionários

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Grupo Galabra – Universidade de Santiago de Compostela

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como repositórios do inventário dos membros mais destacados dessa literatura nacional, certamente, respondendo aos objetivos da historiografia clássica que podemos sintetizar em três: inventariação , fixação e consagração, delimitando, assim, quem deve entrar, quem deve ser transmitido e como, qual a hierarquia relativa e a posição a ocupar no conjunto. O presente trabalho insere-se, igualmente, na sequência de outro do mesmo teor, dedicado, fundamentalmente, à questão galega e, menos, à brasileira na historiografia portuguesa, com um corpus similar (TORRES FEIJÓ, 2012). Utilizarei, por isso, o mesmo corpus ali selecionado: a História da Literatura Portuguesa (HLP) de António J. Saraiva e Óscar Lopes, mas não o Dicionário das Literaturas Portuguesa. Galega e Brasileira dirigido por Jacinto do Prado Coelho. Pola continuidade que esta obra apresenta, de revisão no tempo e sucessivas edições (é o único corpus elaborado durante o Estado Novo que percorre com continuidade datas chave do processo dos países africanos de língua portuguesa e de Portugal), o facto de ser a obra presumivelmente mais utilizada no âmbito acadêmico dos estudos literários portugueses, ao menos até ao surgimento das possibilidades da internet e de fontes como wikipédia, e a sua índole de principal instrumento (in)formativo de muito do professorado de Literatura Portuguesa, considerei a HLP como o corpus central deste trabalho; como no caso do artigo citado, restrinjo-me, para manejar um corpus abrangível e elucidativo, no caso da HLP, às edições primeira, 1955, sexta, 1970; oitava, 1975, a décimo primeira, 1979, décimo 1985 e a décimo sétima, 1996, primeira após a morte de António José Saraiva. Utilizo-as como exemplos relevantes da problemática que me proponho analisar, podendo, naturalmente, fenómenos anotados para uma edição já estarem presentes ou com variantes noutras. I.

Um repasse aos casos galego e brasileiro:

Remeto para o trabalho citado (TORRES FEIJÓ, 2012) quanto às considerações mais alargadas sobre o caráter do escolha e contexto de publicação e desenvolvimento das produções selecionadas; apenas quero resgatar aqui alguns dados, úteis para a compreensão do assunto que me ocupa, particularmente referidos à consideração da literatura nacional, explicitamente focada na introdução da HLP. Com efeito, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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quanto à questão da delimitação e inventariação da literatura portuguesa, no Prefácio da primeira edição da HLP (1955) pode ler-se que é tomada como base a existência da “comunidade nacional polìticamente diferenciada que se exprime numa língua literária determinada”, considerando-se ser a literatura “a expressão cultural mais completa de uma nacionalidade” (SARAIVA & LOPES, 1955, p. 52), cujos traços, aliás, nunca são definidos. Aludindo à relação entre “Literatura e nacionalidade”, definem, como “universalmente adoptado” ser a literatura nacional a escrita na língua nacional por autores considerados nacionais (p 5); nesta sequência, Lopes e Saraiva anotam que “quando duas nacionalidades bem caracterizadas e com centro político e cultural próprios falam uma mesma língua, admite-se a existência de duas literaturas de língua comum”; e que, “quando, por outro lado, em dado território nacional se fala e escreve mais de uma língua, admitem-se tantas literaturas quantas as línguas em que se escrevem obras literárias”. Enfim, a argumentação das balizas literárias não é consistente para o caso galego, ao, por exemplo, introduzirem autores da época Medieval acreditadamente do outro lado do Minho; e também não o é para o caso brasileiro: para este âmbito, eles afirmam: “O mesmo [que com o ccaso galego] acontece com o Brasil a partir da data da proclamação da sua independência”, e que, apesar de que no século XIX consideram que os escritores brasileiros “estão ligados a tradições literárias comuns”, de que “as influências luso-brasileiras nunca deixaram de ser notáveis” e de que “é certo que uma comunidade lingüística tem enorme importância natural e humana”, “um sentimento de diferenciação nacional que se exprimiu polìticamente corresponde aos contornos de uma realidade ocmplexa que os autores preferiram respeitar”. O carregado é meu, pretendendo mostrar como o texto torna evidente uma decisão política por parte dos autores da HLP no que diz respeito ao Brasil, vinculada à independência também política do país americano, cujo espaço social, em caso nenhum é tomado como enclave, como espaço social vinculado a uma metrópole que não convivem no mesmo espaço 2

Desde este momento, para evitar redundâncias que dificultem a leitura, no caso do corpus, só indicarei a página e, havendo ambiguidade, o ano de edição.

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geográfico (vid. BASSEL, 1991; TORRES FEIJÓ, 2011), da literatura portuguesa até esse momento. Precisamente, o caso é o contrário do galego. Agora é invocada a baliza política quando antes se fazia funcionar a inclusividade lingüística. E isto, note-se, apesar doutras balizas, de ligações e tradições, que poderiam ser invocadas. De resto, por exemplo, que fazer com Gregório de Mattos ou Tomaz Antônio Gonzaga, onde e como situá-los? O assunto (ainda que poderia começar a falar-se de o problema) prolonga-se em edições posteriores, que aprofundam mais na delimitação do corpus identitário português. Tanto assim que a sexta, de 1970, retira do Prefácio toda a alusão aos casos galego e brasileiro, enfim, a todo e qualquer critério delimitador; mesmo assim, é rotulado como “Prefácio da 1ª Edição”. Convém reter particularmente às alusões ao caso brasileiro, porque será na sua sequência que, em dada altura, os autores comecem a referir-se ao caso africano. II.

O campo dos estudos literários dominado polo campo do poder. A definição das literaturas africanas de língua portuguesa

Como indiquei noutro lugar (TORRES FEIJÓ, 2012) o corpus da HLP é delimitado polos seus autores com elementos objectiváveis: língua e território/espaço social, só perturbado polas agregações e desagregações ao longo da história dessa naturalidade dóxica: Brasil e países africanos ex-colónias lusas, por um lado, e o eventual caso fronteirizo da Galiza por outro. A mesma ausência de explicação do caráter literalmente ideológico da elaboração historiográfica, que faz funcionar estas obras como resultado de uma eventual lógica natural e naturalizadora, afetará o caráter epistemológico dessa elaboração. A concretização dos critérios enunciados no Prefácio, revela as primeiras dificuldades no caso galego e, depois, no brasileiro que contradizem a impossibilidade de discernir a nacionalidade antes invocada e estaria por isso mesmo interdito. O acúmulo de variantes observadas nas diversas edições da HLP permitem afirmar que os critérios invocados apresentam problemas de aplicação mesmo no caso normal da literatura portuguesa e que a sua problematização começa a ser um (implícito) problema em si mesmo. Na edição de 1970, a GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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problematização traslada-se para a epígrafe “Literatura, cultura, nacionalidade”, que substitui a prévia de “Literatura e nacionalidade”, onde começa a discutir-se o indiscutido até ao momento: “A história da literatura levanta problemas muito seus” (1970: 11). A questão é assim encarada em 1970 e só modificada em 1996, note-se, com a alusão ao caso africano desde 1975, (1970:12-13): Nem sempre tal critério [o lingüístico] se acomoda com outro que também deve ser tido em conta: o critério da autonomia política nacional. Assim, apesar de o domínio linguístico português [olho, não do português] abranger o Brasil, não há dúvida de que a literatura brasileira adquiriu características diferenciais, relacionadas com a progressiva diferenciação nacional brasileira; e, como seria difícil, se não mesmo impossível, apontar uma divisória intrínseca, o mais razoável será deixar de incluir no nosso estudo da literatura portuguesa as obras de autoria brasileira posteriores à data da proclamação da independência desse país, embora a isso se oponha a intimidade de certas relações que chegam a pôr problemas de nacionalidade dos autores (caso de Gonçalves Crespo). As obras de naturais do [“Os autores radicados no, cfr. 1996:12] Brasil anteriores a essa data serão ainda objecto do noso estudo; conquanto também julguemos legítimo encará-las, a elas [1996:12: “eles”] e até a obras de metropolitanos que viveram no Brasil (caso de Tomás António Gonzaga), sob o ponto de vista da formação da consciência nacional e literária brasileira [desde 79, lê-se na continuação (12): “O mesmo acontece com as literaturas dos novos países africanos de língua portuguesa, que registraremos em pleno processo de GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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autonomização”; frase substituída a partir de edições da década de oitenta, por (1985:12): “o mesmo acontece com as literaturas dos países africanos de língua vehicular portuguesa, que registraremos em graus diversos de autonomia; e, em 1996 (12), por: “O mesmo acontece com as literaturas dos países africanos de língua oficial portuguesa, nos seus vários graus de autonomia cultural”]. Essa décalage entre critérios e práticas nas edições da década de 70 em relação ao caso africano, dá conta, precisamente, da aleatoriedade dos critérios e da complexidade dos assuntos. E os diversos modos de definir e classificar, uma instabilidade dependente do campo do poder. Como se observa, para a HLP, o problema situa-se ao nível de poder balizar as nações e as nacionalidades, utilizando-se o critério político (nunca justificado em termos de história literária) da independência nacional, aliás, como o “mais razoável” (expressão que não se argumenta, mas que abandona o carácter de decisão autosuficiente e condescendente -em sentido literal- de 1955 e que incide mais noutro aspecto negligenciado até ao momento: o da dúvida epistemológica, que leva a uma exclusão, o que não apaga a insinuação doutros critérios como possíveis e, ainda que não aplicados, portadores de dúvidas inclusivas). II.1. Seleção de parâmetros e indicadores de análise Em relação ao caso galego e brasileiro, o caso das literaturas africanas acresce ainda maiores problemas quanto aos três objetivos da historiografia clássica antes indicados e evidencia o carácter de apropriação (e, também, de não-apropriação e mesmo de desapropriação, conforme) nacional e político das escolhas e os efeitos do campo do poder no da historiografia literária. Para o exame deste tratamento no meu corpus, utilizo como parâmetros de análise a definição de “literatura Portuguesa” e o tratamento de diversos tipos de autores e obras que vai sendo aplicada nas diversas edições em foco e, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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como indicadores, a coerência da definição/delimitação de literatura portuguesa e a aplicação da mesma e o, e no, tratamento de autores e/ou obras vinculados ao mundo africano de colonização portuguesa no período objeto da nossa delimitação. A seleção de autores foi feita tentando abranger o leque de possibilidades quanto às potenciais vinculações estabelecidas entre o mundo africano e português e o tipo delas; assim, selecionei para analisar o seu tratamento (e refiro, também, algumas apreciações tomadas dos verbetes da pt.wikipedia.org, ou de equivalentes, por serem estes, na autalidade, os meios de maior difusão e uso quanto à informação e, portanto, as ideias sobre as pessoas em foco de maior circulação e conhecimento; quando aludo a Portugal é ao das atuais fronteiras políticas): Castro Soromenho (1910-1968) nascido em Moçambique, em 1910; viveu em Angola (1911-1916), Portugal (1916-1925); Angola (19251937); Portugal (1937-1960); França, USA (exílio: 1960-1965); Brasil (1965-1968), onde faleceu; de família africana, vinculado ao Neorealismo e, anti-salazarista, relacionável com alguma concepção da literatura africana de língua portuguesa, morto antes da independência dos PALOP,http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Monteiro_de_Castro_S oromenho), Francisco José Tenreiro (1921-1963) filho de português e africana sãotomense, vinculado ao Neo-realismo, autor. Em 1953, juntamente com o angolano Mário de Andrade, publica, em Lisboa, Poesia Negra de Expressão Portuguesa, uma antologia de textos de novos intelectuais africanos e vinculável à negritude ou à africanitude, morto antes da independência; viveu muito tempo em Lisboa e foi deputado em Portugal representando S. Tomé http://global.britannica.com/EBchecked/topic/587486/Francisco-JoseTenreiro; http://lusofonia.com.sapo.pt/tenreiro.htm, Baltasar Lopes (1907-1989) nascido em Cabo-Verde, vinculado à Claridade e ao Neo-realismo, vinculável a de algum modo à eventual fundação da literatura moderna cabo-verdiana, autor do Chiquinho; morou em Portugal e em Cabo Verde; foi professor de licéu; faleceu em Lisboa. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Baltasar_Lopes), Brito Camacho (1862-1934) português, médico, publicista e político, autor de textos de temática africana, caso de Contos selvagens, 1934; GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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entre outros cargos de relevo, exerceu as funções de Alto Comissário da República em Moçambique, embora apenas tenha permenecido em Lourenço Marques até 1922 (http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_de_Brito_Camacho), Manuel Ferreira (1917-1994); nasceu e morreu em Portugal; viveu em vários países africanos e em Portugal. Casou com a escritora caboverdiana Orlanda Amarílis. “Quer pelo ambiente da sua obra literária, quer pela divulgação que fez das literaturas africanas de língua portuguesa, Manuel Ferreira, português, pode ser considerado como um escritor africano de expressão portuguesa, que conferiu uma maior universalidade à língua de Camões” (http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Ferreira_(escritor), Luandino Vieira (1935-) nascido em Portugal, depois residente em Angola, vinculado ao movimento independentista africano, com produção literária antes do 25 de Abril, http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Luandino_Vieira). Vive presentemente em Portugal. Estes parâmetros querem selecionar um leque de possibilidades e vínculos possíveis em relação à nacionalidade (literária africana): desde um português nascido em Portugal e cidadão português sem vínculos africanos (além de ter passado dous anos em Moçambique como representante da administração colonial, Brito Camacho) até a um africano nascido em Portugal e angolano depois, Luandino Vieira). III.

2. Definições, inclusões e exclusões

A evolução do tratamento das hoje maioritariamente denominadas “literaturas africanas de língua portuguesa” correspondese nitidamente com as circunstâncias políticas não só nem fundamentalmente dessa produção literária, como especialmente da sua elaboração historiográfica por portugueses residentes em Portugal e publicada em Portugal. O estado do campo do poder, em cada momento determina e domina o campo dos estudos literários quanto às tomadas de posição dos seus membros. No nosso corpus, essas literaturas são inexistentes na edição de 1955, excepto esta única referência, dentro do tratamento do Neo-realismo português e sob a epígrafe “Rumos actuais do realismo (1955:871-873): “Uma das GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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fraquezas do realismo em idioma português é o desconhecimento dos ambientes coloniais. Apesar das tentativas como as do grupo caboverdeano mais ou menos ligado com a revista Claridade, as de Castro Soromenho (Terra Morta, 1949) e outros, a de uma recente antologia de poetas negros, o pitoresco e o ponto de vista metropolitano continuam a dar a nota literária dominante (1955: 873). Não parece errado interpretar que alguma tensão sobre o colonialismo pode ser deduzida nesse trecho transcrito: faltam textos da ótica africana, parece indicar-se, que possam contrabalançar o mui implicitamente criticado olhar colonialista. Mas, ao mesmo tempo, os historiadores não desenvolvem mais o assunto: ou por não nacional ou por não relevante. Na edição de 1970, com a guerra em plena fase de guerrilhas independentistas, e, note-se, imediatamente depois da década da última grande descolonização africana, encontramos o rótulo de Literatura Ultramarina, expressão aparentemente neutra mas de fácil assimilação à declaração oficial da Constituição do Estado Novo de 1951 de “províncias ultramarinas”, que usa sistematicamente esta expressão no seu Título VII (DIÁRIO DO GOVERNO, 1951, p. 409-412), logo a seguir da epígrafe “Realismo ético ou crítico” e seguido do subcapítulo dedicado ao “Vanguardismo vindo dos anos 40”. A questão africana é tratada dentro do “realismo contemporâneo”, pormenorizando que se deu em condições “muito próprias” a partir da década de 1940 (1970:1064: “embora as suas manifestações mais evoluídas se possam clarificar de neo-realistas e algumas das obras capitais sejam da segunda metade do século, o seu desenvolvimento processou-se em condições muito próprias e deu os passos decisivos pela década de 1940”). É a primeira vez que alguma singularidade é dada à produção africana mas para utilizar, acompanhar e assumir a terminologia do Estado Novo e são citadas obras como o Chiquinho, que não apareciam na primeira edição ainda que o romance de Baltasar Lopes já fora publicado anos antes, em 1947, na Claridade. Dentro desta epígrafe, são vários os autores citados, ao aludir a textos, escritos “sob o ponto de vista do colonato” (1970:1064) histórico-geográficos ou etnográficos, descrições de viagens, reportagens, entre os quais Brito Camacho; assoma no texto a GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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referência a uma incipiente regionalidade/nacionalidade africana ou africanidade, nessa aludindo ao facto de que a autoria “de origem europeia” “largamente dominante” tem lugar na “literatura continental africana de língua portuguesa” (carregado meu). Na continuação, indica-se que, “passada a fase eufórica” (a das primeiras décadas do século XX , (1970:1064-65) “assiste-se desde a última guerra ao surto de uma literatura que encara de um modo mais desassombradamente realista, quer a aclimação do europeu, quer as relações entre as populações indígenas e alienígenas”. Nesta esfera, aparecem os nomes de vários autores, sem informação e distinção de origem entre eles, uns nascidos em Portugal com permanência durante tempo na África portuguesa e outros nascidos nas colónias, como J. Augusto França, Maria Graça Azambuja, Reis Ventura, Alexandre Cabral, Nuno Bermudes, António de Almeida Santos, “além de Luandino Vieira, a cujos contos, reunidos em Luuanda, 1964, foi atribuído o Prémio da Novelística que determinou, em 1965, o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores”, informa-se3. A principal atenção no âmbito proposto é dada a Castro Soromenho, de que se afirma ser “sobretudo significativa” a sua “evolução” “vinculado ao neo-realismo” 1065): dele afirma-se ter principiado por textos em que tentava “apreender a sensibilidade indígena através do folclore, do pitoresco e reacções externas”, chegando “por fim à maior tensão realista da nossa ficção de ambiente continental africano, focando os pontos mais típicos de contacto entre o nativo e o branco”. E alude-se a Tenreiro, ao observar que a poesia de autor “de ascendência ou raça negra principia a encontrar mais depressa uma voz própria em língua portuguesa” e em que “o sãotomense Francisco José Tenreiro é qualificado como precursor (1970:1065). No entanto, outros autores como Baltasar Lopes, agora aludido, não aparecem vinculados ao âmbito africano; Lopes surge, com Manuel da Fonseca e Vergílio Ferreira, no capítulo “Surto e evolução do Neo-realismo”, no sub-capítulo “Realismo ético ou crítico” (1055):

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Os carregados são sempre da minha responsabilidade exceto indicação expressa.

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o romance da adolescência”, pode ler-se “fora trazido à literatura portuguesa pela geração presencista [...] Cerromaior, 1943, de Manuel da Fonseca, Chiquinho, 1947, de Baltasar Lopes, e Manhã Submersa, 1955, de Virgílio Ferreira, assinalam alguns dos melhores momentos da apropriação do tema ao neorealismo. Dentro da focagem aqui colocada, o mais relevante é o facto de começarem a assomar alguns outros aspectos caracterizadores (não invocados como delimitadores) como referências, sobretudo na alusão a Tenreiro, à negritude, conceito que estava conhecendo auge importado dos contextos africanos de (ex-)colonização francesa [négritude, utilizado por Aimé Cesaire em 1935 no jornal L’Étudiant Noir que fundaram em Paris ele, Léon Gontran Damas e Léopold Sédar Senghor, entre outros, e começado a ser difundido, com impacto, na revista Présence Africaine, fundada por Alioune Diop em 1947, tendo em Senghor o seu difusor fundamental] e ao regional. Na continuação, nessa atmosfera de eventual negritude, alude-se a que, em 1953, era já possível a Tenreiro e a Mario de Andrade publicarem um caderno de Poesia Negra de expressão portuguesa, depois ampliado pelo último numa Antologia de 1958, a quase seguiram em 1962 as antologias copiogravadas de poetas angolanos e moçambicanos pela «Casa dos Estudantes do Império» e ainda, em Angola, as publicações da colecção «Imbondeiro», Sá da Bandeira, e «Bailundo», Nova Lisboa, além da de «Autores Ultramarinos» da referida «Casa dos Estudantes do Império». São depois citados alguns autores (1970:1065-1066), indicando a maioria não ter publicado “ainda um livro pessoal”. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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E singular é também o aparecimento de uma epígrafe dedicada à literatura de Cabo Verde (nunca caboverdeana), diferenciada da continental antes referida, por merecer, segundo os autores, uma “consideração à parte” que, aliás, munca é justificada; (1970:1066): Apesar de circunstâncias também desfavoráveis, como as de nível de vida e a distância a que o português literário se encontra do crioulo falado, a maior proximidade da cultura metropolitana (e sobretudo da brasileira) e certos fermentos mais antigos de vida literária possibilitaram um surto de escritores em torno das revistas Claridade (…) e Certeza (…). O tratamento dado é, também, o da deteção de alguma regionalização (conservando, no entanto, a fórmula metrópole-colónia) e são citados obras como o Chiquinho do Baltasar Lopes, e a Antologia de Ficção Cabo-verdiana Contemporânea (1970: 1067). Imediatamente antes desta referência, lê-se (1970: 1066) esta ambígua ubiquação: A vida cabo-verdiana inspira também várias obras de autoria metropolitana, entre os quais salientaremos o livro de contos Morna, 1948, e o romance Hora di Bai, 1962, de Manuel Ferreira, que, apesar da sua naturalidade europeia e da sua restante obra de assunto europeu, está muito ligado à sua expansão da literatura de Cabo Verde. Há algumas mudanças de relevo; maior atenção, mesmo que sendo proporcionalmente mui pouco significativa; uso de expressões como “sensibilidade indígena” ou “ficção de ambiente continental africano”, que, ainda que precedida do adjetivo nossa e não detetando explicitamente autonomia nenhuma, podem ser lidas como singularidades, reforçadas polo consideração particular da “literatura GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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de Cabo Verde”, embora a escolha das palavras (contacto entre nativos e brancos), evite qualuer manifestação de eventual conflito ou contradição; mesmo o facto de algumas alusões aparecerem sob o rótulo do Neo-realismo parece mais subsequente de uma perspectiva ideológica (política) do que acompanhando critérios estéticos ou cronológicos: a existência de uma literatura que “problematiza o ser humano” pode ser aí enquadrável, certamente, mas sobretudo a própria existência dessa literatura escrita por naturais de ali parece ser ou ao menos pode ser lido como fator determinante e, em todo o caso, de uma leitura não condizente com o sistema político, embora a abalar entre uma leitura mais próxima de um ponto de vista de conflito de classe e outro mais de emancipação colonial. Na continuação, é tratado o “Surrealismo vindo dos anos 40”, o que deixa esta aproximações mais num parêntese inserido no curso de uma HLP do que numa verdadira singularidade. II.2.1. 1975: primeira edição pós-25 de Abril A primeira edição após o 25 de Abril e a consequente queda da Ditadura e da imposição do seu discurso unitarista em relação às colónias africanas, dá mais um passo na direção autonomista e presenta uma viragem no tratamento da “questão africana”. Continua tratandose (portanto, considerando-a portuguesa) e dentro do “Surto e evolução do Neo-realismo” (rótulo mais próximo do caráter de intervenção e de envolvimento político de autor e texto literários na esfera da HLP, como um (1975: 1129) “aspecto particular na evolução do realismo contemporâneo que precisa ser considerado à parte”, mas a expressão (colonial) Literatura ultramarina passa para “literatura colonial” (ou “literatura africana de língua portuguesa”; note-se: traduzem em singular ultramarina para africana, sem falar na pluralidade de literaturas e países, mantendo, pois, o englobamento uniformado passado), cujo estudo é anunciado “até à descolonização”. Observe-se: reconhece-se uma singularidade mais explícita do caso africano, mas não suficiente para fazer dessa singularidade capítulo à parte. Ao mesmo tempo, contempla-se como baliza delimitadora a independência das colónias, passando, então e como consequência, a atividade literária nelas desenvolvidas a ficar no GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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âmbito da literatura portuguesa. Mui provavelmente, as hesitações que o conjunto da abordagem desta edição oferece, põe de manifesto hesitações dos próprios autores num ambiente de mudança política drástica, até do conjunto de possibilidades plausíveis meses atrás, potencial geradora de algumas desorientações ou insuficiências à hora de caraterizar a atividade literária (no seu presente e no seu passado) decorrrentes das novas situações políticas; e indicia, igualmente, alguma pressa por responder ou ir ao encontro das novas circunstâncias; talvez isso explique que na seção de bibliografia correspondente ao capítulo em causa, continue mantendo-se a epígrafe “Literatura ultramarina”. Apesar do caráter provisório que estas incongruências podem sugerir, elas mostram o caráter complexo e dependente dos estudos literários da situação do campo do poder, quando já as possibilidades enunciativas, do dizer, estavam mais livres e abertas; e, do mesmo modo, a índole complexa das crenças de campo a respeito da biografia da nação, que não sabe lidar com o passado quando a articulação do presente, político e social, com o que se julga o passado deve ser congruente, numa instalação no orgânicohistoricismo em relação ao conceito de nação em que o que a esta defina deve estar articulado e servir para o que esta foi e no quadro em que ela muda de maneira radical. Do mesmo modo, mantém-se o matiz singular dentro do realismo contemporâneo na consideração dessa literatura, a que já assistíamos em 1970. É precisamente a índole autonomista da própria existência e conteúdos dessas obras que parece conferir a essas produções o qualificativo de neo-realista, classificação não transferível à produção e evolução dessas literaturas exceto que consideradas parte da literatura nacional portuguesa. Esta edição conserva o indicado sobre Tenreiro, Mário de Andrade e a relação de escritores/as da edição de 1970, com alguns acréscimos. Como for, o paradoxo e as dificuldades de adscrição são evidentes; o uso de expressões como “condições muito próprias” e “passos decisivos” mostram uma singularidade sobre a qual os autores (ainda) não ditaminam, utilizando fórmulas que podem insinuar tanto pertença como desapropriação. Esta edição, aliás, continua distinguindo entre a “literatura continental africana de língua portuguesa” e a reiterada “consideração à parte” GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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que lhes merece o caso de Cabo Verde, e assinalando a dominância da autoria de origem europeia. Portanto, o que mudam, substantivamente, são não tanto as análises (nem mesmo os esquemas frásicos, ainda que certamente é maior o espaço dedicado a esta alínea) mas as palavras e, assim, os conceitos. Agora lê-se “literatura colonial” (o carregado é meu) no título, o oposto à “literatura ultramarina”, em congruência com o estado de cousas e de conceitos após o 25 de abril); se em 1970 tratava-se de uma “fase eufórica” até à “última guerra”, em que se inicia uma literatura (1064-1065) “que encara de um modo mais desassombradamente realista, quer a aclimação do europeu, quer as relações entre as populações indígenas e alienígenas”, em 1975 isso passa a ser uma literatura de “mistificação exotista” “esgotada” e não apenas “passada” (“descrições de viagem e campanha, reportagens, estudos histórico-geográficos ou etnográficos”, indicando-se que, “a partir de 1930, surge um tipo de ficção, no romance, conto e drama, que, sob o ponto de vista do “colonato”, tende a exaltar a exuberância, a sensualidade e a cor da vida tropical”), cujo 'esgotamento', faz aparecer uma literatura (1129-1130) “que encara de um modo mais crítico, quer a aclimatação do europeu, quer as relações entre colonos e nativos”; entre os autores citados volta estar Luandino Vieira, a quem agora se presta maior atenção e desenvolvimento (frente à manutenção de Soromenho e Tenreiro nos limites da edição de 1970), e do qual é acrescentada agora a alusão à sua estada em prisão, num tom patriótico angolanista (“preso durante 11 anos por colaboração com os patriotas angolanos”), indicando a sua actividade literária principiar “por obras de directa e linear denúncia anticolonialista”, e agora indigitando o responsável do encerramento da SPE: “Salazar”. O foco em Luandino leva a reofrçar a apreciação de Soromenho como um antecedente, nosso (português vs. Luandino, devemos entender; o itálico é meu): Já antes Castro Soromenho (...), principiando por uma série de contos e romances em que tenta apreender a sensibilidade indígena através do folclore, do pitoresco e reacções externas (...), reduz depois a uma narração original A GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Maravilhosa Viagem dos Exploradores Portugueses oitocentistas (1846-1948), e chega por fim à maior tensã realista da nossa ficção de ambiente continental africano, focando os pontos mais típicos de contacto entre o nativo e o branco (…). As mudanças também vão no sentido de tentar solucionar as adscrições prévias à independência das colónias e harmonizá-las com a nova situação política. É o caso da introdução da citação de Manuel Ferreira que aparece na edição de 1970 cuja nova formulação é esta (1132): “A vida cabo-verdiana inspira também europeus, como Manuel Ferreira”. Quer dizer-se, Ferreira, em virtude de uma adscrição nacional, passa de autor regional proto-cabo verdiano a europeu ligado ao processo literário (e não à literatura) de Cabo Verde. De resto, o caráter parentêtico conserva-se: a epígrafe é, mais uma vez, continuada polo “Surrealismo vindo dos anos 40”. Igualmente, mantém-se a alusão a Brito Camacho no contexto e termos da edição de 1970, como também o Chiquinho na esfera do neorealismo português. II.2.2. A viragem de 1979 e as contra-viragens seguintes A edição de 75 mostra vários giros em relação à de 1970 para o tema que me ocupa: maior dedicação e extensão no tratamento, focagem anti-colonial dos assuntos africanos e novas adscrições de autores à literatura dos respetivos países. Esta lógica é certamente a existente na seguinte edição de 1979, que apresenta modificações no Prefácio mas não afetando o assunto aqui analisado. Mas sim na seleção e focagem dos conteúdos relativos à questão africana. Com efeito, a edição de 1979, cinco anos após o 25 de Abril, passado o contexto do PREC e alicerçado o novo regime parlamentar português, mostra a mudança mais radical neste sentido. A começar pola inclusão desta epígrafe (1979:1150): “Da literatura colonial ao início de novas literaturas africanas de expressão portuguesa”, assim, do singular para o plural, em que parece evidenciar-se uma classificação sobre a atitude manifestada nos GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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textos e interpretada polos autores. A epígrafe conserva-se inserida no capítulo habitual, “Do Neo-realismo á actualidade”, mas, agora, encerrando-o, o que contribui para salientar mais a autonomia deste âmbito. De resto, parece ter-se achado uma fórmula definitória dessas literaturas mostrando alguma singularidade entre elas. Em relação à edição de 75, poucas variações são introduzidas a respeito da produção que aparece explicitamente como portuguesa e elas vão dirigidas a salientar a produção africana e o caráter conflitivo em termos colonialistas da situação vivida; assim, agora (1979:1150) na “literatura colonial [em 1975: “continental”] africana” a produção dominante “era” mas já não “é” a de “origem europeia”; e os autores aludidos, entre os quais Brito Camacho, escrevem “sob o ponto de vista do colonizador” e não do “colonato”, como na versão de 75 e de 70; ao aludir ao “esgotamento” da “mistificação exotista”) entre os nomes incluídos no âmbito desta literatura, “que encara de um modo mais crítico, quer a aclimatação do europeu, quer as relações entre colonos e nativos”, desaparece Nuno Bermudes (por considerarem colonialistas os textos deste escritor retornado a Portugal e 75?; já na edição de 75 suprimiram o nome de Alemida Santos, em relação à de 70); a maior mudança neste âmbito é a ênfase dada a Soromenho, que volta a ser tratado (1151), agora mais alargadamente e em termos abertamente elogiosos no seu anti-colonialismo, em que se diz ele elaborar “a mais conseguida e corajosa denúncia das condições de exploração colonial vinda da parte de um dos seus involuntários agentes”, que (carrego as diferenças significativas com a versão de 75): tentou sobretudo apreender a sensibilidade indígena através dos seus mitos e ritos tribais e da sua estrutura social ameaçada pelos europeus, entre outros temas (...) que se interessou depois pelas explorações sertanejas, entre outros estudos históricos e etnográficos, mas que, finalmente, se decidiu a focar momentos patéticos e típicos do colonialismo, como o imposto indígena acarretando o trabalho forçado, o desprestígio dos sobados tradicionais, as GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014 89

violências mais desapiedadas e o próprio esmagamento dos primeiros colonoscomerciantes através de sucessivos ciclos de monocultura e mineração”. Aquela pluralidade referida à produção africana, prolonga-se num tratamento diferenciado por países; Luandino desaparece, portanto, do espaço em que estava para ocupar um lugar de destaque nas linhas dedicadas à literatura angolana. Depois do espaço dedicado à produção portuguesa, lemos (1151-1152): O processo de diferenciação da novelística africana, quer temática, quer linguística (por influência oral das línguas nativas), quer mesmo como forma de consciência de uma identidade nacional (ou africana), tem raízes mais antigas e, por enquanto, atingiu formas globalmente mais evoluídas em Angola. Nestas informações, os autores salientam (1979:1152), e evidenciam, assim, com hesitações e eufemismos, as dificuldades de adscrição nacional: o carácter complexo, por vezes muito assinalável mas episódico, das diversas contribuições individuais ou grupais, incluindo negros de diversas etnias, classes e formações culturais, mestiços em vários graus de enraizamento, brancos portugueses ou outros, mais ou menoss angolanizados. Agora, começam a ser resgatadas produções da década de 40, 50 e 60 que antes não foram consideradas, com o qual se salienta a desatenção a esta área nas edições historiográficas anteriores; observese, para o caso da já literatura angolana (1152):

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Para a formação de uma literatura angolana viriam a desempenhar um importante papel correntes e órganos colectivos como o movimento "Vamos descobrir Angola!", 1948, a Antologia dos Novos Poetas de Angola, 1950, pela Associação dos Naturais de Angola, a revista Mensagem, 4 números, 1951-1952, a revista Cultura (13 números, (1957-196), a colaboração literária em Jornal de Angola (1953-1965), as antologias de Poesia Negra de Expressão Portuguesa de Mário de Andrade e Francisco José Tenreiro, 1953, ou apenas do segundo, Paris, 1958, que publicou os dois primeiros volumes de Antologia Temática Africana, Lisboa, 1975 e 1979, as edições da Casa dos Estudantes do Império [várias, entre 59 e 62], as revistas Vector (…), Nogma (…), as colecções Imbomdeiro (…), Capricórnio (…), a revista Kuzuela e os cadernos Bantu da direcção de David Mestre. A atenção maior é dada a Luandino Vieira. Há acréscimos no seu tratamento derivados do aumento da sua produção e algum outro que parece tender a evitar qualquer tipo de percepção da sua literatura como dependente de outra, o qual, no contexto, pode estar manifestando a evitação de leituras mais genéricas ou categóricas, de índole cultural, social ou política; assim, se os contos de Luuanda ‘revelavam’ antes (1975:1130) “uma assimilação da arte estilística e efabuladora de Guimarães Rosa às virtualidades do português falado nos musseques e às tensões coloniais aí vividas”, agora (1979: 1154) “revelam uma arte estilística e efabulatória afim da de Guimarães Rosa mas enraizada nas virtualidades so português falado nos musseques sob tensões coloniais”. A atenção à produção angolana estende-se polas páginas 1154 e 1155; na 1156 começa a dada à literatura moçambicana, até à metade da página 1157, em que começa a referência à “situação específica” de Cabo Verde; mais da metade da 1157 até bem entrada a página 1158 é GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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dedicada à “literatura caboverdiana”, seguida, brevemente, da alusão (1158) à colectânea Mantenhas para quem luta! (antologia de poesia guineense, de 1977) “a primeira manifestação de literatura em português ( e em crioulo) de implantação guineense” “que abrange 14 autores, muito directamente empenhados na edificação revolucionária de massa”, reforçando-se, pois, a sua índole com a linguagem própria dos movimentos de libertação nacional da altura. No caso de Cabo Verde, há mudanças significativas em relação às edições de 70 e 75, já nas frases iniciais, que saliento em carregado (1979:1157): Apesar de circunstâncias particularmente desfavoráveis, como as das secas cíclicas, o baixo nível de vida, a existência de dialectos crioulos possibilitando intercomunicação generalizada, a maior proximidade da cultura portuguesa [antes “metropolitana” e da brasileira, certos fermentos mais antigos de aculturação e vida literária ocasionaram um surto de escritores em torno das revistas Claridade (…) e Certeza (…). E prossegue, com entre outras, alguma menor, como a retirada da qualificação de António Aurélio Gonçalves como “excelente, embora parco” em 1975:1131, por exemplo) e outras mais profundas, como a retirada, também deste parágrafo, procedente de 70 e 75 (1975: 1132): “A qualidade geral desta produção, que, em muitos casos, atinge o nível do melhor realismo, é notável; e um estudioso não poderá ainda perder de vista muita obra dispersa em revistas ou circunscrita à área de difusão do crioulo”, uma observação, que, pondo de parte riscos de subjetividades, incluia em cheio o “crioulo” na literatura portuguesa, o que quebraria o princípio linguístico invocado, a menos que o crioulo fosse considerado dialeto do português. O acréscimo final é também de importância (1979:1158):

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O espaço patético e pitoresco que vai desde a miséria colonial até à emigração cabo-verdiana é bem apreendido nos contos a que Orlanda Amarílis deu o título de Cais-do-Sobré té Salamansa, 1974, tal como no romance Voz de Prisão, 1971, do seu marido o escritor português Manuel Ferreira com obra dedicada a Cabo Verde e a outros países agora emancipados do regime colonial português. Aparece Orlanda Amarílis (com obra eventualmente não considerável até 75 pola prontidão da publicação) e, sobretudo, volta refazer-se a apreciação sobre Manuel Ferreira, agora identificado como “escritor português” mas ubiquado, sem a assistência da lógica elaborada nesta HLP, na literatura de Cabo Verde. Conclui o capítulo com referências, novas, a Francisco José Tenreiro (que em edições prévias vinha logo a sseguir de Soromenho), de quem agora se diz (1158) “primeiro poeta consciente dos valores positivos da condição africana, então identificados com a chamada negritude” e “de que o Novo Cancioneiro neo-realista publicou, em 1943, Ilha do Santo Nome”, mencionando igualmente como poeta negro precursor” Costa Alegre, merecendo também “ser assinalados” Alda do Espírito Santo, nacida em 1926, de quem é citada a colectânea em É nosso o selo sagrado da terra, 1978, e ainda que, “sem publicação de livro individual”, Marcelo Veiga, nascido em 1892, Tomás Medeiros e Maria Manuela Margarido, da qual se cita uma obra de 1957. Como pode verificar-se, o conceito de negritude, marca sóciopolítica de primeira fileira no repertório anti-colonialista e traço identificador da singularidade como identidade, é já explícito, juntamente com o caráter prestigiado dele (os valores positivos da condição africana), a manifestação de antiguidade como alicerce e direito à existência diferenciada (raízes antigas), e a elevação à tona da existência de línguas nacionais (prestigiadas e legitimadas, sem recorrer a conceitos como dialetos ou locais). De facto, e particularizado no caso angolano, este é focado com perspetiva implicitamente protossistémica (TORRES FEIJÓ, 2011, para este GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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conceito), salientando fatores e elementos alguns dos quais já presentes em períodos anteriores (e que podiam ter aparecido, portanto, em edições prévias) mas que só agora são consideradas. As novas circunstâncias do campo do poder, portanto, afetando os campos dos estudos literários, no caso, reconfiguram o discurso analítico e os items a considerar, contradizendo ou refazendo afirmações, focagens e perspetivas de décadas passadas realizadas em edições prévias desta HLP. O tratamento do “escritor português” Manuel Ferreira é exemplo disto e do caráter justiceiro, compensador na alegoria, que se atribui à história da literatura: ele continua o seu trânsito para fixá-lo como escritor português mas permanecendo alguma ambiguidade quanto a (o grau de) a pertença à literatura de Cabo Verde, sendo ele afirmado como português mas não definindo-o explicitamente numa ou nas duas literaturas (1158): O espaço patético e pitoresco que vai desde a miséria colonial até à emigração cabo-verdiana é bem apreendido nos contos a que Orlanda Amarílis deu o título significativo de Cais-doSobré té Salamansa, 1974, tal como no romance Voz de Prisão, 1971, do seu marido o escritor português Manuel Ferreira, a que é justo aqui relembrar pela sua obra de ficcionista e de estudioso especialmente dedicada a Cabo Verde, mas também a outros países agora emancipados do regime colonial português. A lógica fixada pola edição de 1979, quer dizer-se, o tratamento da questão africana de língua portuguesa na HLP salientando o caráter emancipante de vários textos e autores de antes da descolonização e salientando alguns dos percursos seguidos depois da independência das ex-colónias africanas, quebra-se na edição de 1985. Certamente, a lógica assentava em que a edição de 1979, ao estar quatro anos distante da de 75 e da independência dos países afrianos, permitia entender como estrutural o que as alusões na edição de 75 podiam ser interpretadas como conjunturais, fruto do estado de cousas GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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mudado tão drasticamente em 1974-75. Os autores, no entanto, optaram por suprimir a epígrafe dedicada às literaturas africanas. Na edição de 1985 ela e elas já não estão. O facto contrasta ainda mais com outro: Dentro do corpus que utilizo, não existe referência alguma à questão africana nos preâmbulos e introduções editoriais até 1985. Quer dizer-se, em edições saídas depois do 25 de Abril não existe reflexão de índole similar à referida à questão galega ou brasileira. Mas agora, nesta de 1985, sim aparecem, e afirma-se, logo a seguir às referências à literatura brasileita já citadas: “o mesmo acontece com as literaturas dos países africanos de língua veicular portuguesa, que registaremos em graus diversos de autotomia” (1985:12). Saltam as contradições: é possível, na também lógica de Histórias da Literatura como esta, que definem adscrição por nacionalidade e língua, e manifestando a existência de “literaturas dos países africanos”, um texto ou autor pertencer a duas literaturas? Como podem ser definidos “graus diversos” de autonomia? E que significa, para o caso, autonomia? Dependência/independência? Política? Cultural? Quando fixá-las? Além disto, as consequências do novo estado do campo do poder e as suas afetações ao campo dos estudos literários, fazem com que a presença, mínima, de Brito Camacho, que era citado como autor de Contos selvagens (1970:1129, por exemplo) agora desapareça, embora se ,anenha nas edições posteriores desta HLP referência bibliográfica sobre ele (1985: 1016) e, também, como seguidor naturalista antecedente de tendências realistas (1985: 1071-1072, que não aparece na edição de 1955); Henrique Galvão, que apenas era citado na epígrafe colonial com Camacho (1970: 1150), e outros desaparecem também; ‘saneados’, pois, por razões políticas da HLP, cujos autores, aliás, não tomaram a previdência de revisar a bibliografia, tornando mais flagrante o caso? Ora, se estes autores, que desaparecem provavelmente pola índole colonial(ista) das suas obras (portanto, pola assunção da heteronomia do campo dos estudos literários em relação ao campo do poder), o mesmo acontece com Tenreiro ou Luandino (este aparece citado apenas no título de um texto dado como bibliografia no Capítulo “Do Neo-realismo à actualidade”.), cujos textos e ações eram focados no lado anti-colonial(ista), ocultados igualmente pola consideração política mudável dos seleccionadores, que, talvez, cedem à GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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historiografia africana o seu tratamento mas que não se apropriam deles, pois seria um ato (politicamente) errado (por) colonial. Fica ali, na edição de 1985 (p. 1093) o Chiquinho, editado pola Claridade, como resto contraditório, o que redunda mais na incoerência ocultadora, numa obra que quer alicerçar-se, precisamente, na coerência orgânico-historicista da nação, como vimos a partir das definições da literatura que a precediam. Já na edição de 1996, a esses desaparecimentos une-se o de Baltasar Lopes e o Chiquinho: quanto aos nossos indicadores, de todos os autores citados, agora só resta Castro Soromenho, desaparecendo os mais4, aparecendo, Soromenho em “Surto e evolução do Neo-Realismo” (1996:1041): Pelas suas afinidades com o neo-realismo, embora tematicamente integrado na literatura angolana, a que serviu de precursor, deve ser aqui mencionado Fernando Monteiro de Castro Soromenho n. 1910-01-31 – f. 1968-06-19), que, depois de várias obras de fundo etnográfico e histórico, se salientou plela trilogia de romances do ciclo dito de Caxamilo (Terra Morta, 1949; Viragem, 1957; A Chaga, 1972), que pateticamente denunciam a violência colonial numa típica região do Norte de Angola, com a degradação das estruturas gentílicas e através de um processo inumano de 4

Confronte-se apenas como exemplo estes dous parágrafos:

1985 (p. 1088): Cerromaior, 1943, de Manuel da Fonseca, Chiquinho, 1947, de Baltasar Lopes, e Manhã Submersa, 1955, de Virgílio Ferreira, assinalam alguns os melhores momentos de apropriação deste tema [o romance de adolescência] pelo neo-realismo 1996: (p. 1041): Cerromaior, 1943, 5ª edição, revista, 1982, de Manuel da Fonseca, e Manhã Submersa, 1955, de Virgílio Ferreira, assinalam alguns os melhores momentos de apropriação deste tema [o romance de adolescência] pelo neo-realismo

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que os próprios agentes administrativos de base sofrem, por ressaca, as consequências degradantes, sem nunca ficar claro se é autor da literatura portuguesa ou da angolana, tenuamente justificável polo entendimento, sempre implícito, daqueles “diversos graus de autonomia” nunca definidos… Finalmente: por exemplo, um precursor de uma literatura pertence a essa literatura? E, não pertecendo, a qual pertence? Os restantes escritores que apareciam neste âmbito em edições anteriores, por razões, calculo ou, ao menos, assim pode ser interpretado, de índole política, ficam fora. Castro Soromenho permanece sem deixar de persistir a ambígua ubiquação, a permanente irresolubilidade da questão. Esta focagem, unida ao desaparecimento de referências a Brito Camacho e aos outros autores que pareciam aludidos juntamente com ele, salientam ainda mais o carácter de resto compensador e oferendado que estas frases apresentam, no quadro propositivo que aqui realizo. Apesar disto tudo, a edição mantém a referência às literaturas africanas no capítulo introdutório, mesmo agora, ainda modificada em relação à versão de 1985; o que não parece razoável/razoado é para que é conservada a alusão5, exceto que seja para justificar esas linhas dedicadas a Castro Soromenho… A última das edições analisadas, 1996, pode aparecer como síntese do desconcerto; os autores (agora, já, apenas, como principal, Óscar Lopes, pois António José Saraiva falecera a 31 de dezembro de 19936) continuam modificando também os capítulos introdutórios, em 5 Agora, lê-se (1996:12): o mesmo acontece com as literaturas dos países africanos de língua oficial portuguesa, nos seus vários graus de autonomia cultural”. 6

A edição vem acompanhada de uma “Observação”, logo na página inicial: “Óscar Lopes é responsável único pela redacção do texto referente à 7ª Época (ÉPOCA CONTEMPORÂNEA). Por acordo entre os dois principais autores, as edições futuras serão também actualizadas por Isabel Pires de Lima, Margarida Vieira Mendes e Leonor Curado neves”. E numa nota na página seguinte, pode ler-se: “António José Saraiva (1917.12.31 -

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que definem e redefinem os seus conceitos de literatura, nação e literatura nacional7. Em comparação com a edição de 1985, esta, na alínea “Literatura, cultura, nacionalidade”, que vinha sendo modificada desde a primeira edição, aparece sem o seguinte período (1985:11), o qual pode estar manifestando algum descrédito na visão teleológica da atividade literária e na detenção de métodos fiáveis: Como história [a história da literatura], supõe um certo progresso humano geral (que nela está representado, quer pela complexidade estrutural crescente de matéria e forma, quer pelo melhoramento da apreciação subjectiva postulado em qualquer juízo actual de de valor), progresso humano geral com fases qualitativas reconhecíveis e cujos lineamentos gerais até, pelo menos provisoriamente, nos considerámos já conhecidos, pois sem o conhecimento de tais lineamentos não disporíamos de métodos de investigação, de quadros de referência cronológica ou outra. III.

Conclusões

Do ponto de vista epistemológico, a HLP oferece, neste aspecto e comparado com o parâmetro da sua definição de “literatura nacional” , um leque de construção e deconstrução do conhecimento não justificado nem alicerçado. O caso africano espelha que, de regra, não existe autonomia dos estudos literários nem da historiografia literária: não porque esta sirva, de alguma e não sempre simples maneira, a 1993.03.17). Este livro testemunha mais de quarenta anos de amizade viva, firme e produtiva, entre duas pessoas cuja diversidade de opiniões apenas fomentava a mais viva e contínua discusssão acerca dos textos aqui presentes, e questionados até ao limiar imprevisível da morte”. 7

De modo contrário, agora são acrescidos novos parágrafos, em maior medida relativos ao caso galego. Estas questões foram tratadas com maior pormenor e abrangência em TORRES, 2012, para onde remito.

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interesses e disputas que se produzem no campo político (aceitando, em ocasiões, as interdições ou orientações de dominantes ou homólogos no campo do poder), mas sobretudo porque, na imensa maioria dos casos, ao ser a história da literatura nacional/da nação, ela interioriza como natural nacional todas as variações ou óticas dominantes que podem produzir-se; e, derivada duma doxa de campo, sem explicitá-las, porque seria aceitar o caráter heterónomo destes estudos que de regra se apresentam como autónomos e com lógicas próprias mas onde funcionam, à mistura, opiniões estéticas dos autores, aceitações e/ou elaboração de cânones e apreciações de índole social e cultural. Essa não explicitação, que exime de esclarecimentos, conduz a apresentar como lógico o que é resultado seletivo e subjetivo de determinadas escolhas e manifesta a insuficiência destas abordagens. Ao mesmo modo, uma determinada conceção da nação/ da comunidade, sinónimo de estado como entidade política, está presente, habitualmente, sem que isso também não seja explicado ou seja detetada contradição entre o enunciado e o seu desenvolvimento. A evolução do tratamento das hoje maioritariamente denominadas “literaturas africanas de língua portuguesa” correspondese nitidamente com as circunstâncias políticas. Entre os seus efeitos, pode ser destacado que o silêncio sobre o processo colonial emerge com força quando a liberdade está assentada; em ocasiões, a baliza que era intransponível, da nação ou da língua, é transgredida. O problema não está em determinadas atitudes dos compiladores (ainda que, naturalmente, a ausência de liberdade condiciona, determina essa produção, nas suas qualificações); o sistema de seleção utilizado, combinando a nacionalidade com a língua encontra problemas. Manifesta a forte componente heterónoma de propostas historiográficas mesmo em literaturas estáveis e ainda em propostas canonizadas como esta HLP. A obra deixa de ser confiável, a menos que entendamos a historiografia como algo subjetivo e submetido ao puro arbítrio do seletor. O caráter patrimonial e a ocultação do corpus: Como tive oportunidade de indicar ara o caso galego e brasileiro (TORRES FEIJÓ, 2012, p. 26 e ss.) a consequência básica destes casos assentes em considerações de grandes narrativas, alegorias nacionais e consideração orgânico-historicista da literatura, que alertam, em geral, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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para a descnfiança da própria gênese e construção destas historiografias, é a ocultação que geram de processos e, até, de autores ou obras, e não por razões de espaço. Um dos fundamentais problemas desas perspetivas historiográficas não está na vontade dos autores mas nas balizas classificatórias, quase indiscutidas, que utilizam e que se impõem a eles de modo coercitivo de tal intensidade que qualquer explicação fora dessas balizas é imediatamente contraditória. Referimo-nos às balizas do ser nacional e ao seu binarismo consequente: nacionalidade A ou nacionalidade B, à necessidade de situar autores/as e obras numa ou noutra literatura; a superação de termos complexos como “luso-africano”, que dão conta difusa e podiam aparecer como posição colonialista, conduz a um beco que acaba por fazer que, para o caso aqui tratado, a edição de 1955 encontre o seu maior parecido com a de 1985: que as edições feitas com as literaturas africanas em plena independência se pareçam mais às que eram feitas em plena ditadura colonialista, e isto por razões antagônicas. Estão em jogo mecanismos de compensação, modos de patrimonialização, de apropriação e de cedências patrimoniais, em que o historiador atua (e julga que deve atuar) como porta-voz da nação (de determinado sentimento e setor nacional). Assim, segundo a HLP, em 1975 havia uma literatura colonial, mas tratada como reconhecimento do outro, como substitutivo, como paliador do silêncio, o que se prolonga até 1979; a partir de 1985 já eles podem tratar do seu património; é devolvido, depois de penar e penitenciar e dar os oportunos esclarecimentos. O conflito, frente ao caso galego ou brasileiro, no caso africano, é vivido in situ, o que faz aumentar a sua magnitude. A solução aqui adotada é, por exemplo, parcialmente diferente à brasileira ainda que (isto é uma apreciação subjetiva) o peso dos autores reivindicáveis polos patrimonializadores brasileiros frente aos seus homólogos lusos pareça menor. Como consequência disto, a proposta de verdade desta HLP, como modelo doutros do mesmo teor, não é confiável; acertam-se e saldamse contas e deixa-se em terra de ninguém uma literatura que ninguém explica, uns porque a consideram alheia ao processo nacional, outros porque a repudiam O caso africano tem outras consequências: deixa de considerar portugueses a quem antes considerava, sem que mudassem as conjunturas de produção dos textos (deixando, momentânea e GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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contraditoriamente, só rasto do Chiquinho de Lopes), supondo-se que eles devem ser já independizados também da Históira da Literatrura Portuguesa, alegoria da nação lusa. Mas colocam fora da História os que antes estavam nela: Galvão ou o Brito Camacho de Contos Selvagens: por serem autores (coloniais) portugueses ou por serem considerados na sequência africana?. A história da literatura aparece, deste modo, como um panteão nacional em que se tem direito ou não de entrada. O direito está em se alguém está disposto a patrimonializar obra e/ou autor; e se tem autoridade, legitimação e capacidade para impor o seu critério. Na realidade, o que está em jogo é a apropriação patrimonial, a sua legitimidade e legitimação. As histórias da literatura aparecem-se, na realidade, como histórias do património da comunidade, com um tronco central indiscutido e indiscutível e um conjunto, mais ou menos alargado desse potencial património objeto de discussão ou disputa. A negociação, a compensação e a cedência de património em função das circunstâncias do campo do poder e da capacidade do Outro para ser ouvido e reccebido, para ser levado em conta, é a chave e consequência destas dependências. Eis as tendências das histórias a falar das atividades literárias num espaço social e, ainda que aparentemente não o pareça, da actividade daqueles que patrimonializa, mas só de alguma; património não é, para este caso que trato, o conjunto de bens de uma comunidade mas o conjunto de bens que uma comunidade considera seus e pode gestioná-los em todas as suas dimensões, sobretudo simbólicas. Destes pontos de vista, Luandino Vieira, por exemplo, pertence a quem se aproprie dele e consiga legitimidade para fazê-lo; interna e externa, acreditável para a sua comundiade e também no panorama internacional e nos territórios em disputa (internacional quer dizer com critérios homologáveis à conveniência doutras comunidades, a francesa, a italiana, etc.); isto ganha importância se a literatura ganha, por sua vez, importância escolar, etc. Assim, Luandino pode aparecer como pertencendo aos dous patrimónios, apresentados como histórias, próprias, da literatura. Ou a ser tratado ambigua ou provisoriamente num como trânsito de cedência para outro, albergado a falta de melhores possibilidades de adscrição, mas sempre numa instabilidade epistemológica notável. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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O que se costuma negligenciar com essa tendência patrimonial, é a descrição ou a análise das atividades realizadas num determinado espaço geo-cultural ou num determinado sistema literário, balizado por determinadas normas sistémicas, que o identificam e diferenciam de outras. Paece claro que, deste ponto de vista, Luandino Vieira e a sua obra devem estar presentes nessa análise (não na “Literatura nacional portuguesa”, no que isto significar), porque eles ocupam posições relativamente relevantes no sistema português e no espaço geo-cultural português em termos literários, na década de 60 e na década de 90, dado o modo particular em que a edição de textos africanos e a distribuição dos mesmo e os autores se relacionam e se processua na atualidade. Não há, na década de 60, um sistema cultural angolano perfeitamente instaurado; há tendências proto-sistémicas, de que Luandino é exemplo claro. Um ponto de vista sistémico pode ser um bom instrumento para uma melhor compreensão da história da literatura numa e até duma comunidade. Entender não apenas os macrofatores em jogo genericamente, mas a presença de autores não patrimonializáveis mas ao mesmo tempo importantes para essa compreensão; ou não como uma influência em determinado autor ou ambiente, mas um condicionante de presença. O caso de Luandino na HLP ilustra como é a legitimidade da apropriação, da patrimonialização e da compensação o que está em jogo. O importante tratamento de Luandino em 1979 tem um valor de reconhecimento, compensador; uma compensação que desaparece quando o património é cedido ao seu legítimo dono, assim reconhecido. Em síntese, o tratamento da questão africana na historiografia literária portuguesa mostra a extraordinária dependência que do campo do poder apresenta a elaboração académica nestas áreas, certamente. Igualmente, a profunda ideologização e pouca confiabilidade do campo académico, provavelmente mostrando as carências de método e metodologia na elaboração historiográfica, como também qualquer noção de inovação ou dinamismo dos estudos; e, em última análise, revelando, também em casos como este, a impossibilidade de uma historiografia literária, ao menos sem a explicitação de corpus, metodologias e aplicação de parâmetros objetiváveis de trabalho. Como indiquei no artigo várias vezes aludido (TORRES FEIJÓ, 2012: 26-31), em minha opinião, estes problemas podem, deste ponto de GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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vista, chegar a ser irresolúveis: apresentando-se como história dos factos, o seu caráter conjuntural é superior a qualquer outro, pois dependem das condições do campo do poder e obedecem a factores heterónomos na sua elaboração: a consideração das histórias literárias como histórias literárias nacionais (de uma nação; não numa nação); a determinação do que seja a nação em cada momento (em que a ideologia e o modo de aparecer do historiador joga também um rol) e a carência de instrumentos metodológicos bastantes para delimitar o objecto de estudo (acabam por ser muitos os objetos de estudo envolvidos) e o seu corpus sem estar submetido às determinações do campo do poder. É, realmente, uma questão difícil de resolver; e isto sem entrarmos nos problemas que misturam nacionalidades de origem com campos de produção. Em minha opinião, uma das vias de solução pode estar no recurso à aplicação de metodologias sistémicas e empíricas e (consequentemente) uma mais apurada delimitação do objeto. Uma História da Literatura Portuguesa é, como qualquer outra, uma proposta (em boa medida uma sistematização a posteriori) de um património determinado, aqui literário, sobre determinadas bases: indica aquiloque quer ser apropriado. Frente a isto, cabe introduzir conceitos como o de espaço social e/ou sistema e campo, que permitam delimitar as atividades literárias polo agregado social em que têm lugar, primária e/ou secundariamente e, também, polos intervenientes de forma forte nos mesmos, o que conduz a não considerar as fronteiras políticas de cada momento como balizas nem a colocar aprioristicamente uma determinada língua (a que funciona como a língua da nação) como baliza. De resto, falar em tendências protossistémicas e subssitémicas (TORRES FEIJÓ, 2011) pode ser útil. Não proponho como solução hibridações metodológicas ou mistificações, mas explicações dos fenómenos, o qual não é atingido por pertença ou apropriações ou pola capacidade de legitimar as escolhas. Os objetivos da historiografia clássica: inventariação, fixação, consagração devem ser substituídos por objetivos de uma análise literária e cultural. É a análise dos procesos, incluindo a própria construção histórica e da História, a que parece deve ser prioridade e norte. Desse ponto de vista, podemos falar de uma História da Literatura no espaço social português ou no campo literário português GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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(cujos limites variam ao longo do tempo). Isto, nos termos em que falamos conduz a falar de Luandino Vieira, por exemplo, nos anos sessenta como autore proto-sistémico e continuar a falar dele, do ponto de vista do intersistema em língua portuguesa plenamente, ou ainda do sistema literário português, como autor com forte impacto e distribuição nesse sistema. ABSTRACT: Portuguese Historiography, for the case, the work by Saraiva and Lopes, shows significant deficits in its trustability for the treatment given to authors, works and contents from Portuguese speaking African countries, former Portuguese colonies. The aforementioned deficits show its dependency from the field of power and the impossibility of a Literary History as a national allegory. KEY-WORDS: trustability

Historiography,

Literature,

Portugal,

Africa,

CORPUS: SARAIVA, António J. e LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto, 1ª ed. s.d. (1955/7?). SARAIVA, António J. e LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto, 6ª ed. 1970. SARAIVA, António J. e LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto, 8ª ed. 1975. SARAIVA, António J. e LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto, 11ª ed. 1979. SARAIVA, António J. e LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto, 13ª ed. 1985. SARAIVA, António J. e LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto, 17ª ed. 1996.

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REFERÊNCIAS: BASSEL, Naftoli. National Literature and Interliterary System. Poetics Today 12.4, pp. 773-79, 1991 LEI nº 2:048. Introduz alterações na Constituição Política da República Portuguesa. Diário do governo, . I Série, nº 117, 11 de junho de 1951, pp 407-412. Acesso em 12 jan, 2014. . TORRES FEIJÓ, Elias J. About Literary Systems and National Literatures. CLCWeb: Comparative Literature and Culture 13.5 (2011). . Acesso em 12 jan, 2014. TORRES FEIJÓ, Elias J. Problems in National Allegory. The Galician (and Brazilian) Question in Contemporary Portuguese Literary Historiography., Portuguese Studies ,28, n. 1 pp. 5-30. 2012.

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ENTRE-DOIS: TRADIÇÃO E INOVAÇÃO NA NARRATIVA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA Isabel Cristina Rodrigues 1 RESUMO: A partir da figura do entre-dois consignada na obra de Sibony, propõe-se uma leitura não contrastiva da problemática do cânone aplicada à narrativa portuguesa mais recente, a qual parece querer caminhar no sentido da legitimação de um entre-dois canónico, fazendo confluir, no espaço concreto da sua textualidade, o sentido de inovação que lhe é próprio e o peso de uma tradição implícita ou explicitamente convocada. Palavras-chave: Narrativa; Cânone; Inovação; Tradição Cada escritor cria os seus precursores Jorge Luis Borges No seu livro Entre-deux. L’origine en partage (publicado pela primeira vez em 1991), o filósofo franco-marroquino Daniel Sibony vem sublinhar a inoperante artificialidade dos conceitos de diferença e de fronteira para catalogar, descrevendo-os, tanto o óntos constitutivo do indivíduo como o espaço físico e simbólico da sua atuação. Como o autor explica, «não que a ideia de diferença seja falsa: ela é justa mas limitada, pertinente mas ínfima» (SIBONY, 1991, p. 11), razão pela qual o autor propõe, enquanto formulação estruturante do juízo crítico do Homem, a figura alternativa do entre-dois, «uma forma de ruturaligação entre dois termos, tão próximos um do outro quanto é verdade constituírem, tanto o espaço da rutura como o espaço da ligação, um território mais vasto do que imaginamos (…). Não existe um terreno neutro entre os dois e não existe uma única fronteira que verdadeiramente separe, existem duas fronteiras que se tocam e que o

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fazem de tal modo que existem entre elas inúmeros fluxos comunicantes» (SIBONY, 1991, p. 11). Partindo da sugestiva figura do entre-dois consignada na obra de Sibony, parece--me plenamente sustentável, de um ponto de vista teórico-crítico, a defesa de uma abordagem não-contrastiva (ou nãodemarcativa) da problemática do cânone aplicada à narrativa portuguesa contemporânea, com particular destaque para a obra de alguns dos nossos romancistas mais recentes – refiro-me, em concreto, a autores como Ana Margarida de Carvalho, Afonso Cruz, João Tordo, Dulce Maria Cardoso e Nuno Camarneiro. Na verdade, a insistência numa abordagem deste tipo implica a recusa de uma visão sistémica do espaço literário sustentada pela demarcação judicativa entre o centro (entendido como a memória institucional do literário) e a margem recém-formada do contemporâneo, essa espécie de purgatório do juízo estético constituída por um presente a meio ainda de fazer-se. Entre a apologia da invariabilidade universal do valor (que legitimaria, como defende García Berrio, a edificação patrimonial do cânone) e a consciência do relativismo histórico-contextual desse mesmo valor (entendendo-se assim o cânone como a deriva imaginária de um modelo naturalmente avesso à incorporação da fixidez invariante do literário), a narrativa portuguesa dos últimos anos parece querer caminhar no sentido da legitimação de um entre-dois canónico, fazendo confluir, no espaço concreto da sua textualidade, o sentido de inovação que lhe é próprio e o peso de uma tradição acolhida em registo de simbólica convocação autoral. É certo que muito do que hoje em dia se publica, sobretudo no domínio da narrativa, parece enfermar de um propósito (muito mais editorial do que autoral) de explícita massificação do nosso capital simbólico, promovendo-se por esta via a dessacralização da esfera do literário em nome do mais desapiedado sentido de mercantilismo do livro, o qual atinge, de modo incomparavelmente mais acentuado, os autores mais jovens e que por isso habitam ainda, na volátil topografia do cânone, a instabilidade contemporânea da margem – como se pudéssemos dizer (tal como recentemente sucedeu) compre o livro A e ganhe um livro em branco, adquira o livro B e receba um guardachuva. No seu importante estudo sobre a questão do cânone, intitulado GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Revisão e Nação. Os limites territoriais do Cânone Literário, Osvaldo Manuel Silvestre assinalava já, há alguns anos atrás, a recente conversão da figura do escritor à religião profana do star system, no seio da qual o mesmo escritor surge desinvestido da sua simbólica auctoritas para passar a exibir um estatuto de mera «deixis do sistema mediático-mercantil» (SILVESTRE, 2006, p. 127): (…), já não são auctores mas sim uma deixis do sistema mediático-mercantil – um star system –, transferindo para um reinvestimento no seu nome, no seu corpo e na sua capacidade performativa o esforço de alfabetização que define historicamente a literacia enquanto «relação com as linguagens». (SILVESTRE, 2006, p. 127) Todavia, parece haver ainda uma espécie de justiça poética na raiz deste desbragado mercantilismo literário, o qual, mesmo que tenda a aproximar o leitor do corpo físico do livro, dificilmente o aproximará da chama oculta da palavra. A literatura mora aí e não numa insidiosa retórica comercial de guarda-chuvas e livros em branco, mas a verdade é que (e por isso falo de justiça poética), para lá da epidérmica face do star-system editorial português, julgo que é possível encontrar na literatura portuguesa de hoje um conjunto de escritores cuja solidez literária os afasta de uma conceção meramente deítica da escrita, aproximando-os proactivamente de um futuro onde a voz de cada um se encarregue de confirmar o potencial de ascendência cultural que, em modo de embrionária latência, o presente das suas obras permite já antever. De qualquer modo, não é minha intenção (nem seria inteligente se o fosse) erigir-me aqui em premonitória voz de um cânone a haver, até porque aquilo que, neste contexto, me interessa nos autores já referidos não é tanto promover o ingrato (e inútil) exercício da sua antecipação canónica, mas descrever o modo como neles se opera a textualização de um diálogo entre a dimensão necessariamente contemporânea das respetivas obras e a tradição literária ocidental, instaurando-se assim uma multímoda harmonia convivial entre o domínio periférico do cânone (de que cada um deles é ainda o inevitável corpo) e a representação nuclear desse mesmo cânone, onde GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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avultam nomes como os de Borges, Pessoa, Saramago ou Lobo Antunes. Na verdade, as palavras de José María Pozuelo sobre os movimentos de tensão dialética que, na topografia simbólica do cânone, regulam os circuitos de mobilidade entre a veneranda estirpe dos clássicos e a discursividade contemporânea do literário mostram-se razoavelmente inoperantes para descrever, no que concerne a estes jovens escritores portugueses, o sentido de fluidez discursiva que, no concreto da obra de cada um, parece querer presidir ao comum propósito de declinação da memória valorativa do sistema: Há potentes forças reguladoras que actuam preservando uma cultura da sua dissolução, mas, mesmo com essas forças, há uma constante tensão dialéctica entre o novo e o velho, o alto e o baixo, de forma que os estratos não canonizados pugnam por um lugar no centro do sistema. (POZUELO YVANCOS, 1995, p. 26) Nos romances Que Importa a Fúria do Mar (2013), de Ana Margarida de Carvalho, Anatomia dos Mártires, de João Tordo (2011), Os Meus Sentimentos (2005), de Dulce Maria Cardoso, No Meu Peito Não Cabem Pássaros (2011), de Nuno Camarneiro, e na inclassificável Enciclopédia da Estória Universal (2009), da autoria de Afonso Cruz, não é possível localizar a existência de um espaço tensional entre a textualidade que os enforma e a reminiscência modelar para que reenviam, mas antes uma distensão absolutamente inclusiva de nomes e de autores implícita ou explicitamente convocados no solo palpável da escrita, fundindo-se assim, na obra de cada um deles, o passado e o presente numa espécie de corpo textual único, o qual, em programática recusa de um entendimento demarcativo do cânone (como aquele que é defendido, por exemplo, por García Berrio), acaba por assinalar nada mais do que a existência de um claro sentido de parentesco estabelecido entre a referencialidade canónica do valor e a textualidade necessariamente periférica do presente. Talvez seja, então, possível ler, na argumentação desenvolvida por José María Pozuelo sobre o entendimento do cânone na teoria contemporânea, a chave da GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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sustentabilidade retórica deste singular parentesco estético-literário insinuado pela obra dos cinco autores mencionados: [O cânone] não se institui para recuperar um passado, mas para ajudar a constituir e justificar um presente. A eleição do corpus sobre o qual operar; o estabelecimento dos critérios que tornassem coerente a inclusão / exclusão de obras e autores, assim como a periodização e a taxonomização do material não corresponderia, em consequência, à existência de uma verdade exterior comprovável, mas antes à vontade de construir um referente à medida, capaz de justificar a maneira de viver e de pensar o mundo por parte da sociedade actual, a qual se veria protegida com o argumento da sua autoridade. (POZUELO YVANCOS, 1995, p. 137). Torna-se assim claro que, nos cinco livros a que passarei a referir-me, o exercício de convocação poético-simbólica de certos escritores que habitam hoje o núcleo mais restrito do cânone não visa promover a mobilidade canónica dos textos onde esse mesmo exercício se materializa (e será essa, julgo eu, a razão da inexistência, em qualquer um dos textos, de qualquer movimento tensional entre o novo e o clássico), buscando-se antes construir um referente à medida das inquietações estético-literárias de cada um dos autores. E tendo Osvaldo Silvestre chamado a atenção para aquilo que ele próprio designou por patologias da mimese (SILVESTRE, 2006, p. 137) - e que efetivamente corresponde à possibilidade de lermos, nas várias faces de um cânone nacional, a representação mimética do espírito um país -, atrevo-me a ir um pouco mais longe, ou se calhar um pouco mais ao lado da certeira observação de Osvaldo Silvestre: os textos contemporâneos, excluídos da representação nuclear do cânone em função do seu inalienável estatuto de novidade, ao invés de corporizarem patologias de uma mimese nacional que lhes é (ainda?) impossível induzir, tendem a exibir sintomas mais ou menos claros de uma patologia de orientação automimética, deslocando o objeto da especificidade histórico-espiritual da nação para o universo especular de uma auctoritas onde o seu próprio imaginário autoral se reflete. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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É, pois, neste sentido (ligeiramente diferente daquele que presidiu à enunciação da já famosa frase de Borges, publicada no seu ensaio «Kafka e os seus precursores», e que diz que «cada escritor cria os seus precursores» (BORGES, 2007, p.129)) que Afonso Cruz, Nuno Camarneiro, João Tordo, Dulce Maria Cardoso e Ana Margarida de Carvalho criam os seus precursores (sejam eles o próprio Borges, Kafka, Pessoa, Saramago ou Lobo Antunes): não porque os nossos jovens escritores tenham vindo expor a uma nova luz, reinterpretandoa, a obra nuclear destes cinco vultos do cânone literário ocidental (como sim fizeram Pessoa em relação a Camões ou o próprio Saramago em relação a Pessoa), mas porque a si próprios se criaram na duplicação imagética do outro, incorporando nas criações empreendidas a herança voluntária dos mestres. Publicado em 2013, o primeiro e, até agora, único livro da jornalista Ana Margarida de Carvalho, Que Importa a Fúria do Mar, é a prova em forma de romance de que é possível escrever sob a égide da tradição, de que é possível fazê-lo em movimento denegativo da tradição (basta recordarmos o higienismo prometaico das vanguardas europeias de inícios do século XX), mas também de que é impossível proceder à completa rasura, no corpo concreto dos textos, da memória integrativa do literário. Na verdade, o peso da tradição literária ocidental, de insuspeita filiação bloomiana, parece ter-se abatido sobre o romance de Ana Margarida de Carvalho, como a imposição exterior de um abrigo para o frio que afinal não havia – e isto porque Que Importa a Fúria do Mar (cujo título reenvia diretamente para o verso de uma das composições de intervenção do cantor português Zeca Afonso), um dos mais belos e inteligentes romances publicados nos últimos anos em Portugal, talvez não necessitasse de uma tão expressiva (e heterogénea) abundância epigráfica ou citacional, porquanto a verdadeira raiz da sua autoridade literária, mesmo no seio deste presente onde não acabou ainda de instalar-se, radica incomparavelmente mais na validade estética do seu discurso do que no simbólico abono dos escritores convocados: Camões, Pessoa, Régio, Cesário verde, Padre António Vieira. Machado de Assis, Manuel António Pina, Luiza Neto Jorge, José Gomes Ferreira, Manoel de Barros, Céline, Bertold Brecht, Chico Buarque, Sófocles, Mia Couto (a lista continua e não é pequena). Creio, todavia, que é GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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justamente isto que a autora pretende lembrar-nos com a sua extensa convocação autoral – de um modo ou de outro, todo o já escrito nos pertence, como uma herança voluntária de que somos todos o produto. Partindo da revolta do proletariado vidreiro na Marinha Grande, em 1934 (nos primórdios do Estado Novo), a qual ditou a deportação dos insurretos para a colónia penal do Tarrafal, em Cabo Verde, o romance de Ana Margarida de Carvalho ocupa-se da desocultação, em clave exclusivamente ficcional e por intermédio da jornalista Eugénia, do impossível amor entre Luísa Fradinho e Joaquim da Cruz, um dos prisioneiros do futuro campo ultramarino de tortura e que, com a vivida tinta do próprio sangue, escreve da prisão as cartas que, mais tarde, a caminho do embarque para Cabo Verde e através da janela do comboio, haverá de lançar na incerta direção da amada. Eugénia busca a história por detrás de Joaquim, uma espécie de personagem neorrealista pós-moderna, sobrevivente do campo do Tarrafal; Joaquim busca apenas, na fixidez obsidiante da memória, a quotidiana recusa do esquecimento e ambos acabam por projetar-se e aos seus fantasmas na imagem inacessível do outro, que assim lhes devolve a visão inexpugnável de um amor fatalmente vivido como denegadora projeção do real: [Eugénia] foi encontrar, nesse dia, em que se sentia subitamente cansada, grávida de pedras, como a pança do lobo, Joaquim sentado na cama. De costas voltadas, ainda sem a camisa vestida. Foi-lhe penoso contemplar as costas de um velho, cheias de sardas, injúrias da idade, sinais salientes murchos como borbotos, e a flacidez do que antes era músculo, agora feito pendões de pele, que se desembainhavam em várias pregas até à cintura. Muito lentamente, Joaquim começou a envergar a camisola branca interior de alças, depois a camisa. Os velhos levam sempre a lentidão nos gestos. Eugénia sabia que ele sabia que ela o observava. Havia muito tempo não gastavam palavras, apenas as necessárias. Nesse dia, salvo erro, pareceu-lhe, a Eugénia, que não trocaram nenhuma. Sentou-se a seu lado na cama. Joaquim mostrou-lhe uma moldura, nela estava GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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amarelecido um retrato em papel encarquilhado, esburacado, que já tinha sofrido tantas sevícias como aquele que o transportara durante anos. Era a segunda vez que Eugénia se confrontava com o retrato de Luísa. (CARVALHO, 2013, p. 232-233) Não era fácil confrontar-se com a sua rival, que assumia perante ela todas as vantagens, inclusive e principalmente a de não ser de carne e osso, mas de papel emoldurado. (…) Guardou a humilhação para si. Eugénia amava-o, não tinha dúvidas. Joaquim amava Luísa, também não restavam dúvidas. Mas, até certo ponto, os seus dissabores de coração confluíam. Estavam ambos apaixonados por uma projecção. Ele pelo retrato de uma mulher que nunca fora. Ela por um homem que há muito deixara de o ser. (CARVALHO, 2013, p. 233) Sendo, como é, um primeiro livro, o romance Que Importa a Fúria do Mar é um romance que de primeiras linhas tem muito pouco, porque não é um texto que surge como o prenúncio feliz da maturidade futura da autora, mas, ao contrário, é já a prova visível de que há escritores que parecem nascer assim, em modo de quase acabamento. Há uma expressão muito bela do poeta português António Osório em que ele se refere à necessidade de uma «vulcânica orquestração de pianíssimos» (OSÓRIO, 2009, p. 262) no corpo da poesia (ou, mais latamente, de toda a literatura), que é como quem diz, busque-se o máximo de intensidade através de um mínimo de retórica, expurgando da malha mais superficial das palavras o excesso para que elas depois apontam. E este é um romance assim, de uma beleza vulcânica, brutal, porém escrito a partir da surdina interna da lava. Intitulado No meu Peito Não Cabem Pássaros (de 2011), o romance de estreia de Nuno Camarneiro (o escritor que venceu, em 2012, o Prémio Leya com o livro Debaixo de Algum Céu) vem justamente propor, na senda das afirmações de José María Pozuelo, a validação estética do presente através do processo de conversão ficcional de três dos maiores referentes da história literária do Ocidente: Kafka, Pessoa e Borges. Todavia, ao caráter assumidamente explícito deste exercício de voluntária retextualização do cânone, o GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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escritor parece querer contrapor a necessidade da sua fantasiosa anonimização, ao instalar em três distintos espaços geográficos (Nova Iorque, Lisboa e Buenos Aires, com uma pequena incursão final por Genebra) uma tríade figurativa apenas reconhecível na trivialidade do primeiro nome – Fernando, Jorge e Karl. Na realidade, ao contrário do que sucede com Jorge e com Fernando, Karl era já produto de uma ficção alheia, mesmo antes de adentrar o romance de Camarneiro: trata-se da personagem Karl Rossmann, do incompleto primeiro romance de kafka (A América – ou em português O Desaparecido) e que o seu editor e amigo Max Brod publicou postumamente, em 1927. Em melancólica deriva automimética do autor, e fluindo sempre em paralelo (uma vez que as três personagens não chegam nunca a habitar o espaço geográfico e discursivo da interlocução), os monólogos de Jorge, Fernando e Karl correspondem à insanável geografia de um desacerto entre a voz do sujeito e a instabilidade macular de um mundo onde, apesar disso, e para cada um deles, é preciso continuar a viver. O sujeito a várias vozes deste livro é, pois, o de um peito onde não cabem pássaros, como confessa Fernando na sua adiada febre de infinito: «-Vai um pássaro a voar baixinho, tia, é lindo e vai perdido a voar. Aqui não é céu de pássaros. Tenho muito calor dentro de mim, tia, tenho calor e falta-me o ar. Leve o pássaro para a rua, lá para onde puder voar. No meu peito não cabem pássaros» (CAMARNEIRO, 2011, p. 36). Em face do seu desajustamento num mundo cuja possibilidade de leitura transcende a enciclopédica obsessão de Borges, resta apenas a cada um deles (e a Kafka, por intermédio de Karl) a trabalhada alternativa da imortalidade, de que o livro de Camarneiro é talvez a mais justa das evidências: Por alguma razão quis acreditar [está a falar-se de Borges] que entre tanta folha escrita haveria algures de estar o próprio. Passou muito tempo à procura em enciclopédias, compêndios e romances, mais tarde em contos e poemas, já com menos vida pela frente e outras ambições. Num momento certo soube desiludir-se e mudar de estratégia, passando a escrever-se. (CAMARNEIRO, 2011, p. 181) Agora, que pensa nisso, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Jorge não quer morrer. Além de ser um desperdício, parece-lhe deselegante e banal, afinal de contas não nasceu para isso. Lamentavelmente, existem poucas alternativas, poderia não ter nascido, mas o mal está feito e é irreversível. Resta então a imortalidade com todas as dificuldades que representa. (CAMARNEIRO, 2011, p. 187) Resta-lhe imortalizar-se por obra feita, deixar por cá coisa que se veja e não se possa ignorar, um monumento que atrapalhe a humanidade toda. (CAMARNEIRO, 2011, p. 188) De explícita inscrição aforística, a Enciclopédia da Estória Universal, publicada por Afonso Cruz em 2009 (e de que saíram entretanto outros dois volumes, com os subtítulos «Recolha de Alexandria» (2012) e «Arquivos de Dresner» (2013)) corresponde a um simultâneo e singularíssimo exercício de mistificação do cânone antologiado e de desmistificação do modelo canónico que a própria obra toma por referente. Atestando, na sequência das palavras proferidas por Jorge no romance de Nuno Camarneiro, o seu estatuto nuclear de «monumento que atrapalhe a humanidade toda», Jorge Luis Borges converte-se na sombra por trás da mão com que Afonso Cruz pretende dar corpo ao seu propósito de cartografar enciclopedicamente o universo, socorrendo-se, para o efeito, de factos que o são e de outros que não são mais do que engenhosas ficções, que o mesmo é dizer, evidências escandalosamente ignoradas pelo discurso enciclopédico comum. A autorictas canónica dos autores que integram, como guardiães ocultos de uma esquecida verdade, as páginas desta Enciclopédia da Estória Universal (e cuja enunciação visa, justamente, legitimar o singular mapeamento do mundo empreendido pelo autor) é, pois, tão real como real é a sua mistificação. Assim, os autores convocados ao longo da obra e posteriormente reunidos na Bibliografia final, com honrosas exceções como as de Homero ou Nicolau de Cusa, não têm existência empírica e são, de acordo com a confissão expressa no texto final do volume, «pura invenção» (CRUZ, 2009, p. 127) – nem o Visconde Anagramático, o suposto autor de Memórias Geométricas, nem sequer Théophile Morel, o enigmático autor de Ensaio sobre Livros que GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Raramente Existem, têm de facto consistência real, o que, curiosamente, em nada parece debilitar o sentido de autoridade apenso ao seu nome e aos muitos ensinamentos que, ao longo da enciclopédia, lhes vão sendo atribuídos. Creio que este facto ficará a dever-se à já referida patologia automimética de que sofrem pelo menos alguns dos escritores portugueses contemporâneos, como é o caso de Afonso Cruz – o cânone imaginário reunido nesta Enciclopédia da Estória Universal não vem propriamente validar a representação especular de um real a reclamar a urgência da recolha enciclopédica, investindo assim na visão pessoal do autor o seu potencial de representação e o referente da sua ambígua autoridade. O texto final da Enciclopédia, intitulado «Comentário à Enciclopédia de Estória Universal», da autoria não de Afonso Cruz, mas de Théophile Morel (o tal autor fictício que escreveu um ensaio sobre livros que raramente existem), é bastante claro na denúncia dos labirínticos circuitos inerentes à enciclopédica dizibilidade do real: A Enciclopédia da História Universal é uma herança de Ulisses, ele próprio motivo de apologia pelas suas burlas (construiu a mentira mais famosa de sempre, de madeira e com forma de cavalo), pelos seus esquemas, logros, patranhas, manhas e artimanhas. (…) Está no pólo oposto à enciclopédia de Diderot e d’Alembert, na altura da sua edição. Hoje, podemos dizer que a dos iluministas é também uma grande burla – e que as suas verdades, ironicamente, são tão ficção como as desta Enciclopédia. E se não são tão fantasiosas, para lá caminham, como fazem todas as certezas. (…) Nada neste livro pode ser considerado um facto objectivo e tudo, ou quase tudo, podemos assegurar, é pura invenção. (…) Creio que as referências bibliográficas são falsas, bem como as citações. (CRUZ, 2009, p. 127) O que sabemos é que não existe nenhuma realidade factual, que as coisas são muito mais aquilo que sentimos do que aquilo que realmente aconteceu. O conteúdo da mentira ou da história, o seu caroço, é um GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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arquétipo, e contém tanta verdade como qualquer símbolo pode conter. (CRUZ, 2009, p. 128) Num texto publicado em 1996, cujo título revela já a herança pessoana do seu autor (estou a referir-me ao romance Outrora Agora, de Augusto Abelaira), o narrador afirma o seguinte, a propósito de um diálogo entre as personagens Jerónimo e Filomena: «Certos sentimentos do Pessoa, nós interiorizámo-los. Sem o Pessoa seríamos outros e é essa a diferença entre um grande escritor e um escritor simplesmente bom» (ABELAIRA, 1996, p. 244). Na verdade, talvez a grandeza última de Pessoa esteja no facto de ele ter sabido, como poucos antes dele e não muitos depois dele, legar às gerações futuras a sua forma de pensar e o seu modo de entender o labor oficinal da literatura, inaugurando assim uma nova escala de pensamento e escrita que nunca mais foi possível expurgar da memória coletiva da nação. Deste modo, se submetermos a leitura desta frase, proferida pelo narrador abelairiano, ao crivo epistemológico da teoria do cânone, libertando-a em simultâneo da obrigatoriedade modelar de Pessoa, facilmente concluiremos que os autores aos quais atribuímos um posicionamento topográfico nuclear na configuração sistémica do cânone não podem senão coincidir com aqueles que, sujeitos à alheia interiorização do seu modelo, reconfiguram a forma de pensar de toda uma comunidade cultural e ainda o modo como esse pensamento se transmuda em palavra escrita. Dizendo-o de outra maneira, há de facto escritores (como José Saramago ou António Lobo Antunes, apenas para referir dois exemplos recentes) sem os quais a literatura portuguesa de hoje seria necessariamente outra, tanto ao nível da conformação imagética dos mundos possíveis veiculados, como ao nível da disposição estilístico-estrutural da sua própria discursividade. Creio, por isso, poder afirmar que, à semelhança de Augusto Abelaira, também os jovens romancistas João Tordo e Dulce Maria Cardoso terão desta realidade (a da reconfiguradora persistência modelar de nomes como Saramago e Lobo Antunes) uma consciência particularmente acutilante, porquanto as respetivas obras têm permitido concluir da rendibilidade hermenêutica do seu diálogo com o macrotexto de Saramago e de Lobo Antunes. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Sabendo que, como se anuncia nas primeiras páginas do romance As Três Vidas, «a própria realidade é objeto de ficção» (TORDO, 2012 [2008], p. 15), os livros de João Tordo expõem um universo narrativo marcado pela reiterada indecidibilidade entre os conceitos de realidade e ficção, ficção e história, realidade e mito, universo este que, sendo estruturalmente comum à globalidade dos livros do autor, encontra no romance Anatomia dos Mártires (de 2011) um espaço de acolhimento singularmente feliz. Obsessivamente preso à impossível desocultação da verdade por trás do mito de Catarina Eufémia (a camponesa tombada ao chão pelo fascismo e levantada mártir pelo discurso programático do comunismo), o narrador de Anatomia dos Mártires, jornalista de profissão, acaba por compreender que os vários biombos que inviabilizam o nosso acesso à verdade do real começam a erguer-se no exato momento em que olhamos esse mesmo real, certeza esta que parece valer para qualquer visão possível do mundo – História, romance ou memória do vivido, todas elas razoavelmente reais e razoavelmente ficcionais. A reprodução da verdade no discurso da História é, pois, uma construção geneticamente manipulada pelo trabalho parcelar do olhar ou, se quisermos, pela inevitabilidade do gesto efabulador subjacente a todo o processo representativo: na impossibilidade de aceder à verdade por trás do mito de Catarina Eufémia, o narrador acaba por concluir que «os mártires são no fundo uma invenção nossa» (TORDO, 2011, p. 163), tal como «a História é uma invenção nossa» (TORDO, 2011, p. 163) e «que, em relação aos episódios remotos, a História tinha o carácter paradoxal da ficção, mergulhando qualquer episódio num espaço de meias-verdades e de meias-mentiras que, se não tivéssemos cuidado, poderiam levarnos ao cepticismo mais absoluto ou ao dogmatismo mais desenfreado» (TORDO, 2011, p. 153).2 2

Aliás, na obra de João Tordo, a frequente migração de algumas personagens entre os vários romances do autor vem justamente sublinhar o indecidível estatuto destes seres (aparentemente de papel), mas cujo trajeto migratório parece querer forçar a descrença do leitor relativamente à sua natureza ficcional. Como quem diz: se há personagens capazes de transitar de um romance a outro, e pela mão de diferentes narradores, é porque a sua verdade é passível de transcender o limite restritivo da ficção.

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Ora, o relativismo perspetivista inerente a qualquer discurso sobre o real (já presente, aliás, no livro de Afonso Cruz) é precisamente um dos aspetos que, em meu entender, aproxima a obra de João Tordo da cosmovisão literária de José Saramago, o que, é preciso que se note, não faz de João Tordo um epígono de Saramago (até porque não é visível, nos seus livros, nenhum propósito de emulação do mestre de Ensaio sobre a Cegueira), mas acaba por atestar a pertença de ambos a uma idêntica esfera de valores, convertendo-os em artífices mais ou menos confessos do mesmo tipo de inquietação. Em Dulce Maria Cardoso, todavia, a sombra tutelar do cânone, esse referente à medida de que fala José María Pozuelo, parece atingir não apenas, como em Tordo, a sustentabilidade efabulatória do romance, mas ainda (ou sobretudo) a conformação estilístico-estrutural da uma escrita que, declinando o exemplo modelar do mestre, igualmente recusa para si o desprestígio de um libelo de cariz epigonal. O concreto da obra de Dulce Maria Cardoso, e em particular esse extraordinário romance intitulado Os Meus Sentimentos (de 2005), como que procede à cartografia imaginária das suas próprias referências, onde pontuará algo da lição de Saramago (visível, por exemplo, na escolha da vírgula como sinal de articulação preferencial), mas cujo núcleo é efetivamente ocupado pela referencialidade canónica de António Lobo Antunes: inesperadamente não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa, durante algum tempo, segundos, horas, não sou capaz de mais nada, inesperadamente paro, a posição em que me encontro, de cabeça para baixo, suspensa pelo cinto de segurança, não me incomoda, o

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meu corpo, estranhamente, não me pesa, o embate deve ter sido violento, não me lembro, abri os olhos e estava assim, de cabeça para baixo, os braços a bater no tejadilho, as pernas soltas, o desacerto de um boneco de trapos, os olhos a fixarem-se, indolentes, numa gota de água parada num pedaço de vidro vertical, não consigo identificar os barulhos que ouço, recomeço, não devia ter saído de casa, não devia ter saído de casa, são tão maçadoras as lengalengas durante algum tempo, segundos, horas, não sou capaz de mais nada, devo ter caído muito longe da auto-estrada. (CARDOSO, 2009, p. 9).

Esta é a voz de Violeta, projetada como num espelho invertido, na gota de água em que, depois do acidente, o seu olhar se fixou e que assim parece devolver-lhe, em desconexão não mais do que aparente, as imagens de uma vida desde sempre marcada pelo anátema da exclusão e do desajustamento. Sexualmente promíscua e doentiamente obesa, com um irmão bastardo sobre o qual recai o ónus da paternidade da sua filha Dora, Violeta é um exemplo paradigmático dessa solidão gutural do ser humano de que se nutrem, em angustiada gula, as ficções de Lobo Antunes, pelo que poderia integrar-se sem problemas na imensa galeria de personagens construídas pelo autor de Memória de Elefante, mais ou menos defluentes de uma imagética suburbana de recorte ocasionalmente pós-colonial. Há ainda no romance Os Meus Sentimentos, como de resto em quase todos os textos de Lobo Antunes, a convicção subliminar de que não existe beleza sem violência e talvez também por isso o livro de Dulce Maria Cardoso tenha tantas arestas, tantos sobressaltos discursivos, intercalando o tempo das falas por vezes até ao limite da sua perceptibilidade. Porém, a corrente sinuosa de um refrão (por exemplo, «conheço o amor de ouvir falar» (CARDOSO, 2009, p. 41, 50, 52) ou «tenho de fazer o que tenho de fazer» (CARDOSO, 2009, p. 20, 22, 26, 28)), que se repete, como se de um mantra diegético se tratasse, ao longo de toda a narrativa, vem GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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sabiamente estender a mão ao leitor, tal como sucede nos livros de Lobo Antunes, para que o mesmo leitor não se perca nos inúmeros afluentes da escrita. Embora o poeta Alberto de Lacerda não tenha entrado no domínio restrito das minhas preocupações mais diretas, gostaria de concluir com a referência a um poema da sua autoria (publicado em Oferenda II), um poema que muito admiro e que, não induzindo sequer uma reflexão sobre a questão do cânone (é apenas das paredes da memória que o poeta se ocupa), ao colocar a tónica na interdependência sistémica do que está antes e do que está depois, do que está dentro e do que está fora, como que viabiliza uma leitura lateralizante do cânone: Hei-de ter coragem para enfrentar as gavetas Para reler uma por uma as cartas todas Apalpar as paredes da memória Decifrar os fragmentos as fotografias Hei-de ter coragem para quebrar Certas lâminas do tempo Hei-de ter coragem para abrir as gavetas Hei-de ter coragem para rever a placenta Investigar a poeira Regressar para a frente Avançar para trás Hei-de ter a coragem de devolver ao tempo O que pertence ao tempo e não À árvore da minha vida Hei-de descer as escadas do último andar Onde os degraus são mais íngremes Queimar os lenços da memória Arder Hei-de arder Hei-de verificar os degraus heraclitianos (LACERDA, 1994, p. 147)

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Efetivamente, a construção do cânone literário de uma comunidade, seja ela nacional, geograficamente localizada (como pretendeu Bloom) ou de inscrição mais universalista parece erguer-se através da sobreposição de uma série de degraus heraclitianos, cujo movimento contínuo possibilita a alternância derivativa do entre-dois entre o novo e o velho, o antigo e o mais recente e que são sempre, afinal, versões distintas do mesmo problema inicial. Impondo-se a progressiva necessidade de se ir institucionalmente assinalando o que pertence apenas ao tempo e não à instável árvore do cânone, é como se alguns dos novos romancistas portugueses tendessem a regressar para a frente de uma margem que a si própria se nega, avançando, todavia, para trás na historiografia imaginária do valor. ABSTRACT: By evoking Sibony's figure of the between-two, we suggest a non-contrastive reading of the literary canon, illustrating it with the most recent Portuguese narrative fiction which appears to be moving towards the legitimation of a canonical between-two. Thus, in the concrete space of its textuality, both its distinctive sense of innovation and the weight of tradition, whether implicitly or explicitly referred to, flow together. KEYWORDS: Narrative; Canon; Innovation; Tradition

REFERÊNCIAS: ABELAIRA, Augusto. Outrora Agora. Lisboa: Editorial Presença, 1996. BORGES, Jorge Luis. Kafka e os seus precursores. In Outras Inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [1952], p. 127130. CAMARNEIRO, Nuno. No meu peito não cabem pássaros. Lisboa: D. Quixote, 2011.

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CARDOSO, Dulce Maria. Os Meus Sentimentos. 2. ed.. Alfragide: Asa, 2009 [2005]. CARVALHO, Ana Margarida de. Que Importa a Fúria do Mar. Alfragide: Teorema, 2013. CRUZ, Afonso. Enciclopédia da Estória Universal. Lisboa: Quetzal, 2009. LACERDA, Alberto de. Oferenda II. Lisboa: INCM, 1994. OSÓRIO, António. A Luz Fraterna. Poesia Reunida. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009. POZUELO YVANCOS, José María. El canon en la teoría literaria contemporánea. Valencia: Ediciones Episteme, 1995. SIBONY, Daniel. Entre-deux. L’origine en partage. Paris: Seuil, 1991. SILVESTRE, Osvaldo Manuel Alves Pereira. Revisão e Nação. Os Limites Territoriais do Cânone Literário. 2006. Dissertação de Doutoramento. Faculdade de letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2006. TORDO, João. As Três Vidas. Lisboa: D. Quixote, 2012 [2008]. TORDO, João. Anatomia dos Mártires. Lisboa: D. Quixote, 2011.

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O POEMA “PORTA ABERTA TOCHA ACESA”, DE CONCEIÇÃO LIMA Jane Tutikian 1 Para Inocência Mata O degrau há-de ranger ao primeiro passo. Subirás devagar, concreto sem pisar a tábua solta no soalho. A porta estará aberta, a tocha acesa (C.L.) Há poetas que lutam com as palavras e as aprisionam tentando entender o mundo. Há poetas que lutam com as palavras e as libertam para que o mundo, em liberdade, se entenda. Os primeiros revelam, não raro, interesses convencionais quanto ao comportamento social e literário. Os outros, em contrapartida, complexificam para simplificar, encontram para desencontrar e reencontrar, causam perplexidade e comprometimento, impossibilitam o distanciamento entre o ser o que se é e o viver o que se vive. Propõem o espelhamento em que vida, pertença, humano se constituem. Os outros não se submetem à seqüência tradicional nem do verso nem do poema , num, por exemplo, eixo de acontecimentos de causa-efeito, de uma passagem de um equilíbrio a outro equilíbrio, de onde resulta o movimento e o seu ritmo, o que caracteriza a ação canonizada. Os outros, só eles são capazes de experimentar na carne de que a alma é feita a casa do poema porta aberta tocha acesa e, não raro, o encontro com a solidão, com a saudade, com a melancolia e com a força de saber da sua própria força, o verbo: “Direi teu nome e tu serás.” (Lima, 2004, p.49)

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É porque esses, os outros, são especiais, são os que mergulham no realismo percepcional ( de onde não excluo, no caso africano, as crenças e suas práticas ou, em outras palavras, a cultura mítica) para tirar dele uma realidade outra, mais sentida, mais vivida, porque vivida também em outras peles. Eles são incapazes de se perceberem só no tempo da vida, porque seu tempo são todos os tempos, é consciência histórica é interpretação social. Nesse sentido, mas com uma voz fortemente individuada, Conceição Lima segue uma tradição, aquela que Inocência Mata (1993, p.33) tão bem sintetiza: "Nessa poesia social, toda a História das ilhas é "estoriada", segundo um percurso que remonta" à escravidão, à profanação da terra com a entrada de elementos da cultura ocidental, " dando forma a uma revolta centenária a que se junta o projeto de salvaguardar a personalidade africana através de um patrimônio cultural e transnacional." (Ibidem) Mais adiante, comenta, ainda, Inocência, " mas a sageza africana pressupõe a comunhão ancestral e a hierarquização sociofamiliar que denuncia, uma mundividência comunitária." (Idem,ibidem) Pois esta é a matéria de criação de Conceição Lima: a casa São Tomé e Príncipe e o Continente. Natural de Santana da ilha de São Tomé, a poeta se situa na linhagem de poetas como o grande Francisco José Tenreiro e de Alda do Espírito Santo, - grave voz santomense - com quem dialoga para “resgatar a praça em nova festa/ para ressucitar o povo e sua gesta” (Lima, 2004, p.50), enfim, da geração dos idos de 40 a 60. É a insularidade, comenta Inocência Mata (1993), em toda a sua imanência geopsicoscultural e socioeconômica a matriz das formas literárias de São Tomé e Príncipe, mas não a insularidade do ilhamento, da solidão. Jovem, ao mergulhar no Tellus Mater, numa expressão singular, porque sua, a poeta vem se reafirmando a cada nova obra como um dos grandes nomes da poesia do pós-independência. Tomemos de O útero da casa (2004), o poema “Mátria” (Idem, p. 17), que inicia o livro. Quero-me desperta se ao útero retorno GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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para tactear a diurnal penumbra das paredes na pele dos dedos reviver a maciez dos dias subterrâneos os momentos idos

Esta é a porta de entrada, se entendermos que é o espaço e não o tempo o que guarda a memória. E se o espaço é a casa, ela pode ser revisitada, através da literatura, na tentativa de desvendar-lhe não apenas os espaços iluminados, mas também os espaços sombrios, que o tempo, por si só, não é capaz de reconstruir. É justamente na penumbra que a poeta mergulha, tentando iluminar-lhe os sentidos. A casa útero, a mátria, é templo, é sacralizada, e se há melancolia da perda, há também uma grave crença: Creio nesta amplidão de praia talvez ou de deserto creio na insônia que verga este teatro de sombras (Lima, 2004, p.17) porque o corpo deste templo mátrio, do castelo melancólico, é força e é rumo, é feito de “tabuas rijas e de prumos”. O poema que segue é, então, “A casa”, a casa projetada num outro aqui, um projeto inacabado porque a pertença, a verdadeira pertença de quintal “plano, redondo sem trancas nos caminhos” é de uma outra ordem, da geografia primeira. É da diáspora, “da casa do exílio” como aparece no poema “Herança”, que Conceição Lima vai construindo e reconstruindo sua imagem da casa da pertença, como um universo que constrói para si mesma, imitando a criação paradigmática dos deuses, a cosmogonia, para lembrar Eliade (1979). E como o faz pelo poema, a poeta lida, simultaneamente com imagens dispersas e com um corpo de imagens, valorando da realidade o real, tornando-o, assim, consciência. É como o eu enunciador vai revisitando as origens nas “Ilhas”: GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Em ti me projecto para decifrar do sonho o começo e a consequencia Em ti me firmo para rasgar sobre o pranto o grito da imanência. (Lima, 2004, p.27) e reconstruindo, poeticamente, a história de São Tomé e Príncipe, trazendo o drama do colonialismo e do que dele sobrou. Nas palavras de Inocência Mata, São poemas que, situando-se num plano reflexivo, constroem o relato de uma geração, metonímia de um segmento narrativo no relato da nação. Nessa reconstituição narrativa da nação, o sujeito enunciador combina lembranças de um tempo politico e reúne esparsos elos do passado nacional para lhe conferir uma iluminura projectiva, pelo viés da movimentação afectiva e intimista. O fluxo histórico na poesia de Conceição Lima parece ser a força motriz da produção de sentidos. (Lima, 2004, p.12) De fato, a história do País está lá e o processo do colonialismo foi tirânico, paternalista, perverso, de sobreposição cultural, de exploração. Já no século 16 desenvolvem-se grandes plantações de açúcar, havendo a necessidade de busca de milhares de escravos do continente africano. As ilhas de São Tomé e Príncipe chegam a contar com cerca de 60 engenhos de açúcar. É o tempo da revolta dos escravos angolanos, ainda hoje verdadeiros símbolos desta região da África. Aos poucos, estas ilhas assumem uma enorme importância estratégica para os portugueses, como ponto de escala nas rotas de navegação, mas também para o próspero comércio de escravos do Congo e Angola. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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No século 19, são introduzidos o café e o cacau, criando-se grandes plantações e, a abolição da escravatura, em 1869, não terminou com o trabalho de escravo. Os escravos passam a ser denominados "contratados". Milhares de africanos, sobretudo de Cabo Verde, Angola e Moçambique, são forçados a trabalhar para os grandes proprietários numa nova forma de escravidão. Daí o alerta de Inocência Mata de que na mundividência santomense não há possibilidade de se falar de dualidade cultural, mas de uma " identidade de formação mestiça que nos meados do séc. XIX começa a estruturar-se definitivamente como africana na sua matriz psicocultural e antropológica". ( Mata, 1993, p.64) O século 19, tido como o da segunda colonização, representa uma ruptura na medida em que a figura do português cede lugar à imposição de uma nova presença, que é a do africano. E, com a exploração do café e do cacau, começa, também, a haver a distinção social entre brancos e mestiços, que, então, se equiparam aos forros. Se por um lado, esse século representa a implementação da agricultura, por outro, reduz “ o já insignificante desenvolvimento social." (idem, p. 109) Um dos poemas mais densos de O útero da casa é o belíssimo “ Manifesto imaginado de um serviçal” (Lima, 2004, p. 35), ao cantar o chão inconquistado. [...] clamo o pó que reclama a exaustão serena do meu corpo. Não mo podeis usurpar, ngwêtas, com o ferro da vossa força. Não mo negueis, ó híbridos forros, com o vosso frio desdém de séculos. Este barro é meu, espinho a espinho penetrou o osso dos meus passos como um sopro cruel e palpitante. Até ao fim onde [agora começo porque a morte é o estuário de onde desertam os barcos [todos que cavaram meu destino. Irmãos: Pelo mar viemos com febre. De longe viemos com sede. Chegamos de muito longe sem casa. [...] GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Ilhas! Clamai-me vosso que na morte Não há desterro e eu morro. Coroai-me hoje de Raízes de sândalo e ndombó Sou filho da terra. Surgem revoltas contra o colonialismo e contra as atrocidades e abusos praticados pelos grandes proprietários. Entre as ações repressivas, a chacina que, em Fevereiro de 1953, realizou o governador do território, Cel. Carlos Sousa Gorgulho, o massacre de Batepá, recorrente nas três obras da autora. Era Fevereiro e a infância sussurrava Na varanda eterna da casa antiga Onde como fogo aceso persiste a tua face (Lima, 2004, p.56) O principal problema da ilha, sobretudo a partir do século 19, foi a distribuição muito desigual da terra. De um lado, nas mãos dos grandes proprietários, plantações extremamente lucrativas, e do outro, uma agricultura de subsistência. Em 1950-1955, por exemplo, aos nativos (52% da população) pertencia menos de 1% dos totais dos produtos ricos que estavam na base das exportações da ilha (cacau, café, oleaginosas, quina, canela, banana).Esta situação acabou por se tornar insustentável. Em 1960, é fundado o Comitê de Libertação de São Tomé e Príncipe, transformado em 1972, num Movimento de Libertação (MLSTP). Chega-se, então, à independência. Como em Cabo Verde, em 1975, foi instaurado um regime monopartidário. Nesta altura, as roças foram nacionalizadas, provocando a saída de 4 mil portugueses. As estruturas econômicas são afetadas. Os conflitos se sucedem. Em 1980, entram no país cerca de 2.000 angolanos, conselheiros soviéticos e cubanos. O desmoronar da União Soviética, a partir de 1989, provoca o fim dos apoios internacionais deste regime. Em 1990, é aprovada uma nova constituição, multipartidária, pondo fim ao regime anterior, mas não às tentativas de golpes de estado. Em 1995, um grupo de oficiais das forças armadas volta a GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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apoderar-se do poder. Esta situação de conflitos latentes acaba por depauperar a já frágil economia do país. Conceição Lima evoca 1975, transformando em imagens seus fantasmas. Se os heróis “indagam por suas asas crucificadas” (Lima, 2004, p.25), se os mortos perguntam “Que reino foi esse que plantámos?” (Idem, p. 30), a geração da Jota (Lima, 2004, p.24) encontra a distopia. E quando te perguntarem responderás que aqui nada aconteceu senão na euforia do poema. Diz que éramos jovens éramos sábios e que em nós as palavras ressoavam como barcos desmedidos Diz que éramos inocentes, invencíveis e adormecíamos sem remorsos sem presságios [...] Oh, sim! Éramos jovens, terríveis mas aqui – nunca o esqueças – tudo aconteceu nos mastros do poema. A ideia da herança e da distopia retorna em “Afroinsularidade” (Lima, 2004, p.39), porque Deixaram nas ilhas um legado de híbridas palavras e tétricas plantações engenhos enferrujados proas sem alento nomes sonoros aristocráticos e a lenda de um naufrágio nas Sete Pedras […] E nas roças ficaram pegadas vivas GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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como cicatrizes – cada cafeeiro respira agora um escravo morto. E nas ilhas ficaram incisivas arrogantes estátuas nas esquinas […] Aqui, neste fragmento de África onde, virado para o Sul, um verbo amanhece alto como uma dolorosa bandeira.

Em A dolorosa raiz do micondó (2006), o segundo livro de poemas de Conceição Lima, a inquietação da história permanece e amplia-se, mas a casa, a casa está lá. É preciso mais, é preciso o encontro com as raízes gentes, que também são casa, referência, abrigo, porque as raízes gentes são como as do micondó, profundas, capazes de sustentar vinte metros de altura e dois mil anos de tempo, a árvore sagrada. O poema “Canto obscuro às raízes” é, sem dúvida, um dos grandes poemas da literatura africana de língua portuguesa, ele se volta para a recuperação da ancestralidade num diálogo antológico com a evocação de Alex Haley (1921-1992), jornalista e escritor afroamericano, que no romance Roots (1976) trabalha o tema da busca da origem. E, aí, o sujeito lírico se agranda. Eu que trago deus por incisão em minha testa e nascida a 8 de Dezembro tenho de uma madona cristã o nome. A neta de Manuel da Madre de Deus dos Santos Lima que enjeitou santos e madre ficou Manuel de Deus Lima, sumu sun Malé Lima Ele que desafiou os regentes intuindo nação — descendente de Abessole, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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senhor de abessoles. Eu que encrespei os cabelos de san Plentá, minha três vezes avó e enegreci a pele de san Nôvi, a soberana mãe do meu pai Eu que no espelho tropeço na fronte dos meus avós... Eu e o temor do batuque da puíta o terror e fascínio do cuspidor de fogo Eu e os dentes do pãuen que da costa viria me engolir Eu que tão tarde descobri em minha boca os caninos do [antropófago... Eu que tanto sabia mas tanto sabia de Afonso V o chamado Africano Eu que drapejei no promontório do Sangue Eu que emergi no paquete Império Eu que dobrei o Cabo das Tormentas Eu que presenciei o milagre das rosas Eu que brinquei a caminho de Viseu Eu que em Londres, aquém de Tombuctu decifrei a epopeia dos fantasmas elementares. Eu e minha tábua de conjugações lentas Este avaro, inconstruído agora Eu e a constante inconclusão do meu porvir Eu, a que em mim agora fala. (Lima, 2006, p.11-19) GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Eu, a que em mim agora fala é mais do que eu, é São Tomé e é África, ainda que perdida na linearidade das fronteiras, é tradição, é essencialidade, é oralidade e é história. Aqui, ao colonialismo, a “Anti-epopéia” (Idem, p. 20) às avessas, na colaboração dos negros, a denúncia da ganância e a avidez por bugigangas como produto de troca. O poema que segue é “Espanto” (Idem, p.21), onde Conceição Lima diz, com rara sensibilidade e com grande força imagética o silêncio de quem partiu como escravo. “Zálima Gabon” (Idem, p.22) também retrata a escravidão e as mortes decorrentes desse processo como uma memória que marca o arquipélago: Falo destes mortos como da casa, o pôr do sol, o curso [d’água São tangíveis com suas pupilas de cadáveres sem cova a patética sombra, seus ossos sem rumo, sem abrigo. Impressiona a consciência que Conceição Lima tem do seu próprio processo de criação, daí o domínio que demonstra sobre a palavra e o verso, porque o poema é também objeto do poema. Referindo-se a Nigéria e Biafra, quando os EUA, através da Joint Churches Aid , montaram uma ponte aérea a partir de São Tomé e Príncipe, com o intuito de auxiliar o Presidente Ojukwu e o povo do Biafra no abastecimento de necessidades básicas como alimentação e medicamentos.Foi, na ocasião, criado um internato exclusivo dentro do Hospital Central, bem como diversas casas de zinco para residência oficial das crianças da Biafra, na sede da Quinta de Santo António. A guerra deixou dois milhões de mortos. Ao mesmo tempo em que canta o “Espectro de Guerra” (Idem, p.30-32), […] Um dia fui ao hospital e vi esqueletos. Eram pequenos como nós e eram esqueletos. Só tinham cotovelos olhos e joelhos. Estavam deitados nas camas, muito quietos, presos a uns GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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fios com balões de vidro. Eram muitos e vinham de noite nos aviões. Não sei quantos saíram do hospital aumentado para os seus ossos. a poeta pensa o poema: Sei que certos poemas juntam os versos como se os deitassem numa vala comum. Certos poemas sentem dó da metáfora, trancam a porta na cara da rima. São vítreos olhos em flácidos corpos. [...] O poema, a história, a casa, sempre a casa, porque “Inegável” (Ibidem, p. 54): Por dote recebi-te à nascença e conheço em minha voz a tua fala. No teu âmago, como a semente na fruta o verso no poema, existo. Casa marinha, fonte não eleita! A ti pertenço e chamo-te minha como à mãe que não escolhi e contudo amo. E conta a lenda, renovando as esperanças, que “Há-de nascer de novo o micondó”... “Reabitaremos a casa, nossa intacta morada” (Ibidem,p.67-68), num alerta de que o passado, anterior ao sofrimento, não morre e a casa da pertença é também proteção. Se há, em Conceição Lima, a denúncia de todas as destruições do processo GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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colonizador, há também a esperança e a simplicidade complexa da constatação de o cosmos das ilhas é feito de matéria outra. ARQUIPÉLAGO

O enigma é outro — aqui não moram deuses Homens apenas e o mar, inamovível herança. (Lima, 2006,p. 53) O país de Akendenguê (2011), o terceiro livro de Coceição Lima, é, por ventura, o mais elaborado, nele, anuncia o escritor Helder Macedo, em excelente prefácio, há uma atitude cultural e uma perspectiva literária. E, de fato, assim é. A análise de Helder Macedo parte da referência, no título da obra da escritora santomense, ao poeta e músico do Gabão, Pierre Akendenguê, cujas composições tem contribuído para a definição de uma africanidade capaz de integrar, como e enquanto africana, manifestações culturais tradicionalmente associadas a outros povos e a outros continentes.(…) E a mitologia Africana presente em muita da sua poesia corresponde a arquétipos míticos universalmente reconhecíveis. (Idem, p. 7) E, então, estabelece o diálogo: Se entendo correctamente, o título deste livro de Conceição Lima aponta para uma partilhada perspectiva africana universalizante e, desse modo, define uma atutude oposta à que seria a de uma cultura colonial que visasse integrar-se numa cultura colonizadora. (Ibidem) E continua: GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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O “país” de Conceição Lima é uma ilha. (…) A sua ilha é São Tomé, ponto de partida e de chegada numa viagem entre a memória e o desejo. (Ibidem) E é aqui, nesta viagem anunciada não uma viagem de evasão, mas reflexiva, crítica, libertadora, de encontro, que embarcamos, uma viagem formada, na maior parte das vezes de poemas curtíssimos e absolutamente densos. É próprio da poeta este talento de luta e de persistência de luta com as palavras de que diz não estar farta e as procura “Para que elevem, soberanas, o reino que forjamos.” (Lima, 2006, p.27) Para te encontrar levantarei os prumos. Inventarei a casa nos mesmos rios Para nos descobrir. (Idem, p. 28) É o que caracteriza a primeira das sete, aliás, sete é o número da perfeição, partes do livro, a busca e o encontro das palavras para “nos descobrir”, porque Tudo é profundo nos olhos da Cidade Até a teia dos enganos desvenda a pertinácia deste rosto. (Idem, p. 33) A segunda parte é a da pertença. Se em “Viajantes” (2006,p. 31), a avó pergunta: A quem pertences tu? Quem são os da tua casa? Vem do belíssimo “O amor do rio” (de que Helder Macedo faz excelente análise) a resposta: Este lugar é a minha casa, não tenho outra. Esta casa é o meu lugar, não quero outro. Ainda que o ventre da infância reconvoque outro exílio. Mesmo se a angústia das mães antecipa a aurora. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Por isso trouxe ao teu jardim o odor do sal, a raiz do mar que [bordeja o baobá. (p. 40-42 ) E, então, a fronteira, porque “Trespassar é sina dos que amam o mar”(Idem, p.44). O primeiro trespassar é a terceira parte do livro, cujo tom mitológico recupera o pastor lendário, semeador de mortes e o guardião. A transição desta parte para o segundo trespassar, “Os territórios deflorados” – “ Iremos/ sem temor dos fantasmas/ Conhecemos o trilho” – localiza-se no “Projecto de canção para Gertrudis Oko e sua mãe”(Idem, p. 60-61) Surge, aqui , o primeiro balanço da viagem: Esta viagem não responde às minhas perguntas. Trespassei o aço das certezas. Herança, devorei-as. A etapa seguinte rasga a prévia cartografia Toda a fronteira é um apelo à renúncia. Perscrutei mares cidades sinais nas pedras papiros. Ao encontro da linguagem da tribo azul cada passo me afasta de um rito sagrado. Esta caminhada decreta um tráfico sem remissão: a fortaleza do sonho pela metamorfose das feridas. Vítima da memoria, nenhum deus me acolhe à chegada. Dádiva é a parte seguinte, a quinta, aqui, Conceição Lima homenageia o artista plástico Protásio Pina, já cantado no poema “Mural” de O útero da casa. Por que Pina como dádiva? Porque Protásio Pina foi grande artista plástico santomense e referencia de gerações posteriores. Viveu entre 1960 e 1999, período em que GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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demonstrou – como Conceição – todo o amor e devoção à natureza. Naturalista e minimalista, buscou a perfeição em suas paisagens, captou, como a poeta, a arte da fauna e da flora da ilha, dando a ela vida em seus murais. Pintou com as cores que Conceição pinta com as palavras, mas “O coração, que vinha ao encontro da sua mão, anoiteceu” e “O coração ficou no jardim ardendo na roda das estações.” (Idem, p. 78) O jardim de que o jovem pintor se condoeu , enquanto os deuses dormiam à sombra das ruínas. É na sexta parte da obra que ressurgem os fantasmas elementares, aqueles que, segundo Adonis, “ avançam/ Entre fogo e metamorfose” (Ibidem, p.95) O primeiro deles é Kwame Nkrumah. Líder político africano, foi um dos fundadores do Pan-Africanismo e um grande lutador pela descolonização da África. Foi primeiroministro e presidente de Gana. A ele, Conceição Lima canta: Kwame Deixei longe o clarim. […] Acostumo-me ao perpétuo fogo Na fronte de Acra. Que diriam as palavras O que diriam Sobre o árduo fulgor da tua mortalha? (Lima, 2011,p.81) O Segundo é Mwalimu (Idem, p.82), líder marcado pela simplicidade, que lutou pela libertação da África, lutou contra a injustiça e a indignidade a que foram submetidos os africanos, ele foi O que cuidou das sementes e dos frutos O que pegou na palavra E arou um campo sem ossadas O que teve as mãos calejadas Adormeceu coroado de brancos cabelos (…) GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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O terceiro, é o “Congo 1961”(Idem, p. 83), numa referência à grande crise e a Patrice Lumumba, primeiro ministro daquele país. Segue-se a série belíssima de poemas de todas as mortes de Amílcar Cabral e as montanhas. Fecha esta parte o inquietante e belo poema “Em nome dos meus irmãos” (Idem,p. 93-94) , dedicado a Alda Espírito Santo, em seu 80º aniversário: Hoje cantarei o ferro da dor da nossa mãe, chamarei musgo e rocha à [tua mão, pois do fundo dos dias mantenho na página aberta, o perfil do [archote. Inquietante pela reiteração do pronome interrogativo. (...) Quem,altura e testemunha, vela no sopé do Futa Jalon a pestana de [Amílcar, o riso de Amílcar, as botas de Amílcar? Quem decifrou o testamento de Kwame? Quem nos mostrou as torrentes de Kwanza? Que canto confortou a solidão de Pauline? Pauline e sua carta de [saudade, sua fome de futuro, Pauline e Patrice seu amor [assassinado, esse amor transmutado em minério do Congo? Para responder: Não, não falarei do profeta em teu peito: seus sonhos, nossas [teimas, o limite da sua clarividência , a inexorável estrela em nossa testa. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Entre os ramos das goiabeiras e a pele dos livros, respiro. Toco o mapa da lua, louças antigas, o vulto de Maria de Jesus, os [longos brincos de Maria Amélia, Vasco e Egídio, os espectros [amados. Teus cotovelos fincados na borda da mesma austera mesa. Sirvo-te chá. Sento-me diante dos teus olhos. Estamos em casa. Encerra a obra a sétima – já disse, o número perfeito, macho e fêmea – ilha e país , partida e retorno - parte - sétimo, como escreve Conceição Lima, é " O coração da ilha" Há, aqui, o alerta da sementes, e a consciência de que somente os pensamentos e as experiências - transfiguradas ou não - sancionam valores humanos, e de que " Na onda se inscreve todo o princípio/ as sementes da blasfêmia e da redenção." ( Idem, p.97) A casa, que percorre as três obras- tema obsessivo de Conceição Lima, retorna grave em "A voz de pedra" ( idem, p.104) , ela é sacralizada por um simbolismo cosmológico. Ela é construída e renovada poeticamente, envolvendo existência plena. " Amanhã despediremos o muro - conhecemos a voz da pedra. " Há, então, o retorno da viagem, na " Circum-navegação" (idem,p.106), "sossegaram os mortos". A volta à casa em barcos "carregados de cidades e distância." ( Idem,ibidem), representa abrigo e paz, a integração, enfim, procurada nas lembranças, nos sonhos, nos pensamentos. A casa está inscrita no corpo, comenta Eliade (1991) não como traço mnêmico, mas como imagem de intimidade, como imagem que busca um centro, que instaura um centro, que cria um universo. Em Conceição Lima, o ponto de união entre imaginação e memória. O universo, trazido pelos barcos, de lá do mar, também matriz e recorrência da literatura santomense, o mar do ser santomense, é onde se habita a casa, a ilha. A casa e a ilha como representação da terra, " como fundadora de uma insularidade africanamente telúrica (raiz, húmus, pátria", dirá Inocência (1998, p. 84), “o mar ( e seus elementos GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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metonímicos, o barco, a nau[...] como contraponto diferencial de uma insularidade que cada vez mais, vem afirmando, através de sua peculiaridade histórica, uma ambivalente insularidade: mestiça, crioula, mas profundamente africana." Acontece a arte da viagem Tanta aprendizagem de leme e remendo... É quando o olho imita o exemplo da ilha E todos os mares explodem na varanda. Esta é já a marca de Conceição Lima na história da literatura. É na casa, esta casa país e esta esta casa continente e na sua revisitação politico-histórico-cultural que reside a qualidade inequívoca do fazer poético de Conceição Lima, não há limite, nesta sua verdade poética, entre a memória, a imaginação e sua transposição para o texto. As grandes imagens trabalhadas por Conceição Lima tem ao mesmo tempo uma história e uma história anterior à história, própria da cultura mítica. São sempre lembrança do vivido e do não vivido e tem , simultaneamente, a lenda e situações e personagens lendários. Talvez por isso seu poema seja, de fato, porta aberta tocha acesa. A porta instiga o leitor ao mergulho na memória-fantasiaimagem profunda, a tocha, por sua vez, é luz que evoca a memória, revificando o passado para o presente, iluminando o presente. É que há poetas, felizmente!, há poetas que lutam com as palavras e as libertam para que o mundo, em liberdade, se entenda. São Lima é um desses. REFERÊNCIAS: LIMA, Conceição. O útero da casa. Lisboa: Caminho, 2004. ______. A dolorosa raiz do Micondó. Lisboa: Caminho, 2006. ______. O país de Akendenguê. Lisboa: Caminho, 2011. MATA, Inocência. Emergência e existência de uma literatura O caso santomense.Lisboa: ALAC, 1993. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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MATA, Inocência. Diálogo com as ilhas (sobre cultura e literatura de São Tomé e Príncipe. Lisboa: Colibri, 1998.

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DO SILÊNCIO À CONSTRUÇÃO DE UMA MEMÓRIA FEMININA DAS GUERRAS EM ÁFRICA Laura Cavalcante Padilha 1 [...]a memória [é] um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. (Jacques LeGoff) O texto que agora se apresenta é um dos que comporão o fechamento da pesquisa iniciada em 2010 e que encerrará seu primeiro segmento em 2014. Seu título é “Memórias e testemunhos de guerra em narrativas produzidas por mulheres de Angola, Moçambique e Portugal”. A ela seguirá um segundo movimento, havendo apenas uma mudança do corpus, pois pretendo trabalhar com a poesia feminina dos cinco países africanos, publicada a partir de 1975. O objetivo se manterá, ou seja, a busca de resgatar memórias de mulheres que acabam por cartografar, linguajeiramente e pela escrita, suas identidades postas em cheque tanto pelo colonialismo europeu, quanto pelo neocolonialismo que o substitui depois das independências. Nasce daí a insistência dessas mulheres em recuperar os marcos geodésicos de suas memórias, ao mesmo tempo pessoais e coletivas, o que ganha sentido mais denso quando se trata da memória de guerra(s) por elas vividas. Ficcionalizando ou testemunhando suas memórias, as mulheres africanas, no presente caso, de Angola e Moçambique, rompem o silêncio que sobre elas pesou e ainda pesa, no sentido posto por Le 1

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Goff, em História e memória (2003, p. 469), cujo fragmento foi por mim resgatado na epígrafe. O mesmo se pode estender para as mulheres portuguesas, principalmente, mas não só, as daquelas que, acompanhando os combatentes diretos da guerra por Portugal denominada “guerra colonial” e sem que vivessem diretamente os confrontos (como o fizeram muitas africanas) os vivenciaram de perto, já que, movidas pelo afeto, aceitaram o deslocamento compulsório para os três palcos onde os enfrentamentos bélicos se deram: Angola; Guiné Bissau e Moçambique. Como bem conhece qualquer estudioso do continente africano, a questão da guerra se torna um fato epistêmico incontornável quando sobre ele nos debruçamos. Se olharmos para Angola, por exemplo, veremos que o primeiro livro, lá produzido, foi História geral das guerras angolanas, de António de Oliveira de Cadornega (1680). Sua base histórica é inquestionável, mas não se pode esquecer, igualmente, que a obra tangencia, em muitos pontos, o ficcional. Não é por mero acaso que a História das guerras é retomada, direta e/ou indiretamente, em diversos momentos da literatura moderna angolana, como evidenciam, por exemplo, os romances A gloriosa família, de Pepetela (1997) e De rios velhos e guerrilheiros I. O livro dos rios, de Luandino Vieira (2006), para ficar apenas com duas ocorrências. Assim, mesmo quando não se tem por objetivo trabalhar a questão da guerra em si, mas tão somente suas memórias, como venho fazendo, não há como deixar de lado o resgate de algumas questões que ajudam a costurar melhor qualquer tecido analítico sobre a matéria. Em primeiro lugar, devo apontar, como por várias vezes o fiz, que algumas análises mais ligeiras costumam insistir na banalização da guerra em África, tentando sempre comprovar que, antes da chegada dos colonizadores europeus, já o continente era marcado por enfrentamentos étnicos de toda a ordem. A isso responde a percuciente análise do historiador Joseph Ki-Zerbo, de Burkina Faso, ao mostrar, em entrevista concedida a René Holestein (2006), que nenhum povo deixou de ter guerras e, por isso, “por toda a parte os Estados nacionais nasceram no sangue” (p. 59). Também o ensaísta João de Melo deixa claro, na abertura da antologia por ele organizada, Os anos da guerra (1998), que “a resistência camponesa ao invasor faz parte da História de todos os povos de África” (p. 12), embora a historiografia GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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portuguesa minimize ou mesmo rasure a importância dessas formas de resistência. Para ele, também romancista, a colonização portuguesa se fez “um prolongado, sistemático, difuso, surdo e continuado acto de guerra colonial” (idem). Por essa razão, ele considera o confronto bélico que eclode em 1961 em Angola, estendendo-se às outras colônias de então, até 1974/75, como a segunda e, não, a primeira guerra que se pode nomear colonial. Esta guerra, como sabemos, ganhará uma dupla nomeação, de acordo com o lugar de pertença histórico-cultural dos sujeitos do conhecimento e da ação política. Se africano, nomeará a sua como guerra de libertação nacional; se português, conforme já dito, como colonial. Fica nítida, assim, a separação entre o eu e o outro e, mais, entre o sonho de uma nação por vir e o pesadelo de um império a esboroar-se. Mesmo com essa dupla nomeação, quando lemos textos produzidos por mulheres de ambos os lados do confronto, vemos que neles há claras interseções pelas quais se põe em cena uma mesma “desobediência epistêmica e política”, retomando a formulação de Walter Mignolo (2008, várias páginas). Tal modo de “desobediência” permite que se estabeleça, segundo Zulma Palermo, uma perspectiva crítica descolonizante que acaba por iluminar outras formas de conhecimento, tornadas opacas, quando não rasuradas, pelos que praticam a colonialidade do poder (2000, p. 240). Abre-se com isso a possibilidade de que se chegue a formas de conhecimento em diferença e sejam confrontadas as velhas e novas hegemonias dos outros e de nossos tempos. Já o segundo movimento de minhas reflexões, cujo foco são as memórias das guerras civis, objetiva a análise dos elementos pelos quais se constroem, nas malhas dos textos africanos de assinatura feminina, espaços discursivos e imagísticos também de uma extrema crueldade e violência. A análise que fiz de narrativas, literárias ou não, assinadas por mulheres de Angola e Moçambique, aponta que as guerras civis, de modo talvez mais contundente do que se encena quando o objeto narrado é a guerra de libertação, ao romperem, com força e vigor, o silêncio que sobre elas se abate, vão um pouco na contramão do que geralmente se passa no âmbito de textos de assinatura masculina. Basta que se ponha em relação, para comprovar tal hipótese, no âmbito do romance moçambicano, por exemplo, a forte GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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carga alegórica de algumas produções de Mia Couto, confrontando-as com outras de Paulina Chiziane, marcadas por intenso e muitas vezes dramático realismo. Analisar, portanto, textos literários, ou não, de assinatura feminina é comprovar como, seguindo o que postula Beatriz Sarlo, em Tempo passado (2007), “a memória e os relatos de memória se fazem uma ‘cura’ da alienação e da coisificação” (p. 39). Por essa espécie de resgate do vivido, continua a autora, “mesmo que não haja uma verdade naquilo que se narra” (idem), os sujeitos dessas narrações deixam-se conhecer melhor e, ao comunicarem suas experiências, acabam por demonstrar o seu sentido e afirmar a natureza de sua subjetividade, ainda de acordo com a ensaísta. É esta construção de sentidos que me propus analisar, mesmo sabendo, com Derrida, retomado ainda por Sarlo, que o “sujeito que fala é uma máscara ou uma assinatura” (ibidem, p. 33). De qualquer modo, a experiência da guerra, segundo ainda a crítica argentina, ao transformar-se em relato do vivido, permite a reconstrução “da textura da vida e a verdade abrigadas na rememoração da experiência” (ibidem, p. 17). É o caso da produção narrativa de mulheres africanas e portuguesas, conforme demonstram duas das obras sobre as quais me debrucei e que resgatam entrevistas feitas por mulheres, a saber: África no feminino. As mulheres portuguesas e a guerra colonial (2007), assinada por Margarida Calafate Ribeiro e O livro da paz da mulher angolana. As heroínas sem nome (2008), em cuja capa não há qualquer nomeação de autoria. Só ao abrir o livro encontramos o nome das organizadoras, Dya Kasembe (angolana) e Paulina Chiziane (moçambicana), sendo a primeira a coordenadora da obra. Esta ausência de nomeação autoral é simbólica e sintomática para que analisemos o desejo de ambas de fixar o coletivo mais do que o individual. As capas, desse modo e de partida, demonstram o impulso descolonizante e desocultador que está na base do processo editorial dos dois livros. O primeiro é assinado por uma professora e ensaísta portuguesa que vai pôr, em uma espécie de roda, algumas das muitas mulheres igualmente portuguesas por ela entrevistadas, como já aqui afirmado, e que, não fazendo a guerra diretamente, a viveram pelas bordas, e em nome do afeto. Já o segundo foi produzido por duas escritoras que deixam a ficção para irem em busca da realidade de GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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outras mulheres que, como elas próprias, experimentaram o que é viver em espaços assinalados pelo duro sinete de tantas guerras. Ambas as obras, apesar do universo em diferença que resgatam, se tocam em um mesmo ponto, ou seja, o desejo de romper as malhas do silêncio o qual, como densa teia, se abateu sobre as guerras e suas violências, encenando-as em suas telas de palavras que nos fazem conhecer os corpos, vozes e imagens de muitas mulheres que sofreram a guerra diretamente ou apenas a presenciaram de fora. Nesse sentido, as vozes recuperadas se juntam às dos sujeitos que as recuperaram pelo que o ético e o político se unem, a fim de que não se esqueça o passado para que o futuro possa ser marcado com o selo da esperança. Quero, neste ponto, apresentar o que me parece resultar desse encontro dos dois livros. A meu ver, ambos, estando tão perto da linha temporal, já que publicados, respectivamente, em 2007 e 2008, se suplementam, pois representam um modo de se evitar “o esquecimento e a denegação”, como posto por Jeanne Marie Gagnebin, em Lembrar escrever esquecer (2006, p. 41). Significam, ainda, a vontade de que a densidade da experiência traumática das mulheres ouvidas não se dissolva nas águas do tempo. Também as três organizadoras, a portuguesa e as duas africanas, parecem ter o mesmo interesse em analisar os rastros inscritos na “lembrança de uma presença” – no caso a das duas guerras –, presença “que não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente”, ainda citando Gagnebin (idem). Elas resgatam, por palavras escritas, os testemunhos de sujeitos pertencentes a seu mesmo gênero, embora saibamos serem a memória e a escrita tecidos igualmente frágeis. Pactuam elas, assim e ao mesmo tempo, com o ético e o político, como atrás afirmei, tentando inscrever o que um certo modo de conceber a história tentou apagar. Lutam Margarida, Dya e Paulina, embora em campos diferentes, e volto a Gagnebin, não só “contra o esquecimento e a denegação”, conforme já referido, como também “contra a mentira, mas sem cair em uma definição dogmática da verdade” (ibidem, p. 44). Elas sabem, como sintetiza Susan Sontag, em Diante da dor dos outros (2003) que “A guerra dilacera, despedaça. A guerra esfrangalha, eviscera. A guerra calcina. A guerra esquarteja. A guerra devasta” (p. 13). Se as GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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imagens que vemos quase diariamente, pela mídia, provam isso, também os relatos testemunhais dos que sofreram sua devastação, no caso das mulheres angolanas, ou a intuíram, no caso das portuguesas, se fazem também uma forma de luta contra a repetição do passado e um modo de, em certa medida, contribuir para a reinvenção do presente, para fechar com Gagnebin (ibidem, p. 57). Torna-se árdua tarefa tentar resumir os dois livros, ou mesmo pôlos em diálogo, tal o campo de representação tenso e denso em que se movem. Mesmo assim, tentarei, brevemente, pô-los em relação, pois, a ligá-los, encontro um mesmo desejo que é anterior às pesquisas de campo que deram origem aos textos, ou seja, o de mostrar como viver a guerra é ficar frente a frente com o inominável e sucumbir ao medo, mesmo no caso das mulheres portuguesas que, estando nas então colônias-palco da guerra (Angola, Guiné Bissau ou Moçambique), dela não participaram direta e perigosamente. Como diz uma das entrevistadas por Ribeiro, ela, como as outras mulheres eram “visitantes ainda mais alheias, porque mais alheadas de qualquer razão de lá existir que não fosse a sua privada teimosia em viver com seu marido ou com o seu amor” (2007, p. 50). Confronte-se a percepção dessa mulher portuguesa de se ver como uma visitante, em África no feminino, com o que diz a segunda mulher, cuja voz é resgatada por uma das entrevistadoras de O livro da paz, lembrando antes que, além de Kasembe e Chiziane, há uma equipe formada por outras nove mulheres. Recupero a fala desta segunda entrevistada, uma senhora mais velha de 80 anos, que assim se expressa muito angolanamente, a meu ver: Hé, hé hé, ché meninas, não me faz lembrar, não me faz lembrar as coisas más que atraem maus espíritos. Guerra? Guerra não presta. Não gosto nem de ouvir falar. Eu aqui onde estou já vi muitas guerras: a guerra do kwatakwata [...] Não gosto de recordar a guerra de 61. Morreu muita gente de minha família e amigos. Meus olhos viram mais a guerra de 1975. (2008, p. 21-2) As duas obras recolhem, assim, vozes, corpos e imagens de sujeitos femininos, estejam eles fora ou dentro do espaço da luta direta, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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sujeitos que são mostrados de corpo inteiro ao leitor, no meu caso, a uma leitora não angolana que, pelos relatos, vai podendo dimensionar a diferença da “textura da experiência” das mulheres portuguesas e das angolanas. De qualquer modo, não se vive a guerra ou dela se volta, continuando a ser-se o que se foi antes dela, mesmo que a experiência da dor não se faça sentir diretamente no corpo. Como revela uma das mulheres ouvidas por Ribeiro, “tudo deixa de funcionar a preto e branco”. E ela continua: “Há uma paleta infinita. A experiência de África reforçou minhas convicções [...] São aprendizagens que se fazem através do sofrimento dos outros e do nosso próprio sofrimento e que nos fazem crescer como pessoa” (2007, p. 79). Separam-se, em blocos, a dor do outro e a própria, ao mesmo tempo em que se mostra a virada ética e cognitiva do sujeito da experiência. Ouçamos, por isso e já agora, o depoimento de uma outra angolana que, após a vivência traumática, diz: “Por experiência, também aprendi que a mulher é rija como o pau-preto, pau-ferro, resiste a tudo, à violência, ao sofrimento. [...] Mulher é sabedoria. Constrói a vida pela prática: a teoria vem depois” (p. 25). Há pontos a ligarem as falas emersas dos dois livros: o não querer falar da guerra; o não gostar de lembrar; o inadiável desejo de viver a paz e em paz, passando a se ver como um novo sujeito; o tentar levar a vida adiante, com fé no futuro, embora às vezes com um enorme cansaço e sem nunca esquecer o medo, medo, aliás, muito bem descrito pela primeira entrevistada da obra de Ribeiro: “Sabe, o medo é como uma alergia, uma doença incurável [...] o nosso quotidiano era habitado por um medo pequeno, fininho e vago, infiltrava-se na vida, descaradamente” (p. 45). É claro que essa “alergia” também atinge o corpo físico e psíquico das angolanas no espaço direto da luta. Ele, no entanto, como que se cura na hora em que é necessário combater na mata, quando o cotidiano é virado pelo avesso, conforme mostra o depoimento de uma combatente da luta de libertação nacional: “[...] na mata não tem água, a pessoa tem fome, só tem farelo. O que é? Mudar de roupa? Você tem roupa na mata?! Ali só tem sofrimento. [...] Você só querer acabar vingança de português contra nossa terra” (p. 34). GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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O sofrimento dessas heroínas sem nome assalta, como se dá quando várias delas relatam cenas vividas na infância e que chocam brutalmente o leitor, pois nelas se representa o pior dos pesadelos, o da mutilação. Cito apenas um desses relatos, calando os que mais nos assustam e atingem por serem relatos do vivido das próprias mutiladas: Sou filha da guerra. Quando nasci a guerra tinha 12 anos. Nasci no capim [...] Certa vez, uma bala passou por cima da minha cabeça [...] Uma vez, uma senhora pisou numa mina [...] e impressionou-me ver a perna dela saltitar até desaparecer no meio do capim [...]. Mas o maior susto mesmo, foi quando vi uma mão decepada no meio do caminho. Só a mão, sem o dono. (p. 85-6). As palavras da antiga menina não deixam dúvida sobre a natureza dos rastros traumáticos da guerra. A violência, o corpo por ela atingido e a imagem de tudo o que fica gravado na memória, sempre jogo de lembrar e esquecer, demonstram que o falar sobre o passado é uma forma de vencer a denegação e dar fim ao silêncio. O fecho deste último depoimento, talvez possa ser tomado como uma metáfora possível a ligar as obras. Antes de resgatá-lo, porém, gostaria de tecer rápidas considerações sobre os livros tomados em seu conjunto. África no feminino é uma obra realizada por uma pesquisadora que já havia produzido um ensaio de inquestionável competência e vigor: Uma história de regressos. Império, guerra colonial e póscolonialismo (2004). O enfoque desta obra tem como base a análise de um corpo literário, por assim dizer. Depois dela, sua autora, parece-me, decide realizar uma pesquisa de campo para saber como as mulheres portuguesas pertencentes ao mundo real saíram do cais em que se fez ouvir a voz do Velho do Restelo (que a autora recupera em ambos os trabalhos) e seguem para a guerra em África, como ela diz, por amor. O livro da paz é organizado por duas escritoras que igualmente abandonam a solidão da escrita literária e, junto com uma equipe formada por outras mulheres – coletadoras dos depoimentos, artistas GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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gráficas, analistas dos dados, diagramadoras, etc –, percorrem várias províncias de Angola (Bié, Cabinda, Huíla, Kwanza Sul, Luanda e Malanje), realizando uma construção linguajeira e gráfica que quer ir além das palavras, daí os anexos, com os nomes das colaboradoras e/ou as fotos coloridas que resgatam o movimento do trabalho como um todo, por exemplo. Percebo que há, em África no feminino e em O livro da paz, a busca de realização de um mesmo desejo: resgatar a ideia da urgência de se solidificar um presente sem guerras, talvez não só no que diz respeito à África, mas ao mundo como um todo. Utopia? Talvez. E o que seria de nós sem ela? É em seu nome, portanto, que resgato o fecho prometido. Diz a antiga menina que viu uma mão sem o dono e uma perna a saltitar sozinha no meio do capim: “Paz para mim é tudo. É dormir à vontade dentro da casa sem medo. É poder pensar fazer alguma coisa amanhã. Espero que estas atrocidades nunca mais hão-de-regressar” (p. 86). Bem haja, eu diria. Esperemos também nós, leitores das obras – e, no caso do Brasil, de onde falo, espectadores distantes de confrontos como os do Sudão, Síria, Somália, Etiópia, Nigéria, etc – que chegue o momento em que não se veja mais qualquer parte do mundo a arder em chamas; em que não se projetem, nas telas da história, as imagens de corpos de seres humanos destruídos pela mutilação ou mineralizados pela morte e que cessem, para sempre, os relatos sobre as cenas representadas em tais palcos históricos de destruição e horror. REFERÊNCIAS: CADORNEGA, António de Oliveira de. História geral das guerras angolanas. 1680. Anotado e corrigido por José Matias Delgado. 3 v. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1972. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006. KASEMBE, Dya e CHIZIANE, Paulina (Org.). O livro da paz da mulher angolana. As heroínas sem nome. Luanda: Nzila, 2008.

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KI-ZERBO, Joseph. Para quando a África? Entrevista com René Holestein. Trad. Carlos A. de Brito. Rio de Janeiro: Pallas, 2008. LE GOFF, Jacques. História e memória. 5 ed. Trad. Bernardo Leitão e outros. Campinas: Ed. UNICAMP, 2003. MELO, João de (Org.). Os anos da guerra: 1961-1975. Os portugueses em África. Crônica, ficção e história. 2 v. Lisboa: Dom Quixote, 1988. (Ensaio de abertura de Joaquim Vieira). MIGNOLO, Walter. “Desobediência epistêmica. A opção descolonial e o significado de identidade em política.” Trad. Ângela L. Norte. Cadernos de Letras da UFF. Dossiê: Literatura, língua e identidade, 34, 2008, pp. 287-324. PALERMO, Zulma. Inscripción de la crítica de género en procesos de descolonización. In: PALERMO, Z. (Coord.). Cuerpo(s) de mujer. Representación simbólica y crítica cultural. 1 ed. Córdoba: Ferreyra Editor, 2006. PEPETELA. A geração da utopia. Lisboa: Dom Quixote, 1992. RIBEIRO, Margarida Calafate. Uma história de regressos. Império, guerra colonial e pós-colonialismo. Porto: Afrontamento, 2004. RIBEIRO, Margarida Calafate. África no feminino. As mulheres portuguesas e a guerra colonial. Porto: Afrontamento, 2007. SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire de Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007. SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. Trad. Rubem Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. VIEIRA, José Luandino. De rios velhos e guerrilheiros I. O livro dos rios. Luanda: Nzila, 2006.

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A TRADIÇÃO E (RE)APROPRIAÇÃO DOS CLÁSSICOS NA PÓS-MODERNIDADE: O CASO EXEMPLAR DO DIÁLOGO DA LUSOFONIA COM CAMÕES E A OBRA CAMONIANA Manuel Ferro 1 RESUMO: Se é indiscutível o reconhecimento da centralidade de Camões e da obra camoniana na cultura e literatura portuguesa, o certo é que em poucos momentos como atualmente foi tão sensível a dificuldade em se compreender a sua obra em plenitude e aderir ao discurso do grande Poeta. Proliferam, por isso, as edições em que o aparato de notas facilita o acesso à mensagem poética e ajuda a descodificar o estilo sublime e elevado, marcado pelos códigos do tempo. No entanto, não perdeu o vigor na inspiração que proporciona a escritores da contemporaneidade. Numerosos são, pois, os nomes que se contam entre os mais ilustres da constelação de criadores dos nossos dias e que são a face viva da identidade literária não só portuguesa, como também lusófona, que se apropriaram da tradição literária em que Camões serve de pedra angular e de expressão máxima de uma mundivisão que subjaz aos países lusófonos, cada um, depois, enriquecido pelas especificidades das tradições autóctones. Jorge de Sena, José Saramago, Manuel Alegre, Lídia Jorge, Fernando Campos, Mário de Carvalho, Luísa Costa Gomes, Vasco Graça Moura, Jacinto Lucas Pires, José Luís Peixoto, entre os portugueses; Pepetela, José Eduardo Agualusa, no âmbito das letras angolanas; Nélida Piñon, Geraldo Carneiro, Álvaro Alves de Faria e Mílton Torres, no Brasil; Xanana Gusmão, em Timor Lorosae, são apenas alguns entre muitos mais, que pagam tributo ao épico maior das nossas letras. Variados são igualmente os modos de reapropriação da tradição poética camoniana: se alguns se inspiram em personagens, situações e motivos, quer da epopeia, quer da lírica, outros valorizam vetores como a recuperação e desconstrução do mito camoniano; havendo ainda outros que 1

Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal. Investigador do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos. Email: [email protected]

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revalorizam a biografia do poeta para dela fazerem um eixo matricial na narrativa histórica pós-moderna das últimas décadas. Por conseguinte, pelo seu valor simbólico, que remete para e evoca épocas douradas do passado, recordadas com nostalgia, sobremaneira em momentos de crise como o que estamos a atravessar na atualidade, de uma maneira ou outra, Camões continua estreitamente colado à imagem que os portugueses sobre ele esboçam e a sua obra, muito particularmente Os Lusíadas, foi, é e será a expressão acabada da identidade de Portugal e da cultura portuguesa projetada “em pedaços pelo mundo” e revitalizada nas novas fronteiras da lusofonia. Palavras-Chave: Camões; Lusofonia; (Re)Apropriação; Pós-Modernidade.

Tradição

literária;

No momento em que tem lugar a 2ª Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no Sistema Mundial e se retomam os grandes temas que foram objeto de estudo e debate na primeira, ocorrida em Brasília em 2010, a fim de se analisar o progresso alcançado em cada área e, necessariamente, o que há ainda por fazer, acrescentando-se agora a complexa questão do Português como língua de ciência e inovação, aspeto que merece a maior reflexão, afigura-se-me de particular relevo o facto de uma das áreas a granjear o merecido destaque ser o da difusão da língua de Camões à escala mundial, com relevo particular para as comunidades emigrantes da diáspora lusa em ambientes aloglotas, já para não referir aquelas resultantes da expansão em séculos passados e que ainda hoje se encontram entregues à sua própria fortuna, caídas no esquecimento dos responsáveis pela dinamização e difusão da língua e da cultura portuguesas no mundo. Se a preponderância do inglês como língua franca a nível internacional é incontestável, pode parecer inoportuno remar contra a maré, mas a verdade é que, como Ivo de Castro defende, “No caso da Língua portuguesa, facilmente se reconhece o papel instrumental que tem desempenhado, historicamente e na mais recente atualidade, no desenvolvimento de domínios científicos como a medicina tropical, a geografia GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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humana e a antropologia, as ciências da terra, os sectores energéticos e outras atividades económicas, de modo semelhante alimentadas por contactos triangulares no Atlântico Sul; a literatura pertinente nesses domínios continua a só ter vantagens em ser veiculada em português” (CASTRO, 2013, p. 2, col. 4-5) Por conseguinte, como o mesmo Professor sublinha, “Internacionalização não é sinónimo de exportação para o mundo anglo-saxónico” (CASTRO, 2, col. 5) em exclusivo, pelo que a intercomunicação com os agentes culturais e produtores científicos dos países lusofalantes assume um genuíno caráter internacionalizante. Recorde-se que também neste mês de outubro, mais concretamente a 17, teve lugar nas instalações da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, outra Conferência subordinada ao tema “O Futuro da Agenda Global de Desenvolvimento: visões para a CPLP”, em que é manifesto o interesse pelas questões de ordem cultural e linguística, abordadas, não obstante, à luz de uma vertente economicista sobremaneira acentuada. Discutem-se aí os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio para os próximos quinze anos, perspetivados, muito embora no contexto da CPLP, visando o desenvolvimento económico; a paz, segurança e fragilidade; e o respetivo financiamento, mais especificamente o auto-financiamento. Neste contexto, a educação, a promoção cultural, a promoção do empreendedorismo, bem como a potenciação de criação de riqueza, tudo passa por um planeamento e projetos de educação das camadas mais jovens, em que o papel do ensino da língua portuguesa assume particular relevo. E ao escolher-se uma língua como suporte de comunicação, além de fator de relacionamento espontâneo e familiar, formula-se simultaneamente uma opção quanto à cultura e literatura que plasma a mundivisão a elas inerente, bem como os autores que preferimos e os modelos e estilos em que nos exprimimos. Neste sentido, não será por acaso que, na generalidade, tocam as entranhas mais vulneráveis da nossa sensibilidade, obras em que a questão da língua é particularmente tratada. Mais ainda quando são autores de relevo que o fazem ao longo dos séculos, figuras gradas da nossa História ou vozes reconhecidas das nossas literaturas. Apenas a GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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título de exemplo, recordemos o poema de Afonso Lopes Vieira intitulado “Inês de Leiria”, por sua vez inspirado num episódio da Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto: “Encontrou Fernão Mendes No interior da China (E em que apuros ele ia!) A velha portuguesa, Chamada Inês de Leiria, Que de repente reza: Padre Nosso que estais nos céus... Era de português o que sabia. Ouvindo Fernão Mendes Esta voz que soava (Fernão cativo e cheio de tristeza!) O português sorria... Padre Nosso, que estais nos céus... A velha mais não sabia, Mas bastava. Boa Inês de Leiria, Cara patrícia minha, Embora te fizesse A aventura imortal De Portugal Chinesa muito mais que portuguesa, - Pois por esse sorriso de Fernão Tocas-me o coração. Deste-lhe em tal ensejo, Entre as misérias da viagem, O mais gostoso e saboroso beijo - O da Linguagem!” (VIEIRA, 1940, p. 39-40) Este sabor à pátria, à comunidade em que nascemos, crescemos e vivemos, à família a que pertencemos, é a expressão de uma constelação de topoi, que, nas palavras de Jacinto do Prado GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Coelho, “correspondem a realidades específicas daquilo que se designa como ‘ser português’” (COELHO, 2006, p. 9). Mais, “é um conjunto de sinais, palavras, gestos, lugares, comportamentos que nos protegem (COELHO, 2006, p. 9). Por conseguinte, tal atitude não só permite aflorar delicadas vertentes relacionadas com a identidade das nações 2, 2

Sobre esta matéria, veja-se o que foi exposto na comunicação de minha responsabilidade integrada no 2. Kolokvium Společnosti Českých Portugalistů / 2º Colóquio da Sociedade Checa de Língua Portuguesa, realizado na Universita Karlova / Universidade Carolina, de Praga, em 23 de maio do corrente ano, por iniciativa da Faculdade de Letras da Universidade Carolina e do Instituto Camões, e que subordinei ao tema “Camões e a Obra Camoniana na configuração da identidade nacional e da autoimagem de Portugal” (Texto em vias de publicação): “Na realidade, nos nossos dias, quando as fronteiras se apagam e a integração europeia se torna um processo dinâmico, como reação, o pós-modernismo suscitou a reflexão sobre a identidade das nações, dos povos e das culturas locais. Autores como Anthony Smith, com obras como The National Identity (1991); AnneMarie Thiesse, com La Création des Identités Nationales (2009); Patrick Geary, com Europäischer Völker im frühen Mittelalter – Zur Legende vom Werden der Nationen (2002); ou, em Portugal, José Mattoso, com A Identidade Nacional (1998); Luís Cunha, com A Nação nas Malhas da sua Identidade. O Estado Novo e a construção da identidade nacional (2001); Rainer Daehnhardt, com Identidade Portuguesa: por que a defendo (2002), entre outros títulos e obras afins, proporcionam um suporte teórico que permite a realização de estudos desta natureza. Mais especificamente, no plano dos estudos culturais e dos estudos literários, esmiuçados por Armand Mattelart & Érik Neveu (2006), assim como por Ziauddin Sardar & Borin Van Loon, (2010), livros como Letteratura, Identità, Nazione (2009), com contributos de Bellini, Burgio, Conoscenti, Jossa, Pecora, Sanguinetti e outros críticos e teóricos contemporâneos da literatura; Letteratura e identità nazionale (1998), de Ezio Raimondi; o L’Italia letteraria (2006), di Stefano Jossa, representam pontos de partida para a reflexão das questões debatidas em colóquios e conferências a nível global, como, por exemplo, o que teve lugar em Março de 2011, na Universidade de Palermo, subordinado ao tema Letteratura Italiana e Identità Nazionale; além de outro que se debruçou sobre Os Nacionalismos na Literatura do Século XX. Os Indivíduos em face das nações (2010), coordenado por Ana Beatriz Barel; ou ainda, em Craiova, na Roménia, em 21-22 de Setembro do

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dos povos e das respetivas culturas, como se torna pertinente por formular a questão: “Afinal, que é ser português? É ter um bilhete de identidade português. É ser de uma família portuguesa. É ter nascido em solo português. É ter tido o português como língua materna. É considerar a terra onde nasceu como verdadeira mãe. É sentir-se português por dentro. É vibrar com a vitória de Portugal nos grandes acontecimentos desportivos internacionais. É ser reconhecido por gentes de outros povos como português.” (COELHO, 2006, p. 9) No campo da literatura, Camões há muito que se tornou o símbolo máximo da imagem de Portugal e da portugalidade, lugar que partilha, embora mais recentemente e com menos impacto nacionalista, com Fernando Pessoa. Nos dias que correm, porventura ambos acompanhados por José Saramago. Foi nos inícios do século XVII, quando o reino, perdida a independência, integrava a monarquia dual, que o contexto político e cultural arvorou o Poeta à condição de símbolo nacional da nossa cultura e da pátria. A epopeia que nos legou proporcionava o espelho em que no reino se revia a gesta de um povo. passado ano, sobre Discorso, identità e cultura nella lingua e nella letteratura italiana. No contexto da cultura e literatura portuguesas valorizam-se e evidenciam-se aspetos que nos diferenciam, que marcam a diferença sem cair no desgastado lugar-comum do fado e da melancolia do nosso caráter. Eduardo Prado Coelho configura as vertentes da identidade e as facetas da imagem da cultura portuguesa em Nacional e Transmissível (2006), onde aponta elementos tão díspares como os pastéis de nata, a presença do mar, o bacalhau, as sardinhas, o vinho do Porto, a ginginha e o moscatel, a cortiça, as saudades e o desenrascanço. Assim, constroem-se imagens, melhor dito, autoimagens – por sua vez, objeto de estudo do ramo da imagologia – que se projetam no exterior como rótulos de marketing cultural. Aí, Fernando Pessoa e José Saramago constituem os nomes mais recorrentemente referidos e referenciados. Camões é hoje mais usado para um auditório mais culto e selecionado.”

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No entanto, logo foi notado que pouco, muito pouco se sabia da vida do autor e até a leitura d’ Os Lusíadas já levantava sérios problemas ao leitor comum. Apressam-se alguns a redigir as primeiras biografias do Poeta. Outros a fazerem as primeiras edições comentadas. Manuel Correia edita em 1613 uma edição do poema com os comentários considerados pertinentes e nela inclui a primeira vida de Camões da responsabilidade de Pedro de Mariz. Depois, em 1624, Manuel Severim de Faria compõe uma biografia mais completa, baseada em depoimentos de contemporâneos, mas também incluindo elementos colhidos da leitura da sua obra poética. Em 1639, Manuel de Faria e Sousa dá aos prelos a monumental edição do poema com comentários explicativos que o haviam ocupado durante cerca de vinte anos. Também elabora uma biografia, muito ao gosto da época, em que atribui particular relevo a aspetos como a ascendência dos Camões ou o brasão de armas da família, mas no restante aproxima-se, de certo modo de Severim de Faria (SOUSA, 1639/1972, I, col. 15-58). Desde então é indiscutível o reconhecimento da centralidade de Camões e da obra camoniana na cultura e literatura portuguesa, assumindo até um lugar de particular destaque, de modo que Os Lusíadas são vistos como a manifestação mais perfeita do modo de pensar e sentir do coletivo lusitano. Hoje, mergulhados noutro período de crise, com outras ameaças que não a perda da independência, embora do ponto de vista económico não se esteja muito longe dessa realidade, também pouco, muito pouco sabe o leitor comum do Poeta e incontornáveis parecem ser os obstáculos para proceder à leitura d’ Os Lusíadas, de modo a compreendê-lo na íntegra. Para superar essas dificuldades e aderir ao discurso do grande Vate da língua portuguesa, proliferam edições em que o aparato de notas facilita o acesso à mensagem poética e ajuda a descodificar o estilo elaborado, marcado pelos códigos dominantes na época. Não obstante, também hoje os escritores da contemporaneidade não escapam ao poder de sedução que sobre eles Camões exerce, proporcionando-lhes motivos de inspiração que, depois, se plasmam em obras que atestam um efetivo e conseguido processo de receção camoniana. Numerosos são, pois, os nomes, que se contam entre os mais ilustres da constelação de criadores dos nossos dias e que são a GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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face viva da identidade literária não só portuguesa, como também lusófona, ao apropriarem-se da tradição literária em que Camões serve de pedra angular e de expressão máxima de uma mundivisão que subjaz igualmente aos países lusófonos, cada um depois enriquecido pelas especificidades das tradições autóctones (SEABRA, 1998, p. 13). É verdade que, na pós-modernidade, no que se refere à recuperação de Camões, esse fenómeno se manifestou em primeiro lugar num razoável número de romances históricos, em que se assiste à revalorização da biografia camoniana. Neles, se o Poeta não é o protagonista, é uma personagem com uma importância indiscutível ou, então, a sua presença tutelar torna-se incontornável. Além de As Naus (1988) de Lobo Antunes, A Musa de Camões (2006) de Maria Helena Ventura, O Livro Perdido de Camões (2008) de Maria Coriel, Adamastor (2008) de E. S. Tagino (pseudónimo de António José da Costa Neves), Camões - Este Meu Duro Génio de Vinganças (2010) de Maria Vitalina Leal de Matos e O Túmulo de Camões (2012) de António Trabulo são obras que apenas constituem um núcleo, à volta do qual gravitam outros títulos que reconstituem em simultâneo a sua época. Depois, foram surgindo as edições de Os Lusíadas com um aparato de paratextos que facilitam o seu acesso e interpretação. Consideramos aqui, então, aquelas que foram postas no mercado sem um claro pendor pedagógico, não para serem usadas em situação de sala de aula, muito menos em ambiente escolar, mesmo se tomado em sentido alargado. Entre elas, merece particular relevo uma de 2003, uma edição realizada por iniciativa do semanário Expresso, que coloca em coluna paralela, uma paráfrase de cada estância, num português atual e num nível de língua mais baixo, muito embora destruindo o tom sublime e elevado do discurso épico. Desse modo, acede o leitor com reduzida formação escolar com mais desembaraço ao conteúdo de cada estrofe. Outra edição de divulgação, já de 2013, deve-se à revista Visão, que, em vez de recorrer a notas explicativas, utiliza outras estratégias, como o recurso à reprodução de composições de grafiti, de modo a trazer o conteúdo do poema, nesse diálogo com a arte de rua, ao contacto com o público leitor de forma sintética e recorrendo a uma estratégia de matriz ecfrástica. Também as capas dos dez volumes são concebidas pelo coletivo ARM, composto por dois dos mais talentosos GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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grafiters portugueses: Gonçalo Mar e Miguel Ram, com base em composições murais executadas na Avenida da Índia, em Lisboa, junto do novo Museu dos Coches. Quanto ao poema em si mesmo, sem notas explicativas, retoma a lição estabelecida na edição de Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Estas duas edições despertam, no entanto, ainda mais a nossa atenção pelo facto de, em ambos os casos se recorrer a autores contemporâneos de reconhecido prestígio para comporem textos originais, de algum modo articulados com o poema, na generalidade todos eles inspirados nos Cantos que introduzem, assumindo essas composições um caráter mais ficcional ou, noutros casos, um tom mais parafrástico. No caso da última edição mencionada, José Luís Peixoto retoma a diegese de Os Lusíadas, de maneira que cada Canto dá lugar a um conto, procurando assim o escritor responder ao desafio de reescrever aquela obra com os traços que ela assumiria se fosse composta nos dias de hoje. Num tom de aberto diálogo e de cumplicidade com o leitor, em que não falta uma razoável dose de ironia e humor, retomam-se os aspetos fundamentais e as personagens de cada Canto, atualizados numa perspetiva contemporânea e com uma linguagem que prima pela acessibilidade e vigor, sem que se perca, no entanto, grandes detalhes da linha de ação principal e dos episódios centrais. Até os passos que encerram as ingerências do Poeta no discurso épico são acompanhadas, por sua vez, de intervenções paralelas do autor atual, ouvindo-se assim duas vozes em simultâneo. Alguns deslizes3 vêm macular a originalidade da edição, mas, na 3

No Canto VI, “Alencastro” (p. 9) é apresentado como um duque português; já no Canto VII e seguintes, sempre que se alude a Calecut, no texto de José Luís Peixoto erroneamente substitui-se tal topónimo por Calcutá; no Canto VIII, decerto por lapso, em vez de Paulo da Gama, refere-se Pedro da Gama (p. 6) e, se bem que D. Fuas Roupinho na realidade tenha caído em “tão justa e santa guerra […], das mãos dos Mouros entra a felice alma, / Triunfando nos Céus, com justa palma.” (Camões, VIII, 17, 5 e 7-8), fê-lo como um combatente, distinguindo-se mesmo como o grande almirante que havia infligido severas derrotas às galés sarracenas. Na versão de José Luís Peixoto, omitida esta faceta de audacioso guerreiro, terror nos mares para a armada infiel, e apenas apontada a sua morte como se de um “mártir de

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globalidade, salda-se por uma experiência que decerto contribui para atualizar e reforçar o lugar de posição do poema na memória dos portugueses e revigorar a imagem de Camões como o poeta da portugalidade. Contudo, a primeira edição mencionada, a de Os Lusíadas organizada pelo Expresso, tem ainda o mérito de contribuir para a abertura do poema a horizontes mais amplos, os da Lusofonia. Manuel Alegre, Lídia Jorge, Fernando Campos, Mário de Carvalho, Luísa Costa Gomes, Vasco Graça Moura e Jacinto Lucas Pires, entre os portugueses; Pepetela e José Eduardo Agualusa, no âmbito das letras angolanas; Nélida Piñon, no Brasil, integram o escol selecionado para entrar em diálogo aberto com Camões. A esses, muitos outros podemos hoje acrescentar: além de José Luís Peixoto já referido, também se podem mencionar Jorge de Sena, José Saramago e Gonçalo M. Tavares, por exemplo; ou Geraldes Carneiro, Álvaro Alves de Faria e Mílton Torres, no Brasil; ou ainda Xanana Gusmão, em Timor Lorosae, entre outros mais, que tributam assim a sua homenagem ao épico maior das nossas letras. Manuel Alegre, com “Um Velho em Arzila” (ALEGRE, 2003, I, pp. [3]-[7]), é o primeiro a abrir a edição, com uma evocação entre o sublime e o surreal, em que evoca as proezas no Norte de África, com a figura singular de um português anónimo que ainda aguarda a consumação do destino heroico de Portugal, sentado às portas de Arzila. O profícuo diálogo entre ambos (a personagem e o narrador) estabelecido, é alimentado pelas numerosas alusões e ocorrências a Os Lusíadas, pela retomada de temas e motes, quantas vezes inseridos como epígrafes em não poucas composições de Manuel Alegre, fundadas em jogos de intertextualidade, como se evidenciam nos poemas “Sobre um mote de Camões” em Praça da Canção (1965); “E de súbito um sino”, “Peregrinação” e “Luís de Camões exilado” em O Canto e as Armas (1967); “Super flumina” de Coisa Amar. Coisas do mar (1976); ou Com que pena. Vinte poemas para Camões (1992), em que o intertexto camoniano aflora no discurso de Alegre de maneira ainda mais óbvia e intencional. Aí emergem os temas do santo combate, passageiro direto entre o terreno de batalha e o céu” (p. 6) se tratasse, distorce-se um quanto de modo redutor a imagem deste herói.

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exílio, do amor, do desengano, da inquietude, da ansiedade, do lamento perante o desajustamento com a dura realidade… Lídia Jorge, com “Invocação a Calíope” (JORGE, 2003, III, p. [3]-[13]), transporta-nos para as dimensões do Oriente, numa aventura protagonizada por Camões em cujas peias ele se vê enredado e vítima de furtos variados. Fernando Campos, no “Sonho” (CAMPOS, 2003, IV, p. [3]-[11]), joga com a oposição alegórica entre o passado e o presente de Portugal, numa atmosfera adequada às potencialidades sugestivas do título, em que põe em cena personagens simbolicamente articuladas com essas duas dimensões temporais, mas em que o ressurgir da mundivisão sebastianista se identifica com o contributo, no momento da escrita, dado para a independência de Timor. Mário de Carvalho, em o “O Apito de Prata” (CARVALHO, 2003, VI, p. [3][11]), opta por uma feição mais ensaística do Canto VI, muito embora não descure a dimensão poética na textura do discurso utilizado. E se Jacinto Lucas Pires trata em contexto ficcional da presença de Camões e d’ Os Lusíadas num ambiente familiar, na composição intitulada “Gente diferentíssima” (PIRES, 2003, VII, p. [3]-11]), Luísa Costa Gomes faz regressar o leitor ao tempo da escola e do modo como o poema era fulcral na formação escolar, se bem que nem sempre utilizado e avaliado de modo muito positivo, com “Que” (GOMES, 2003, VIII, p. [3]-[11]). A encerrar a plêiade de escritores portugueses, Vasco Graça Moura reconstitui magistralmente o ambiente dos prelos e da impressão da epopeia, num ambiência em que Camões dialoga com Pêro de Magalhães Gândavo e António Gonçalves, com “Diálogo na Oficina” (MOURA, 2003, IX, pp. [3]-[13]). Se Manuel Alegre era já um ‘peso pesado’ em matérias camonianas quando redigiu o texto antes apontado, não menos o é Graça Moura. Toda a sua biografia de escritor é um constante e aberto diálogo com Camões. Mais do que uma insigne voz no âmbito da criação poética, é igualmente um distinto crítico camoniano, contando com variados títulos de fundo sobre a obra do Poeta (Camões e a divina proporção (1985), O Penhasco e a Serpente (1987), Luís de Camões. Alguns desafios (1989) e Adamastor, Nomen Gigantis (2000)), além de numerosos estudos ensaísticos dispersos em muitos outros volumes, inserindo ainda alguns no recentíssimo volume intitulado Discursos vários poéticos (2013). Por outro lado, a questão da produção e reapropriação GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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da tradição literária acentua-se mais ainda na produção deste autor com a reescrita dos próprios Lusíadas para gente nova (2012), uma empresa bem conseguida com o intuito de envolver e levar os jovens à leitura da epopeia e de levar o poema ao encontro dos interesses do público leitor adolescente dos nossos tempos. Não admira portanto, que se multipliquem projetos sobre o seu devir criativo, como o que está a ser desenvolvido por José Manuel Ventura intitulado “Camões e Vasco Graça Moura: Tradição e metamorfose” (VENTURA, 2013). Em qualquer dos casos, porém, se a recuperação do mito camoniano passa pela admiração e referência a Camões, tornando-se uma constante ao longo dos séculos e mesmo na modernidade, o certo é que a atitude dominante, na generalidade dos casos, consiste também na desconstrução do mito camoniano, desmontando-o e aproximando a figura do Poeta da realidade e do comum dos mortais. Jorge de Sena revisita-o na Ilha de Moçambique (1973), no poema assim intitulado, além de lhe dedicar toda uma vida de sereno estudo, patente na vasta obra ensaística que a ele dedicou (Uma Canção de Camões (1966); Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular (1969); A Estrutura de Os Lusíadas e Outros Estudos Camonianos e de Poesia Peninsular do Século XVI (1970); Trinta Anos de Camões, 1948-1978. Estudos Camonianos e Correlatos (1980); Estudos sobre o Vocabulário de Os Lusíadas: Com Notas sobre o Humanismo e o Exoterismo de Camões (1982)). Semelhante atitude de desmontagem do mito é a que encontramos no tratamento da figura camoniana em obras como Que farei com este livro?(1980), de José Saramago, em que um Camões envelhecido não é mais do que a máscara de Saramago, possibilitando-lhe, assim, a verbalização de questões do nosso tempo e a formulação de aspetos que o Romancista e, neste caso específico, também o dramaturgo enfrenta, como os problemas do envelhecimento e, entre outros mais, até o das dificuldades de edição das obras literárias num mundo dominado pelas leis do mercado. E depois disso, Gonçalo M. Tavares compõe Uma viagem à Índia (2010), onde conta com o poema camoniano como subtexto, reconstituindo um universo também ele inspirado na epopeia de Camões, com o arquétipo da viagem como fator estruturante, numa obra inquietante e perturbadora, dividida em dez cantos, em paralelo e aberto diálogo com o modelo que segue (MOURA, 2013. p. 161-167), GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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e que transpõe para o mundo da contemporaneidade o percurso dos nautas e do próprio Camões, muito embora formulando uma pertinente questionação não só sobre o universo literário em que se insere, como da própria mundivisão que lhe subjaz. Todavia, o contributo de autores da lusofonia não desmerece do da constelação de autores até ao momento aduzidos. Pepetela, em “Estranhos pássaros de asas abertas” (PEPETELA, 2003, V, p. [3][11]), posteriormente incluído no volume Contos de Morte. 5 Histórias Dispersas (2008), reelabora o episódio de Fernão Veloso e o do Adamastor, do Canto V, na perspetiva dos povos nativos africanos e respetiva matriz cultural. Por sua vez, José Eduardo Agualusa antepõe “A Casa Secreta” (AGUALUSA, 2003, II, p. [3]-[7]) ao Canto II de Os Lusíadas. Numa narrativa entrançada localizada em dois espaços, o Brasil e Melinde, e dois tempos, o passado e o contemporâneo, o enredo desperta o interesse do leitor pela maneira como se perspetiva a condução de uma pesquisa para dilucidação de um mistério específico de uma tribo da região daquela cidade africana, e pelo modo como se articulam os registos diarísticos de Diogo Mendes, um marinheiro da armada de Vasco da Gama que naquela zona havia ficado, em flagrante contraste com o uso que deles é feito na atualidade pelos seus descendentes. Por último, “A Desdita da Lira” (PIÑON, 2003, X, p. [3][13]), de Nélida Piñon, é um balanço da criação épica camoniana, ao mesmo tempo que apresenta um Poeta encanecido, que deambula por uma Lisboa em contínua transformação, privilegiando-se o papel da memória como uma forma de compensação das limitações da velhice e favorecendo em simultâneo divagações diversas no universo transcendente das suas recordações. Não esqueçamos também que já antes esta escritora havia sucumbido ao fascínio de obra camoniana e recriado a seu modo a figura de Adamastor, num conto do mesmo nome, inserido no volume intitulado Sala de Armas (1973), em que se procede igualmente a essa desmontagem e relativização do mito. Na esteira desta autora e de outros, também no Brasil, que anteriormente Gilberto Mendonça Teles estuda no volume por ele dedicado a Camões e a Poesía Brasileira (1973), Geraldo Carneiro, em Por mares nunca dantes (2000), transporta a figura do Poeta GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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através de um artifício de ficção científica, o de um buraco no tempo… e no espaço, para o contexto cosmopolita contemporâneo do Rio de Janeiro, evidenciando com agudeza e em clave humorística, os aspetos resultantes do desfasamento histórico decorrentes da colisão temporal da mundivisão dominante no tempo de Camões e que estrutura os seus esquemas mentais, com a da realidade com que se vê confrontado. Álvaro Alves de Faria, em A Memória do Pai (2006), inspira-se em episódios do poema e a partir deles compõe um conjunto de poesias, de que sobressaem aquelas que incidem sobre a figura e o drama de Inês de Castro. Ampliando esse ciclo, deu forma a um volume posterior, Inês (2007) consagrado a idêntica matéria. Mílton Torres, no livro No Fim das Terras (2005), por sua vez, reconstitui um périplo por lugares da expansão e do império, em que reconfigura um Adamastor mais singelo no cabo Não e reelabora a gesta das descobertas com uma geografia original nos meandros de uma sequência de poemas, bem como através de um constante jogo poético de revelações e ocultamentos propositados. Por conseguinte, variados são, pois, os modos e as estratégias de reapropriação da tradição poética camoniana: se alguns se inspiram em personagens, situações e motivos, quer da epopeia, quer da lírica; outros valorizam vetores como a recuperação e desconstrução do mito camoniano; havendo ainda outros que revalorizam a biografia do poeta para dela fazerem um eixo matricial da narrativa histórica pós-moderna das últimas décadas. Exceção a toda essa desconstrução do paradigma camoniano encontra-se, porém, na composição do poema épico Mauberíadas (1973), de Xanana Gusmão, afinal por se tratar de uma epopeia de fundação de uma nação, expressão acabada da autonomia do povo timorense. Todavia, de uma maneira ou outra, em qualquer dos casos apontados, atesta-se a vitalidade e importância de Camões e da obra camoniana, longe de uma perspetiva que possa sugerir contaminações de ordem neocolonial, mas antes como uma constante e um denominador comum para todo aquele que se sente membro de uma comunidade multicultural e multiétnica, no sentido da universalidade e sob o signo da unidade na diversidade, como é a galáxia literária de países lusófonos, a pátria de múltiplas pátrias, na aceção que lhe confere José Augusto Seabra. Trata-se, isso sim, antes, de um modo que sugere a reflexão em torno de questões GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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contemporâneas, facilitada pela estreita articulação da nossa memória cultural comum com os fenómenos que a todos nos atingem neste mundo ecuménico da aldeia global, que dilui as diferenças e anula as distâncias com a iminência do ‘aqui’ e ‘agora’, não obstante as constantes e profundas mudanças que, não raro obrigam a uma revisão acurada de toda as questões antes aduzidas. ABSTRACT: If it is unquestionable the recognition of the centrality of Camões and of the Camonian work within the Portuguese literature and culture, it is certain that in very few moments it was so sensible the difficulty in understanding it in its fullness and in adhering to the poetic discourse of the great Poet as it is today. Nowadays editions proliferate, in which the apparatus of notes facilitates the access to the poetic message and help to decode the elaborate style, marked by the codes of the time. Nevertheless, he has not withered his influence if it is considered the inspiration he exercises upon contemporary writers. Multiple are the names that are included among the constellation of the most brilliant creators of our time and that are the living face of the literary identity not only of Portugal, but also of the Lusophone countries. All of them have appropriated of the literary tradition in which Camões serves as a cornerstone of the utmost expression of a worldview that underlies to the Lusophone countries, each one of them, afterwards, enriched by specificities of their native traditions. José Saramago, Manuel Alegre, Lídia Jorge, Fernando Campos, Mário de Carvalho, Luísa Costa Gomes, Vasco Graça Moura, Jacinto Lucas Pires, José Luís Peixoto, among the Portuguese; Pepetela, José Eduardo Agualusa, within the Angolan letters; Nélida Piñon, Geraldo Carneiro, Álvaro Alves de Faria and Mílton Torres, in Brazil; Xanana Gusmão, in Timor Lorosae, are only some of much more that pay tribute to the biggest epic Poet of our letters. Varied are also the modes of (re)appropriation of the Camonian poetic tradition: if some of them are inspired in characters, situations and motifs, either of the epics, or of the lyric; others appreciate vectors such as the recovery and deconstruction of the Camonian myth; and there are others yet that valorize the Poet’s biography in order to make out of it the matrix axis of the post-modern historical narrative of the last decades. Therefore, for its symbolic value, that forwards to and evokes golden epochs of GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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the past, remembered with nostalgia, especially in moments of crisis, such as the one we are going through nowadays, in a way or another, Camões goes on closely attached to the image that the Portuguese upon him outlined and his work, most particularly The Lusiadas, was, is and will be the ultimate expression of the identity of Portugal and of the Portuguese culture “scattered in pieces all over the world” and revitalized within the borders of the young Lusophone countries. Keywords: Camões; Lusophone (Re)appropriation; Post-modernity.

countries;

Literary

tradition;

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DA RETÓRICA DO FRANCISCANISMO NAS MORALIDADES DE GIL VICENTE Maria do Amparo Tavares Maleval 1 RESUMO: Os autos de devoção ocupam lugar de destaque na produção de Gil Vicente, feitos muitos deles a pedido da franciscana rainha D. Leonor, viúva de D. João II e irmã de D. Manuel, que foi a principal mecenas do dramaturgo. Dentre eles selecionamos os Autos dos Mistérios da Virgem (ou da Mofina Mendes) e da Feira, encomendados para o Natal, os Autos da Alma e da Barca da Glória, representados na Semana Santa, e o Milagre de São Martinho, feito para o Corpus Christi, analisando-lhes alguns elementos retóricos utlizados para veiculação da doutrina do Franciscanismo. Palavras- chave: Teatro; Liturgia; Retórica; Franciscanismo; Idade Média. Começamos por lembrar que o teatro no Ocidente medieval nasceu intrinsecamente relacionado aos rituais religiosos, como de resto já sucedera na Grécia, em que ter-se-ia originado nos cultos em honra de Dionísio2. No interior dos templos, bem como nas procissões, ocorriam representações relacionadas aos principais ciclos e comemorações religiosos, desenvolvidas a partir ou a par dos tropos do rito romano, isto é, de pequenas recitações ou diálogos entre os oficiantes do culto e o coro, inseridos na liturgia da missa. A gestualística ritual, bem como a mistura de música e palavras no culto, aliadas à intenção didática, de comoção e/ou conversão dos assistentes, propiciariam o nascimento desse teatro, destacando-se que, como frisa Henrique Harguindey Banet (1999, p. 7), nessa época de nascimento das línguas românicas as reuniões de cunho 1

Professora Aposentada do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense. Professora Associada e Procientista do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pesquisadora do CNPq.

2

Cf., a propósito, PAVIS, 1999, p. 25, p. 52-54.

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profano seriam menos abundantes que as religiosas, como missas, festas de santos padroeiros, peregrinações, etc. A par dos tropos, e até considerado uma sua extensão, surgiu o drama litúrgico, em torno da Paixão de Jesus: a Visitatio sepulchri, representada nas matinas do domingo de Páscoa. Esta, conforme demonstra Eva Castro (1997, p. 15), teve como base a composição Quem queritis in sepulchro, também utilizada como tropo da missa pascoalina nos séculos X-XI, como atestam códices monásticos beneditinos (CASTRO, 1997, p. 15-16). Mas não se pode saber ao certo se dita composição surgiu originariamente como texto do tropo ou do drama3. À época em que Gil Vicente surgiu no cenário da corte manuelina – nos primórdios do século XVI –, o drama litúrgico não só já se havia firmado na Europa, mas se desdobrara em autos de autoria extraclerical e mesmo paródicos. As incipientes representações iniciais ligadas à liturgia haviam evoluido para a encenação de episódios da Paixão e/ou de outras passagens dos Evangelhos e do Antigo Testamento, chamadas de mistérios; e, com o aumento dos elementos profanos e ao se tornar mais complexo o aparato cênico, passaram a se realizar no adro das igrejas. Nos pátios aconteceriam também dramatizações profanas, ligadas ao cômico popular, proibidas por 3

Esse drama litúrgico é descrito por ela como “una ceremonia cantada, cuyo modo de narración se realizó a través de um texto preexistente y de unos actuantes, que prestaban su voz y su cuerpo para los diálogos” (CASTRO, 1997, p. 27). Com relação à encenação, era feita em um espaço determinado e inclusive decorado em certas ocasiões, e “estaba destinado a una comunidad, que no solo asistía de forma pasiva, sino que incluso participaba activamente” (CASTRO, 1997, p. 27). Dessa forma, já apresentava os componentes que hoje conhecemos do teatro, tais sejam o libreto, os atores, o espaço do cenário, a decoração e o público participante. Mas, como acentua a especialista, tudo parece indicar que nem os ‘autores’, nem os ‘atores’ nem o ‘público’ do drama litúrgico “percibían en el una manifestación teatral ajena a la dramaticidad propia de la liturgia, sino que lo entendían y sentían como una ceremonia más, engastada en el ritual romano oficial” (CASTRO, 1997, p. 27-28).

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Concílios e Constituições sinodais de serem realizadas nos recessos dos templos. Daí se estenderiam aos burgos, aos mercados e feiras, bem como às cortes reais e senhoriais  enfim, aos lugares de reunião do homem medievo. Os mistérios, originados na França, no século XII, a partir do século XIV já compreendiam encenações de vulto, as quais, buscando o realismo, contavam com numerosos figurantes e extensos textos de muitos episódios. Nesta época surgiram as moralidades, com finalidades mais explicitamente educativas, colocando em cena tipos psicológicos ou alegorias críticas, que personificavam abstrações como vícios e virtudes. E os milagres, originados a par dos ‘mistérios’ no século XII, encenavam situações-limite da vida dos santos e suas intervenções miraculosas. Tais peças eram representadas não por atores profissionais, mas por membros de confrarias estáveis, da mesma forma que as profanas. E por ocasião do Carnaval e outras celebrações análogas, como a Festa do Burro, a dos Tolos e a de Maio, dentre outras, que permitiam a inversão da ordem estabelecida, a liberdade total e o destronamento dos valores dominantes, aconteciam manifestações teatrais que parodiavam as cerimônias ou expressões religiosas, além, evidentemente de outros discursos e assuntos “sérios” não religiosos – como lembra Harguindey Banet (1999, p. 11), eram também parodiados “a vida administrativa e xurídica (ordenamentos reais, cartas e privilexios, testamentos...), os xéneros literarios (cancións de xesta e epopeas convertidas en batallas entre o Carnaval e a Coresma), os prognósticos astrolóxicos, etc.” Dessa forma, dentre as representações carnavalizadas se encontravam os sermões burlescos, monólogos enunciados por atores travestidos de frades, nos quais eram arremedados elementos do culto religioso, como sermões, orações, ladainhas, hinos, etc.4. No lado 4

Existiam ainda outros ‘monólogos dramáticos’, representados por um único ator, ridicularizando tipos sociais. Em Portugal, registrou-se o termo ‘arremedilho’, relacionado ao espetáculo proporcionado pelo ‘remedador’, termo através do qual era chamado, no tempo de Afonso X de Leão e Castela, o jogral ou bufão que juntava a declamação à mímica. Aliás, o documento mais antigo que comprova a existência de dramatizações

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oposto a esse teatro paródico, já mais para o final da Idade Media, existiram os solenes momos, tão ao gosto dos monarcas de Avis. Estes se caracterizavam pela semelhança estrutural com a procissão, pelo caráter alegórico e espetaculoso, galante e solene, apropriado aos temas representados, que compreendiam matéria cavaleirescoexpansionista. Apresentando raros ou mesmo inexistentes discursos e ação dramática, utilizavam dança e mímica, além de muitos recursos técnicos, de muitas maquinarias e seus truques, que causavam o espanto e a admiração dos expectadores. Importa salientar que também os momos se aproximavam estruturalmente de um rito religioso – a procissão. E até mesmo as farsas, geralmente satíricas e caricaturais, que foram o gênero mais popular do teatro cômico medieval, ligavam-se ao sagrado, constituindo inicialmente uma breve representação intercalada no drama litúrgico, para distensão do público. É no contexto do paulatino afrouxamento da austeridade na liturgia imposta por cluniacenses e cistercienses que, no século XV, documentam-se encenações ligadas à procissão de Corpus Christi em Alcobaça; e em Caldas da Rainha, 1504, Gil Vicente, considerado o criador do teatro português, representaria o Auto de São Martinho, encomendado pela Rainha Velha, D. Leonor, também para o Corpus Christi. Neste milagre moralizador, franciscanamente é feita a apologia da verdadeira caridade, cuja prática não consiste em doações do supérfluo, mas do essencial, uma vez que o santo divide com um pobre a própria capa em rigoroso inverno, segundo a lenda atualizada na peça. Esse é apenas um dos muitos Autos “de devoção” vicentinos, sendo a maioria composta para ser apresentada à família real durante o ciclo do Natal, como indicam as didascálias das peças ou referências intratextuais. Assim, para os festejos natalinos foram feitos5 os Autos anteriores a Gil Vicente em Portugal concerne a uma doação de terras feita por Sancho I (1154-1211) aos bufões Bonamis e Acompaniado, em troca de um ‘arremedilho’. 5

Vale lembrar que Gil Vicente não escreveu para o Natal apenas obras de devoção, mas também uma “farsa de folgar que trata como um Clérigo da Beira béspora de Natal determinou de ir aos coelhos, e indo pera a caça com

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Pastoril Castelhano (1502), dos Reis Magos (1503), da Fé (1510?), dos Quatro Tempos (1511?)6, da Sibila Cassandra (provavelmente 1513), do Purgatório (1518), Pastoril Português (1523), da Feira (1527) e da Mofina Mendes (1534). Para o ciclo da Paixão, o Auto da Alma, e o Auto da Barca da Glória (1519). Além destes, foram compostos autos devocionais para outras ocasiões os autos da Barca do Inferno (1517), da História de Deos, da Ressurreição de Cristo e da Cananea. Antes de irmos adiante, vale observar que nos autos de Gil Vicente, e não só nos que abordaremos a seguir, em geral a dispositio – composta de apresentação, desenvolvimento das cenas e epílogo – se apresenta de forma processional, com o desfile dos personagens que se expressam em versos, recriando formas tradicionais, e com recorrente uso da música, aliás inseparável dessas formas poéticas no medievo, tanto quanto dos ofícios litúrgicos. E, para um franciscano como mestre Gil, o significado do Natal é de total alegria e esperança na salvação, na vida eterna após a morte; daí a inclusão de farsas pastoris na maioria desses autos, e com elas da música e dança características do folclore ibérico, como por exemplo as chacotas serranas. Os cantos de lamento foram por ele usados sim, mas não majoritariamente, e em peças como o Auto da Barca da Glória, feito para o ciclo da Paixão de Cristo, no qual as almas contritas e pesarosas por seus pecados entoam cântico “a modo de pranto com grandes admirações de dor” (VICENTE, 2002, p. 294). Sobre o franciscanismo, lembramos que a sua influência foi muito grande na corte portuguesa, e não só à época de Gil Vicente, quando era da Ordem Terceira a sua principal mecenas, D. Leonor. Já muito antes a rainha Santa Isabel, esposa de D. Dinis, no século XIII, abraçara o franciscanismo, a caridade e a humildade dele típicos, fundando o convento das Clarissas e vestindo o hábito quando da sua viuvez, só não ficando reclusa para continuar no século obrando em um filho seu rezam as matinas” (VICENTE, 2002, Vol. II, p. 351). Representada a D. João III em 1526, foge ao grupo específico dos autos de devoção para o ciclo natalino, representados em capelas e outros locais considerados sagrados. 6

Para as datações possíveis desses autos, cf. CAMÕES, 1991, p. 3.

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prol dos desvalidos. E destacado foi o papel dos Frades Menores na revolução que elevou o Mestre de Avis ao trono de Portugal, sendo franciscanos os confessores dos primeiros reis da dinastia de Avis. Além do mais, é português, nascido em Lisboa em 1192, um dos principais santos franciscanos, mais conhecido como Santo Antônio de Pádua, em cujos arredores faleceu no ano de 1231; ao abraçar o franciscanismo, revelou-se grande pregador e foi o primeiro mestre de Teologia da Ordem, além de autor de profícuo e paradigmático sermonário. Mais que as regras elaboradas pelo Santo de Assis interessamnos neste momento trazer à baila as virtudes por ele mais prezadas. Em texto de sua lavra, intitulado “Elogio das Virtudes” (FRANCISCO, 1988, p.166), exalta a “rainha sabedoria”, irmã da “pura simplicidade”; a “santa pobreza”, irmã da “santa humildade”; a “santa caridade”, irmã da “santa obediência”. E ensina que a nenhuma o cristão deve ofender: “quem a uma ofender, nenhuma possui e a todas ofende”, acrescentando que “cada uma por si destrói os vícios e pecados”. Assim, a “santa sabedoria” “confunde a Satanás e todas as suas astúcias”; a “pura e santa simplicidade” “confunde toda a sabedoria deste mundo e a prudência da carne”; a “santa pobreza” “confunde toda a cobiça e avareza e solicitudes deste século”; a “santa humildade” o orgulho, a “santa caridade” “as tentações do demônio e a da carne” e desta os temores; a “santa obediência” “confunde os desejos sensuais e carnais e mantém o corpo mortificado para obedecer ao espírito e obedecer a seu irmão, e torna o homem submisso” a todos os homens e animais (FRANCISCO, 1988, p. 166-167). Outro grande fator a ser levado em conta é o destacado lugar ocupado pela arte do discurso persuasivo no contexto de produção da obra vicentina. A retórica constitui, como se sabe, herança clássica continuada no medievo, com importações da tradição bíblica e patrística, pelas artes praedicandi. Inclusive o próprio dramaturgo foi autor de “sermões”, como o Sermão de Abrantes, no qual demonstra conhecer as técnicas da arte de pregar, que também utilizou em muitos outros momentos da sua obra. E os gêneros de discurso dos quais fala Aristóteles na Retórica podem ser facilmente reconhecidos no teatro doutrinário de Gil Vicente, em peças que ora se revestem de GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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dominância epidítica, ora deliberativa, ora judicial7. Dessa forma, têm por finalidade principal, respectivamente, a louvação das virtudes e a condenação dos vícios; o aconselhamento para a prática da religiosidade verdadeira; a condenação da vida pecaminosa e o seu contrário – a recompensa celestial aos praticantes das virtudes e a salvação dos contritos pela Graça redentora decorrente da Paixão Cristo. Observaremos a seguir algumas técnicas retóricas, utilizadas por Gil Vicente para apregoar os ensinamentos franciscanos nos autos dos Mistérios da Virgem, da Feira, da Alma, da Barca da Glória e de São Martinho. O Auto dos Mistérios da Virgem (ou da Mofina Mendes) apresenta um Prólogo que funciona a modo de exórdio, parte inicial do discurso onde se intenta a captatio benevolentiae do auditório ou dos juízes. Um frade, com um discurso aparentemente desconexo ou amalucado, a modo de um sermão burlesco cheio de citações de autoridades e de frases ou expressões em um latim “macarrônico”, na verdade estabelece uma acirrada crítica ao juiz “que tem jeito no que diz” mas “nam acerta o que faz”, aos ‘letrados de rio torto”, aos que se ufanavam conhecedores dos “secretos divinais / que estão debaixo da terra” (VICENTE, 2002, p. 113). Critica, portanto, a arrogância dos intelectuais, a sua falha sabedoria, sendo a verdadeira sabedoria irmã da santa simplicidade para S. Francisco, como vimos. Aliás, na Legenda Maior de São Boaventura lemos que S. Francisco “dizia que se devia deplorar como destituído de verdadeira piedade todo pregador que na pregação procura mais a própria glória do que a salvação das almas ou que destrói com seu mau exemplo aquilo que ele edifica com a verdade de sua doutrina” (FRANCISCO, 1988, p. 516). Outras críticas estabelecidas são à licenciosidade dos clérigos e sobretudo à avareza, inimiga da “santa pobreza” e da “santa caridade”, admoestando os ricos a se prevenirem do inferno através da 7

Cf., a propósito, a tese de Luciana Barbosa Reis, feita sob minha orientação, intitulada “Retórica e religiosidade em cena: as moralidades de Gil Vicente” (REIS, 2013). Defende ela que os Autos da Fé e da Mofina Mendes correspondem ao gênero epidítico, o da Feira e o da Alma ao deliberativo e o da Barca do Inferno e do Purgatório ao judiciário.

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adoção dos “enjeitados / filhos de clérigos pobres” (VICENTE, 2002, p. 113). E termina a primeira parte da sua fala justamente evocando a visão do “rico avarento / que nesta vida gozava / e no inferno cantava: / água Deos água / que lhe arde a pousada” (VICENTE, 2002, p. 113). Utiliza-se, pois, de argumentos lógicos e patéticos. E, através dos mesmos, fustiga os vícios mais combatidos no Elogio das virtudes de São Francisco. Após espicaçar dessa forma o seleto auditório que assistia ao auto – foi representado a D. João III e sua corte nas matinas de Natal de 1534, como indica a didascália inicial –, o frade inicia a segunda parte do Prólogo, que também cumpre o que a retórica clássica preconizava para o exórdio: apresentar o teor, a dispositio e as figuras do discurso, no caso, do auto. E busca a credibilidade do auditório ao indicar que os afastamentos da história eclesiástica ou da Bíblia se fundamentam na devoção. As partes do discurso, por ele indicadas, se reduzem a duas: a Anunciação e o Nascimento do Redentor. Mas, como sabemos, o auto possui um intermezzo, constituído por uma farsa campesina não referida pelo frade mas que termina por ”roubar a cena” e substituir o próprio título da peça, que se tornou famosa não como Auto dos Mistérios da Virgem (assim chamado pelo frade-prólogo), mas da Mofina Mendes. Não será nossa intenção aqui desenvolver uma análise minuciosa desse Auto, o que já realizamos em estudos anteriores (MALEVAL, 2012). Apenas gostaríamos de ainda ressaltar-lhe alguns aspectos retóricos, como o relativo à alegoria das virtudes que acompanham a Virgem – nada menos que a Pobreza, a Humildade, a Fé e a Prudência. O Catecismo da Igueja Católica estabelece que as virtudes teologais são fé, esperança e caridade; e que as cardeais são prudência, justiça, fortaleza e temperança (CATECISMO, 1999, p. 486-488). Gil Vicente conservou das teologais a Fé (que se fundamenta na crença), e das cardeais a Prudência (alicerçada na razão, no discernimento) 8; mas 8

Mas a prudência franciscana não é materialista, ao contrário. Ensinava ele que “Quem pretende chegar ao cume da pobreza deve renunciar não somente à prudência segundo o mundo, mas também às letras e às ciências;

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evidenciou, em detrimento das demais, justamente as preconizadas por S. Francisco: Pobreza – para ele a rainha das virtudes, o caminho mais seguro para a salvação (Cf. S. BOAVENTURA, in FRANCISCO, p. 506) – e Humildade – fundamentada na pobreza e contrária da soberba, “origem de todos os males” e “mãe da desobediência” (S. BOAVENTURA, in FRANCISCO, p. 506). Não bastasse isto, é justamente na boca da Mofina Mendes, que inicialmente serve de contraponto à Virgem – enquanto esta é a pastora dedicada, que se preocupa com a salvação das suas ovelhas transviadas, a humanidade pecadora, aquela é a antipastora, completamente descuidada do rebanho que tem sob sua guarda e que termina por ser exterminado –, que se condensa a mensagem maior do Auto: “todo o humano deleite / como o meu pote d’azeite / há de dar consigo em terra” (VICENTE, 2002, p. 126). Partindo de uma figura grotesca, tresloucada, tais palavras só poderiam ter sido ditadas pela Graça que, como asseveram os grandes teorizadores da prédica, como São Paulo e Santo Agostinho, é que ilumina o pregador. Assim, mais uma vez Gil Vicente coloca em uma personagem risível a lição maior da Ordem dos Menores, que retomaram a de Jesus Cristo: o desapego aos bens materiais e a sabedoria da simplicidade. Aliás, a perotatio do auto, sua cena final, é o convite do Anjo aos simplórios e humildes pastores para o encontro com o Menino-Deus a caminho de Jerusalém, levado pela mãe ao templo. A rubrica final é festiva como ao acontecimento convém: “Tocam os Anjos seus instrumentos, e as Virtudes cantando e os Pastores bailando se vão. / Laus Deo” (VICENTE, 2002, p. 133). No auto da Feira, também representado a D. João III, nas matinas de Natal de 1527, o prólogo é constituído pelo discurso de Mercúrio, que busca conquistar o público através da afirmação de sua autoridade. Assim, apresenta-se como “estrela do céu” (VICENTE, 2002, p. 157) e profundo conhecedor da “verdadeira” astronomia, ciência muito em voga na época. E, após discorrer sobre este saber, se assume como “deos das mercadorias” (VICENTE, 2002, p. 162). assim despojado daquilo que ainda é uma forma de posse, proclamará o poder do Senhor (cf. Sl 73, 15-16)” (S. BOAVENTURA, in FRANCISCO, p. 508).

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É estreita a relação entre o ato de vender e a retórica, dado que o discurso persuasivo conquista o comprador. E Mercúrio era considerado também o deus da eloqüência. Daí que, firmada a sua autoridade, e desvelada aos leitores menos ingênuos a sua função retórica, passe a justificar a composição do Auto: sua originalidade – “E porquanto nunca vi / na corte de Portugal / feira em dia de Natal / ordeno ûa feira aqui / pera todos em geral” – e sua adequação à época, fazendo mercador-mor, alegórico, ao Tempo: “Faço mercador mor / ao Tempo que aqui vem / e assi o hei por bem / e nam falte comprador / porque o Tempo tudo tem” (VICENTE, 2002, p. 162). Sabemos que o contexto é o do mercantilismo, como também do combate, por Erasmo e Lutero9, da venda de indulgências pela Igreja. Daí o Tempo, temendo os maus compradores que preferem a “feira do demo”, invocar a ajuda divina, que se concretiza na figura do Serafim. E a admoestação por este feita às “igrejas mosteiros / pastores das almas, papas adormidos” é de orientação indubitavelmente franciscana: “buscai as samarras dos outros primeiros / os antecessores. / Feirai o carão que trazeis dourado / ó presidentes do crucificado / lembrai-vos da vida dos santos pastores / do tempo passado” (VICENTE, 2002, p. 164). O retorno ao cristianismo das origens, onde as primeiras ordens de Jesus aos seus discípulos foram abandonar todos os bens materiais e dedicar-se totalmente à pregação do Evangelho a todas as criaturas, tal foi a proposta atualizada pelo Santo de Assis. É interessante observar que o Diabo, presente na feira, ao ser expulso pelo Serafim se utiliza de um discurso próprio da retórica judicial: “Senhor apelo eu disso”, argumentando, por exemplo, que “Se me vem comprar qualquer / clérigo ou leigo ou frade / falsas manhas de viver / muito por sua vontade / senhor que lh’hei de fazer?” (VICENTE, 2002, p. 167). Lança mão, pois, de argumento fundamentado no livre arbítrio dado por Deus aos homens, para justificar o seu direito de feirar. 9

Erasmo viveu de 1469 a 1536, e, embora não se aliando a Lutero (14831546), autor das teses que deram início à Reforma protestante, lançou as bases de uma nova teologia, fundamentada na Bíblia lida diretamente do grego, não da tradução de São Jerônimo.

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Sem tempo para irmos adiante, lembramos ser significativo o fato de até Roma vir à feira, intentando “comprar paz, verdade e fé’ (VICENTE, 2002, p. 168). E destacamos que é através das falas de simples camponesas e serranas que a crítica à feira se estabelece de modo contumaz. Umas se queixam da falta de alegria em uma feira natalina: “Eu nam vejo aqui cantar / nem gaita nem tamboril / e outros folgares mil que nas feiras soem d’estar. / E mais feira de Natal / e mais de nossa senhora / e estar todo Portugal” (VICENTE, 2002, p. 180). Outras, da própria condição de feirar, incompatível com o divino: “Porque nos dizem que é / feira de nossa senhora / e vedes aqui porquê. / E as graças que dizeis / que tendes aqui na praça / se vós outros as vendeis / a virgem as dá de graça / aos bôs como sabeis” (VICENTE, 2002, p. 186). Portanto, a crítica à venda de indulgências pela Igreja se desvela mais e mais. Bem como à tristeza no culto. Daí que, reiterando a necessidade da alegria na comemoração natalina já expressa anteriormente por outras personagens, continuam: “E porque a graça e alegria / a madre da consolação / deu ao mundo neste dia / nós vimos com devação / a cantar-lhe ûa folia”. Propondo o fim da feira, como indica a rubrica “ordenadas em folia cantaram a cantiga” mariana “Blanca estais colorada / virgem sagrada // Em Belém vila do amor / da rosa nasceu a flor / virgem sagrada”, etc. (VICENTE, 2002, p. 186). Assim o Auto termina, com cânticos e danças sucedidos pela rubrica final: Gratias agamus domino Deo nostro. Também nada mais franciscana que esta situação: a da exaltação à Virgem e da alegria no culto, principalmente o natalino, pois, como registram as crônicas coevas de S. Francisco, foi ele inclusive o inaugurador da tradição do presépio natalino. Agora passaremos à observação de dois autos feitos para a Semana Santa, época de dor instituída pela Igreja para rememoração da Paixão de Cristo. A começar pelo Auto da Alma, considerado a mais gótica realização do autor, dedicado à “muito devota rainha dona Lianor” e representado a D. Manuel na noite de Endoenças, quintafeira da Paixão, 1508. Temos visto o modo como Gil Vicente, nos autos já comentados, lançou mão dos ensinamentos retóricos relativos ao exórdio para conquistar os espectadores. Neste auto não é diferente: GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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nada menos que o discurso de Santo Agostinho o inicia. Daí, não ser necessário o recurso ao riso ou à demonstração do saber pelo enunciador do discurso-prólogo, como no Auto da Mofina Mendes ou no Auto da Feira, porque Santo Agostinho já possui a credibilidade máxima que em um contexto cristão alguém poderia alcançar. Assim, possuindo em si os valores éticos, a sua função será a de exaltar o papel da “santa estalajadeira / Igreja madre” (VICENTE, 2002, p. 190) no fortalecimento da “alma caminheira” exposta aos “mui perigosos perigos / dos imigos” na “triste carreira / desta vida” (VICENTE, 2002, p.189-190). Em seguida ao seu discurso, e reiterando-lhe os ensinamentos, vem o Anjo Custódio, que apresenta a Alma como “formada / de nehûa cousa feita” (VICENTE, 2002, p. 190), “caminheira” em direção à “pátria verdadeira” (VICENTE, 2002, p. 191), animando-a ao esforço contínuo que a salvação requer. A Alma, que se reconhece fraca e temerosa, tem em sua peregrinatio de um lado o Anjo, a encorajá-la a rechaçar vaidades e riquezas, de outro o Diabo, a tentá-la com um discurso que lembra em tudo o dos sofistas: não só se utiliza do próprio discurso bíblico, subvertendo-o, como lança mão da lisonja para convencer a Alma: “Tam depressa ó delicada / alva pomba pera onde is? (...) ainda estais em idade / de crecer / tempo há i pera folgar / e caminhar / vivei à vossa vontade / e havei prazer. // Gozai gozai dos bens da terra / procurai por senhorios / e haveres” (VICENTE, 2002, p. 193-194; cf. também p. 197-198). A fonte bíblica é o Eclesiastes, III, 1-8. Não bastasse, argumenta ainda com a opinião comum: “Oh descansai neste mundo / que todos fazem assi” (VICENTE, 2002, p. 194). Se o discurso do Anjo enfatiza o papel do livre arbítrio, como também a necessidade de ajuda à matéria fraca e mortal de que é feito o ser humano, já o Diabo a exalta como “senhora / emperadora”, que não deve “a ninguém nada” (VICENTE, 2002, p. 195) e para quem existem os prazeres e haveres. A Alma sucumbe à tentação, à vaidade, aceitando os trajes e jóias preciosos que este lhe oferece. E, ao ser criticada pelo Anjo, defende-se respaldando-se no senso comum, um dos argumentos do discurso demoníaco, e diz: “Faço o que vejo fazer / pólo mundo” (VICENTE, 2002, p. 196). GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Após o arrependimento, fortalecendo-se com a ajuda da Igreja que a recebe com seus doutores Agostinho, Jerônimo, Ambrósio e Tomás através das iguarias santas do flagelo de Jesus Cristo (açoites, coroa de espinhos, cravos), adoram juntos a última iguaria – o crucifixo apresentado por São Jerônimo. Com o cântico Te Deum laudamus se encerra o auto, mas – e o que nos interessa ressaltar – não sem antes Santo Agostinho referir-se à Alma como “bem aconselhada”, que “venceu com fé / forte guerra” (VICENTE, 2002, p. 212) – a da persuasão demoníaca através de sofismas. O auto da Barca da Glória foi também possivelmente representado no ciclo da Páscoa, a D. Manuel, em Almeirim, 1519. Diferindo dos demais aqui analisados, não apresenta uma fala inicial a modo de exórdio. É apenas a rubrica inicial que indica as personagens que o constituem –“dignidades altas: Papa, Cardeal, Arcebispo, Bispo, Emperador, Rei, Duque, Conde” (VICENTE, 2002, p. 269), bem como “quatro Anjos cantando” (VICENTE, 2002, p. 269) mais os Diabos e a Morte. Como é sabido, esse auto insere-se na chamada ‘trilogia das Barcas”, iniciada pelo Auto da Barca do Inferno, de 1517, no qual desfilam tipos medianos da sociedade da época, que são julgados após a morte pelo Anjo. O papel do advogado de acusação cabe ao Diabo que os quer em seu batel, à exceção do judeu. Conseguem permissão do Anjo para o embarque no batel divino apenas um tolo e quatro cavaleiros cruzados, mártires pela fé. No natalino Auto do Purgatório, de 1518, de igual teor judicativo, segue para o Inferno um taful e para o Céu uma criança, um menino “em idade de inocente” (VICENTE, 2002, p. 264), ficando no Purgatório os camponeses adultos, por seus pecadilhos e revolta. Voltando ao Auto da barca da Glória, vemos que a conversa inicial é justamente entre o Arrais do Inferno e a Morte, acusada por ele de atingir a numerosos “pobrecicos” e tardar tanto a atingir os “grandes y ricos” (VICENTE, 2002, p. 269). Atendendo-o, são trazidas as “dignidades altas”, que desfilam uma a uma, acusadas de vida pecaminosa pelo Diabo, que as convida a entrarem no seu batel. Todos têm consciência, em grau maior ou menor, dos seus pecados, atribuídos por alguns à própria condição humana, ao pecado original que desde Eva acompanha a humanidade. Mas carregam a fé e a GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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esperança em serem salvos pela piedade divina, através da Paixão Redentora do Cristo e do sofrimento da sua Mãe. As invocações que cada um profere, a Deus e a Maria, não surtem efeito e a barca da Glória já se prepara para a partida. Mas, como indica a rubrica final, “os Anjos desferem a vela em que está o crucifixo pintado e todos assentados de joelhos lhe dizem cada um sua oração” (VICENTE, 2002, p. 293). Estas não comovem aos Anjos, que já se afastam. Então “as almas fizeram em roda ûa música a modo de pranto com grandes admirações de dor, e veo Cristo da ressurreição e repartiu por eles os remos das chagas e os levou consigo”. Portanto, quando falharam os demais argumentos, a peroratio do auto investe nos recursos patéticos, que comovem ao Senhor. E o auto termina com a fórmula recorrente, “Laus Deo”. Finalmente, retomamos o Milagre de São Martinho feito para o Corpus Christi10, 1504. Não pode ser considerada uma peça tão artisticamente completa como as demais. A própria rubrica final esclarece que “nam foi mais porque foi pedida muito tarde” (VICENTE, 2002, p. 366). Mas o escolhemos para iniciar e terminar as nossas considerações sobre o franciscanismo vicentino justamente porque se trata de um exemplum – tão caro à retórica – que ilustra mais que muitos outros recursos a caridade franciscana. A Legenda Maior, biografia de São Francisco feita por São Boaventura e tornada a oficial, destaca que nele se consubstanciara a verdadeira piedade: “a devoção que o elevava até deus. A compaixão que fazia dele um outro Cristo, a amabilidade que o inclinava para o próximo, e uma amizade com cada uma das criaturas, que lembra nosso estado de inocência primitiva” (VICENTE, 2002, p. 515). O discurso inicial do auto, que como vimos tem uma importância capital na estruturação de cada peça, é dado a um Pobre, que se lamenta, não sem revolta, dos seus terríveis sofrimentos, que o fazem desejar a morte, observando ser ela dada por Deus a tantos que não a merecem – “Por qué me desdeñas / y matas sin tiempo quien 10

Como se sabe, é a festa do Santíssimo Sacramento, instituída pelo papa Urbano IV no século XIII (1264) em honra da presença de Cristo na eucaristia, e que se tornou muito popular sobretudo pela procissão que sucede à missa desse dia.

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merece vida?” (VICENTE, 2002, p. 364). E implora por uma esmola, apelando para a compaixão dos “devotos cristianos” (VICENTE, 2002, p. 363). Então entra em cena São Martinho, a quem o mendigo dirige a sua súplica. Compadecido, e sem ter nada mais que pudesse oferecer, corta a capa ao meio, repartindo com o pobre aquilo que lhe era também essencial: o agasalho. Esta a lição da verdadeira caridade, que foi a praticada pelo santo de Assis. Nenhuma palavra poderia ser mais convincente que tão grande exemplo. E não importa que o mendigo seja um revoltado, que não possua a paciência de Jó. Daí se segue outra lição: não julgar, não maldizer. Aliás, a maledicência era condenada da forma mais radical por S. Francisco “por ser mortal para a piedade e a graça, objeto de abominação de Deus infinitamente bom” (FRANCISCO, 1988, p. 517). Se Gil Vicente apresenta a injustiça social e por vezes até a divina – por exemplo através do seu personagem-lavrador, que denuncia ser “vida das gentes” e morte da própria vida no Auto do Purgatório (VICENTE, 2002, p. 248-249) –, no entanto o que prevalece em seus autos é o elogio das virtudes, notadamente franciscanas. Enfim, é patente o conhecimento e utilização, por parte de Gil Vicente, das técnicas de persuasão do discurso desde a elaboração dos prólogos dos autos, que certamente conseguiram captar a benevolência do auditório para os ensinamentos que intentavam perpetrar. E que têm uma orientação claramente franciscana, elogiando as mesmas virtudes destacadas pelo fundador da Ordem dos Menores. Também pudemos comprovar que, à época de Gil Vicente, o teatro inserido nas comemorações religiosas, escrito e encenado por um leigo, perpetuava a tradição do drama litúrgico – salvo as devidas distâncias, já que, como Eva Castro enfatiza, “tudo parece indicar que nem os ‘autores’, nem os ‘atores’ nem o ‘público’ do drama litúrgico “percibían en el una manifestación teatral ajena a la dramaticidad propia de la liturgia, sino que lo entendían y sentían como una ceremonia más, engastada en el ritual romano oficial” (CASTRO, 1997, p. 27-28). Se não desta maneira, as rubricas e cânticos religiosos nos finais dos autos devocionais analisados concorrem para inseri-los ainda mais na comemoração religiosa para a qual foram encomendados. E funcionam como verdadeiros sermões encenados, unindo o docere com o GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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delectare para comover e persuadir ou convencer o público acerca das benesses de uma vida franciscanamente virtuosa. RÉSUMÉ: Les actes de dévotion occupent une place privilégiée dans la production de Gil Vicente, dont plusieurs ont été faits à la demande de la reine franciscaine D. Leonor, veuve de D. João II et soeur de D. Manuel, celle-ci ayant été la principale mécène du dramaturge. Parmi eux, nous avons retenu les Actes des Mystères de la Vierge (ou de Mofina Mendes) et celui de la Soeur, commandés pour Noël, les Actes de l´Âme et de la Barque de la Gloire, représentés lors de la Semaine Sainte , et le Miracle de Saint Martin, fait pour Corpus Christi. On y analyse quelques-uns des éléments rhétoriques employés pour la véhiculation de la doctrine des franciscains. Mots-clés: Théâtre; Lithurgie; Rhétorique; Ordre franciscain; Moyen Âge. REFERÊNCIAS: BÍBLIA de Jerusalém. S. Paulo: Edições Paulinas, 1973. CAMÕES, José. Tempos. Lisboa: Quimera, 1991. CASTRO, Eva. Teatro medieval. 1 – El drama litúrgico. Barcelona: Crítica, 1997. CATECISMO da Igreja Católica. São Paulo: Edições Loyola, 1999. FRANCISCO DE ASSIS, S. Escritos. In Escritos e biografias de São Francisco de Assis. Crônicas e outros testemunhos do primeiro século franciscano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988. HARGUINDEY BANET, H. Introducción a Tres pezas cómicas medievais. A Coruña: Biblioteca-Arquivo Teatral “Francisco Pillado Mayor”, 1999. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. dirigida por J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Gil Vicente. In: MOISÉS, Massaud (Org.). A literatura portuguesa em perpectiva. Vol. I – Trovadorismo. Humanismo. São Paulo: Atlas, 1992, p. 97-190. ________. Gil Vicente e a arte de pregar: o Auto dos Mistérios da Virgem ou da Mofina Mendes. Revista do CESP - UFMG, Belo Horizonte, v. 32, n. 47, p. 163-184, jan.-jun. 2012. REIS, Luciana Barbosa. Retórica e religiosidade em cena: as moralidades de Gil Vicente. Tese de Doutorado em Literatura Comparada, Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, 2013. VICENTE, Gil. As obras de Gil Vicente. Ed. J. Camões. Vol. I. Lisboa: Centro de Estudos de Teatro, IN-CM, 2002, p. 294.

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IBERIA Y BRASIL EN FERNANDO PESSOA. Pablo Javier Pérez López1 RESUMO: Propõe-se uma aproximação ao projecto ibérico de Fernando Pessoa recentemente publicado na íntegra pela primeira vez (“Ibéria. Introdução a um imperialismo futuro”) no contexto do lugar que ocupa América e o Brasil nele e no seio da chamada acção civilizacional pessoana. Uma melhor compreensão do iberismo pessoano talvez proporcione chaves hermenêuticas mais apropriadas para compreender de maneira mais abrangente a refundação mítica da existência que se encontra inserida na estética pessoana. PALAVRAS-CHAVE: Ibéria, Fernando Pessoa, Tragedia, América, Brasil Ángel Crespo ya dijo muy atinadamente que España es indisociable de las reflexiones pessoanas sobre Portugal por dos razones fundamentales: Pero ¿qué tiene que ver España con todo esto? Mucho, y por dos razones principales. La primera de ellas es que una de las consecuencias inmediatas de la muerte de don Sebastián fue el que reinasen en Portugal los Austrias españoles; la segunda, que siendo la cultura lusitana una parte de la ibérica, a la que el poeta consideraba claramente distinta de la del resto de Europa, el proyecto del quinto imperio no podía prescindir de ninguno de los pueblos peninsulares. (CRESPO, 1985, p.11). Del mismo modo que Pessoa pasó toda su vida buscando su verdadero rostro, el tacto preciso y claro de su verdadera alma, vistiéndose de innumerables otredades, también se preguntó por el

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Universidade Nova de Lisboa.

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rostro de Portugal, ese rostro esfíngico y fatal que alguna vez fue el rostro de Europa (Véase Mensagem). Se preguntó por el alma de su pueblo, y lo buscó, entre otros lugares, en el seno de la Ibericidad. Toda la búsqueda de identidad pessoana, todo su gran proyecto estético-filosófico, está, como veremos, ligado a este iberismo, comprendido como refundación mítico-identitaria del origen de un pueblo y como justificación, auto-justificación del regreso del neopaganismo, de los dioses y de la religión natural de Iberia: el paganismo trascendente (PESSOA, 2013, texto 13). Neopaganismo, Neoarabismo, Sebastianismo, Sensacionismo, Quinto Imperio y Heteronimismo estarán, por lo tanto, ligados a ese Imperialismo Futuro que supone la refundación espiritual de lo Ibérico y al proyecto mítico que representa y alberga en su seno, con el consabido grado de mesianismo y mito, que una vez creados o re-creados nos ayudan a comprender mejor la difusa organicidad del proyecto pessoano, pero también las razones de la re-aparición del neopaganismo en el grupo civilizacional ibérico, es decir, la aceptación del pueblo ibérico como fatalmente vinculado al sentir y al pensar trágico de la vida y al pensar poético. (No sería descabellado escribir aquí misticismo racional) “No sé quién soy, qué alma tengo” repite Pessoa en sus versos y sus prosas, como quizá también repite el pueblo portugués frente a los espejos rotos de la Historia.2 Si existen hombres con almas complejas3, los poetas, que hacen del yo, un universo, puede que existan pueblos de almas tan complejas, que hagan de su yo, de su identidad, de su unidad, una vasta pluralidad de identidades complementarias y orgánicas. Este es otro de los supuestos o miradas pessoanas sobre Iberia. Iberia tampoco sabe cuántas almas tiene, y

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“Cualquier destino, por largo y complicado que sea, consta en realidad de un solo momento: el momento en el que el hombre sabe para siempre quién es” dice (BORGES, 2003, p. 65). Y donde se lee hombre, debe leerse pueblo. Quizá el pueblo portugués vive artísticamente para buscarse perpetuamente en una Nostalgia eterna de sí mismo.

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“El alma de los pueblos […] no es seguramente menos compleja que el simple individuo” (SARAMAGO en MOLINA, 1990, p. 6)

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cuántas debe tener4, ni cómo deben relacionarse sus identidades, cómo deben unirse estando separadas o cómo y cuán separadas deben estar, estando unidas. Y es que esta lucha perpetua y agónica entre unidad y pluralidad, entre el Unomismo (Sábato dixit) y el Universo, entre la nación y el país, entre la unidad y la pluralidad, entre la identidad y la alteridad, entre la homogeneidad y la heterogeneidad, entre el instinto de representación y el instinto de creación, entre lo que soy y lo que quiero ser, es la temática, única y esencial de la Tragedia. Tragedia en la que parece inscribirse el pensamiento y el sentimiento de Fernando Pessoa y a través de él, el de Iberia, comprendido como pueblo, como confederación de almas, que sin saber qué son, cuántas son, y quiénes son, buscan y luchan en ese seno tenso que es toda identidad, toda alma de un pueblo5. Recordemos las palabras de María Zambrano “la Tragedia estriba en que la pluralidad está dentro de la unidad misma, en su seno”. (ZAMBRANO, 2004, p. 95)6 Parece pues que Pessoa mira desde la óptica del arte y de la literatura a lo político y afronta artísticamente, poéticamente, míticamente la identidad política, el misterio que funda toda nación 7,

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Pessoa tampoco sabe cuántas almas (naciones) tiene Ibéria. Parece que duda entre dos o tres. Cataluña es comprendida como nación cultural y no política en algunas ocasiones: Cf. “Es el caso de países como Irlanda y Cataluña. Son naciones virtuales y no naciones verdaderas, o reales.” (PESSOA, 2000, p. 78), “Hay sólo dos naciones en Iberia –España y Portugal. La región que no es parte de una, es parte de la otra. Es resto es Filología” [texto 21], “El tercer grupo es el Ibérico, compuesto de tres naciones reales y dos políticas, por las que está formada nuestra península” [texto 36].

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Cf. “Una nación es un organismo psíquico en que, como en todos los organismo, luchan, sustentándola, fuerzas de integración y desintegración […]”(PESSOA, 2011, p. 61).

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Cf. “Seamos múltiples pero señores de nuestra multiplicidad” BNP/E3 889v.

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“Las naciones son todas misterios /Cada una es todo el mundo a solas […]” son los dos versos iniciales del cuarto poema de Mensagem.

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pues es la literatura, comprendida como imposición de nuestro propio sueño a los demás, un gran diálogo entre pensar y sentir, entre la identidad y las máscaras, y patria fundacional de ese gran acto sagrado: mezclarse, y decidir con quién mezclarse, a quién conquistar, quién ser, en definitiva. El primer paso importante para comprender bien el iberismo pessoano es el que nos permite distinguir con nitidez la diferencia entre Nación, Grupo Civilizacional y Civilización. El llamado Grupo civilizacional ibérico, es, en este sentido, el compuesto por Portugal, Castilla y Cataluña y caracterizado por la síntesis de Grecia y Roma más su elemento propio y verdaderamente diferenciador: el elemento árabe. Grupo “Caracterizado por una especie de occidentalización de lo europeo” [texto 348], “el espíritu ibérico es una fusión del espíritu mediterráneo y el espíritu atlántico” [texto 22] Asimismo Pessoa remarca que “Un grupo civilizacional es más útil cuanta más conciencia tiene de sí mismo como grupo […]” [texto 16] para hacer entender, quizá, que sólo la toma de conciencia de nuestra ibericidad (objetivo prioritario probablemente de su proyecto) puede redundarnos como pueblo y como mito ante el espejo del Destino. ¿Qué es ser ibérico? ¿Qué es la Ibericidad? No debemos obviar en este punto el subtítulo del proyecto pessoano. Introducción a un Imperialismo Futuro. La propuesta iberista pessoana supone el deseo de “buscar ibéricamente la fórmula nueva para las sociedades” [texto 3] para el que es necesario “crear una nueva literatura, una nueva filosofía –ese es el primer paso” [texto 3]. Es este el lugar que ocupa el modernismo literario y la voluntad de la estética y la filosofía pessoana. Se trata de recuperar la toma de conciencia de lo ibérico “Creo que todo verdadero ibérico, una vez que haya leído esto, reconocerá la voz íntima de su alma, lo que con sus instinto, siempre inconstante, pensó y quiso” [texto 16] de “tomar conciencia de nuestra ibericidad” y a su vez de “la creación de la tendencia ibérica, de la ibericidad espiritual” [texto 22] a través del cultivo de una nueva

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Todos los textos referidos en cuerpo de texto (PESSOA, 2013).

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literatura y una nueva filosofía, una cultura sintética frente a la cultura analítica europea. Se trata de construir o reconstruir nuestra identidad olvidada. ¿No es esto mismo la literatura? Pessoa acomete la tentativa de esbozar la psique ibérica pues “para que pueda haber una orientación ibérica común, tiene que haber alguna cosa, psíquica, común a España y Portugal. ¿Existe ese elemento, y cuál es, si existe?” –se pregunta– [texto 3]. Ese “fondo común del alma ibérica” es su “carácter totalmente sintético” [texto 2]. “El elemento intelectual característico [de lo ibérico] es el predominio de la imaginación sobre todas las otras operaciones intelectuales” [texto 16] “Nuestra fórmula imaginativa es la de la imaginación deformadora de la realidad. En el mejor caso es representadora de lo real; nunca obedece a ella” [texto 16].“En el grupo ibérico [en definitiva] no hay ni coexistencia, ni equilibrio, sino penetración de los dos instintos [el instinto de lo real y el instinto de lo ideal]. Uno perturba al otro porque vive dentro de él” [texto 16], nos dice Pessoa. Puede comprenderse esta interpenetración de los dos grandes instintos desde una perspectiva trágica, donde la complementariedad de pensamiento y poesía, de verdad y pasión, del querer saber y querer existir, es decir, de la voluntad de verdad y la voluntad de ilusión, son fundacionales. ¿Será Iberia el lugar propicio para eso que Vico llamo la Sabiduría Poética, para ese habitar poético que acaba por enlazar y hacer complementarios realismo e idealismo hasta hacerlos indistinguibles? ¿El lugar donde la gran filosofía, el pensamiento del que se nutre su identidad, está en la literatura y los poetas, en sus mitos literarios? El pensamiento trágico, el sentimiento trágico de la vida unamuniano, que tanto acercó a Don Miguel a Portugal, parece estar estrechamente relacionado con este predominio de lo imaginativo, de ese idealismo objetivista, de ese realismo poético del que se nutre toda la literatura ibérica, incluyendo a Fernando Pessoa como poeta máximo del conocimiento poético. Recordemos estas palabras de Unamuno: Aparéceseme la filosofía en el alma de mi pueblo como la expresión de una tragedia íntima análoga a la tragedia del alma de Don Quijote, como la expresión de GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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una lucha entre lo que el mundo es, según la razón de la ciencia nos lo muestra, y lo que queremos que sea, según la fe de nuestra religión nos lo dice.9 (UNAMUNO, 2003, p. 321). ¿No es esta la faústica lucha que envuelve el trasfondo filosófico de la estética pessoana y de los grandes poetas ibéricos? ¿No es este Quijotismo un hermano olvidado del Saudosismo en cuanto expresión de la lucha entre la Razón y la Vida? Creemos que sí salvo que bajo la complementariedad Presencia-Ausencia, IdentidadPluralidad en el caso del saudosismo y el sebastianismo portugués. Esta Ibericidad, sintética, plural, imaginadora, soñadora, que interpenetra lo real y lo ideal, bien puede comprenderse como encarnación inmejorable de lo trágico en la que el alma española y portuguesa se complementan10 e interpenetran. Excesividad es lo ibérico, excesividad interior y/o exterior11, locura. No olvidemos cómo Pessoa comprende, citando a Nietzsche, la filosofía (Quizá también la de un pueblo. No olvidemos el interés de Pessoa por la psicología de los pueblos.) como expresión de un temperamento. Excesividad que puede comprenderse, en el contexto de esa lucha entre lo real y lo ideal, como un incurable ansia de lo

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Almada lo dice con mucha claridad: “La dualidad Portugal y España es al final el secreto de la vitalidad de la península ibérica y de su civilización. Portugal y España son dos opuestos y no dos rivales. Los opuestos son complementarios iguales de un todo. Este todo está representado geográficamente por la península ibérica y en espíritu por la civilización ibérica.” (ALMADA, 1935, p. 5).

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“Todo lo ibérico es, en realidad, esencialmente excesivo, sin embargo, el español lo es exteriormente, solamente en su expresión (de ahí su exageración notable), el portugués lo es, sobre todo, interiormente. Exageramos menos en las palabras que el español típico: es en los sentimientos donde somos típicamente desmedidos” Pessoa, Fernando, O português, um povo antagónico, en Diario i, 17 de Diciembre de 2009.

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imposible: “El imposible como único horizonte”12 y como antagonismo, agonía, la lucha interior entre lo que soy y lo que quiero ser, propia de lo trágico y asumida como verdadera patria en el seno del “alma saudosa-quijotesca”13. “Nosotros, ibéricos, somos el cruce de dos civilizaciones, la romana y la árabe” repite Pessoa mostrando las claves de la síntesis ibérica [texto 22]. Frente a la idea de absorción o asimilación, la síntesis cultural supone, en buena parte, la clave cosmopolita de lo portugués, que no se refleja del mismo modo en lo español, la asimilación cultural de lo extranjero para la identidad primitiva: “Nosotros […] sólo obtenemos principios nacionales a través de síntesis y amalgamas de principios importados, cosmopolitas” (PESSOA, 2009, p.67). Hacer, en definitiva, del cosmopolitismo un arte y una patria. Ahora bien, ¿Qué tipo de unión, acercamiento o armonía propone Pessoa exactamente? Existen muchas maneras de unir, de relacionar las naciones ibéricas. ¿Debemos estar unidos o separados y hasta qué punto? Pessoa es muy claro en este sentido: En qué punto debe haber entre nosotros separación y en qué punto combinación de esfuerzos. La cuestión es exageradamente simple. Debemos estar separados en todo lo que sean problemas nacionales, juntos en todo lo que sean problemas civilizacionales […] la Orientación frente a Europa conviene que sea en ambos la misma. [texto 3]. “Separados, tendremos, cada uno de nosotros, un sentido nacional, no tendemos sentido civilizacional” [texto 17] repite Pessoa vez tras vez. Se trata de ir más allá de una amistad, cosa que para él no quiere decir nada, se trata de alcanzar “un acuerdo que se sienta más nítido y que se vea con más solidez” [texto 24] El nombre de ese acuerdo es Confederación, una confederación de naciones enteramente 12 13

(ZAMBRANO, 2004, p. 149). Cf. A alma ibérica, Pascoaes., Teixeira de, Revista Colóquio/Letras. Documentos, n.º 1, Mar. 1971, p. 48-57.

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independientes: “porque no lo olvidemos nunca!- no se trata ni de unión ni de federación sino apenas de confederación. Recordémoslo otra vez, recordémoslo siempre!” [texto 27] “Este bloque ibérico no podrá existir sino como conjunto de naciones independientes, enteramente independientes” [texto 30]. Pessoa esboza la idea de una Confederación ibérica, Confederación de naciones totalmente separadas salvo exceptuando “(1) una alianza ofensiva y defensiva, (2) una alianza cultural, (3) abolición de las fronteras de aduanas entre todos” [texto 31]. Esta es la gran paradoja en la que se funda la confederación ibérica pessoana: “Sólo separados estamos unidos”. ¿Será también este el lema de la Confederación de almas pessoanas llamado Fernando Pessoa? ¿Pero qué nos dio la capacidad de hacer renacer el paganismo trascendental en Iberia? El elemento árabe. Poco se ha valorado tradicionalmente la atención que Pessoa puso en el pensamiento árabe. Resulta clave el neoarabismo pessoano para comprender el neopaganismo y todas las grandes intuiciones estéticas pessoanas. El elemento árabe es el que dota al grupo civilizacional ibérico de su identidad propia, nos repite una y otra vez Pessoa. La llegada del elemento árabe, del Islam, permitió recuperar el fondo común del espíritu ibérico, el fondo greco-romano del alma ibérica que se había perdido después de la cristianización. António Mora, filósofo del neopaganismo, afirma que es precisamente gracias a la emergencia del espíritu árabe por lo que fue posible desarrollar un espíritu propio y una identidad propia que se basa, precisamente en la fusión del objetivismo y el subjetivismo. Ese objetivismo, ese ver las cosas tal cual son, tan propio del maestro Caeiro, es el elemento que fusionado con el subjetivismo da lugar al renacimiento del paganismo helénico, al Regreso de los dioses. La emergencia del paganismo se produjo en Portugal, en Iberia, por tanto, dice Mora, debido a la especificidad del “cruce del tipo psíquico cristiano y árabe”, del cristianismo pagano y del elemento árabe. [texto 36]. El propio Pessoa lo deja muy claro: “No hay profundo movimiento portugués que no sea un movimiento árabe, porque el alma árabe es el fondo del alma portuguesa” (PESSOA, 2009, p.229). La síntesis ibérica expresa “el fondo romano-árabe de nuestra tradición orgánica; no porque fuimos romano-árabes, sino porque aún lo somos” GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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[texto 6] El arabismo trajo consigo la posibilidad de diferenciar e integrar el alma ibérica y por tanto de alcanzar el paganismo trascendental: “Es en la medida en que fuimos mantenedores del espíritu árabe en Europa en que tendremos una individualidad diferente” [texto 22], “En Iberia el fondo [greco-romano] desapareció con la cristianización. Cuando llegó el Islam, ese fondo emergió”14 [texto 17] Especialmente importante parece la cuestión del fatalismo árabe. ¿Hasta qué punto el fatalismo trágico, propio de lo ibérico, ese amor fati ibérico, llega a nosotros desde el mundo árabe? En Pessoa hay algunas ideas embrionarias sobre este asunto: “Llevados así a un concepto de voluntad divina como fatalidad, los árabes, introdujeron en su monoteísmo un elemento de evidente origen objetivista” [texto 38] Del mismo modo el rasgo específicamente propio de lo ibérico, señalado por Pessoa, el carácter soñador, excesivamente imaginativo, tiene un aroma profundamente árabe: “La síntesis ibérica es enemiga de la cultura francesa porque la lucidez superficial de los franceses no se puede casar con los elementos árabes, profundos e intensos, de nuestra personalidad psíquica, con el elemento soñador, colorido, incendiado, de nuestro arabismo nativo de hoy” [texto 24]. La intuición sebástica del proyecto pessoano no puede comprenderse desconectada del iberismo pessoano. Esencialmente porque el Imperialismo Futuro, el Imperialismo del Espíritu que Pessoa proyecta y defiende como imperialismo cultural está incluido en el seno de la voluntad de acción civilizacional ibérica. El propio Pessoa reconoce que el regreso de D. Sebastião será un regreso “sobre todas as Hespanhas” y que el nuevo imperialismo debe comenzar por la “hegemonía intelectual de iberia”15. En la llegada de S. Sebastião está incluida la reconstrucción de la unidad de Iberia:

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“Venguemos la derrota que los del Norte infligieron a nuestros mayores los árabes. Expiemos el crimen que cometimos, expulsando de la península a los árabes que la civilizaran” [texto 22]

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[D. Sebastião] “Reinará sobre todas las Españas, porque el nuevo imperialismo debe comenzar por la obtención, que es fácil e inevitable –

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… la fecha marcada para el Gran Regreso, en que el Alma de la Patria se reanimará, se reconstruirá la íntima unida de Iberia, a través de Portugal, se derrotará finalmente el catolicismo (otro de los elementos extranjeros que existen entre nosotros y enemigo radical de la Patria) y comenzará el amanecer del Quinto Imperio. (PESSOA, 1979, p. 191). El Imperialismo futuro que se proyecta desde Iberia propone un nuevo modelo civilizacional que está íntimamente ligado a la oposición al imperialismo alemán de conquista y al imperialismo de expansión propio del imperialismo castellano. Se trata de un Imperialismo no colonial. El Imperialismo debe concebirse entonces como “la orientación civilizacional en un pueblo; y no, como los ingleses creen, una manera de tener derecho a lo que es de otros” [texto 16]. Pessoa distingue tres tipos de Imperialismo; de dominio, de expansión y de cultura. El imperialismo cultural, el imperialismo “cuyo punto de apoyo es la Cultura” [texto 40] es aquél que “busca no dominar materialmente, sino influenciar, por la absorción psíquica”, aquél que “busca crear nuevos valores civilizacionales, para despertar a otras naciones”. Por ello está íntimamente ligado al arte, a la filosofía y especialmente a la literatura y la lengua. Es un Imperialismo que precisa del cultivo de la identidad propia de lengua y de los hombres de genio, en otras palabras de “crear creadores”. Estamos ante un “Imperio del Espíritu”, ante un “Imperialismo de Poetas” “La frase [dice Pessoa] no es ridícula sino para quien defiende el antiguo imperialismo ridículo. El Imperialismo de los poetas dura y domina; el de los políticos pasa y se olvida, si no recordamos al poeta que lo cante”. “Todo Imperio que no está basado en el Imperio Espiritual es una Muerte de pie, un Cadáver mandando”, y para muestra está el antiguo imperialismo español y portugués. “La acción civilizacional como se verá- de la hegemonía intelectual de Iberia” (PESSOA, 2009, p. 135)

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del antiguo Portugal y de la antigua España era fallida ibéricamente pues […] no surgió un imperialismo cultural” y “puesto que separados, esa acción imperialista resultó incompleta. […] al tener un verdadero imperialismo, debemos tenerlo conjuntamente, ibéricamente.”. “Deben desaparecer las colonias portuguesas […] Que el imperialismo sea nuestra tradición; y no el imperialismo colonialista y dominador” [texto 28], repite Pessoa. Hacer de la lengua una patria, una civilización y la búsqueda de la valoración intelectual de Iberia en el extranjero a través de la actividad artística e intelectual son las claves del imperialismo espiritual que se propone desde el seno de la aceptación de la ibericidad en Fernando Pessoa. Se trata por tanto de recuperar el rostro perdido y plural de Iberia como un nuevo modelo de imperialismo cultural, que frente al imperialismo de lo político y lo económico, devuelve a lo político a su origen cultural y mítico-literario en eso que me gusta llamar “refundación mítica de la existencia”, es, sin duda, una apuesta interesante y necesaria en estos tiempos donde la crisis de identidad individual, nacional y supranacional está más presente que nunca. Salvarnos de ese lugar común que nos identifica como latinos obviando la esencialidad de lo árabe, mientras repetimos el lema pessoano “No Somos latinos, somos ibéricos”, mientras ahondamos en la constitución de nuestra identidad compleja y difusa para recuperar nuestras señas identitarias profundas y distintivas y a la par universales (pues qué hay más universal que imaginar lo imposible y aceptar el destino de soñadores) no parece una mala receta. Al leer, a día de hoy “Todos nosotros, los de aquí – portugueses, castellanos, catalanes– sólo alcanzaremos nuestra mayoría civilizacional cuando, confederados en la Iberia, podamos, instruidos en la desgracia y la experiencia triste de tanto pasado, afrontar a Europa, otra vez, reconstruir nuestro predominio de los tiempos en lo que el mundo era nuestro, de otra manera, para otros fines […]” [texto 23] no podemos dejar de pensar en la actualidad del proyecto ibérico que se nos presenta. Y lo leemos en diálogo con estas otras palabras de José Saramago que también nos invitan a buscar,

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como el propio texto de Pessoa16, de nuevo a América y no tanto a Europa por nuestra propia imposibilidad de ser europeos sin dejar de ser nosotros mismos: Quiero decir, en fin, que esta Península, que tanta dificultad tendrá en ser europea, corre el riesgo de perder, en América Latina, no el mero espejo donde podrían reflejarse algunos de sus rasgos, sino el rostro plural y propio […] Admitiría que América Latina quisiera olvidarse de nosotros, sin embargo, si se me permite profetizar, preveo que no iremos muy lejos en la vida si escogemos caminos y soluciones que nos lleven a olvidarnos de ella. (SARAMAGO en MOLINA, 1990, p. 9). Y estas palabras de Saramago recuerdan esa necesidad de aproximación con América latina que de algún modo está también en el proyecto iberista pessoano. Brasil no es una excepción, en este sentido, y en la perspectiva pessoana aparece muchas veces enfocado en la necesidad de una aproximación espiritual en el contexto de aproximación espiritual y cultural que está en la base del iberismo y también del iberoamericanismo que puede desprenderse fácilmente de él. Pessoa lo deja intuir, quizá en alguno de los textos donde, con cierta actualidad y profundidad simbólica habla del Brasil: A memória de Antonio Conselheiro, bandido, louco e santo, que, no sertão do Brasil, morreu, corrido por um exercito, com seus companheiros,sem se render , batendo -se todos, últimos Portuguezes, pela esperança do Quinto Impe[rio] e da vinda quando Deus quizesse, d’El -Rei D. Sebast[iao], nosso Senhor, Imp[erador] do Mundo. (PESSOA, 2011, p. 125).

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“Dominio espiritual de la América Ibérica” [texto 6] “Dominio espiritual de las Américas” [texto 22] “América comienza aquí” dice Pessoa al hablar de la occidentalización de lo europeo, característica propia del grupo ibérico. [texto 34]

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[...] (1) Não ha separação essencial entre os povos que fallam a língua portugueza. Embora Portugal e o Brasil sejam politicamente nações differentes, não são nações differentes, conteem por sistema uma direção imperial commum, a que e mister que obedeçam. (PESSOA, 1993, p. 110). Em primeiro logar, e como já o notou Joao de Castro Osorio Portugal não e propriamente um paiz europeu: mais rigorosamente, se lhe podera chamar um paiz atlantico — o paiz atlantico por excellencia. Alem d’isso, Portugal, neste caso, quere dizer o Brasil também. Como o imperio, neste schema, e espiritual, nao ha mister que seja imposto ou construido por uma so nação: pode sel -o por mais que uma, desde que espiritualmente sejam as mesmas, que o serão se fallarem a mesma língua. (PESSOA, 1993, p. 104). A necessidade de tornar cada vez mais apertados os naturais vínculos espirituais que nos unem ao Brasil leva a que se não possa dispensar uma propaganda naquela República. (PESSOA, 1993, p.181). A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito. O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever numa ortografia que repugno, como não tem direito a impor-me uma religião que não aceito. No Brasil a chamada reforma ortográfica não foi aceite, nem ainda hoje, depois de assente em acordo entre os governos português e brasileiro, é aceite. Quis-se impor uma coisa com que o Estado nada tem a um povo que a repugna. (PESSOA, 1993, p. 119). El proyecto pessoano, por la lucidez, la actualidad y la profundidad de su diagnóstico, merece estar más presente entre los autores donde la cuestión ibérica, lejos del más superficial componente político supone una reflexión profunda sobre el modo de ser y de sentir de nuestro pueblo (nuestros pueblos) y la necesidad de repensar la GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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organicidad de nuestra propia identidad y las almas de otros pueblos donde queramos buscar con éxito quiénes somos y quiénes queremos ser, esa Matria de la que tenemos tanta nostalgia y en la que “unificadamente diversos” para citar a Campos, seremos muchos, diferentes, para ser más nosotros mismos. También en América. También en Brasil. REFERÊNCIAS: CRESPO, Ángel, España y Portugal según Pessoa, El País, Madrid, 22 de Mayo de 1985. BORGES, Jorge Luis, El Aleph, Madrid, Alianza, 2003. MOLINA, César Antonio, “Sobre el Iberismo”, Akal, Madrid, 1990. PESSOA, Fernando, Herostratus, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000. ________, Iberia. Introducción a un imperialismo futuro. Valencia, Pre-textos. 2013. ________, Sebastianismo e Quinto Imperio ( Edição de Jorge Uribe y Pedro Sepúlveda eds.), Ática, Lisboa, 2011. ________,Sensacionisnmo e outros ismos,( Edición de Jerónimo Pizarro), INCM, Lisboa, 2009. ________, Sobre Portugal, Ática, 1979. ________,Pessoa Inédito. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes).Lisboa: Livros Horizonte, 1993. ZAMBRANO, María, Unamuno, De Bolsillo, Barcelona, 2004. UNAMUNO, Miguel de, Del Sentimiento Trágico de la Vida, Alianza, Madrid, 2003. ALMADA DE NEGREIROS, José, Revista Suroeste, Cadernos de Almada Negreiros, nº1, 1935.

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ZAMBRANO, María, Pensamiento y poesía en la vida española, Biblioteca Nueva, Madrid, 2004. PASCOES, Teixeira de, A alma ibérica, Pascoaes., Revista Colóquio/Letras. Documentos, n.º 1, Mar. 1971.

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A CONDIÇÃO PÓS-MODERNA EM QUESTÃO: ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA E ENSAIO SOBRE A LUCIDEZ, DE JOSÉ SARAMAGO Petar Petrov 1 RESUMO: A condição pós-moderna é vista como um período pósiluminista, uma época de indeterminação anárquica da civilização ocidental e de decadência dos ideais humanistas, como a liberdade, a fraternidade, a solidariedade e a razão. São precisamente estes valores que estão em causa nos dois romances de José Saramago, surgindo questionados em função de uma postura anti-neo-liberal. Merece atenção também o modo como são tratadas as componentes axiológicas, uma vez que a atitude artística do escritor português activa determinadas estratégias do código literário do pós-modernismo. Palavras-chave: José Saramago; romance; condição pós-moderna; pósmodernismo. 1. Examinar a problematização da denominada condição pósmoderna nos romances Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez, de José Saramago, implica, antes de mais, referir a teorização do período de evolução social chamado “pós-moderno”, conhecido também sob o rótulo de “pós-modernidade”, identificado por alguns com a nossa contemporaneidade. Recorde-se que o epíteto “pósmoderno” foi utilizado pela primeira vez pelo historiador inglês Arnold J. Toynbee, nas suas obras da primeira metade do século passado, para referir uma fase da civilização ocidental que se desenvolvera a partir de 1875. Na sua perspectiva, trata-se de um período de abandono das tradições da Era Moderna, cujo início dataria do Renascimento, afirmando-se no Século das Luzes, para terminar com a Guerra Franco-Prussiana. Assim, do último quartel do século XIX até finais da Segunda Guerra Mundial, a época seria “pós-moderna”, marcada por uma crescente dificuldade de acompanhamento do rápido

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Universidade do Algarve

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desenvolvimento das novas tecnologias pelas capacidades morais e políticas da sociedade. Precisando: o advento dessa era perturbaria a prosperidade e a hegemonia das classes médias ocidentais devido à ascensão de uma classe operária industrial e ao surgimento da sociedade de massas. Definido de modo disfórico, o período traduziria uma indeterminação anárquica da civilização ocidental, em crise e em risco de desintegração e ruptura (cf. SMART, 1993, pp. 27-28; CALINESCU, 1999, pp. 121-123). Em 1959, o sociólogo Wright Mills utilizou o conceito “pósmoderno”, também em sentido negativo, para referir um novo período histórico pós-iluminista, que pôs fim à “Era Moderna”. Esse caracterizar-se-ia pelo colapso do liberalismo e do socialismo e representaria uma época de decadência dos ideais modernos, como a razão e a liberdade. A relação entre os ideais em causa, segundo Mills, já não podia ser sustentada porque, na sociedade pós-moderna, o aumento dos processos de racionalização não se traduzem necessariamente num aumento de liberdade e de felicidade. Mais ainda, os dois valores encontram-se em perigo, uma vez que os pressupostos da modernidade, a objectivar a instauração da ordem, da certeza e da segurança, estão longe de estar cumpridos (cf. SMART, 1993, pp. 29-30). Vinte anos mais tarde, já o clássico estudo de Jean-François Lyotard, intitulado A Condição Pós-Moderna (LYOTARD, s/d), articula-se à volta do destino epistemológico das ciências humanas. A questão central tem a ver com o declínio dos “grandes relatos”, “narrativas mestras” ou “metanarrativas”, devido ao desenvolvimento das ciência em geral e à pluralização de diversos tipos de pensamento. Na perspectiva do filósofo francês, os relatos emancipatórios da modernidade, que articulam uma determinada racionalidade e uma estrutura de saber utópico, perderam a sua credibilidade, sob o efeito da industrialização e das novas tecnologias, a partir dos anos 50 do século XX. O advento da pós-modernidade estaria ligado à emergência da sociedade pós-industrial e à cultura pós-moderna, a traduzir um desencanto generalizado e uma radical crise de sentidos em função da complexificação das estruturas culturais. As cosmovisões totalizantes do mundo, como as metanarrativas de teor positivista, de ideário marxista ou de orientação capitalista liberal tinham perdido a sua GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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sustentação, dando lugar a “pequenas narrativas” fragmentadas, particularizadas, heterogéneas e locais. Recorde-se, entretanto, a teoria de outro pensador que problematizou a pós-modernidade, o filósofo italiano Gianni Vattimo, no seu livro O Fim da Modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna (VATTIMO, 1987), no qual se ocupa da chamada “ontologia hermenêutica”, considerando que a contemporaneidade está marcada por aquilo que designa de “pensamento frágil”. Segundo Vattimo, a partir das filosofias de Nietzsche e Heidegger assiste-se a uma crise universal dos valores cartesianos e ao enfraquecimento das categorias ontológicas do ser, isto no contexto da época pós-moderna da segunda metade do século XX. Daí o surgimento do “pensamento frágil”, forma particular de niilismo, cujo programa se resume à dissolução da racionalidade iluminista, ao contrário do “pensamento forte”, conotado com sistemas ideológicos como o Cristianismo e o Marxismo, entre outros. Destaque-se, a propósito disto, a frase irónica de Vattimo a sintetizar a ideia da crise do humanismo na condição pós-moderna: “Deus está morto mas o homem não está lá muito bem” (VATTIMO, 1987, p. 30). Como se pode depreender, na perspectiva das teorias referidas, a pós-modernidade, cujo desenvolvimento se intensifica após a Segunda Guerra Mundial, é entendida como uma condição sócio-cultural caracterizada pelo gradual abandono das tradições da modernidade, devido à emergência da sociedade de consumo ou pós-industrial, ao extraordinário desenvolvimento das novas tecnologias e à proliferação de diversos tipos de pensamento. Em consequência, o período é entendido como pós-iluminista, uma época de desvalorização dos valores supremos e de decadência dos ideais humanistas, como a liberdade, a fraternidade, a solidariedade, a razão, a ordem e a segurança. São precisamente estes os valores que estão em causa nos romances Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez, de José Saramago, que surgem questionados em função de uma postura manifestamente materialista e anti-neo-liberal. Do ponto de vista axiológico, o que está em causa nos dois romances de José Saramago é a condição humana na sociedade contemporânea, ou seja, na pós-modernidade GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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finissecular, apresentada como carente de valores morais, éticos e civilizacionais. Assim, a propósito de Ensaio sobre a Cegueira, o autor tem exposto, por várias vezes, as razões que o levaram a escrever a narrativa, como acontece numa entrevista, conduzida por Maria Leonor Nunes, logo após a publicação do livro, em 1995. Nesta, Saramago sintetiza a ideia chave do romance na expressão “todos somos cegos da Razão”, explicando-a do seguinte modo: “ a nossa razão não é usada racionalmente. Nem sequer nos comportamos como irracionais. Mas como qualquer coisa que está entre o racional e o irracional. Como arracionais” (NUNES, 1995, p. 16). Noutra entrevista de Clara Ferreira Alves, publicada no Expresso, as mesmas ideias são reiteradas, com a alusão a que se trata de um romance alegórico e “frontalmente ético”, porque, segundo o autor, “usamos a razão para destruir, matar, diminuir a nossa franja de vida. E é essa espécie de indecência do comportamento humano, orientada pela exploração do outro, da sede do lucro, da ambição do poder, que conduz à indiferença e ao alheamento” (ALVES, 1995, p. 82). Para além da cegueira da razão, tematiza-se também a cegueira relativamente aos interesses dos outros, como atestam as palavras do escritor num dos diálogos com Carlos Reis: “O que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno. (…) Falámos muito ao longo destes últimos anos (…) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isto, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias. O Ensaio sobre a Cegueira tem alguma parte na expressão dessa angústia.” (REIS, 1998, p. 150) GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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A “angústia” de José Saramago concretiza-se, de facto, no seu romance, cujo enredo representa uma história sui generis sobre o surto de uma “cegueira branca”, epidemia que contamina parte da população de uma cidade e de um país não identificados, num tempo histórico indefinido mas que, pelos indícios narrativos, se conclui tratar-se de uma sociedade moderna da actualidade. Estruturada em dezassete capítulos, não numerados, a composição pode ser dividida em três partes: a primeira, constituída por três capítulos, relata os primeiros casos de cegueira e a sua rápida propagação; a segunda conta com nove capítulos nos quais são apresentadas as condições em que os cegos e os suspeitos de contágio convivem, encarcerados num manicómio por decreto do governo; a última, que se inicia no capítulo treze, incide sobre a saída do asilo, a procura de meios de subsistência e a progressiva recuperação da visão por parte dos cegos. Na trama participam várias personagens, todavia o núcleo central é composto por sete, seis cegas e uma que consegue ver, sem nomes próprios, que o narrador trata por o primeiro cego e a sua mulher, o médico, a mulher do médico, o velho da venda preta, a rapariga dos óculos escuros e o rapazinho estrábico. A mulher do médico é a única que não perde a visão e a sua função consiste em servir de guia, encaminhar e proteger os restantes. É por intermédio dela que o leitor toma conhecimento de um mundo deplorável, caótico e destituído de atitudes humanas. Atente-se na segunda parte do romance que fornece o quadro de desumanização ao qual estão sujeitos os infectados pela cegueira, durante o seu internamento no manicómio. O que se questiona, no caso, são as atitudes e decisões autoritárias tomadas pelo governo, aparentemente democrático, que não chega a facultar as mínimas condições de existência durante a clausura. Tematiza-se, deste modo, a marginalização, a segregação, a discriminação e a exclusão sociais, realidades que persistem na nossa pós-modernidade. O ambiente em que vivem os cegos, por exemplo, é francamente desolador: falta de água e de alimentação, imundície nas camaratas e nos espaços comuns, degradação física e moral, fome e promiscuidade, o que leva a comportamentos agressivos e repugnantes numa tentativa de sobrevivência, a estados de desespero próximos da loucura, a angústias e mortes. Recordem-se, quanto a isto, os seguintes episódios: os litígios surdos entre os cegos que representam classes sociais GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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distintas, no capítulo quarto; as condições sub-humanas às quais estão sujeitos os internados e a morte de um cego pelos soldados que escoltam o manicómio, no capítulo quinto; as condições degradantes de existência, a impotência e a violência que acompanham o dia-a-dia dos cegos, bem como os conflitos abertos no seio dos reclusos, nos três capítulos seguintes; a formação do grupo dos malvados, que exigem dos restantes alimentação, dinheiro e sexo, e o inevitável conflito com os habitantes da camarata dos honrados, nos capítulos nove e dez; a primeira violação e a morte de uma mulher pelos malvados, no capítulo onze; a segunda violação, a revolta e a morte do chefe dos malvados pela mulher do médico, no último capítulo do livro. Se a segunda parte do romance aposta na exploração de episódios atrozes, conotados com situações de crueldade, barbárie e injustiça, a terceira apresenta a deambulação das sete personagens pelas ruas da cidade, caracterizada por um pleno estado de decadência, onde impera a violência, a fome, a miséria moral e social. Para o reforço da informação semântica relacionada com a desumanização generalizada no espaço citadino em autêntica degradação, uma espécie de cemitério, é introduzida a figura do “cão das lágrimas”, cujo comportamento contrasta com o ambiente desolador que oprime as personagens e simboliza, no fundo, os valores humanos ausentes no contexto do mundo actual pós-moderno. Assim, do ponto de vista temático, desenvolve-se a ideia de que a conjuntura social, pano de fundo da história de Ensaio sobre a Cegueira, sofre de uma profunda crise de valores, uma vez que a dignidade humana, a solidariedade e a fraternidade, por exemplo, cedem lugar a atitudes comodistas e egoístas. Como assinalou Urbano Tavares Rodrigues, o romance “pretendia demonstrar que cegos empurrando cegos atropeladamente caminham para um precipício, ou seja, que o neo-liberalismo económico globalizado conduziria a humanidade para um cataclismo de insondáveis resultados, se ninguém abrisse os olhos para mostrar aos outros que essa rota de egoísmo, erros de injustiça é sem saída.” (RODRIGUES, 2004, p. 20) GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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De facto, a actuação dos cegos, na sua generalidade, perante as atitudes totalitárias dos agentes do governo e dos malvados exploradores, pode ser interpretada como uma alegoria da sociedade pós-moderna que promove o individualismo e a alienação. Sujeitam-se às condições que lhes são impostas sem contestação, aceitam passivamente o abominável. A propósito disto, recorde-se a mensagem do narrador quando afirma “não há cegos mas cegueiras” e as seguintes frases da mulher do médico, em diálogo com o seu marido, no final do romance: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos. Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem” (SARAMAGO, 1995, p. 310). São palavras que remetem para a ideia de que a falta de visão equivale à ausência de razão e clarividência dos homens relativamente ao mundo que os rodeia. Mensagem um tanto pessimista, se não fosse o papel da mulher do médico, cuja visão é utilizada pelo narrador para descrever e desmistificar o status quo da sociedade vigente. Num universo cruel, imoral e irracional, esta personagem, certamente a protagonista da história, é a única que se mantém fiel aos seus ideais, conotados com a preservação dos valores éticos e morais. Transforma-se, assim, em símbolo de esperança e de lucidez, uma vez que, detendo o poder da visão, detém também o poder da razão. 3. O funcionamento das sociedades pós-modernas é também objecto de interesse de José Saramago na narrativa romanceada intitulada Ensaio sobre a Lucidez, publicada em 2004, cujo enredo é prolongamento da trama do romance anterior. Segundo Ana Paula Arnaut, por exemplo, a obra “também poderia designar-se «Ensaio sobre o desperdício da humanidade», tomo II. À semelhança do romance anterior, cujos temas e personagens retoma (…), do que se trata é de denunciar a irracionalidade, melhor será dizer as irracionalidades” (ARNAUT, 2008, p. 46). As irracionalidades em causa relacionam-se, a meu ver, com o tema da inoperância dos sistemas democráticos, mais concretamente com os meandros do poder das democracias de orientação neo-liberal. A propósito disto, José Carlos de Vasconcelos, num artigo publicado no Jornal de Letras, Artes e Ideias, assinala que o romance é GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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“uma poderosa fábula sobre a degradação ou o apodrecimento da democracia nas actuais práticas de regimes democráticos, quando comandados por partidos ou pessoas sem princípios nem valores. Depois da Cegueira, vem a Lucidez: ao branco de quem não vê sucede-se o de quem, por ver, vota em branco, como forma de protesto pela “democracia” que lhe dão. Uma fábula, pois, como sublinha o escritor, “sendo fábula, é uma sátira, e sendo uma sátira, é uma tragédia.” (VASCONCELOS, 2004, p. 14) A mencionada tragédia é concretizada numa história insólita sobre acontecimentos relacionados com a eleição do presidente da câmara na capital de um país democrático, não identificado, e as respectivas consequências do escrutínio. Estruturado em XIX capítulos, não numerados, o romance inicia-se com a apresentação dos resultados das eleições: na primeira volta, mais de 70% de votos em branco e, na segunda, 83%, facto que obriga as instâncias do poder a decretar o “estado de excepção”. A partir do capítulo três e até ao décimo, as iniciativas do governo multiplicam-se no sentido de se descobrirem os responsáveis pelo ocorrido durante os escrutínios. No entanto, os métodos utilizados para o alcance dos objectivos não levam em conta os meios, ou seja, não se fundamentam em princípios democráticos. Assim, com o avançar da intriga, assiste-se a uma gradual perda de valores éticos, os governantes assumem atitudes de natureza autoritária e, perante a ameaça ao modelo político, tentam, a todo o custo, preservar o poder. Tomem-se como exemplo os seguintes episódios, que atestam a forma terrorista que o governo põe em prática para encontrar os culpados: no capítulo três, desencadeia-se uma operação de espionagem, com a infiltração de agentes da polícia entre a população, para se conhecerem as razões do ocorrido; no quarto, o ministério do interior, recorrendo ao detector de mentiras, resolve interrogar quinhentos suspeitos caçados nas filas de voto e decreta o estado de sítio; no capítulo seguinte, concretiza-se a retirada do governo, do exército e de todas as forças policiais para outra cidade, deixando a capital insurrecta GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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entregue a si mesma, na expectativa que os “brancosos” se arrependam dos seus actos; no capítulo sete, os governantes decidem obrigar os trabalhadores da limpeza da capital sitiada a fazer greve, no intuito de provocar reacções violentas por parte da população e, perante o fracasso desta medida, homens do ministério do interior são incumbidos de encenar um atentado à bomba, que é atribuído aos cabecilhas dos “brancosos” e provoca a morte de vinte e três pessoas. A prepotência do poder não se esgota com os acontecimentos dos episódios referidos porque, a partir do capítulo décimo primeiro e até ao final do romance, com a entrada em cena das personagens de Ensaio sobre a Cegueira, está-se perante um novo ciclo de terrorismo de Estado. Este inicia-se com a divulgação do teor de uma carta, dirigida ao presidente da república e subscrita pelo primeiro cego do romance anterior, na qual se aponta para uma possível relação entre o facto de a mulher do médico não ter cegado e a maciça votação em branco que criou a crise política. Seguem-se interrogatórios sucessivos, da responsabilidade de um comissário e dois agentes policiais, com destaque para os que envolvem a mulher do médico. Com base nas investigações, depreende-se que os governantes, na impossibilidade de descobrir as razões do fracasso eleitoral, tentam desesperadamente encontrar um bode expiatório da situação que o país atravessa. Para tal, recorrem à comunicação social no sentido de manipular a opinião pública, instigando a população a atribuir a culpa dos votos em branco à mulher do médico. Ideia absurda na perspectiva do próprio comissário que, num acto de lucidez, chega a denunciar a estratégia do governo. Consequentemente, a sua atitude irá conduzir ao final trágico do romance, com o assassinato, a mando do ministro do interior, do comissário, da mulher do médico e do “cão das lágrimas”, o símbolo dos valores humanos da narrativa anterior. Do ponto de vista injuntivo, o desfecho da intriga veicula a ideia de um certo pessimismo autoral, uma descrença no potencial humanista dos actuais regimes que se rotulam de democráticos. De facto, como observou Urbano Tavares Rodrigues, “É já muito aceite, sobretudo pelas mais jovens gerações, a ideia de que o modelo actual de democracia representativa, especialmente quando há maioria GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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absoluta nas eleições, permite actuações praticamente ditatoriais dos governos e afasta-se da essência do espírito democrático, uma vez que reduz a voz das minorias a ecos sem consequências e os grupos parlamentares dos partidos no poder se transformam muitas vezes em blocos de interesses e benefícios particulares, económicos e sociais, ignorando as aspirações de quem os elegeu.” (RODRIGUES, 2004, p. 20) É este modelo democrático que surge problematizado por José Saramago no seu romance, cujo enredo assenta numa manifesta desconfiança relativamente ao funcionamento das sociedades pósmodernas. Deste modo, a narrativa representa uma denúncia dos sistemas repressivos de orientação neo-liberal que não respeitam a diferença de opinião ou outras orientações político-ideológicas dos seus cidadãos. Assim, à intolerância e à prepotência do regime retratado, a população responde optando por um protesto silencioso, afluindo maciçamente às urnas para depositar o seu voto em branco. Este facto pode ser interpretado como um sinal de esperança, corroborado também pela tomada de consciência de algumas personagens da narrativa no que diz respeito aos mecanismos autoritários utilizados pelo poder. Refiro-me ao comissário da polícia que se recusa a obedecer às ordens do ministro do interior, defendendo a ideia de que a mulher do médico não deve ser responsabilizada pelo sucedido nas urnas. Do igual modo, o presidente da câmara desobedece às ordens, do mesmo ministro, de promover a greve do pessoal do lixo, que causaria o caos na cidade, demitindo-se do cargo. Mas há mais dois casos dignos de referência: numa reunião do conselho de ministros, na qual se discute a hipótese de se construir um muro à volta da capital, isolando-a do resto do país, os ministros da cultura e da justiça, discordando frontalmente da ideia, apresentam as suas demissões. Trata-se de personagens que evoluem ao longo da diegese, individualizando-se pelas atitudes tomadas e pela coragem com que afrontam o instituído. Superando eventuais conflitos entre o dever moral e o profissional, põem-se do lado da razão, alcançando a lucidez, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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uma vez que recusam pactuar com a injustiça e a arrogância dos seus superiores (cf. BORGES, 2010, pp. 168-172). Veja-se, a este propósito, o comentário do narrador acerca da consciencialização do comissário pouco antes do desfecho da intriga: “é outro homem este que avança por estas ruas, é outra cabeça que vai pensando, vendo claro o que antes era obscuro, emendando conclusões que antes pareciam de ferro e agora de desfazem entre os dedos que as apalpam e ponderam (…).” (SARAMAGO, 2004, p. 316) Por seu lado, o ministro da cultura chega a acusar frontalmente os seus colegas do governo de continuarem cegos, na sequência da cegueira generalizada do romance ensaio anterior, e o ministro da justiça, contrariando as opiniões dos ministros do interior e da defesa, considera o voto em branco “como uma manifestação de lucidez por parte de quem o usou” (SARAMAGO, 2004, p. 176). 4. Se o contexto sócio-político dos países democráticos na época pós-moderna surge questionado nos dois romances de José Saramago, merece alguma atenção também o modo como são tratadas as componentes axiológicas pelo escritor português. Trata-se do exame de determinadas estratégias do código literário do pós-modernismo, entendido este como um estilo estético cujos traços reflectem o clima cultural que se vive na pós-modernidade. Recorde-se que a designação “pós-modernismo” foi utilizada pela primeira vez no contexto geográfico hispano-americano por Federico de Onís na Introdução à Antologia de la Poesia Española e Hispanoamericana (1882-1932), publicada em Madrid, em 1934. Após um hiato de algumas décadas, a partir do início da década de 70 do século passado é que a periodização do pós-modernismo literário passa a ser objecto de atenção mais sistemática da crítica académica, primeiro nos Estados Unidos da América e a seguir na Europa. Observando o que se escreveu sobre o assunto nos últimos quarenta anos, pode-se chegar à conclusão de que a questão continua na ordem do dia, ou seja, não há consenso entre os teóricos relativamente à GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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periodização e à definição da estética pós-modernista. No entanto, com base nos diferentes contributos, é possível distinguir duas posições opostas: uma a sugerir uma ruptura mais ou menos radical entre o modernismo e o pós-modernismo, a outra a defender a ideia de que o pós-modernismo é uma configuração em continuidade com o modernismo. Em meu entender, a dicotomia das posições relaciona-se com uma questão central sobre a qual os críticos não conseguem chegar a uma conclusão unânime: considerar ou não as vanguardas históricas como parte da estética do período modernista. Alguns teóricos norteamericanos, por exemplo, excluem o espírito vanguardista do alto modernismo anglo-saxónico, vendo-o como dominante somente no contexto do pós-modernismo dos anos 50 e 60. Para outros, a dimensão futurante das vanguardas identifica-se com algumas propostas modernistas na Europa e na América do Sul, como aconteceu com os modernismos português e brasileiro, por exemplo. Sem entrar em detalhes sobre a problemática, recupero, por agora, a minha conclusão sobre uma eventual periodização e caracterização do pós-modernismo, com base nas propostas de teóricos como I. Hassan, H. Bertens, M. Calinescu, D. Fokkema, K. Varga, B. McHale, L. Hutcheon, M. Köhler e Gulherme Merquior. Assim, nos anos 50 e 60 teríamos a fase do neomodernismo ou pós-modernismo vanguardista que se traduz na amplificação de certos traços do modernismo tardio, tais como: a) experimentalismo, pela “rejeição das hierarquias discriminadoras” ou descanonização genológica; b) arquiludismo, espécie de anarquia criadora ou “carnavalização”; c) fragmentação textual, com incidência na violação do tempo cronológico; d) valorização da linguagem, pela “ênfase posta no código”, “auto-reflexão” e “auto-consciência”. Já na fase posterior, situada pela crítica nos anos 70, 80 e 90, o pós-modernismo apresenta duas vertentes, pós-estruturalista e neo-conservadora que, grosso modo, muda de paradigma neomodernista pelo: a) desgaste do experimentalismo, devido a “eclipse das vanguardas” e surgimento do revivalismo traduzido no retorno a processos experimentados e formas definidas; b) regresso ao real, pelo resgate do sentido que assume, em alguns casos, a forma de um “micro” ou “hiper-realismo alegórico ou metonímico”; c) regresso à narratividade, com recuperação da intriga GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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ou “renarrativização”, com tendência de conjugação da literatura erudita com géneros de massa, como o romance policial; d) utilização deliberada da intertextualidade da paródia e do pastiche, pelo recurso ao romance histórico que actualiza/reactualiza o passado à luz do presente (cf. PETROV, 2000, pp. 291-292). Das características apresentadas, pelo menos cinco me parecem estar presentes na tessitura dos dois romances de José Saramago. Refiro-me, em primeiro lugar, à mais evidente: a aposta na narratividade que se concretiza na arquitectura de histórias bem delineadas, com núcleos semânticos dispostos numa sucessão de causa e efeito. O encadeamento das acções, neste caso, distancia-se dos propósitos neo-vanguardistas que privilegiam a fragmentação mediante a activação da chamada desconstrução espácio-temporal. Deste modo, o leitor não é desafiado a reconstruir ou reordenar eventos, o acto hermenêutico é facilitado e a história é fruída sem percalços. Outro traço típico da estética pós-modernista é a descanonização genológica, ou seja, o autor apresenta uma narrativa romanceada que se quer ensaio. De facto, a dimensão ensaística nos dois romances de José Saramago consubstancia-se em forma de exercícios reflexivos relacionados tanto com aspectos das componentes semânticas, como com o acto de criação literária. A metatextualidade, por exemplo, está orientada no sentido de estabelecer diálogo com o leitor, desvendandolhe as técnicas de escrita, cuja função é sublinhar a ficcionalidade do relato. Estratégia tipicamente pós-moderna, a metaficção questiona as relações entre o processo narrativo e a realidade, contribuindo decisivamente para a auto-representação da literatura. Quanto à informação axiológica, as inúmeras intromissões dos enunciadores omniscientes têm por finalidade elucidar o narratário sobre determinados eventos, performance de personagens ou conjunturas políticas e sociais. Trata-se de comentários de foro subjectivo que veiculam posições ideológicas de distanciamento interessado relativamente ao retratado. Assim, os apartes judicativos do narrador de Ensaio sobre a Cegueira questionam a condição humana num contexto marcado por violência explícita ou latente e por uma cegueira consciente. Relativamente ao enunciador de Ensaio sobre a Lucidez, as suas considerações sarcásticas e irónicas desmascaram as intrigas e os métodos dantescos dos governantes das sociedades democráticas pósGUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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modernas. Note-se também que a ironia é largamente utilizada para a desdramatização de certos acontecimentos que surgem veiculados por um registo hiper-realista, outro traço do código literário do pósmodernismo. A violência verbal e a linguagem cruel, disfémica e até obscena moldam uma espécie de retórica do excesso e estão presentes na descrição do aviltamento dos cegos no manicómio, no primeiro romance ensaio, e das atrocidades dos episódios que terminam com as mortes gratuitas, no segundo. Acrescente-se outra atitude literária pósmoderna: a activação da chamada polifonia, técnica de exposição que consiste na mistura de diversas vozes narrativas e na qual cabem, em simultâneo, a narração, os comentários e as descrições da responsabilidade do enunciador, bem como os diálogos mantidos pelas personagens que actuam nas histórias. Do ponto de vista ideológico, a estratégia em causa enfatiza a diversidade e o confronto de opiniões, consciências e cosmovisões acerca do representado. Por fim, a dimensão alegórica dos enredos dos dois romances do escritor português é mais uma característica do código literário do pósmodernismo. No dizer de Isabel Pires de Lima a propósito de Ensaio sobre a Cegueira, e que me parece extensível também à trama da segunda narrativa, a alegoria, “pelo seu carácter dual” (…) é um sistema de relação entre dois mundos” (LIMA, 2000, p. 24), ou seja, remete para “um mundo possível, alternativo ao mundo actual, que o leva a abandonar as leis deste último e a sua enciclopédia e a adoptar temporariamente outra perspectiva ontológica, ou melhor, mergulhar numa indeterminação ontológica de tipo pós-moderno” (LIMA, 2000, p. 22). Pode-se concluir, assim, que, para a problematização da condição pós-moderna em Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez, José Saramago recorre a estratégias retóricas pós-modernas, mas uma questão continua em aberto: será que se trata de romances pósmodernos? ABSTRACT: The postmodern condition is usually seen as a postEnlightenment period, an age of anarchic indetermination of Western civilization and of decay of humanistic ideals such as liberty, fraternity, solidarity and reason. These are precisely the values at stake in the two novels of José Saramago, values that are questioned from an GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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anti-neo-liberal perspective. The way the axiological components are treated also deserves special attention, as the artistic attitude of the Portuguese writer activates certain strategies of the literary code of postmodernism. KEYWORDS: José postmodernism.

Saramago;

novel;

postmodern

condition;

REFERÊNCIAS: ALVES, Clara Ferreira. José Saramago. Todos os Pecados do Mundo. In: Expresso, Lisboa, 28 de Outubro de 1995. ARNAUT, Ana Paula. José Saramago. Lisboa, Edições 70, 2008. BORGES, António José. José Saramago – Da Cegueira à Lucidez. Sintra. Zéfiro, 2010. CALINESCU, Matei. As Cinco Faces da Modernidade. Lisboa, Vega, 1999. LIMA, Isabel Pires de. Traços Pós-Modernos na Ficção Portuguesa Actual. In: Semear, Rio de Janeiro, n. 4, 2000. LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. Lisboa, Gradiva, s/d. NUNES, Maria Leonor. José Saramago. O Escritor Vidente. In: Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 25 de Outubro de 2005. PETROV, Petar. O Realismo na Ficção de José Cardoso Pires e de Rubem Fonseca. Lisboa, Difel, 2000. REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Lisboa, Caminho, 1988.

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RODRIGUES, Urbano Tavares. José Saramago. Transformar o Mundo? In: Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 12 de Maio de 2004. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. Lisboa, Caminho, 1995. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Lucidez. Lisboa. Caminho. 2004. SMART, Barry. A Pós-Modernidade. Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1993. VASCONCELOS, José Carlos, Uma fábula e um libelo. In: Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, 17 de Março de 2004.

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POÉTICA CORPORAL E ERÓTICA VERBAL: A ESCRITA DE JOSÉ SARAMAGO Teresa Cristina Cerdeira1 “A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda, uma erótica verbal. Ambos são feitos de uma oposição complementar. A linguagem – som que emite sentido, traço material que denota as ideias corpóreas – é capaz de dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação; por sua vez, o erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação. O erotismo é a sexualidade transfigurada: poesia. A imaginação é o agente que move o ato erótico e poético. É a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora. A imagem poética é o abraço de realidades opostas e a rima é cópula de sons; a poesia erotiza a linguagem e o mundo, porque ela própria, em seu modo de operação, já é erotismo. [...] A poesia irrompe a comunicação como o erotismo, a reprodução”. Octávio Paz2 Ao citar explicitamente no título deste ensaio a definição de erotismo dada por Octávio Paz em A dupla chama, pretendo enunciar

1

UFRJ / CNPq. É professora de Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pesquisadora do CNPq, com tese de Doutoramento sobre José Saramago – Entre a história e a ficção, uma saga de portugueses. Lisboa, Dom Quixote, 1987.

2

Octávio Paz. A Dupla Chama: amor e erotismo. SP, Siciliano, 1995. p.1213.

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mais do que a presença do tema do erotismo na escrita de José Saramago, o que é, por si só, terreno fértil mas já amplamente revisitado, pois que vem necessariamente acoplado a outro não menos recorrente que é o do lugar ocupado pela mulher como personagem motriz das suas narrativas. Mesmo onde menos se esperaria o fulgor de uma presença feminina – refiro-me muito especialmente ao romance Levantado do chão –, essa épica campesina sobre a luta ancestral pelos direitos do trabalhador do campo, até o seu último romance – Caim – que evoca mais uma vez o enfrentamento entre o homem e Deus, numa fábula nada ortodoxa sobre a origem da criação, há sempre uma mulher a apontar caminhos novos, a desinstalar preconceitos, a inaugurar liberdades. Contudo, ao lado desse evidente conteúdo erótico, agita-se, também, na malha textual, um erotismo da linguagem, que está presente não apenas nas cenas propriamente eróticas mas também no gozo mais amplo que subjaz à invenção da escrita e que apela às mais variadas estratégias a fim de corromper a língua por dentro da língua, desalojando-a dos compromissos da comunicação, ali também presentes mas numa escala inversa de prioridade, de modo a fazer desse discurso um acontecimento de linguagem, tornando-o numa camada opaca pela qual não podemos passar impunemente, com aquela rapidez de quem deseja pragmaticamente chegar ao fim para ver revelado um sentido. Em literatura estamos sempre para além do sentido. Ao aproximar erotismo e poesia, Octávio Paz formulava, na economia de uma definição, a garantia de o verbo poético possuir uma dinâmica própria que ultrapassa de longe os limites impostos pela língua gregária, pela língua da comunicação. No avesso de uma vocação não polêmica da língua consensual, feita de redundâncias que garantem a transmissão eficiente da mensagem, precisa nas informações que veicula, o corpo textual - corpo sensível da literatura - se configura como uma camada densa de significados sempre novos, sempre em estado de metamorfose, em que o peso do significante desdobra ao infinito a objetividade e a unicidade dos significados, de tal modo que o que era signo arbitrário torna-se, cratilianamente, signo motivado, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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palavra que é a coisa, ao menos em metáfora. De dentro da norma, de dentro da lei, de dentro da codificação da língua, a literatura emerge para citar a Aula de Barthes - como esquiva, trapaça e logro – palavras que ganham valor de oximoro quando aliadas aos adjetivos salutar e magnífico3, que as relançam num patamar outro que o previsto pela lógica, pela doxa, pelo senso comum. O trabalho de criação textual deixa de ser, então, uma mera inquirição sobre o sentido, porque é na materialidade da linguagem, no seu peso, na consistência do significante que as significações se constroem. A esse trabalho que se opera com a língua, mas também contra a língua, de modo a fazê-la experimentar continuamente o novo, chamamos-lhe poesia, verbo erotizado, ou em estado de tensão erótica. Não se trata, pois, de lidar apenas com significados eróticos, mas com o corpo erotizado da língua. Trabalho de escritura. Domínio do literário. Só um recorte de pequenas cenas dos romances de José Saramago permitiria, à guisa de amostragem, vislumbrar essa encenação do jogo erótico da linguagem que se pode reconhecer através de estratégias que brutalizam a sintaxe dando corpo sensível ao significante. Nesse caso, a construção inesperada sobressalta a leitura antes mesmo de atrair nosso compromisso de leitores para uma também necessária reocupação semântica: elipses, montagens, métrica que invade a prosa com os ecos da poesia, reiterações anafóricas, supressão da pontuação canônica. É do texto de Costa Lima o eco destas reflexões: Assim se dá toda vez que, diante de uma formulação ou mesmo pela posição de uma única palavra, suspendemos sua decodificação – isto é, a pergunta por seu sentido – e nos deixamos ocupar pela própria configuração conseguida. A experiência estética implica tomar-se a sintaxe como espera e

3

“Cette tricherie salutaire, cette esquive, ce leurre magnifique qui permet d’entendre la langue hors pouvoir, dans la splendeur d’une révolution permanente du langage, je l’appelle pour ma part: littérature .” BARTHES, Roland. Leçon. Paris, Gallimard, 1978. p.

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intervalo que, provisória e contingencialmente, antecede a reocupação semântica.4 A literatura como textualidade exige pois essa espera e esse intervalo porque inaugura um outro sentido para o tempo, comprometendo consequentemente o processo de leitura. Como o amante, o leitor tem que saber esperar sem a pressa que o levaria a desistir diante da demora do outro5, ou a saltar o que não parece imediatamente necessário, funcional, pragmático. Alguns fragmentos lidos nesse compasso frutuoso de espera poderão dar conta da experiência de gozo na linguagem. De Levantado do chão elejo, com aparente arbitrariedade, o corte de um capítulo e uma metáfora em fio. Este romance, bem o sabemos, acompanha o processo de amadurecimento político do campesinato alentejano e, nesse contexto, o seu herói, João Mau-Tempo, depois de confessar a Faustina, sua mulher, o desconforto moral de se ter deixado levar a contragosto a Elvas, pelos patrões, para um comício contra os republicanos espanhóis, adormece, tem um sonho freudianamente revelador da sua situação de oprimido – vê-se a ele, um Mau-Tempo, ironicamente perseguido por um senhor a cavalo “e o cavalo, é a única coisa que nesse sonho sei, chama-se Bom-Tempo, afinal os cavalos têm vida longa” – , até que a mulher o vem despertar dizendo: “Acorda, João, que são horas, isto diz a mulher, e no entanto ainda é noite fechada”(LC, p.97). E o capítulo simplesmente se encerra nesse aparentemente simples e unívoco chamamento ao trabalho da ceifa.

4

Luis Costa Lima, Limites da voz, I, 1993. p.137.

5

“‘Estarei enamorado?’ - Claro que sim, já que espero.’O outro, este, nunca espera. Às vezes, quero bancar aquele que não espera; tento me ocupar com outra coisa, chehar atrasado; mas, nesse jogo, sempre perco; faça o que fizer, acabo sempre ocioso, pontual, adiantado mesmo. A identidade fatal do amante nada mais é que: sou aquele que espera”. Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 164

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O capítulo seguinte começa, contudo, de maneira inusitada, o que obriga o leitor, pelo estranhamento sintático que aí se configura, a uma reconsideração do significado da informação cênica anterior. Outros, porém já se levantaram, não no sentido próprio de quem suspirando se arranca ao duvidoso conforto da enxerga, se a há, mas naquele outro e singular sentido que é acordar em pleno meio dia e descobrir que um minuto antes ainda era noite, que o tempo verdadeiro dos homens e o que neles é mudança mão se mede por vir o sol ou ir a lua, coisas que afinal só fazem parte da paisagem […] (LC, 99) Ora, o intervalo que a sintaxe surpreendente dessa passagem revela ao seu leitor advém de uma quebra estrutural, nem sequer de um período, nem sequer de um parágrafo mas, para o caso, de um capítulo. E essa estranha quebra, que engendraria nos espíritos cartesianos mais ortodoxos um desconforto de leitura pelo fato de o capítulo iniciar-se por uma adversativa (“porém”) - sem que a oração que contém a ideia a que esta se oporia se faça evidenciar in praesentia -, resulta entretanto em multiplicadora de significados. O que sucede é que a leitura nos obriga a subverter a ordem tradicional que privilegia uma semantização interna dos capítulos, que consensualmente entende uma autorregulação no que tange ao fechamento semântico que cada um deles guardaria, para ir buscar na página anterior, melhor dizendo, no capítulo anterior, a referência que ali parece faltar. É então que retrospectivamente percebemos que, se para João Mau-Tempo “ainda é noite fechada” (o que significara a princípio tão somente que ele tinha sido obrigado a acordar demasiado cedo para trabalhar, antes mesmo do nascer do sol) para os “outros” – um grupo de quatro rapazes que trabalham na ceifa do trigo e que esboçam, no espaço da repressão, um primeiro gesto de rebeldia concreta contra o ritmo aviltante do trabalho comandado por uma máquina debulhadora – para eles, repito, esse tempo da “noite” já não existe, fato que descobrem aliás “em pleno meio dia”, que é quando o sol escaldante lhes faz perceber que estavam expostos a um excesso de dor que não podiam nem deviam suportar. Estamos longe – e o GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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narrador o registra – do sentido literal da temporalidade, para aceder ao mundo metafórico em que noite e dia coincidem agora com os sentidos de alienação e consciência. A metáfora em fio, que vai de “acordar” , “ainda é noite fechada”, “porém já se levantaram”, “acordar em pleno meio dia” até “descobrir que um minuto antes ainda era noite”, desconcerta qualquer possibilidade de assumir tais referências como meros dados da “paisagem”, notações do tempo físico, e obriga a aprender, com o narrador, que o processo de desalienação chega diversamente para cada um, até que soe a grande festa da revolução agrária, um ano após o 25 de Abril, ela que, muito coerentemente com aquele fio metafórico já prenunciado, virá metaforizada também por uma referência temporal: “Este sol é de justiça. Queima e inflama a grande secura dos restolhos”(LC, p. 364). Passando ao Memorial do Convento, a cena eleita é a que narra, em elipse, o primeiro encontro de amor entre Baltasar e Blimunda. Nada que se pareça, por conta dessa elipse, com uma economia de tensão erótica ou como um desvio de pudicícia a deixar apenas sugerido o que não foi narrado. Ao contrário, a cena não descrita mas perfeitamente inferida pelo sintagma “já então” é o ápice de um encontro de silêncio e fala, em claro-escuro, em que não apenas os gestos de “pôr lenha na fogueira que esmorecia”, espevitar “o morrão da candeia que estava comendo a luz” mas também as palavras de oferta da casa e da cama por Blimunda a Baltasar – “Se eu ficar, onde durmo, Comigo” –, tudo convoca o lugar do desejo e da experiência amorosa que acontece, afinal, em não mais de três linhas: “Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha” (MC, p.57 - negrito nosso). A elipse não é, portanto, recusa de narrar, mas recusa da redundância. É antes concentração diegética, exigência de reconsideração mais ampla da cena do encontro dos dois personagens que se iniciara já, de certo modo, desde o ritual de entrada metafórica de um no corpo do outro, por decisão explícita de Blimunda:

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Blimunda levantou-se do mocho, acendeu o lume na lareira, pôs sobre a trempe uma panela de sopas, e quando ela ferveu deitou uma parte para duas tigelas largas que serviu aos dois homens, fez tudo isto sem falar, não tornara a abrir a boca depois que perguntou, há quantas horas, Que nome é o seu, e apesar de o padre ter acabado primeiro de comer, esperou que Baltasar terminasse para se servir da colher dele, era como se calada estivesse respondendo a outra pergunta, Aceitas para a tua boca a colher de que se serviu a boca deste homem, fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes que se perca o sentido do teu e do meu, e como Blimunda já tinha dito que sim antes de perguntada, Então declaro-vos casados. (MC, 56)

O ato de comer, a escolha da colher de Baltasar para a sua boca, o gesto repetido de penetração oral são alegorias da doação dos corpos que, na resposta hipotética a um discurso que se tivesse travado entre Blimunda e o Padre Bartolomeu, recuperam em metáfora o “sim” da cerimônia ortodoxa do casamento, numa voluntária transgressão que, contudo, continua ainda a referir os elementos de base da ortodoxia sacramental: a confirmação do gesto – “aceitas”, “sim” –, numa mesma necessária reciprocidade: “fazendo seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele”. Tudo lá está sem estar, fundamento possível da heresia, palavra aqui tomada em seu sentido primitivo, que antecede a apropriação religiosa, do grego airesis, que significa muito simplesmente escolha. Toda a cena é um vasto gesto erótico feito, sobretudo, em linguagem comprometida com os ecos culturais, com as fórmulas consagradas, e com um ritmo que compromete a prosódia corrente e exige propriedades acústicas especiais da fala, numa entonação ela mesma erotizada. Mas o romance não finda sem que uma outra cena de êxtase amoroso desse par de amantes em perfeita sintonia seja alegorizada justamente por um voo metafórico da passarola que, continuando pousada, mimetiza com perfeição a ascensão do desejo dos amantes. Baltasar e Blimunda, que passaram a trabalhar na construção do GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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convento de Mafra, iam de vez em quando à montanha para verificar se a passarola continuava íntegra, protegida pelos arbustos e galhos que lhe tinham servido de amparo no momento do pouso e coberta de outros com os quais eles dois a tinham escondido de algum quase impossível passante que por aquelas terras ermas andasse. É aí, nesse ambiente fechado, sombrio, resguardado do mundo, que é o interior da passarola, que a cena de amor acontece: Já antes tinha inspeccionado o interior, descendo por uma abertura do convés, escotilha desta nave aérea, ou aeronave, nome facilmente formável no futuro, quando for preciso. Não havia sinais de vida, nem uma cobra, nem a simples lagartixa que em todo o oculto corre, de aranhas nem fio de teia, que moscas ali viriam. Era como o dentro de um ovo, a casca dele, o silêncio que lá está. Ali se deitaram, numa cama de folhagem, servindo as próprias roupas despidas de abrigo e de enxerga. Em profunda escuridão se procuraram, nus, sôfrego entrou ele nela, ela o recebeu ansiosa, depois a sofreguidão dela, a ânsia dele, enfim os corpos encontrados, os movimentos, a voz que vem do ser profundo, aquele que não tem voz, o grito nascido, prolongado, interrompido, o soluço seco, a lágrima inesperada, e a máquina a tremer, a vibrar, porventura não está já na terra, rasgou a cortina de silvas e enleios, pairou na alta noite, entre as nuvens, Blimunda, Baltasar, pesa o corpo dele sobre o dela, e ambos pesam sobre a terra, afinal aqui estão, foram e voltaram. (MC, 270-1) Fácil será verificar o modo como a cena erótica se constrói com uma linguagem poética também altamente erotizada, seja pela descrição de um espaço de perfeição para acolher os amantes, aqui identificado pela metáfora “o dentro de um ovo”, espaço silencioso, sem outros sinais de vida (cobras, aranhas, lagartixas ou moscas) que não fossem os dos corpos de ambos os amantes, espaço protegido e escuro; seja pelo ritmo acelerado do longo período, construído com uma sucessão de sintagmas nominais e verbais (substantivos GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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escuridão, sofreguidão, ânsia, corpos, movimentos, voz, grito, soluço, lágrima; adjetivos - profunda, nus, sôfrego, ansiosa, encontrados, profundo, [grito] nascido, prolongado, interrompido, [soluço] seco, [lágrima] inesperada; enfim os verbos - se deitaram, se procuraram, entrou, recebeu, tremer, vibrar, rasgou, pairou, pesa, pesam, foram e voltaram), todos eles separados por vírgula, numa enumeração em crescendo que só finda com a alegorização do orgasmo no voo da passarola. A hipálage que transfere o tremor dos corpos ansiosos para o tremor de uma passarola que, parecendo em pleno voo, não sai contudo da terra, é indicada pelo modalizador “porventura”, que nos obriga a ler esse voo em metáfora. Porque são eles, afinal, - Baltasar e Blimunda - os que vão e voltam, e se a máquina treme e vibra e rasga e paira entre as nuvens, será por um efeito de contiguidade em que o conteúdo (amantes) dá asas ao continente (passarola). Em O Ano da morte de Ricardo Reis o jogo erótico do discurso poético ainda uma vez será ilustrado por uma cena cujo significado está longe de corresponder a uma referência de caráter afetivo ou amoroso. Trata-se, ao contrário, do relato histórico da invasão de Addis Abeba pelas tropas de Mussolini e do silêncio que a este ato de desmesura do poder fascista italiano se fazia contra um país independente, que era membro da Sociedade das Nações. Não será contudo o objetivo desta sequência voltar ao tema do novo modelo ou da nova proposta de romance histórico em José Saramago. De certo modo esta é uma questão que já suscitou conclusões nem sempre similares e por vezes polêmicas, e sobre a qual o próprio escritor não se cansou de ser levado a refletir. Em textos anteriores já fizemos parte desse debate e retomá-lo aqui não pareceria, ao menos por agora, garantir avanços na questão. Preferimos privilegiar, numa leitura mais detida da camada significante, o entrecruzamento no corpo discursivo das referências históricas que, aliás, não são sempre necessariamente acadêmicas, e fazem sobretudo parte de uma literatura jornalística em que o escritor terá ido encontrar as bases para a sua construção ficcional que não descuida nunca de uma relação engenhosa com o referente. O Ano da morte de Ricardo Reis é um bom exemplo para a ilustração desse viés, até porque, em se tratando de história recente, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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são os jornais uma fonte rica para a documentação da história. Pouco importa, na verdade, se tais documentos são monumentos do poder pois é evidente que o são - e velam mais do que revelam aquilo a que aspiraríamos como “verdade” histórica. Afinal, como diz bem Jacques le Goff 6 - com o acento dado ao fato de ser ele um historiador -, em certa medida, todo documento é monumento, pois faz parte de um esforço que as sociedades históricas, consciente ou inconscientemente, fazem para deixar uma determinada imagem de si próprias para as gerações por vir. Diante dos jornais, portanto, o ficcionista, que está consciente desse tipo de armadilha documental, não pode fazer papel de ingênuo, e deve aprender a indagar diferentemente os documentos de modo a deixá-los surgir no espectro do seu próprio avesso. Sabemos que hoje já faz parte do acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa, ao lado dos manuscritos de O ano da morte de Ricardo Reis, uma agenda restaurada do ano de 1936 que, na altura da escrita do romance, José Saramago completou com dados dos jornais portugueses da época, selecionados para reconstituírem o espaçotempo da sua ficção. Lá estão inscritas a Guerra de Espanha, que ocupava grande parte da matéria editada na época, modo de transferir para o país vizinho as inquietações dos leitores portugueses sempre orientados, evidentemente, a lerem os acontecimentos tal como o poder o desejaria; e a força crescente do modelo épico alemão a servir de exemplo à militarização da vida portuguesa (Juventudes Hitlerianas / Mocidade Portuguesa); mas também algumas informações de caráter aparentemente anódino, como a meteorologia e a publicidade, elementos relidos no romance, não como resgate meramente especular dos acontecimentos, mas como ponto de partida para uma possível simbolização que o contexto ficcional logra atribuir aos dados referenciais. Se ficamos sabendo, pelas anotações do diário, que o ano de 1936 foi muito chuvoso, o que importa na verdade é verificar como este elemento circunstancial ganha foro simbólico no corpo do romance. Reiterada insistentemente desde as primeiras páginas -“Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio 6

LE GOFF, Jacques. “Documento/Monumento” In: ---.Memória/História. (Enciclopédia Einaudi, vol. 1). Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda. 1984, p. 95-106.

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correm turvas de barro”(RR, p.11); “não hoje que está chovendo”(RR, p.12); “os meninos espreitam a cidade cinzenta”(RR, p.12); “movediça cortina das águas que descem do céu fechado’(RR, p.12); “mas é a cidade silenciosa que assusta, porventura morreu a gente nela e a chuva só está caindo para diluir em lama o que ainda está de pé”(RR, p.13); “começa a cidade sombria, recolhida em frontarias e muros” (RR, p.13); “De ombros encurvados sob a chuva monótona”(RR, p.13); “os estrangeiros murmuram contra o temporal, como se fôssemos nós os culpados desse mau tempo”(RR, p.14); “aqui estamos calados, maldito inverno”(RR, p.14); “a tarde escurece” (RR, p/14); “com um pouco mais de sombra se faria a noite”(RR, p. 14); “e a melancolia alastra”(RR, p.14); “O viajante olha as nuvens baixas, depois os charcos”(RR, p.15); “um único tecto cor de chumbo”(RR, p.17) - a referência ao dia chuvoso ultrapassa de longe a indicação meteorológica que poderia vir mencionada na página do jornal, porque ela se alastra por outros sintagmas que compõem uma ambiência moral da cidade. Nela se revela a cidade pálida, cinzenta, sombria, triste, fechada, silenciosa, assustadora, encurvada, recolhida, escurecida, monótona e de nuvens baixas, a lembrar os versos fundadores da cena de Lisboa em “O Sentimento dum Ocidental”. É pois nesse trânsito do referencial para o metafórico, nesse jogo de alusões que remete a outras imagens literárias, que a textura romanesca deixa-se erotizar poeticamente É nessa mesma linha de leitura que se quer inscrever o recorte textual do relato da invasão de Addis Abeba que ilustrará, com extrema pertinência, um modo de apropriação de referências documentais num dos momentos de maior virtuosismo de construção de todo o romance. Aí se mesclam o resgate de manchetes de jornais, de notícias da rádio, trechos de discursos políticos, um conto de Borges, e, como citação exemplar, uma ode de Ricardo Reis que ganha sua variante no relato do narrador com a a Pérsia anteriormente referida ousadamente deslocada para a Addis-Abeba do presente. No trecho constituído por um único parágrafo de duas páginas e meia, que se inicia por “Addis-Abeba, ó linguístico donaire, ó poéticos povos, quer dizer Nova Flor”(RR, p. 300) e termina por “o doutor do segundo andar apenas ia a falar sozinho”(RR, p.303) essas estratégias de apropriação suplementam o discurso narrativo GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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sobrecarregando-o eroticamente, naquele sentido que vimos atribuindo ao termo quando falamos de literatura como uma “erótica verbal”, língua deslocada da sua contingência referencial para o plano poético, que admite desvios, deslocamentos, transgressões sintáticas, em outras palavras, encenação. A narrativa contida na ode “Ouvi contar que outrora quando a Pérsia” feita no passado (“ardiam”, “eram”) 7 é transposta, no romance, para uma constatação do presente (“ardem”, “está”)8, embora se garanta sempre, em eco consentido, o mesmo ritmo frasal do discurso referido ao qual se acrescenta a retomada do mesmo cenário de mulheres violadas, de casas que ardem, de arcas saqueadas, de crianças que sangram nas ruas. Somam-se a essa releitura deslizante da ode a transcrição de falas da rádio - “Mussolini anunciou, Deu-se o grande acontecimento que sela o destino da Etiópia, e o sábio Marconi preveniu, Aqueles que procurarem repelir a Itália caem na mais perigosa das loucuras” (RR, 301) - e a apropriação de manchetes de jornal - “o Manchester Guardian, que é órgão governamental inglês, verifica, “Há numerosas razões para serem entregues colónias à Alemanha, e Goebbels decide, “A Sociedade das Nações é boa, mas as esquadrilhas de aviões são melhores”(RR, 301), além da citação de um livro inexistentes - The God of the labyrinth - que só possui consistência literária no conto de Borges (“Análise da obra de Herbert Quain”) - , elementos que vão compondo, qual um mosaico, um outro texto voluntariamente estilhaçado, que sugere com perfeição a avalanche de informações controvertidas que atravessam a “fronte alheada e imprecisa de Ricardo Reis” (RR, p. 301). 7

“Ardiam casas, saqueadas eram
/ As arcas e as paredes,
/ Violadas, as mulheres eram postas
/ Contra os muros caídos,
/ Traspassadas de lanças, as crianças
/ Eram sangue nas ruas...” Ricardo Reis, Odes (337). In Fernando pessoa, Obra poética. Rio de Janeiro, Aguilar. 1969, p.267-269.

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“Addis Abeba está em chamas, as ruas cobertas de mortos, os salteadores arrombam as casas, violam, saqueiam, degolam mulheres e crianças, enquanto as tropas de Badoglio se aproximam” (SARAMAGO, José. O Ano da morte de Ricardo Reis, Lisboa, Caminho, 1984, p.301)

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A conjugação desses recortes aparentemente díspares faz portanto surgir um texto de múltiplas vozes, de variados ritmos, em que o trágico e o irônico se tangenciam, e onde ficam claros os empréstimos intertextuais de diferentes registros narrativos. Numa espécie de vórtice rítmico exigem-se do fruidor, exposto a esse turbilhão de imagens e informações, leituras variadas para um mesmo fato; provocam-se nele comportamentos afetivos contraditórios, enquanto ele próprio se vê obrigado a saltar por cima de discursos das mais diversas origens e propostas. Nessa ágil ciranda textual a leitura não se pode desligar do processo de construção e deve-se fazer atenta para acompanhar ora a fúria, ora a comiseração, ora a ironia, ora o espanto do narrador face à violência do destino que o fascismo ensaiava no mundo. Enfim, o último excerto escolhido para referir o processo de erotização verbal da literatura está em O Evangelho segundo Jesus Cristo e, neste caso, refere uma cena de amor, de alta tensão erótica, construída como um experiência de aprendizado, em que caberá à personagem feminina, Maria de Magdala, ensinar e explicar os gestos amorosos a um insciente Jesus. A linguagem erótica é aqui a linguagem da paixão, mas é sobretudo a linguagem de um generoso saber. Gosto de lembrar mais uma vez as palavras de Barthes, nos Fragmentos de um discurso amoroso, que parecem perfeitas para esta confluência entre corpo e linguagem, entre erotismo e conhecimento. Diz ele: “A linguagem é uma pele: roço a minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras em vez de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo.”9 O jogo erótico desta cena de amor entre Jesus e Maria de Magdala está todo no compromisso da fala com o corpo. Deslocando o modelo da subalternidade intelectual, física e social que sempre definiram, para o senso comum, o lugar do feminino; deslocando enfim e definitivamente o discurso da ideologia que construiu a 9

“Le langage est une peau. Je frotte mon langage contre l’autre. C´est comme si j´avais des mots en guise de doigts, ou des doigts au bout de mes mots. Mon langage tremble de désir.” Roland Barthes, Fragments d’un discours amoureux. In : Œuvres Complètes, Paris: Seuil, 2002, p.103.

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imagem de uma mulher passiva e sempre à espera, Maria de Magdala pode instituir-se – sem qualquer pejo – como agente de provocação do gozo que nasce da experiência do erotismo e do ato de conhecer. Ela ensina e Jesus aprende o corpo do outro e o seu próprio corpo, ela ensina e ele aprende a conhecer o outro e a si mesmo. Daí que, na cena amorosa, certas palavras retornem como um leitmotif para apontar essa doação do ensinamento: “Aprende o meu corpo” e depois “Aprende o teu corpo”: O ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala apareceu, nua. [...] Maria parou ao lado da cama, olhou-o com uma expressão que era, ao mesmo tempo, ardente e suave, e disse, És belo, mas para seres perfeito, tens de abrir os olhos. Hesitando, Jesus abriu-os, imediatamente os fechou, deslumbrado, tornou a abri-los e nesse instante soube o que em verdade queriam dizer aquelas palavras do rei Salomão, As curvas dos teus quadris são como jóias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os teus dois seios são como os dois filhinhos gêmeos de uma gazela, mas soube-o ainda melhor, e definitivamente, quando Maria se deitou do lado dele, e, tomando-lhe as mãos, puxando-as para si, as fez passar, lentamente, por todo o seu corpo, os cabelos e o rosto, o pescoço, os ombros, os seios, que docemente comprimiu, o ventre, o umbigo, o púbis, onde se demorou, a enredar e a desenredar os dedos, o redondo das coxas macias, e, enquanto isto fazia, ia dizendo em voz baixa, quase num sussurro, Aprende, aprende o meu corpo. Jesus olhava as suas próprias mãos, que Maria segurava, e desejava tê-las soltas para que pudessem ir buscar, livres, cada uma daquelas partes, mas ela continuava, uma vez mais, outra ainda, e dizia, Aprende o meu corpo, aprende o meu corpo. Jesus respirava precipitadamente, mas houve um momento em que pareceu sufocar, e isso foi quando as mãos dela, a esquerda colocada sobre a testa, a direita sobre os tornozelos, principiaram uma lenta carícia, na GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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direção uma da outra, ambas atraídas ao mesmo ponto central, onde, quando chegadas, não se detiveram mais do que um instante, para regressarem com a mesma lentidão ao ponto de partida, donde recomeçaram o movimento. Não aprendeste nada, vai-te, dissera Pastor, e quiçá quisesse dizer que ele não aprendera a defender a vida. Agora Maria de Magdala ensinara-lhe, Aprende o meu corpo, e repetia, mas doutra maneira, mudando-lhe uma palavra, Aprende o teu corpo, e ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala, que dizia, Calma, Não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti, então sentiu que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava gritando, impossível, não pode ser, os peixes não gritam, ele, sim, era ele quem gritava, ao mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu corpo sobre o dele, indo beber-lhe da boca o grito, num sôfrego e ansioso beijo que desencadeou no corpo de Jesus um segundo e interminável frêmito. (EJC, p. 283). Ensinar e aprender o amor. Ela a mestra, ele o aprendiz. Ela a dona do saber, ele o insciente. Ela a agente, ele o paciente. Estão assim definitivamente invertidos e problematizados os lugares ideológicos do masculino e do feminino: a ação e a espera, a fala e o silêncio. A sexualidade se desnaturaliza, torna-se imaginário e encenação, e ganha a possibilidade de se reescrever a partir de outras expectativas culturais. Jesus tinha consigo apenas o arsenal teórico do amor que lhe viera do Cântico dos Cânticos de Salomão. É portanto nele que muito coerentemente se apoia para começar a entender o amor de uma mulher. Mas o que ele então percebe é que Maria de Magdala ia muito além do que significavam as palavras, pois ela era capaz de transformar a metáfora do texto canônico em literalidade pura, fazendo-o caminhar para além do modelo, para além das imagens GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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previamente cifradas, levando-o a conhecer e a experimentar, ou a experimentar para conhecer: “És belo, mas para seres perfeito, tens de abrir os olhos.” (EJC, p.282) A perfeição humana, é ela quem o diz, ele só a atingiria ao ver o outro como diferente de si, na materialidade da experiência erótica. Seria esse o modo mais completo do conhecimento dos corpos, e o modo mais generoso de aprender a diferença, arriscando-se na caminhada para fora do já sabido. Essa escrita, que parte do sagrado para encontrar para ele sentidos inesperados, aposta numa revolução que, ao eleger o sacrílego, aposta em suas raízes etimológicas que tanto podem ser as de roubo do sagrado como as de leitura do sagrado ou de posse do sagrado (cf. lego = ajuntar, recolher, mas também ler e, por litote, tomar, apoderar-se de, roubar). O que aí se evidencia, nessa linguagem altamente erotizada pela consciência da transgressão que inaugura, é o jogo contraditório com o outro, que seduz e convoca à reconsideração paródica. O que aí se realiza é a ousadia de tocar o sagrado, aquilo que não é para ser tocado (entenda-se aqui não apenas a fonte bíblica mas a função prescritiva do discurso da comunicação), sob pena de sacrilégio, de manchar, de deixar marcas, de assinalar. Mas o sentido novo que daí advém, a revolução que o discurso da ficção impõe à linguagem da comunicação não é apenas o seu sacrilégio mas, paradoxalmente, a sua consagração. Ele não se opõe ao sagrado, apenas o recontextualiza. Essa recontextualização do sagrado no Evangelho segundo Jesus Cristo acontece nomeadamente na arbitrariedade do deslocamento espácio-temporal de algumas cenas canônicas. É o caso, por exemplo, da última ceia, que migra do contexto tradicional que antecede a morte de Jesus para um outro momento de doação do corpo, que é o desse encontro de amor entre Jesus e de Maria de Magdala. Enquanto cearam, Maria de Magdala não fez perguntas [...] Estavam sentados no chão, frente a frente, com uma luz no meio, o que sobrara da comida. Jesus tomou um pedaço de pão, partiu-o em duas partes, e disse, dando uma delas a Maria, Que este seja o pão da verdade, comamo-lo para que creiamos e não duvidemos, seja o que for que aqui dissermos e ouvirmos [...] Agora Jesus já GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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pode começar a falar, porque ambos comeram do pão da verdade, e em verdade não são muitas na vida as horas como esta. (EJC, 307, 308) A escolha simbólica dessa epifania da verdade amorosa já se iniciara, aliás, um pouco antes, com outro deslocamento herético, o da cerimônia do lava-pés, relido não mais como gesto de humildade do Mestre diante dos discípulos, mas como uma antecâmara da paixão, exercício sensual em que Jesus tem os próprios pés lavados por Maria de Magdala, que ali se põe a tocar a sua pele para retirar dela a crosta que a impedia de ser sensível, enfim, que ali se põe a educar os sentidos do amado, ensinando-o a aprender o próprio corpo. A mulher ajudou-o a entrar para o pátio, trancou a porta e fê-lo sentar-se, Espera, disse. Foi dentro e voltou com uma bacia, molhou o pano e, ajoelhando-se aos pés de Jesus, sustendo na palma da mão esquerda o pé ferido, lavou-o cuidadosamente, limpando-o da terra, amaciando a crosta estalada através da qual surdia, com o sangue, uma matéria amarela, purulenta, de mau aspecto. Disse a mulher, Não vai ser com água que te curarás [...] Deita-te, eu volto já. Fez correr um pano numa corda, novos rumores de águas se ouviram, depois uma pausa, o ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala apareceu, nua. (EJC, 278, 282) Se a água tem esse poder restaurador da sensibilidade, Maria de Magdala vai mais além, recuperando ainda uma vez, a ortodoxia religiosa. Ao sugerir: “Não vai ser com água que te curarás” , ela está a evocar o batismo do fogo que canonicamente só o Espírito Santo era capaz de conferir, como sugeria a voz de João Batista no Rio Jordão: “Eu te batizo com água, mas depois de mim virá aquele que te batizará com o fogo”, com a diferença capital de que para ela, para a amante, o fogo inferido em suplemento da água já não era o do espírito, mas o da paixão. Cuidadosamente lavado por ela, Jesus já não é também o Mestre, mas um discípulo que precisa de mestres. Só então começa a GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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perceber que ocupara até então o seu lugar de frustrado aprendiz diante de um Pastor que cujas ordens ele antes não soubera intelectualmente decifrar. Só então, por via da paixão por Maria de Magdala, ele começa perceber o que antes lhe havia parecido obscuro. Jesus fora incapaz de desvendar as metáforas do conhecimento, desobedecendo à voz de Pastor para que não imolasse, como os outros judeus, o cordeiro pascal e em breve iria entender que assinalara, desde então, o seu próprio destino, assumindo no gesto indicial a tragédia que se lhe impunha de vir a ser, ele próprio, o cordeiro da prepotência de um absurdo Deus. É no processo de desconstrução paródica que o texto de origem se reinventa, que ele se metaforiza, que, tal como concebemos o conceito, ele se erotiza, para negociar a desmontagem de significados ideológicos que ali estão in absentia, e que só aparecem através de uma presença transfigurada. É pelo exercício de linguagem feito de apropriações deslocadas, de transgressões temporais (lava-pés, batismo, última ceia), de inversas formulações, de literalizações de metáforas, que o significado ortodoxo do plano de Deus, reconhecido no seu avesso, passa de salvação a traição, pela evidência do seu desmedido exercício de poder. A proposta de Jesus de corromper o projeto divino, morrendo na cruz sem que fosse reconhecida a sua divindade, é, nesse sentido, um gesto generoso mas insustentável por inadequação histórica, já que equivaleria a inaugurar uma história que não houve. Por isso a palavra autoritária de Deus, que identifica Jesus na hora da morte – "Este é o meu filho muito amado" –, vem em socorro dessa verossimilhança, trasladada da cena bíblica do batismo para a cena ficcional da crucificação, quando os céus, como bem se sabe, emudeceram. A proposta textual de releitura da morte de Jesus acentua o gesto sarcástico de Deus ao impor arbitrariamente a sua presença quando o crucificado que ali estava não lhe fizera o conhecido apelo imemorial: "Pai, por que me abandonaste?" . A violência irônica da divindade torna-se então evidente: quando no texto canônico Jesus apela a Deus, não é atendido; quando no âmbito do romance ele se cala, Deus aparece para revelá-lo à sua revelia, para que ele não consiga operar a desejada reversão da história, para que ele não possa evitar os desastres do rio de sangue que a cultura cristã gerou no Ocidente. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Contra o gesto autoritário de Deus, só se poderia opor, como última defesa, o lamento do filho que, invertendo o discurso paternalista para salvar em Deus os homens inconsequentes e pecadores – "Pai, perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem" -, escolhe uma outra fórmula, que contradiz a primeira e que o afasta de Deus, identificando-o definitivamente com a humanidade - "Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez" (EJC, 444). Ao optar pelos homens, o que o discurso literário opera vai muito além de uma mera confrontação dos valores ideológicos do discurso canônico. Sua investida se faz no próprio tecido discursivo, através da manutenção da mesma sintaxe e da mesma musicalidade da fórmula congelada da tradição, quando esta, na verdade, está sendo voluntariamente deslocada e invertida. À melodia da sintaxe do verbo instituído, em que Pai e Filho se aliam para a salvação da humanidade pecadora, sucede outra que, com mínima alteração morfológica - na apóstrofe feita aos homens e não mais a Deus, e na necessária inversão do sujeito no que tange à consciência do mal, atribuído agora a Deus e não mais os homens - aponta para uma verdade nova que nasce desse paralelismo transgressor, num discurso poeticamente erotizado que promove e ex-cita o nosso diálogo com a voz da tradição, obrigando a frase congelada a uma ressemantização em que se recuperam o peso e o sentido de cada sintagma. Os textos escolhidos, breves o suficiente para serem percebidos para além do que significam, na sua densidade escritural, formam uma breve amostragem do que seria a dinâmica associação de poesia e erotismo. Não foram aí contempladas apenas as cenas de conteúdo erótico, mas de modo mais amplo, cenas em que a erotização da linguagem lança o discurso no domínio sensualíssimo da literatura que é, ela mesma, um corpo sensível, atento a si, impossível de ser obliterado na sua materialidade, feito de uma opacidade que impede a mera travessia em busca do sentido. O significante desse signo motivado tem peso e gramatura, porque nele comparecem, ao mesmo tempo, a memória e a ousadia transfiguradora dessa memória; porque nele se inventa um ritmo e uma melodia através de uma sintaxe inesperada, deslocada, paradoxal.

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É desse modo que o sentido extrapola em significados. É por esse caminho que se inventa uma erótica verbal. Verbo erotizado. Poesia.

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ÁLVARO DE CAMPOS: DÚVIDAS E QUESTÕES DE MÉTODO Antonio Cardiello 1 RESUMO: Pretendemos, mediante a análise de alguns textos do espólio de Fernando Pessoa, ilustrar um problema crítico-textual típico, relativo à fixação de fragmentos e aos critérios metodológicos adoptados a esse respeito, comparando as principais edições críticas da obra poética do heterónimo Álvaro de Campos, desde 1944 até à data. Em particular, serão motivo de confronto e reflexão as diferentes e possíveis propostas de leitura textual do poema, datado de 1914, Dois excerptos de odes. Com base nas teorias de Giorgio Pasquali e T.S. Eliot, o objectivo é sugerir um modo de publicar Pessoa como uma visão de conjunto. Nas nossas conclusões apelaremos, então, ao diálogo aberto entre tradições e edições, enquanto premissa necessária para o conhecimento mais fecundo com ambição de acabamento, sendo que nenhum editor se pode arrogar o direito de fixação final da fragmentação dos poemas, devendo sempre atender à verdade – quase sempre inconclusa – dos textos e às escolhas perfectíveis dos editores. PALAVRAS-CHAVE: Fernando Pessoa. Álvaro de Campos. Edição crítica. Dois Excerptos de Odes. Giorgio Pasquali. O convívio com um autor como Fernando Pessoa pode despoletar uma sensação de profunda precariedade, para não dizer de impasse, dentro de quem se aventura no mais árduo dos projectos: a tentativa de deliberar classificações e elucidações em relação a uma estrutura de pensamento, cuja complexidade implícita acaba por se acentuar por causa da natureza fragmentária de toda a sua obra plural. Mesmo assim, gostamos de acreditar na possibilidade que este estado conflituoso possa, paradoxalmente, favorecer o percurso que 1

Investigador da UNL - Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Instituto de Filosofia da Nova, Lisboa, Portugal, Avenida de Berna 26-C / 1069-061. [email protected].

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tencionamos acompanhar, porque o mergulhar nas dúvidas e nas hesitações talvez seja a modalidade que mais próximo nos leva aos segredos alquímicos do drama em gente pessoano. Comprova-o a constatação que Pessoa e os inúmeros enigmas sem resolução geralmente associados ao seu génio se situam para além da epígrafe de Cícero, dubitando ad veritatem parvenimus, para além de uma verdade alcançada ou alcançável, duvidando. Na esteira de Ockham, Descartes e David Hume, Pessoa cultiva “a dúvida universal” e insere-se naquele leque de pensadores que, tal como Kant, sagraram a própria vida à individuação dos princípios e das antinomias sobre os quais se erige a faculdade de conhecer. Questionar ininterruptamente as nossas convicções mais inamovíveis, sejam essas científicas ou derivadas de cultos religiosos é, certamente, um dos magistérios mais marcantes da sua literatura. Acontece, todavia, que no interior daquele mundo académico que em época recente o elevou a nume tutelar, são deveras poucos os que souberam colher este seu ensino. Dirigindo a atenção para trás no tempo, ao longo destas várias décadas de impressionante proliferação de miscelâneas pessoanas, o olhar não pode evitar de parar sobre a primeira edição com pretensões de completude da obra poética de Pessoa: a da Ática, detentora dos direitos de autor do poeta até 1985. Surgiu em 1942, sete anos depois da sua morte. Os responsáveis do ambicioso propósito foram, pelo menos inicialmente, João Gaspar Simões e Luís de Montalvor que decidiram imprimir, como primeiro volume da colecção, uma antologia de poesia ortónima. Dois anos mais tarde apareceu uma colectânea de poemas do heterónimo Álvaro de Campos2. O trabalho 2

Campos nasceu em 1890, depois de Ricardo Reis, 1887, de Fernando Pessoa, 1888, e de Alberto Caeiro, 1889, mas surgiu na mente de Pessoa no dia 8 de Marco de 1914, participou na revista Orpheu e no movimento sensacionista, escreveu um Ultimatum apos o qual abandonou a cena brevemente — até Pessoa ter iniciado o controverso relacionamento com Ofélia Queiroz —, publicou textos nas revistas Contemporanea, Athena e Presença, concedeu uma entrevista em 1925 acerca da situação da Inglaterra, da Europa e de Portugal, escreveu o mais conseguido poema português do século XX, Tabacaria, redigiu as Notas para a recordação do

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pioneiro dos organizadores, em relação aos quais a cultura portuguesa estará sempre em dívida pela forma como promoveram a estética pessoana, “pecava”, todavia, por patentes erros de leituras, por algumas graves omissões de partes julgadas inconvenientes e por “um critério pragmático mas discutível de preferir a versão inicialmente escrita por Pessoa às suas revisões” (CASTRO, 1993, p. 43), que tinha a cativante prerrogativa de ser geralmente a mais clara e legível. Não obstante os limites e as repetidas negligências imputáveis à dupla Montalvor-Simões se tornarem, em época mais recente, cristalinos para todos, alertando posteriores investigadores acerca das coordenadas do caminho a não percorrer (isso aconteceu infelizmente só após 1979, ano em que o espólio do escritor foi adquirido pelo Estado e transferido para a Biblioteca Nacional de Portugal), temos de registar outras páginas controversas relativamente à bibliografia das edições da poesia pessoana. Um exemplo, entre os mais estrondosos, talvez seja um artigo assinado por Teresa Rita Lopes na revista Colóquio-Letras nº 125/126 de Julho/Dezembro de 1992, acutilante e avassaladora recensão dirigida à publicação da primeira edição crítico-genética, jamais tentada em Portugal, de um conjunto de escritos de Fernando Pessoa. Mais concretamente, o alvo das suas violentas invectivas foi o trabalho de organização e fixação de textos poéticos de Álvaro de Campos, concluído em 1990, por Cleonice Berardinelli, com o apoio do “Grupo de Trabalho para o Estudo do Espólio e Edição Crítica da Obra Completa de Fernando Pessoa”, mormente conhecido por Equipa Pessoa.

meu mestre Caeiro — enquanto Pessoa compunha alguns dos trechos mais majestosos do Livro do Desasocego —, e, morto Caeiro, exilado Reis, desvanecido o filósofo António Mora, tornou-se, sem dúvida, a presença mais viva, constante e interveniente do drama em gente, o heterónimo mais representado nas Ficções do Iinterlúdio ideadas por Pessoa (no plano de publicação das obras heterónimas) é o participante mais importante de um Congresso que faria parte dessas ficções, congresso ou colóquio que abriria com o Ultimatum de Campos aos mandarins da Europa e seria encerrado com uma resposta deste heterónimo à teoria da arte de Ricardo Reis.

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Sem pretender entrar nos detalhes das polémicas inauguradas pela análise da autora de livros como Fernando Pessoa et le drame symboliste - héritage et création e Pessoa por Conhecer I, a tese que nos arriscamos a formular, longe de ser uma ulterior e desnecessária defesa prestada ao universo das orientações editoriais dos responsáveis do volume impresso pela INCM, limitar-se-á a um curto relatório de pendor historiográfico de algumas das questões mais escaldantes e paradigmáticas da antiga querela filológico-literária que se estendeu também a Álvaro de Campos – Livros de Versos (Estampa, 1993), onde Lopes repropõe, na íntegra, no espaço destinado à apresentação do volume, a mesma intervenção corrosiva de 1992 e o mesmo título: A Crítica da edição Crítica3. Quanto aos ataques à deontologia profissional de Cleonice Berardinelli, esses começam bem cedo, quando em rápidas passagens lhe atribui os excessos de “separar em vários poemas diferentes partes de um mesmo monólogo” e de “refazer a partir de fragmentos soltos alguns dos poemas extensos do primeiro Campos”. Teresa Rita Lopes sente-se revoltada pois julga que “não nos compete a nós – subentende os editores – fazer colagens (como faz a Edição Crítica) com os fragmentos e esboços que o Poeta deixou, a fim de realizar a ‘grande ode’ que ele não compôs” (LOPES, 1993, p. 19) e animada por um autêntico desgosto, falará abertamente na página 23 (201, para quem confere a versão em papel químico da introdução guardada em Colóquio-Letras) de “operações cirúrgicas”,

3

Uma terceira versão deste artigo sairá quase 10 anos mais tarde (com poucas e irrelevantes alterações) “anexada” a um outro volume antológico de versos de Álvaro de campos: Álvaro de Campos, Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002. Neste livro, a investigadora pessoana decide “cindir” o seu antigo texto em duas partes originando assim um prefácio e um posfácio. Tal como a colectânea publicada por Estampa, a edição de Assírio e Alvim colige 245 textos. Se aqui desaparecem alguns incluídos na edição de 1993, no seu lugar encontramos 3 inéditos, cuja descoberta se deve ao trabalho de pesquisa de Richard Zenith. Os poemas identificáveis pelos respectivos primeiros versos são os seguintes: “Que imperador tem o direito” (pp. 157159); “Perto da minha porta” (pp. 229-230) e “Usas um vestido” (p. 376377).

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“esquartejamentos” sofridos pelos textos do heterónimo engenheiro e de um desejo perverso do editor de se substituir ao autor. As razões de tanto alarmismo encontram-se na recusa que Teresa Rita Lopes manifesta, da assunção sistemática e a seu ver inapropriada, das variantes de autor por conta dos responsáveis da Edição Crítica grifada INCM. Todo o capítulo 2.1 de Álvaro de Campos – livros de versos roda à volta desta disputa. Foca-se a confusão que, nas opiniões da sua organizadora, Cleonice Berardinelli terá produzido por causa do acolhimento do padrão teórico concertado pela Equipa Pessoa. De facto, Lopes está convicta que para um leitor prevenido, isto é, competente, é “repugnante” ter de lidar com um “rótulo de variante de tão diferentes casos” (LOPES, 1993, p. 22). A confusão dependeria do lugar atribuído às variantes do autor que “não figuram em pé de página, tendo sido automaticamente integradas no texto, substituindo a(s) palavra(s) da linha corrida que Pessoa pôs em causa mas não recusou porque não riscou” (LOPES, 1993, p. 23). Deixa-a atónita constatar que “no Aparato de rodapé aparecem, como “variantes” à mistura com os verdadeiros erros cometidos pelos editores, as honestas leituras do texto corrido que Pessoa nunca riscou e que os ditos editores – refere-se à Ática e à brasileira Aguilar – acertadamente fixaram” (LOPES, 1993, p. 19). Na verdade, aqui há realmente uma confusão, mas não criada pelos responsáveis da ostracizada edição: a confusão instala-se ao trocar os significados de variantes de autor com variantes de tradição e vice-versa, como Lopes fez. Como ensina a moderna crítica textual, as variantes do autor “estão no testemunho, cabendo ao editor observá-las e transcrevê-las para um dos lugares que lhes estão reservados numa edição críticogenética: o texto crítico ou o aparato genético” (CASTRO, 1993, p. 57) enquanto as variantes de tradição são aquelas produzidas durante a transmissão de um texto, cabendo ao crítico seleccionar “aquela que, em seu entender, mais próxima está do original e a integra no texto crítico, […] deixando assim evidentes todos os elementos da sua decisão, para revisão por parte do leitor” (CASTRO, 1993, p. 54). Estas últimas, relembra Cleonice Berardinelli, “mais não são que os erros introduzidos no texto pelas edições posteriores” (Ática e Aguilar, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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quase sempre coincidente com a primeira nas divergências e com a Antologia de Fernando Pessoa estabelecidas por Casais Monteiro) que foram postos em rodapé no volume da Série Maior4. Integrá-las ou não, demarca a linha de separação que existe entre uma edição críticogenética e uma outra que nunca o será5. Se uma edição “chama-se crítica quando resulta de uma dúvida metódica em relação às condições existentes de um determinado texto e de uma inquirição aos seus testemunhos mais autorizados, feita de fresco e sem restrições” (BERARDINELLI, 1993, p. 43), Teresa Rita Lopes, em 1993, parece então afastar-se desses princípios não admitindo nenhuma hesitação ao agrupar, em três blocos distintos, as múltiplas folhas (15) que constituem a extensíssima Passagem das horas. Também rejeita a subdivisão em dois grandes acervos do mesmo poema efectuada por Cleonice Berardinelli. Contudo, a nosso ver, Lopes soube emendar as colagens efectuadas por Cleonice Berardinelli questionando a subdivisão em dois grandes acervos do mesmo poema e evitou a tentação de dar à ode uma estrutura semelhante à da Ode Maritima, “com um ritmo crescente, encantatório mesmo, até atingir o clímax – o seu meio-dia – decrescendo depois até ao seu crepúsculo e à sua diluição na noite” (LOPES, 2013, p. 622). Enfim, Lopes soube identificar bem os principais blocos líricos desta composição poética:

4

Cf. BERARDINELLI, Cleonice. Consertando desconcertos, in AA. VV. Defesa da Edição Crítica de Fernando Pessoa, p. 13.

5

«Há uma diferença fundamental entre a técnica de publicar inéditos e a edição crítica: aquela considera cada manuscrito como um indivíduo, que decifra, identifica, transcreve e publica, quer diplomaticamente, se lhe conservar todas as características gráficas, quer modernizadamente; a edição crítica, pelo contrário, reduz a um único texto vários manuscritos, naquilo que eles têm de igual ou equivalente, valorizando apenas as variantes que em alguns pontos os separam. Sucederá, assim, que um manuscrito inédito, ao ser diluído dentro do texto crítico, acabará por nunca beneficiar de uma publicação integral como a que lhe é dada pelo primeiro processo» (CASTRO, 1990, p. 32)

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(a) 70-15, 19 e 21r. Começa com um título (A Passagem das Horas, com o artigo «A») e o verso da última página, a 21, está em branco. Pode considerar-se um fragmento fechado. (b) 70-17 e 16. Começa com um título (A Passagem das Horas) e termina com um grande espaço em branco depois do último verso. (c) 70-13 e 14r. Começa com um título (Passagem das Horas, abreviado, sem o artigo «A») e termina com um grande espaço em branco depois do último verso. (d) 70-18r. Começa com um título (Passagem das Horas) e termina com um espaço em branco depois do último verso. (e) 70-20. Não tem título. A metade inferior do verso da folha ficou em branco. Estes textos dactilografados podem considerar-se complementados por dois manuscritos: (e) 66A-29r. Um manuscrito que poderá datar de 1915, quando o autor começou a conceber a Passagem. (f) 64-27. Outro manuscrito que será por volta de 1918 e que, tal como o anterior, está menos elaborado do que os cinco dactiloscritos já referidos. Um outro grande objecto de disputa foi a assemblagem de excertos que proporcionou as diferentes propostas editoriais do poema Saudação a Walt Whitman. A Saudação a Walt Whitman foi inicialmente publicada pela Ática (1944), cujos editores apresentaram uma versão da ode baseada num conjunto de folhas dactiloscritas numeradas pelos próprios. Cleonice Berardinelli tentou, anos mais tarde (1990, 1999), a reconstrução da ode, partindo fundamentalmente de dois esquemas manuscritos de Pessoa em que o autor projectou a organização do poema (71-11r e 71-2). Teresa Rita Lopes6 não concedeu a estes esquemas validade suficiente para uma tentativa de unificação dos diversos fragmentos de Saudação a Walt Whitman e, na sua proposta de organização evitou colar uns versos a outros; mas esqueceu-se de

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in: LOPES, T. R. Álvaro de Campos – Livro de Versos (Edição Crítica). Lisboa: Editorial Estampa, 1993.

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que estas sinopses podiam servir, não para criar um todo inexistente, mas para articular melhor as partes de um todo intuído e projectado. Agora vale a pena recuar um pouco até ao capítulo 2.2 da introdução (são as páginas 209 e 210 de Colóquio-Letras) onde o discurso recai sobre os “maus tratos” reservados a um outro célebre poema de Álvaro de Campos vindo à luz com as primeiras circulações da vulgata. As gerações recentes de pessoanos ainda atentos ao respeito pela ortografia do autor, conhecem-no com o título Dois Excerptos de Odes e o subtítulo posto entre parênteses Fins de Duas Odes, Naturalmente. Conforme assevera Teresa Rita Lopes, “o leitor que tenha este maravilhoso poema na memória, pelo menos passagens, passará do espanto à indignação ao sentir-se despossuído de um dos mais belos textos escritos em língua portuguesa” (LOPES, 1993, p. 33), porque é “evidente que não pode ser verdade a versão que a EC – acrónimo para Edição Crítica estabelecida por Berardinelli – propõe” (LOPES, 1993, p. 33). O que mais indigna Lopes é Berardinelli ter privilegiado um papel de que o escritor “se serviu para aí esgaratujar posteriormente textos e planos” (LOPES, 1993, p. 34) e não um documento considerado “a versão passada a limpo por Pessoa”, isto é, o texto publicado postumamente na Revista de Portugal, n. 4, Julho de 1938, seguido pela própria e pelos editores da Ática do volume Poesia de Álvaro de Campos. O “pomo da discórdia” é um testemunho integral dactilografado do poema (incorpora 149 versos, 7 mais do que o texto fixado por Lopes) que Cleonice Berardinelli, no aparato crítico da edição Maior, chama de γ (anexo 3), correspondente às cotas 70-3 e 4 do espólio 3 da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP/E3). Deste poema existem, no total, quatro testemunhos: dois parciais e dois completos. Parciais são A (70-1), que contém os versos 79-109, e B (70-2), que contém os versos 110-149. O testemunho B ostenta a data «30-6-1914», dactilografada a tinta vermelha no canto superior direito do rosto da folha. Cleonice Berardinelli indica que o testemunho A está numa folha com marca-d’água almaço, tal como os suportes que receberam as cotas 71-40 a 71-44. Ainda existem, como dito, dois testemunhos integrais, C (Revista de Portugal, nº 4) e D (70-3 e 4), sendo que Berardinelli optou por D e os editores da Ática por C, tal como Lopes, que em 1993 criticou duramente Berardinelli GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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por não ter estabelecido o texto de Dois excerptos de Odes partindo de C. A nosso ver, essa crítica faz e fez pouco sentido, pois D incorpora lições de B (v. 136) e C (v. 109), tem versos que faltam na Revista de Portugal (e portanto em Lopes) e Berardinelli argumenta, e é muito provável, que o testemunho D seja posterior ao C. Lopes gosta mais dos versos 93-99 na edição da Ática, mas essa é uma questão de gosto que não devia originar maiores desacordos. No pleno respeito por um dos princípios basilares da crítica textual moderna, segundo o qual o primeiro trabalho do editor consiste em ordenar um corpus de uma obra cronologicamente, e “em encontrar o fio que relaciona os diversos testemunhos de cada texto” (CASTRO, 1990, p. 48), a investigadora brasileira alicerça a sua preferência por esse testemunho após uma colação de outros dois autógrafos dactilografados, provindos do mesmo espólio. Refiro-me a duas lições com apenas segmentos parciais de poemas, diferentemente do que se constata em γ, versão integral do texto: α7 (70-1rv) [anexo 1] e β (702rv) [anexo 2]. Sinceramente deixa-nos muito perplexos a abordagem teórica e a observação material de Teresa Rita Lopes acerca dos encimados documentos quando considera falsa a afirmação sustentada por Cleonice Berardinelli, isto é, que γ incorpora alterações presentes nos outros dois, negando a existência de correcções autorais em α e atribuindo só uma a β; De facto quer α,quer β, apresentam duas emendas bem visíveis que foram recolhidas por γ, respectivamente nos vv. 99 e 108 (cf. Anexo com Anexo 3) e nos vv. 136 e 149 (cf. Anexo 2 com Anexo 3). Mais: os vv. 109 e 113 comprovam que α8 (cf. Anexo

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Ambos os testemunhos α e γ apresentam, na margem superior da folha, a data 30-6-1914 (dactilografada a tinta vermelha em α e manuscrita a lápis em γ). Numa perspectiva bio-bibliográfica, o pormenor do ano reenvia a uma sucessão de primados concomitantes: Pessoa em Fevereiro, publica na revista A Renascença (número único), os poemas Pauis e O Sino da Minha Aldeia; é de 4 de Março o primeiro poema datado de Alberto Caeiro; são de 12 de Junho as primeiras odes datadas de Ricardo Reis.

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Temos de assinalar uma gralha cometida por Cleonice Berardinelli na página 394 da série Maior da do volume das poesia de Álvaro de Campos. Na nota relativa ao vv. 109, faz uma troca involuntária entre as letras gregas

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1 com Anexo 3) e β (cf. Anexo 2 com Anexo 3) passaram lições a γ que só numa fase posterior foi modificado. Perante todos estes dados, e pelo aparecimento de outras palavras no v. 108, não detectáveis em α, parece patente que γ não é senão um “descendente” dos outros dois e um “avanço” na cadeia genética da obra. Na ausência de outros testemunhos manuscritos (não é de excluir que um dia poderão aparecer outros) e em acordo com um axioma largamente partilhado ou partilhável entre filólogos mais e melhor envolvidos em projectos de edições crítico-genéticas, “na quase totalidade do texto de Pessoa, o trabalho do editor consiste em reproduzir diplomaticamente a mais recente versão autógrafa e, na falta de autógrafos, a mais recente edição contemporânea do poeta ou, na falta desta, a mais antiga edição póstuma” (CASTRO, 1990, p. 52), achar que γ deve servir de base à edição relativamente ao poema examinado é a única escolha fiável. Uma escolha que Teresa Rita Lopes ainda hoje descartaria (é o nosso receio), porque para ela “um texto manuscrito é um objecto fechado, produzido num momento inspirado e, em momentos separados, ornamentados com variantes que nele não entram mas se destinam apenas a ser tomadas em consideração numa eventual reescrita do texto” (CASTRO, 1993, p. 71). No nosso entendimento, pelo contrário, todos os textos, sobretudo inéditos, manifestam a exigência de “ser conformados com o universo textual preexistente”, dado que “a sua decifração é validada pela integração num quadro de estruturas linguísticas e lexicais emanado dos textos anteriormente conhecidos” (CASTRO, 1993, p. 97). Nomeadamente, no ensaio Storia della tradizione e critica del testo, Giorgio Pasquali sublinha a necessidade de que as operações de mera crítica textual sejam precedidas e suportadas por um aprofundado estudo histórico da tradição textual, que não considere os distintos testemunhos apenas sob o aspecto de siglas ou de simples “depositórios de textos”; ao invés, é oportuno vasculhar minuciosamente cada manuscrito, não esquecendo de observar a α e β pelo que a variante autoral “a lua começa a ser real” está registada em β quando na realidade pertence ao testemunho α.

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individualidade histórica do texto considerado. A forma através da qual um texto chegou até nós é, por outras palavras, extremamente relevante para compreender a natureza daquele texto. Enquanto promove a importância do detalhe genealógico, Pasquali denuncia toda uma série de problemas que o método lachmanniano não é capaz de resolver, por não ter em conta variáveis como a recensão aberta, a contaminação e as variantes de autor. Recensão aberta: nem sempre a reconstrução do stemma codicum permite uma adequada selecção das lições: se estivermos a examinar uma recensão aberta ou horizontal, isto é, se a inteira tradição não provir de só um arquétipo, é preciso recorrer a instrumentos correctivos baseados em critérios internos, ou seja, avaliando entre diversas lições, as que aderem maioritariamente ao usus scribendi do autor e a lectio difficilior. Contaminação: fenómeno frequente que se verifica quando um testemunho contém erros conjuntivos que o assemelham a mais famílias (no stemma tem a peculiaridade gráfica duma linha tracejado). Isto origina-se porque muitas vezes nos scriptoria um códice copiado era corrigido ou, em caso de lacunas, “preenchido” mediante o confronto com a lição de um outro manuscrito da mesma obra. Este fenómeno perturba a “mecanicidade” das ligações genealógicas e para o método de Lachmann constitui um grande problema. Daí o pressuposto de considerar que cada testemunho tem a sua história. Variantes de autor: é possível (como vimos abundantemente em Pessoa) que o próprio autor altere a sua obra. É o caso, por exemplo, da tornada, a última estrofe dedicatória, que o poeta, por vezes, modifica segundo o tipo de público a que se dirige. Por isso, também o texto do autor se encontra em movimento, aspecto que representa uma nova complicação para o método lachmanniano. No fundo, Pasquali não dirige as suas críticas contra o método de Lachmann em si (Pasquali nunca tira ao método a sua utilidade quando se trata de dar uma ordem lógico-racional aos dados possuídos), mas contesta que se possa aplicar rigidamente em qualquer situação. Daí a imprescindibilidade de conhecer a história de cada um dos manuscritos, a tradição da sua recensio. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Embora as linhas guia da crítica textual e da crítica literária sigam divergentes microcosmos de nomenclatura e intentos, as conclusões proferidas por Pasquali não me parecem ser totalmente inconciliáveis com o seguinte princípio que, quer na visão de Pessoa quer na de T.S. Eliot, é assumido como imprescindível numa óptica de estética modernista: recuperar e reunir, integrando-os em contextos actuais, conteúdos de pensamentos éticos, morais, religiosos e estéticos, pertencentes ao património da Tradição, quase sempre entendida por engano como alguma coisa de estático, caduco e obsoleto, ou como a rota oposta ao caminho que leva ao novo e ao original, e que ao invés representa a plataforma de onde se parte para alcançar o novo por conhecer9. Essa posição justifica-se constatando que, como Eliot declarará em dois textos capitais, “se o nosso problema é construir o futuro, nós somente podemos fazê-lo a partir de materiais do passado; devemos usar a nossa hereditariedade, ao invés de negá-la” (ELIOT, 1936, p. 80) porque “ao perder de vista a tradição, nós perdemos o contacto com o presente” (ELIOT, 1936, p. 62). Transferida para o domínio da crítica textual, aplicada ao estudo da obra poética de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, esta reflexão apela ao confronto dialógico aberto entre edições, enquanto premissa necessária para o conhecimento mais fecundo com ambição de acabamento, sendo que nenhum editor se pode arrogar o direito de fixação final da fragmentação dos poemas, devendo sempre atender à verdade – quase sempre inconclusa – dos textos e às escolhas perfectíveis dos editores.

9

Cf., DAUNT, R. T.S. Eliot e Fernando Pessoa: Diálogos de New Haven. Sao Paulo: Landy Editora, 2004, p. 61.

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Anexo 2

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Anexo 3

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Anexo 4 [BNP/E3; 70 – 3 e 4] Dois excerptos de ODES de Alvaro de Campos: (fins de duas odes, naturalmente). I ………………………………………………………. Vem, Noite antiquissima e identica, Noite Rainha nascida desthronada, Noite egual por dentro ao silencio, Noite Com as estrellas lantejoulas rapidas No teu vestido franjado de Infinito. Vem, vagamente, Vem, levemente, Vem sósinha, solemne, com as mãos cahidas Ao teu lado, vem E traz os montes longinquos para ao pé das arvores proximas, Funde n’um campo teu todos os campos que vejo, Faze da montanha um blóco só do teu corpo, Apaga-lhe todas as differenças que de longe vejo de dia, Todas as estradas que a sobem, Todas as varias arvores que a fazem verde-escuro ao longe, Todas as casas brancas e com fumo entre as arvores, E deixa só uma luz e outra luz e mais outra, Na distancia imprecisa e vagamente perturbadora, Na distancia subitamente impossivel de percorrer. Nossa Senhora Das cousas impossiveis que procuramos em vão, Dos sonhos que veem ter comnosco ao crepusculo, á janella, Dos propositos que nos acariciam Nos grandes terraços dos hoteis cosmopolitas sobre o mar, Ao som europeu das musicas e das vozes longe e perto, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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E que dóem por sabermos que nunca os realisaremos. Vem e embala-nos, Vem e afaga-nos, Beija-nos silenciosamente na fronte, Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam Senão por uma differença na alma E um vago soluço partindo misericordiosamente Do antiquissimo de nós Onde teem raiz todas essas arvores de maravilha Cujos fructos são os sonhos que afagamos e amamos Porque os sabemos fóra de relação com o que pode haver na vida. Vem solemnissima, Solemnissima e cheia De uma occulta vontade de soluçar, Talvez porque a alma é grande e a vida pequena, E todos os gestos não sahem do nosso corpo, E só alcançamos onde o nosso braço chega E só vemos até onde chega o nosso olhar. [3v] Vem, dolorosa, Mater-Dolorosa das Angustias dos Timidos, Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados, Mão fresca sobre a testa-em-febre dos Humildes, Sabôr de agua da fonte sobre os labios seccos dos Cançados. Vem, lá do fundo Do horizonte livido, Vem e arranca-me Do solo da angustia onde vicejo, Do solo de inquietação e vida-de-mais e falsas-sensações D’onde naturalmente nasci. Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido, E entre hervas altas malmequer ensobrado, Folha a folha lê em mim não sei que sina, E desfolha-me para teu agrado, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Para teu agrado silencioso e fresco. Uma folha de mim lança para o Norte, Onde estão as cidades de Hoje cujo ruido amei como a um corpo. Outra folha de mim lança para o Sul Onde estão os mares e as aventuras que se sonham. Outra folha minha atira ao Occidente, Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o futuro, E ha ruidos de grandes machinas e grandes desertos rochosos Onde as almas se tornam selvagens e a moral não chega. E a outra, as outras, todas as outras folhas — Ó occulto tocar-a-rebate dentro em minha alma! — Atira ao Oriente, Ao Oriente, d’onde vem tudo, o dia e a fé, Ao Oriente pomposo e fanatico e quente, Ao Oriente excessivo que eu nunca verei, Ao Oriente buddhista, brahmanista, shintoista, Ao Oriente que é tudo o que nós não temos, Que é tudo o que nós não somos, Ao Oriente onde — quem sabe? — Christo talvez ainda hoje viva, Onde Deus talvez exista com corpo e mandando tudo… Vem sobre os mares, Sobre os mares maiores, Sobre o mar sem horizontes precisos, Vem e passa a mão sobre o seu dorso de féra, E acalma-o mysteriosamente, Ó domadora hypnotica das cousas que se agitam muito! Vem cuidadosa, Vem maternal, Pé ante pé enfermeira antiquissima, que te sentaste Á cabeceira dos deuses das fés já perdidas, e que viste nascer Jehovah e Jupiter, E sorriste, porque tudo te é falso, salvo a treva e o silencio, E o grande Espaço Mysterioso para além d’elles… [4r] Vem, Noite silenciosa e extatica, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Vem envolver no teu manto leve O meu coração… Serenamente como uma briza na tarde lenta, Tranquillamente como um gesto materno afagando, Com as estrellas luzindo (ó Mascarada do Além!) Pó de ouro no teu cabello negro, E o quarto minguante máscara mysteriosa sobre a tua face10.

108 109

Todos os sons sôam de outra maneira Quando tu vens. Quando tu entras baixam todas as vozes. Ninguem te vê entrar. Ninguem sabe quando entraste, Senão de repente, vendo que tudo se fecha, Que tudo perde as arestas e as côres, E que no alto céu ainda claramente azul e branco no horizonte, Já crescente nitido, ou circulo amarellento, ou mera esparsa brancura11, A lua começa o seu dia12. II

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Ah o crepusculo, o cahir da noite, o acender das luzes nas grandes cidades, E a mão de mysterio que abafa o bulicio, E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe Para uma sensação exacta e activa13 da Vida! Cada rua é um canal de uma Veneza de tedios E que mysterioso o fundo unanime das ruas, Das ruas ao cahir da noite, ó Cesario Verde, ó Mestre, Ó do «Sentimento de um Occidental»!

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α E a lua mysteriosa sobre a tua face

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α Já crescente nitido, [↑ ou] circulo branco, [↑ ou] mera luz nova que vem,

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α A lua começa a ser real. γ A lua começa [↑ o seu dia.]

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β exacta e precisa e activa γ exacta e activa

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Que inquietação profunda, que desejo de outras cousas, Que nem são paizes, nem momentos, nem vidas, Que desejo talvez de outros modos de estados de alma Humedece interiormente o instante lento e longinquo! Um horror somnambulo entre luzes que se accendem, Um pavor terno e liquido, encostado ás esquinas Como um mendigo de sensações impossiveis Que não sabe quem lh’as possa dar… Quando eu morrer, Quando eu me fôr, hirto e differente como toda a gente, Ignobil por fóra, e por dentro quem sabe que outro-ser, Por aquelle caminho cuja idéa se não pode encarar de frente, Por aquella porta a que, se pudessemos assomar, não assomariamos, Para aquelle porto que o Capitão do Navio não conhece — Seja por esta hora condigna dos tedios que tive, v [4 ] Por esta hora mystica e espiritual e antiquissima, Por esta hora em que talvez, ha muito mais tempo do que parece, Platão, sonhando, viu a idéa de Deus 136 Esculpir corpo e existencia nitidamente plausivel14 Dentro do seu pensamento exteriorisado como um campo. Seja por esta hora que me leveis a enterrar, Por esta hora que eu não sei como viver, Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho, Por esta hora cuja misericordia é torturada e excessiva, Cujas sombras veem de qualquér cousa que não as cousas, Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensivel Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar. Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que não tenho nem quero

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β [←Esculpir] corpo e existencia nitidamente plausivel

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ter, Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silencio, A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas, Olha-me em silencio e em segredo e pergunta a ti-propria — Tu que me conheces — quem eu sou…15 ÁLVARO DE CAMPOS: DOUBTS AND QUESTIONS OF METHOD ABSTRACT: Through an in depth analysis of several textes from Fernando Pessoa's archive, we aim at illustrating a typical problem of textual criticism with relation to the organization of excerpts as well as the implementation of methodological criteria in this field, comparing the principal critical editions of the poetical work of the heteronym Álvaro de Campos, from 1944 up to date. In particular, the basis for confrontation and reflection will be constituted by different and possible answers of the poem composed in 1914, Dois excerptos de odes. The goal is to suggest a publication of Pessoa based on the theories of both, Giorgio Pasquali and T.S. Elliot. In our conclusions we will, hence, call for an open dialogue between traditions and editions as the fundamental premise of the most fertile knowledge, given that no editor may arrogate the right of the final organization of poetical excerpts, with the need to adhere always to the truth- almost always inconclusive- of rectifiable texts and choices of editors. Keywords: Fernando Pessoa. Álvaro de Campos.Critical Edition. Dois excerptos de Odes. Giorgio Pasquali.

REFERÊNCIAS BERARDINELLI, C. Consertando desconcertos. In: Berardinelli, C.; Castro I. Defesa da Edição Crítica de Fernando Pessoa, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993.

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β – Tu que me conheces – quem eu sou…

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CASTRO, I. Intenções finais e mais intenções. In: Berardinelli, C.; Castro I. Defesa da Edição Crítica de Fernando Pessoa, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1993. __________. Editar Pessoa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Edição Crítica de Fernando Pessoa, Colecção «Estudos», vol. I, 1990. DAUNT, R. T.S. Eliot e Fernando Pessoa: Diálogos de New Haven. Sao Paulo: Landy Editora, 2004. ELIOT, T. S. The humanism of Irwing Babbitt. In: Essays ancient and modern. London: Faber and Faber, 1936. __________. The possibility of a poetic drama. In: The sacred wood. Essays on poetry and criticism. New York: Barnes and Noble, 1928. PESSOA, F. Álvaro de Campos – Poesia. Edição de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, 2.ª edição. _________. Álvaro de Campos, Poesia. Edição de Teresa Rita Lopes. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. _________. Poemas de Álvaro de Campos. Edição de Cleonice Berardinelli. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Maior, vol. II, 1990. _________. Poemas de Álvaro de Campos. Edição de Cleonice Berardinelli. Lis-boa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Edição Crítica de Fernando Pessoa, Série Menor, vol. I, 1992. LOPES, T. R. Álvaro de Campos – Livro de Versos (Edição Crítica). Lisboa: Editorial Estampa, 1993. BIBLIOGRAFIA PESSOA, F. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1944. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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ÁLVARO DE CAMPOS: AS DISPOSIÇÕES DO POETA NA ODE MARÍTIMA Pablo Javier Pérez López 1 Filipa Freitas 2 RESUMO: O objectivo deste ensaio prende-se com uma nova leitura da Ode Marítima de Álvaro de Campos, à luz da tese sobre a natureza ilimitada do poeta, revelada na procura exponencial de possibilidades que assinala a paixão pela totalidade da vida. Autores como Whitman, Keats e Emerson chamam a atenção para o facto de o poeta ser, na sua condição poética, continuamente permeável à rotatividade das possibilidades da vida como modo de constituição da sua própria natureza ontológica. Assim, pretende-se evidenciar que a Ode Marítima é um exemplo dessa procura inesgotável do poeta, patente na interpretação das disposições que ilustram o funcionamento da relação sujeito-mundo. Trata-se, então, de analisar o conteúdo disposicional do poeta na sua paixão pela vida e as variadas formas desse intercâmbio. Esta leitura permite constatar a complexidade do alfabeto disposicional da natureza humana e a sua íntima relação com a percepção do mundo, salientando a particularidade do ponto de vista do poeta, que assenta na multiplicidade da própria vida. Mas este ponto de vista levanta alguns problemas a propósito da sua viabilidade, na medida em que se afasta dos parâmetros comuns em direcção a uma infinitude que o sujeito, na sua irremediável finitude, parece não conseguir abranger. PALAVRAS-CHAVE: Poeta. Disposição. Totalidade. Vida

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UNL – Universidade Nova de Lisboa. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Lisboa – Portugal. Avenida de Berna, 26-C / 1069-061 Lisboa [email protected]

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UNL – Universidade Nova de Lisboa. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Lisboa – Portugal. Avenida de Berna, 26-C / 1069-061 Lisboa [email protected]

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I celebrate myself, and sing myself, And what I assume you shall assume, For every atom belonging to me as good belongs to you. I loafe and invite my soul, I lean and loafe at my ease observing a spear of summer grass. My tongue, every atom of my blood, form’d from this soil, this air, Born here of parents born here from parents the same, and their parents the same, I, now thirty-seven years old in perfect health begin, Hoping to cease not till death. (Walt Whitman, 2007, p. 52) A Ode Marítima é um dos poemas mais longos e mais intensos de Álvaro de Campos. Com cerca de noventa estrofes, o poeta pretende assinalar o seu desejo de abranger a totalidade da vida marítima, através de descrições que desvelam a sua variedade disposicional. A circunscrição das disposições, com ou sem consciência do poeta - mas quase sempre ciente delas -, está intimamente associada à percepção do mundo. E, neste caso, mundo não se limita, apenas, ao visível, mas também ao que a memória e a imaginação apresentam. A análise que doravante realizo centra-se, portanto, na tentativa de compreensão das disposições em causa (e do que as caracteriza) e da relação do autor com o mundo marítimo. Este estudo tem um intento mais lato, que assinala, através desta Ode, mas presente noutros textos de Campos (e noutros autores poéticos), a paixão absoluta pela vida, numa dimensão que ultrapassa o mero desejo de existir em consonância com o mundo marítimo e com as possibilidades que ele abre, e que se relaciona intimamente com uma natureza ilimitada do poeta, que procura não somente uma identificação com elementos específicos que o seduzem, num apelo que a existência perpetuamente valida, mas uma permanente identificação com a totalidade da vida. Como Emerson assinala, «To the poet, to the philosopher, to the saint, all things are friendly and sacred, all events profitable, all days holy, all men divine» (Emerson, 1841). A Ode Marítima serve, então, o propósito de uma primeira clarificação do ponto de vista em causa, especialmente GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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radicado no alfabeto disposicional que caracteriza o autor, na medida em que é através daquele que se compreende a relação de afecção entre o sujeito e o mundo. Podemos dividir o poema em duas partes essenciais: a primeira caracterizada pela fúria da vida marítima com o desejo de totalidade implícito, e a segunda pela anulação deste êxtase. Perante estes dois pólos, identificarei as principais disposições presentes e o modo como se revelam na relação com a percepção e com a compreensão que o poeta tem de si próprio. A ordenação da Ode não é arbitrária, mas não sendo possível uma análise estrofe a estrofe, apontarei os elementos mais relevantes, seguindo a apresentação de Campos, de modo a clarificar a variação de perspectiva em causa. As duas primeiras estrofes da Ode funcionam como uma introdução do poeta e, como tal, menos marcadas por uma forte disposição. Enquanto descrição inicial, há uma serenidade curiosa que se desprende destes versos, e que acompanham um ligeiro contentamento pelo surgimento de determinados elementos. Esta serenidade é uma presença pouco assídua, e apenas vamos reencontrála no final do poema, também de forma muito breve. Na primeira estrofe, Campos elucida-nos a sua localização - no cais deserto, sozinho - e o tempo - uma manhã de verão. As coordenadas estabelecidas pressupõem a solidão do sujeito como condição imprescindível, como Rilke ilumina: «Só o indivíduo que está só é como uma coisa submetida às leis profundas e quando sai, ao despontar da manhã, ou contempla o entardecer tão cheio do que acontece, e quando sente o que aí se sente, despe-de da sua condição, como um morto, embora esteja pura e simplesmente no cerne da vida» (Rilke, 2002, p. 60). Nesta definição de coordenadas, prossegue imediatamente para aquilo que lhe chama a atenção e que é o ponto de partida para toda a descrição ulterior - a entrada de um paquete no cais, que corresponde à aproximação da manhã e ao despertar da vida marítima. Este paquete, apesar de ser o menos nítido no ambiente do poeta, não é só objecto de percepção imediata, mas relaciona-se com as condições que o envolvem: a Distância, a Manhã e a Hora. O paquete é esse paquete enquanto visível àquela distância, rodeado por aquela manhã e existindo naquela hora. A alteração destes pontos implica não uma GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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anulação do paquete, mas do paquete-como-visto, cujas coordenadas variáveis condicionam a sua apresentação ao olhar de Campos. Por outro lado, a aplicação das três condições parece remeter, pelo modo como Campos as indica, para a existência perpétua desses fenómenos incorporados em manifestações particulares para o poeta, i.e., a Distância na sua totalidade, naquele caso aparecida como determinada (logo parcial), a Manhã como fenómeno absoluto, e manifestado repetidamente ao longo dos dias, e a Hora, não só como instante, mas como aquela que comporta todos os momentos para além do presente – a eternidade. A consciência destas condições, do envolvimento do paquete e da sua representação, remetem, num momento, para algo como a náusea do espírito do poeta, que acompanha, por um lado, a consciência de uma aparente separação entre o que sente e o que vê, e, por outro, a consciência de que o mundo pode e afecta a sua gama disposicional. O avistamento do paquete leva Campos à compreensão de que o que está em causa não é o objecto em si, mas o que esse objecto representa, no sentido em que comporta novas possibilidades. Cada possibilidade expressa corresponde ao desconhecido para o poeta: o que está em cada pessoa que chega e parte do cais; que memórias e momentos estão registados de outros lugares nunca vistos, de outros cais, de outras pessoas, de outros portos. É, por conseguinte, o paquete um condutor de desconhecido e, como tal, de abertura de possibilidades. E na consciência deste mundo incógnito o poeta sente perturbação, medo, ameaça. A partida e a chegada ao porto representam algo “terrivelmente/Ameaçador de significações metafísicas” (Campos, 1915, p.131) . Através do desconhecido que estas possibilidades carregam, a determinação do sujeito fica em perigo, na medida em que pode ganhar uma nova dimensão existencial, aumentar, restringir ou alterar o seu conjunto de modos de ser. Perante a perturbação sentida, Campos estabelece, no início da estrofe, o auge: todo o cais suscita saudade. Trata-se da abertura de possibilidades que não fizeram parte do poeta e que, por isso mesmo, redundam em saudade do que não foi. Mas o olhar de Campos direcciona-se para a partida do navio que deixa um espaço entre si e o cais, constituindo este, agora, o horizonte visual que “desperta” Campos para outras disposições. O espaço entre a entidade que parte e GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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a que fica, numa espécie de preenchimento que falta, torna-se o ponto que é focado e que leva o poeta a sentir uma “angústia recente”, uma “névoa de sentimentos de tristeza” (Campos, 1915, p.132). O aparecimento destas disposições é repentino e substitui a saudade anterior, sem que seja clara a consciência do que realmente subjaz nesta alteração. O carácter repentino desta transição disposicional acompanha a variedade direccional do olhar do poeta e indicia, no reconhecimento que Campos afirma delas, a sua própria superficialidade, como um rodopio que abrange uma escala diversificada, mas cuja instituição de cada disposição não é mais do que momentânea - no presente. A própria descrição da tristeza é assinalada como névoa, portanto indeterminada. Mas é importante notar que há uma relação entre a angústia e a tristeza, por duas vezes indicada por Campos. A primeira pelo seguimento que o poeta revela, i.e, da angústia surgiu a tristeza, e a segunda pela ligação da última, novamente, à angústia, pois a névoa de tristeza “brilha ao sol das minhas angústias relvadas” (Campos, 1915, p.132). Parece esta indicar uma estreita relação entre as duas disposições, na medida em que é através da angústia que se ilumina a tristeza sentida. Por outro lado, a qualificação da angústia como “relvada” remete para uma intensificação da disposição, um preenchimento dela, talvez sugerindo uma complexidade, quiçá profundidade que o reconhecimento prévio anula enquanto sentida no imediato. A clarificação do seu estado, mesmo que superficial, é acentuada pela comparação que o verso seguinte contém: “Como a primeira janela onde a madrugada bate” (Campos, 1915, p.132). Há, portanto, uma passagem do que estava velado para o que é agora evidente. Mas esta percepção não é transparente, pois acciona relações com Outro que o poeta desconhece e que podia ser ele, mas não é para além desse reconhecimento de possibilidade. A clarificação do que sucede que “o envolve como uma recordação duma outra pessôa/Que fôsse misteriosamente minha” (Campos, 1915, p.132) revela esta dualidade: a clareza é parcial e só abarca, por um lado, o conteúdo disposicional e, por outro, o aparecimento de possibilidades desconhecidas que continuam desconhecidas. O resultado efectivo da abertura do conjunto de possibilidades que cada chegada e partida humana proporcionam permanece na escuridão para o poeta. Na angústia e no medo deste GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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reconhecimento do enorme desconhecido que a viagem e o mundo comportam, Campos aventa a própria limitação do conhecimento que tem de si e do significado do seu presente. Ciente disto, ainda mais contribui para a sua ignorância o surgimento em si da descrição de um mundo hipotético que sustentasse a sua actualidade, um mundo platónico, a partir do qual tudo o mais seria réplica, numa tentativa de encontrar um sentido: “O Cais Absoluto por cujo modêlo inconscientemente imitado,/Insensivelmente evocado,/Nós os homens construímos/Os nossos cais nos nossos portos” (Campos, 1915, p.132). Estabelecido este outro mundo prévio àquele agora percepcionado por Campos, a perspectiva do seu viajante também se altera: se Campos agora observa estando no cais, o de outrora percepcionaria saindo do cais, numa posição oposta ao primeiro (aquele que está no porto aquele que se afasta do porto), vendo “Um grande cais cheio de pouca gente” (Campos, 1915, p.132), consciente de que esse cais não existe por si só, mas dentro “Duma grande cidade meio-desperta,/Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética” (Campos, 1915, p.132). A perspectiva é, então, crescente, no sentido em que não só está focada num determinado ambiente - o cais -, mas no envolvimento desse ambiente - a cidade -, ciente de que não é possível pensar a possibilidade fora das coordenadas espácio-temporais. A limitação do Poeta revela-lhe que a sua percepção do mundo condicionará sempre todas as suas criações. Para além desta inevitável apropriação do mundo enquanto relacionado com o Espaço e o Tempo, a descrição breve da Cidade-Outra é incisiva: meio-desperta, comercial, crescida, apoplética. Paralelo evidente com o que está presente à vista do poeta (a manhã, o início do movimento no cais, a cidade moderna das máquinas), também é curioso que o último adjectivo da cidade não seja, em princípio, arbitrário: apoplético, que tanto pode indiciar um carácter de irritabilidade quanto uma (ameaça de) suspensão de sensibilidade e movimento, sugerindo uma cidade num estado de indefinição e de incerteza, num limbo, suspensa entre dois pólos divergentes. A angústia que caracteriza esta possibilidade e que leva Campos à expansão deste modelo ideal também lhe permite constatar que a clarificação do mundo ocorre num instante, no aparecimento de um horizonte total das coisas, i.e., uma abertura repentina e imediata do que está no mundo, do perceptivo, da consciência num momento da GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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diversidade constitutiva desse horizonte, repleta de “Cousas-Reais, Espíritos-Cousas, Entidades em Pedra-Almas” (Campos, 1915, p.132). É a abertura súbita deste horizonte, que assenta numa visão da totalidade do mundo perceptivo num instante, numa passagem do nãovisto para o visto, um aumento de acuidade do ponto de vista, ou aumento de lucidez, “Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta/E, sem que nada se altere,/Tudo se revela diverso” (Campos, 1915, p.132). Não é o que está no mundo que sofre alterações, mas é a perspectiva, a interpretação do mundo que já não é igual, e, desse modo, a amplitude do ponto de vista, a claridade do que é visível, aumentam. Mas esta lucidez do poeta não lhe traz contentamento, mas ansiedade e angústia, perante a abertura de um novo desconhecido ainda mais assustador, que novamente acentua a sua limitação, através da emergência de dúvidas: “De que porto? Em que ágoas? E porque penso eu isto?” (Campos, 1915, p.132). Da consciência prévia do desconhecimento do Cais Absoluto, Campos retoma a visão do que está presente no imediato - o Caisréplica -, e do que a partir dele se proporciona. O cais à vista contém navios ancorados com “bulício a bordo” (Campos, 1915, p.133), que transportam gente de “alma errante e instável”, “que passa e com quem nada dura” (Campos, 1915, p.133). A variedade e mutação contínua serão os elementos que doravante despertarão a atenção do poeta, salientando o constante movimento de perspectiva entre as várias entidades visíveis - o cais e os navios - e menos visíveis - as pessoas a bordo, carregadas de possibilidades que se alargam com a própria acção de partida, numa instabilidade que Campos nomeia, e que ele próprio desejará, resumida no adjectivo “errante”, denunciador da condição apólida dos viajantes perpétuos. A permanente movimentação e consequente alteração do que existe é sublinhada no fim da estrofe, quando o poeta novamente redirecciona a atenção para o navio que regressa ao porto, no qual “Ha sempre qualquer alteração a bordo” (Campos, 1915, p.133). Do cais como imagem reflectida nas águas sem movimento, toda a estrofe está assente na contínua agitação de níveis espacialmente encaixados. O retomar do presente e das possibilidades que a viagem contém aumenta a ansiedade do poeta e a sua angústia da possibilidade, apesar do desejo que essa abertura desperta. De tal modo é notória a ânsia que o poeta assume logo no GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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primeiro verso: “Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!” (Campos, 1915, p.133). A viagem funciona, então, como uma fuga contínua do que está presente, do que se é, fuga do conhecido e familiar em direcção a outro horizonte, manifesto ainda pela embriaguez do diverso, já indício do que Campos posteriormente irá explorar na sua fúria de viver o mundo marítimo. A referência à partida do Navio que “larga do porto” (Campos, 1915, p.133) marca a transição para o poeta deixar de ver o que as entidades do mundo significam e passar para uma perspectiva das possibilidades para si, num estado de início de êxtase que as suas palavras marcam fortemente. Com o desejo de “Fluctuar como alma da vida, partir como voz” e “Viver o momento trémulamente sôbre ágoas eternas” (Campos, 1915, p.133), Campos mostra a sua vontade de experienciar o presente da navegação, num agora que não existe enquanto ponto fixo, tremulamente dividido entre o que foi e o que será, em transição perpétua, num em-formação temporal. De seguida, o fenómeno de acordar, o despertar repentino para um horizonte formado por “dias mais directos que os dias da Europa” (Campos, 1915, p.133) prende-se com a própria vivência de Campos, em que o arrastamento de si por horas que passam sem interesse, cheios apenas do vazio que o consome, contrastam com o desejo de vida - a avidez - que subjaz à própria fuga para o longínquo. Não é apenas a visualização do que é novo, inédito, mas a alteração da estrutura vivencial do poeta que, perante um novo horizonte de possibilidades que se abre com a viagem, pode ser realizada em direcção a algo que mais o familiarize com a existência, que o misture nela, que o preencha alheiamente. Esta noção do despertar para um novo estar no mundo intimamente se relaciona com a visão, a percepção dele, onde cabe “Vêr portos misteriosos sôbre a solidão do mar” (Campos, 1915, p.133), acentuação da eterna ida e vinda da navegação, em que o plural de porto remete para essa imparável viagem de exploração do desconhecido - da possibilidade -, complementado com a ideia de “Virar cabos longinqùos para súbitas vastas paisagens/Por inumeráveis encostas atónitas” (Campos, 1915, p.133), que anunciam a vastidão do desejo do poeta. A navegação é um instrumento que permite chegar a diferentes destinos, nunca parar, nunca permanecer, e estabelecer a existência como contínua transformação da experiência e do GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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percepcionado, anulando, assim, o fechamento de horizonte de possibilidades e a manifestação de familiaridade com o mundo perspectivado sempre diferente. Continuando a descrição do que seria a viagem, ou viagens, Campos refere agora a própria percepção variável do mundo com as suas entidades. Das “praias longinqùas, os cais vistos de longe” (Campos, 1915, p.133), de quem se aproxima do porto, passa-se para “as praias proximas, os cais vistos de perto” (Campos, 1915, p.133), na anulação da distância, no encurtamento do que é visível e do modo como é visível, assinalando nesta dualidade de perspectiva “o mistério de cada ida e de cada chegada” (Campos, 1915, p.133). Mistério que se sente na angústia perante “A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade/Dêste impossível universo” (Campos, 1915, p.133). Estamos, então, novamente, no ponto fulcral para o poeta: a consciência da diversidade e das possibilidades encerradas na última revela a ausência de sentidos subjacentes à multiplicidade, e a repetida impotência proporcionada por ela, que a vida marítima, pelos seus traços de contínua metamorfose, ainda mais evidencia. A familiaridade que a imersão no mundo suscita é anulada nesta via primordialmente vivida enquanto desfamiliarização no contacto permanente com a novidade. E na consciência desta condição aparentemente inabalável, irrompe o conflito entre o desejo do desconhecido e a incapacidade de entrever sentido nele, estendido por “extensões de mares diferentes com ilhas ao longe” e “ilhas longinqùas das costas deixadas passar” (Campos, 1915, p.133), intercaladas com a percepção do “crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente” (Campos, 1915, p.133). Temos novamente a multiplicação de planos de visualização, encaixados espacialmente entre si, num alargamento do campo visionado como uma abertura sequencial do envolvimento das entidades, mas inverso - do cais, plano alargado, passa-se para as casas, nele contidas e depois para as pessoas que habitam. A mudança de ponto de vista entre o perto e o longe é um modo de relacionamento com o mundo que atesta a sua diversidade, desejada e simultaneamente temida por Campos. Da visualização do que está presente, Campos envereda agora para a afectação que esse mundo novo causaria em si (ou num Outro), novamente iniciando a sua descrição por um contraste de chegada e GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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partida, cuja qualificação da manhã não parece despicienda: à chegada, “a frescura das manhãs”; à partida, “a palidez das manhãs” (Campos, 1915, p.133). A realização de uma possibilidade - a chegada a determinado lugar - comporta a clarificação dessa mesma possibilidade, agora já não hipótese mas acto, elucidando o alargamento do horizonte, perturbado novamente pela partida, que dissolve a limpidez da aquisição em prol da opacidade que o desconhecido sustenta. A clareza reduz-se no afastamento do familiar, mas não só esta clareza se manifesta como sintoma da fuga, pois esta está ligada a uma gama disposicional que o poeta revela, numa transição entre obstrução física e não-física. Assim, a partida do cais e do que tal implica sustenta-se como situação que permite ao poeta assinalar o que sente, “quando as nossas entranhas se arrepanham”, e surge uma “vaga sensação parecida com um mêdo” (Campos, 1915, p.133). Este medo é uma disposição primordial, pois é o Desconhecido que funciona aqui como impulsionador da disposição. Também não é apenas o medo de um sujeito X que se aventura e compreende as implicações temerosas dessa aventura, mas como o próprio Campos refere, é “O mêdo ancestral de se afastar e partir,/O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo” (Campos, 1915, p.133). É uma disposição primordial que assenta numa relação igualmente primordial, ou ancestral, com o mundo: o confronto com o que não se conhece, com o que não reside na área de familiaridade e conforto do quotidiano, dentro das possibilidades que constituem o horizonte de cada um. Este encontro em que a perspectiva é cega, pois carece de elementos que a possam constituir como algo concreto, mesmo que irreal, é provocador de sintomas que o medo corrobora ― “Encolhenos a pele e agonia-nos” (Campos, 1915, p.133) ― e que leva o sujeito a uma tentativa de escapar desse medo, procurando, para isso, o contacto com o familiar: “todo o nosso corpo angustiado sente,/Como se fôsse a nossa alma,/Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira” (Campos, 1915, p.133). A outra maneira, como Campos entende, só ocorre mediante a anulação do medo e a sua substituição por uma disposição menos repelente. No processo de procurar o caminho que liberte o sujeito do medo sentido, ocorre, por conseguinte, a urgência da sensação de imersão no mundo enquanto íntimo do sujeito e, perante a separação desse ambiente habitual, é a GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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saudade que desperta como resultado. Pergunta o poeta: “Uma saudade a qualquer cousa,/Uma perturbação de afeições a que vaga patria?/A que costa? a que navio? a que cais?” (Campos, 1915, p.133). E sem resposta a estas indagações, i.e, sem familiarização localizada em qualquer ponto espacial, sobra apenas, numa saudade que termina em desejo infrutífero, o vazio do apátrida. Assim, “adoece em nós o pensamento/E só fica um grande vácuo dentro de nós” (Campos, 1915, p.133). Este esvaziamento ou esta estranheza absoluta do mundo, apesar de o sujeito já lá estar imerso, implica, por sua vez, uma alteração disposicional relativa à prossecução da viagem e do desejo marítimo. Da euforia causada pelas possibilidades que se abriam e da ulterior consciência da dualidade entre o familiar e o estranho, a procura do Novo perde a sua intensidade, e transforma-se numa “ôca saciedade de minutos marítimos” (Campos, 1915, p.134), numa anulação do despertar prévio e numa nivelação do que está agora presente, mesmo como leque infinito de possibilidades. O desconhecido perde a sua atracção e o poeta esmorece numa “ansiedade vaga que seria tédio ou dôr” (Campos, 1915, p.134). Mas esta ansiedade não se torna nem tédio nem dor, pois não sabe ser nenhum, como o poeta ainda afirma, deixando a pairar, então, aquela vaga ansiedade de algo que não se alcança. Campos regressa, após esta revelação disposicional negativa, ao presente que o envolve, recaindo neste e nas sensações provocadas, na transição de um apagamento anterior para uma renovação do êxtase da avidez da vida, ulteriormente levado ao extremo. Neste momento, o “paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida” (Campos, 1915, p.134), mas a distância do paquete é impossível de determinar, e a sua aproximação deriva da interpretação da probabilidade e não da percepção. A alusão a esta discrepância entre o visto e o assumido como real tem pertinência para a função essencial da imaginação, que será o grande motor do transe de Campos. A imaginação constituirá, no poeta, o instrumento que lhe permitirá constatar a multiplicidade da vida, como Keats ilumina: I feel more and more every day, as my imagination strengthens, that I do not live in GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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this world alone but in a thousand worlds—No sooner am I alone than shapes of epic greatness are stationed around me, and serve my Spirit the office which is equivalent to a King’s bodyguard (...). According to my state of mind I am with Achilles shouting in the Trenches, or with Theocritus in the Vales of Sicily. Or I throw my whole being into Troilus. (Keats, 1925, p. 180) A ânsia de Campos nunca desaparece, especialmente evidente na sedução da vida marítima, como algo que faz parte do seu sistema e que o leva a ser incapaz de virar costas à interpretação dos sentidos das viagens. A ansiedade que anteriormente indicou espalha-se novamente na persistente recuperação de imagens suscitadas pelo conceito de viagem marítima: “as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!/Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!/As solidões marítimas” (Campos, 1915, p.134). Mais uma vez de uma perspectiva longe-perto-efeito disposicional, o poeta interpreta as possibilidades. A solidão a que se refere liga-se ao reconhecimento da pequenez de si comparada com aquilo que avista. A vastidão pode “pesar sôbre os nervos” (Campos, 1915, p.134) e anunciar o esvaziamento do poeta, pois “o mundo e o sabôr das coisas tornam-se um deserto dentro de nós” (Campos, 1915, p.134). Nesta percepção de vazio não só está presente a insignificância do homem, nulo perante algo como o oceano, mas particularmente a estranheza de tudo, de tal modo que a relação com o mundo é como um deserto e o sentido da existência perde-se. Mas se o oceano desperta este contraste, não é por isso que o poeta se afasta do intento: o desejo de abarcar a imensidão do mundo está constantemente presente, mesmo quando, ou talvez por essa consciência, reconhece o vácuo em si. Assim, prossegue no seu desejo de navegação absoluta: “Todos os mares, todos os estreitos, todas as baïas, todos os gôlfos,/Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!” (Campos, 1915, p.134). Do desejo de sentir tudo e morrer, como num ímpeto a recolha da totalidade da vida que após esse instante se pode apagar, permanecendo, assim, fixada, Campos introduz uma nova alteração e GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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dirige-se directamente às entidades, num pedido que já evidencia a mistura física como meio de pertença. Na frenética listagem de algumas peças do navio, Campos compreende que não é apenas um querer sentir em si cada uma separadamente, mas, ao invés, um amontoado de coisas indefinidas, novamente num instante, de repente, numa tentativa de totalidade fechada em unidade: “Caí, por mim dentro em montão, em monte,/Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!” (Campos, 1915, p.134). Num rompante de sensações, o poeta encontra na vida marítima o conteúdo que despoleta e o enriquece disposicionalmente, numa relação mais intensa de afectação entre si e o mundo, de tal modo que a invocação continua numa espécie de súplica e de ansiedade veemente: “Sêde vós o tesouro da minha avareza febril,/Sêde vós os frutos da árvore da minha imaginação,/Têma de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência” (Campos, 1915, p.134). Este conteúdo tem, por conseguinte, uma dupla função: enquanto matéria de preenchimento disposicional e enquanto matéria de inspiração discursiva. A preciosidade que é constituída está ligada intimamente a um apego extremo, a uma avareza, sintoma do seu desejo de nunca anular essa pertença, tudo num registo de exaltação quase doentia, onde o poeta pretende expandir a relação que estabelece com esse “tesouro”, tornando-o, para tal, matéria de transformação e de afirmação/fixação que a palavra confere, num deambular entre o que é visto, sentido e imaginado. Enquanto material de criação artística, a entidade pode ser, então, fornecedora de “metáforas, imagens, literatura” (Campos, 1915, p.135), como o poeta o faz, consciente e incidindo agora nesse facto, que o permite simultaneamente olhar-se a si mesmo, compreender a estrutura que o rege enquanto ser, de modo que mais uma vez aponta para si, iluminando a sua constituição: as sensações são como “um barco de quilha pró ar”, a imaginação como “uma âncora meio submersa”, a sempre presente ânsia como “um remo partido” e, por fim, a tessitura nervosa como “uma rêde a secar na praia” (Campos, 1915, p.135). Assim, o conteúdo do navio é, como o poeta assume, a fonte a partir da qual o poeta se vê, já não num desejo de querer aquilo que não tem, ou melhor, de ser aquilo que não é, mas do ponto de vista da qualificação de si a partir de elementos exteriores da vida marítima. A qualificação é pertinente: as sensações são como uma quilha GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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invertida, o que imediatamente aponta para o facto de a estrutura da sensação estar ao contrário do que é expectável, do mesmo modo que a quilha sustenta a estrutura do navio, virada para baixo; a imaginação é um campo de possibilidades, pois uma âncora meio submersa compreende a incapacidade de acesso à sua totalidade, do mesmo modo que a imaginação é uma estrutura aberta, no sentido em que o sujeito não sabe os seus limites nem o conteúdo que ali pode ser constituído; a ansiedade como um remo partido pode remeter para a presença contínua da disposição, na medida em que o facto de o remo não funcionar parece implicar uma fixação (dali não pode sair) e, de facto, é das disposições mais permanentes no poeta; por último, a tessitura nervosa enquanto rede a secar na praia parece mais vasto, uma vez que a tessitura refere-se à organização, o que assinala a disparidade disposicional que assalta Campos, pois a rede tem uma estrutura de fios entrelaçados que, estando na praia a secar, revelam o seu carácter não funcional, mais uma vez alertando para uma discrepância relativamente a uma qualquer ordem comum. A acompanhar o reconhecimento da sua estrutura invulgar e da ansiedade que se manifesta, Campos não consegue impedir o aparecimento da nostalgia, na sua procura do pertencente ao passado. Se, por um lado, o poeta deseja, enquanto totalidade, abarcar as mais diversas manifestações da vida marítima, por outro, este desejo assume feições nostálgicas quando há uma contraposição entre o presente percepcionado e o passado ausente. O significado do passado marítimo - dos veleiros e barcos de madeira - reveste-se do sentido do longínquo e do desconhecido de modo nítido, caracterizado como uma “vida melhor”, na qual o tempo e o horizonte de possibilidades são diferentes. Este desejo mais uma vez inconcretizável acentua a fúria de Campos - o desejo da totalidade - e a imaginação toma novamente o lugar preponderante, permitindo-lhe uma explosão cada vez mais violenta de manifestar e de desenvolver os seus desejos, perdendo-se num transe que anula a sua relação consciente com o imediato. Campos afirma a força do chamamento da vida marítima, irresistível, anunciadora de possibilidades, que desperta toda a ansiedade do poeta que assim se descreve: “Sinto corarem-me as faces./Meus olhos conscientes dilatam-se./O extase em mim levantaGUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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se, cresce, avança” (Campos, 1915, p.136). A vida marítima, vista como um amor passado do poeta, não é apenas um apelo que o faz desejar ir ao seu encontro, mas também instrumento que clarifica os limites da sua própria situação. Assim, Campos deseja partir, concretizar a abertura de possibilidades, “ir, ir, ir, ir de vez!” (Campos, 1915, p.137), num descontrolo com laivos histéricos: “Todo o meu sangue raiva por asas!/Todo o meu corpo atira-se prá frente!Galgo pla minha imaginação fora em torrentes!Atropelo-me, rujo, precipitome!/Estoiram em espuma as minhas ânsias/E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochêdos!” (Campos, 1915, p.137). É clara a intensificação do desejo que acompanha a intensificação da disposição, da fúria pela vida, cuja violência assalta toda a estrutura de Campos. Na sua divagação enlouquecida, encontramos algumas vezes a transição entre o desejo de totalidade e a consciência do poeta sobre a sua própria limitação, e mediante isso, um novo rompimento da fúria, até o transe abarcar completamente o autor. É no âmbito da violência e da dor que todos os ímpetos de Campos se situam, ilustrados na vida marítima, no desejo de excesso, decerto, mas principalmente da anulação moral que a própria totalidade pressupõe, na medida em que não é só uma procura do que causa prazer e do que satisfaz, mas, largamente expresso, da dor e do horror que a destruição comporta, isto é, de tudo o que constitui a vida. Perante isto, Campos inclina-se primeiramente para o que há de mais vivo na vida marítima e que a desenrola - o homem. Aqui, significa todos os homens que de algum modo estão relacionados com a viagem, não só o próprio viajante que tem esse fito, mas cada um dos tripulantes do navio, para os quais a familiaridade é esta vida de contínua alteração. Assim, Campos invoca cada um dos marinheiros: “Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos!/Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!/Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!” (Campos, 1915, p.137). E após esta, chega a vez de Campos assinalar, por um lado, as características marcadas pela vida do mar e, por outro, as possibilidades que se abrem na viagem, inéditas e sem realização para o poeta, mas familiares para os viajantes/marinheiros ― “Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,/Limpa de olhos de tanta imensidade diante dêles,/Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!” (Campos, 1915, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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p.137). É nítida a satisfação sentida nesta descrição extasiada, que precede a enunciação de novos horizontes, cuja novidade retorna Campos ao seu próprio esvaziamento, mediante aquilo que não realizou. Mas não é só o presente que o desperta, como outrora se verificou, mas também os marinheiros passados, históricos, símbolos da descoberta que permitiram o mundo presente: “combatentes de Lepanto/Piratas do tempo de Roma/Navegadores da Grécia!/Fenícios! Cartaginêses! Portuguêses atirados de Sagres/Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para/realizar o Impossivel!” (Campos, 1915, p.138). A fúria do poeta é crescente, e sucedem-se as inclinações para vários ângulos, numa composição que vai abarcando aspectos da totalidade da vida marítima. A saudação final de Campos acentua o estado de agitação furiosa, em que se pretende a reunião de tudo num único momento: “A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,/A vós todos misturados, entrecruzados,/A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados,/Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!” (Campos, 1915, p.138). A vivência alheia, em extremo, é desejada com o intuito de perder as amarras da civilização, numa tentativa de libertação absoluta, numa fuga de si próprio: “Fugir comvôsco à civilisação!/Perder comvôsco a noção da moral!/Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!/Beber comvôsco em mares do sul/Novas selvagerias, novas balbúrdias da alma,/Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!/Ir comvôsco, despir de mim — ah! põe-te daqui pra fora” (Campos, 1915, p.138-139). Versos que mais uma vez revelam o ímpeto extravagante e violento do poeta, neste desejo de tudo, mas agora como instrumento claro de despedaçamento de si em busca de um novo, de afastamento das convenções, da sociedade e da civilização para um despertar da natureza mais básica, mais instintiva, repleta de entusiasmo e dureza. Há, portanto, uma consciente necessidade de transformação total, de procura de novos horizontes de possibilidades como meio de mudança. Do “traje de civilisado” e da “brandura de acções” (Campos, 1915, p.139), Campos quer o oposto, o extravasamento das sensações, o despojar-se de uma máscara, em direcção ao desregramento do puro sensacionismo, num desejo de anulação da vida “sentada, estática, regrada e revista!” (Campos, 1915, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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p.139). É através do mar que o poeta vislumbra essa possibilidade, em que as disposições se tornam mais intensas devido ao desejo estonteante da absorção de outra vida. E de tal modo esta necessidade de violentação de si está presente que toda a sua descrição histérica promove esta ideia, como forma de acolher as sensações. O poeta assume um prazer masoquista nestas divagações, que mais enérgicas se tornam com o êxtase que aumenta, e neste fundo disposicional, propõe-se a entrega completa, num despojamento de si e, todavia, mantendo sempre o interesse em si: “Fazei o que quizerdes de mim, logo que seja nos mares,/Sôbre convezes, ao som de vagas,/Que me rasgueis, mateis, firais!/O que quero é levar prá Morte/Uma alma a transbordar de Mar,/Ébria a caír das cousas marítimas” (Campos, 1915, p.139). Nos vários desejos que o poeta expressa, sobressai a brutalidade de uma esperada intimidade e a tormenta que se torna contentamento pela expectativa da sensação. A histeria do poeta é continuamente alimentada pelas imagens sangrentas que a sua imaginação desvela e que acentuam a sensação e a destruição, perdido num desgoverno em que a fúria, o ardor, a ausência de limites morais subsistem veementemente. Neste desejo de totalidade, o desvario alimenta a sensação e a sensação alimenta o desvario, numa escalada ininterrupta e aniquiladora: “Pilho, mato, esfacelo, rasgo!”(Campos, 1915, p.141). Apesar de estar consciente de que o seu transe não passa de divagação, de que tudo se concentra no sonhar acordado, o poeta compreende que o desejo de totalidade sensacionista e a realização fictícia dele funcionam como anuladores da insuportável lucidez que aniquila a familiaridade da vida. Na enumeração enérgica procura Campos abarcar os vários aspectos dos actos, desde a sua execução até ao ambiente que os envolve e caracteriza, apenas para firmar o seu desejo de ser a totalidade prévia, de tornar-se a vítima voluntária que recebe o todo da acção e, a partir deste, que o próprio ser do poeta se torne a acção, assinalando uma mudança, na medida em que do anterior querer sentir tudo passa para o querer ser tudo. O ímpeto histérico de Campos, que varia entre o desejo de subjugação e de celebração, condu-lo a compreender a dimensão do seu desejo: “Não era só isto que eu queria ser — era mais que isto, o Deus-isto!” (Campos, 1915, p.143). Não se trata de um Deus cristão, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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mas, pelo contrário, de um Deus invertido, mais próximo do paganismo, “monstruoso e satânico” (Campos, 1915, p.143), que acolhesse também a violência do mundo, uma vez que a totalidade se manifesta precisamente nesse englobar completo, sem limitações morais, sem distinções, atentando apenas no que existe como existente: Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário,/Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum pantheismo de sangue,/Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa,/Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade/Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias! (Campos, 1915, p.143) Da vontade de ser este Deus, Campos retoma-se como assunto directo, descrevendo aquilo que o constitui como vítima da acção alheia, e, como vítima, ainda repleto de práticas sangrentas e dolorosas, num processo de tortura que serviria como instrumento para a realização do seu desejo megalómano: da carne “fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam”; das veias, “os fatos que as facas trespassam”; da imaginação, “o corpo das mulheres que violais”; da inteligência, “o convez onde estais de pé matando” (Campos, 1915, p.143). Como ocorrera anteriormente, determinado nível de explosão sensitiva redunda no reconhecimento do esvaziamento do poeta, que se inclina raivosamente para a sua inércia e fraqueza, onde abunda a frustração: “Eu pr’àqui engenheiro, prático à fôrça, sensível a tudo/Pr’àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;/Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil” (Campos, 1915, p.143). A consciência de que a histeria não passa de um delírio, de um desejo que não tem possibilidade de realização pesa em Campos como um fardo insuportável, que lhe revela permanentemente a sua limitação e o vazio que sente perante, por um lado, o que a vida oferece e, por outro, o que a sua ânsia ilimitada procura. O desejo de Campos é um desejo impossível que apenas a imaginação pode tentar preencher e apenas num transe passageiro que nunca satisfaz completamente, uma vez que a consciência da sua falsidade retorna GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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sempre, levando-o a um arrebatamento causado pelo malogro presente e que o faz maldizer a vida actual, apontando-lhe a ausência de fortes sensações e fortes disposições que rejam o quotidiano, substituído pelo apagamento: Arre! por não poder agir d’acôrdo com o meu delírio!/Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilisação! (...) Estupôres de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,/Sem coragem para ser gente com violência e audácia,/Com a alma como uma galinha presa por uma perna! (Campos, 1915, p.143) A crítica de Campos justifica o seu desejo de totalidade, quando uma vivência mais pacata não pode satisfazer o poeta e, como tentativa de escapar a esta deficiência, permite que a sua imaginação colmate as lacunas sentidas e proceda a uma expansão de possibilidades, interrompida pela lucidez que se interpõe no seu transe e que o obriga a sair do fictício e a perspectivar-se no imediato, do qual procura fugir. As febres que a sua ânsia desperta, pelo desejo nunca cumprido, conservam o poeta extasiado na sua imaginação e a inclinação para a pirataria é um dos seus acessos mais prementes, uma vez que é nesta que a violência do mundo marítimo é mais evidente. É neste registo que Campos gasta as suas últimas tentativas de sentir tudo: “Obrigaime a ajoelhar diante de vós!/Humilhai-me e batei-me!/Fazei de mim o vosso escravo e a vossa cousa!/E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone” (Campos, 1915, p.144). O despedaçamento de si é a ideia mais marcada nestes versos, que reflectem a fase final do transe, e cuja descrição é amplamente violenta, expressando sempre o desejo de destruição do poeta que, assim, se espalha pela vida marítima: “Ah, torturai-me,/Rasgai-me e abri-me!/Desfeito em pedaços conscientes/Entornai-me sôbre os conveses,/Espalhai-me nos mares, deixai-me/Nas praias ávidas das ilhas!” (Campos, 1915, p.144). Da ideia de dilaceração, que lhe dá claramente uma satisfação masoquista, Campos passa para a ideia de se tornar algo pelos piratas, de se constituir a partir da vontade deles, num real recipiente de sensações: “Fazei de mim o pôço para o vosso desprezo de domínio!/Fazei de GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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mim as vossas vítimas todas!/(...) Fazei de mim qualquer cousa” (Campos, 1915, p.144). Mas este êxtase encontra, por fim, um ponto de ruptura. Este ponto de ruptura marca a segunda parte da Ode Marítima, em que o poeta dará conta do apagamento do êxtase e da fúria anteriores, acompanhado pela melancolia e tristeza perante a sua consciência do vazio sentido. Toda a descrição doravante assenta no propósito de revelar o outro lado, o da sua vivência real, afastado dos sonhos de totalidade. O processo de preenchimento até agora tentado através da imaginação leva Campos, então, ao esgotamento da sensação: “Parte-se em mim qualquer cousa. O vermelho anoiteceu./Senti de mais para poder continuar a sentir./Esgotou-se-me a alma, ficou só um éco dentro de mim” (Campos, 1915, p.145). O vazio que emerge e que caracteriza o poeta, não só enquanto consciente dele, mas enquanto deseja a totalidade, como fuga, ganha preponderância neste momento em que, com tristeza, Campos compreende a sua dimensão: “Dentro de mim ha só vácuo, um deserto, um mar nocturno” (Campos, 1915, p.145). Mas, simultânea à consciência deste deserto disposicional, irrompe a tentativa de fuga dele, o procurar sair desse estado e, nesse sentido, surge logo o apelo do mundo marítimo, “outra vez, o vasto grito antiqùíssimo” que “nasce do seu silêncio”(Campos, 1915, p.145) (do vazio), numa revolta imediata contra o vácuo que já não pode ser anulado nem disfarçado. O aparecimento da possibilidade da vida marítima é agora infrutífero e causa ternura e nostalgia no poeta, como “Voz de sereia longinqùa chorando, chamando,/Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos” (Campos, 1915, p.145), revelando, nesse instante, a perda. E se este mundo marítimo já não impele Campos para o êxtase, como outrora, o fundo disposicional que agora possui estendese na abertura de um novo horizonte carregado de melancolia - a infância. Do êxtase para a melancolia, e do presente para o passado, o poeta recorre, agora, à sua infância como ponto regulador da sua acção anterior, despertando uma relação completamente diferente com o mundo desejado. É a partir da revolta automática contra o vazio, perante o qual o apelo da vida marítima ressurge, mas cuja ruptura já não permite o retomar efectivo da divagação, que Campos se orienta para os momentos em que a felicidade se sobrepõe - na infância -, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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mostrando-lhe, também, o que nela está perdido e é irrecuperável. O vazio que antes o impeliu para a satisfação da fúria sensitiva, impele-o agora para a tristeza melancólica daquela felicidade perdida. Inclinado para a rememoração do passado, Campos já não tem o mesmo desejo e reside apenas nas disposições que essas memórias suportam, susceptíveis de despertar o repúdio da violência prévia. Para além disto, é na infância que Campos reconhece a fundação para o seu desejo actual de vida marítima, relembrando a proximidade da casa com o mar e o seu avistamento das janelas, imagens que não têm repetição, que passaram “como o fumo dum vapôr no mar alto” (Campos, 1915, p.146), e que despertam “Uma inexplicavel ternura,/Um remorso comovido e lacrimoso” (Campos, 1915, p.146) pela brutalidade que outrora imaginava. A memória da infância permite-lhe o reconhecimento do sentido de ser criança e, perante isso, a repugnância dolorosa e arrependida pelo que imaginou no seu delírio. Depois, este arrependimento de quem recuperou o sentido perdido da infância acompanha a lucidez de que o delírio fora apenas delírio e, por isso, surge a alternância do repúdio com a ternura e suavidade do alívio que provém da irrealidade imaginada. Esta complexidade disposicional de Campos indica a complexidade da própria existência, onde se misturam sonhos com memórias, presente com passado, desejo com acção, numa “ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada”, que “Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida” (Campos, 1915, p.146). Na amálgama confusa das disposições que emergem, mantém-se sempre presente o horror do que desejou - “Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas cousas?” (Campos, 1915, p.146) —, no reconhecimento de que o delírio não o transformou senão momentaneamente e que a histeria nada mais foi do que passageira: “Que longe estou do que fui ha uns momentos!/Histería das sensações — ora estas, ora as opostas!” (Campos, 1915, p.146). A infância surge como o verdadeiro plano de fundo do poeta: “todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longinquo,/Da minha casa ao pé do rio,/Da minha infancia ao pé do rio,/Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite,/E a paz do luar esparso nas ágoas!” (Campos, 1915, p.146). A melancolia do poeta está fortemente marcada nestes versos, em que se assiste ao desenrolar do passado perdido e dos momentos de comoção da infância, desde a velha tia “que me amava por causa do GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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filho que perdeu” e que “costumava adormecer-me cantandome”(Campos, 1915, p.147) a Nau Catrineta. A lembrança destes episódios consola, mesmo que tristemente, Campos, cujas “lágrimas cáem sobre o meu coração e lavam-o da vida” (Campos, 1915, p.147), num aconchego que finalmente afasta o vazio da existência e o preenche, por momentos, calorosamente. Mas o sentimento de amor que perpassa nas memórias é, num instante, consolo e, noutro instante, dor, quando o arrependimento de Campos e a tristeza de ser quem é se evidenciam, e marcam a ausência, a perda e o esquecimento: “Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim/E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto!/Como fui ingrato para ela — e afinal que fiz eu da vida?” (Campos, 1915, p.147). E a ternura retorna com a memória da canção da Bela Infanta e da felicidade sentida, para mais uma vez surgir, de rompante, a dolorosa tristeza do que já não existe: “Ó meu passado de infancia, boneco que me partiram!” (Campos, 1915, p.147). A melancolia perpassa as lembranças e a frustração da perda da infância e da impossibilidade de retorno (“Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,/E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!” (Campos, 1915, p.147)), que aumentam a sensação de vazio presente e de desejo irrealizável, como uma “fome duma cousa que se não pode obter” (Campos, 1915, p.147), e que firma mais as suas sensações alternadas e indesejadas, em que o encontro com a perda “Dá-me não sei que remorso absurdo” (Campos, 1915, p.147), e revela-lhe o desassossego pelo que já não existe: “Furias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,/Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos,/Lágrimas, lágrimas inuteis” (Campos, 1915, p.147). E nesta desolação interior o poeta não quer permanecer, e procura retornar ao chamamento da pirataria, “com um esforço desesperado, sêco, nulo” (Campos, 1915, p.147). A tentativa é vã, pois o esforço consegue apenas uma aproximação da fúria sentida, “atravez duma imaginação quasi literaria”, “Da chacina inutil de mulheres e de crianças,/Da tortura futil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres/E a sensualidade de escangalhar e partir as cousas mais queridas dos outros” (Campos, 1915, p.148). Apenas uma aproximação do que foi outrora, uma vez que o surgimento da melancolia presente no GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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arrependimento e na dor da infância perdida impede a libertação do poeta e fixa-se como “um mêdo de qualquer cousa respirar-me sobre a nuca” (Campos, 1915, p.148). A recuperação da memória da infância já não permite a fúria da vida e leva Campos à identificação: Lembro-me de que seria interessante/Enforcar os filhos á vista das mães/(Mas sinto-me sem querer as mães dêles),/Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos/Levando os pais em barcos até lá para vêrem/(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho e está dormindo tranquilo em casa) (Campos, 1915, p.148) E todas as tentativas do poeta que tenta recuperar a violência desejada falham, pois a “imaginação recusa-se a acompanhar-me” (Campos, 1915, p.148) e as possibilidades de brutalidade anterior passam a suscitar repugnância em vez de desejo, numa alteração completa de paradigma. Nesta interposição melancólica, Campos é assaltado, num instante, pela ideia do transcendental, de Deus, que o deixa num estado de completo terror - “Tremo com um frio da alma repassando-me o corpo” - que o obriga a abandonar o sonho, a abrir “de repente os olhos, que não tinha fechado”(Campos, 1915, p.149) e a retornar, assim, para o seu presente visível. Este reencontro com o mundo percepcionado, fora da divagação do ímpeto anterior, alivia o poeta, que compreende quão “bondoso para os nêrvos” (Campos, 1915, p.149) é o mundo real, próximo, numa familiaridade que não necessita de extremos. Por isso, Campos inclina-se para o que vê como suficiente: Já não me importa o paquête que entrava. Ainda está longe./Só o que está perto agora me lava a alma./A minha imaginação higienica, forte, prática,/Preocupa-se agora apenas com as cousas modernas e uteis,/Com os navios de carga, com os paquêtes e os passageiros,/Com GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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as fortes cousas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras. (Campos, 1915, p.149) Nesta mudança, o apelo provém da existência actual do poeta e do mundo percepcionado, numa perspectiva oposta à que tinha. Agora, Campos salienta a separação das entidades, a distinção efectiva de cada componente e o seu lugar enquanto tal, numa limpidez que denuncia o repúdio da mistura desenfreada de outrora. O desejo da totalidade desapareceu e a disposição enraivecida foi substituída por uma aparente harmonia com o mundo a que pertence, de modo que a estrutura disposicional do poeta é reconhecida pelo próprio como afastada da histeria anterior, em prol de uma breve serenidade. Com a consciência de que a vida é “afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!” (Campos, 1915, p.151), Campos termina a Ode com a partida do navio, fechando o ciclo que iniciou com a entrada do paquete, e, na sua despedida, assume a perda total do desejo violento que o caracterizou: “Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favôr/De levar comtigo a febre e a tristeza dos meus sonhos,/E restituir-me á vida para olhar para ti e te ver passar” (Campos, 1915, p.151). O desapego do poeta ao navio que parte assinala a sua transformação final, numa última invocação em que conscientemente aceita a sua limitação: “Eu quem sou para que chore e interrogue?/Eu quem sou para que te fale e te ame?/Eu quem sou para que me perturbe vêr-te?” (Campos, 1915, p.151). E no fim deste triunfo desejado mas infrutífero, consciente do seu vazio, Campos já não encontra na vida marítima o mesmo ímpeto, e reduz-se à tristeza e ao silêncio do que passou. A análise da Ode Marítima permite constatar a complexidade de um ponto de vista que assenta na inclinação para a totalidade da existência (aqui representada pela vida marítima) e, como tal, dotado de instrumentos que operam fora da “norma”, no sentido em que são orientados numa e para uma relação peculiar entre sujeito e mundo, onde se vincula a inseparabilidade de ambos e a sua conexão repleta de mútuas interferências. Excluindo desta percepção da Ode Marítima o facto de se tratar de um texto literário (e da problemática que isso suscita) e, desse modo, fictício, mas também com essa noção, surgem GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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algumas questões complicadas mas relevantes. Assim, e desde já anunciando a transição do ponto de vista literário para um ponto de vista “real”, põe-se imediatamente a indagação da sua viabilidade, i.e., se uma perspectiva alicerçada na procura da totalidade poderia, de facto, residir fora do fictício. Parece, à primeira vista, uma ideia quimérica, na medida em que o quotidiano define-se pela sua finitude continuamente anunciada, interligada à própria finitude do sujeito que, assim, compreende-se enquanto determinado, o que anularia, em princípio, o carácter infinito requerido por um ponto de vista da totalidade, igualmente infinito. Nesta concepção de infinitude/finitude, a realidade parece contrariar o ilimitado do poético. Mas também é certo que o próprio sujeito poético - Campos - assinala a condição de possibilidade que caracteriza o seu devaneio, assente na imaginação. Neste sentido, podemos perguntar até que ponto poderia o sujeito residir apenas neste carácter de possibilidade contínuo, sem realização, sem fronteiras, de modo que o desejo de totalidade seria mantido aceso nessa divagação imaginativa, seguindo o modelo de Campos que assim o exercita até à ruptura. Mas poderia o sujeito permanecer apenas na possibilidade, num estado de “loucura” que o desligasse, que o alheasse completamente do mundo? Para que a possibilidade se tornasse o modo de ser do sujeito, o quotidiano no mundo real teria de ser eliminado e a vivência transportada apenas para um mundo alternativo mental. Só enquanto não realizada a possibilidade se mantém como tal e, deste modo, a acção mundana (no mundo) contraria a condição de contínua possibilidade, quando a vivência alterna entre a possibilidade e o acto. A transição entre estados de vigília e onírico, ou entre graus de consciência (da atenção ao imediato até ao sonhar acordado), como Campos elucida, parece redundar na eliminação do desejo primário da totalidade, na contradição de condições em cada estado e na querela entre a possibilidade que a imaginação permite (ilimitada) e os limites que a lucidez desvela, de modo que o sujeito parece não poder, sempre, permanecer neste estado de indecisão. Não se trata da comum alternância do sujeito entre a “realidade” e a “imaginação” ou o sonho, mas o surgimento de uma condição que o conduz ao imaginário com tanta força como o reconduz à realidade imediata. Esta suposta guerra de forças parece levar à ruptura, à efectiva passagem para um dos dois GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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planos, ao enfraquecimento de um em prol de outro, de forma que um deles se torna transitório. E aqui se retoma o exemplo de Campos, cujo conflito entre o devaneio da totalidade e a lucidez terminou na destruição do primeiro. Do ponto de vista das disposições, a Ode Marítima tem enorme proveito, na medida em que toda a deambulação mais ou menos lúcida do poeta está intimamente ligada a um alfabeto disposicional que vai revelando ao longo do poema, salientando disposições mais e menos passageiras, mais e menos apropriadas e suscitadoras de revelação do próprio poeta e de conhecimento da sua própria natureza. A constituição deste alfabeto disposicional marca o carácter de transição que percorre a sua aparição, em que o plano de fundo, composto pela angústia, a ansiedade e a nostalgia, enquanto disposições permanentes, é mesclado pelo surgimento momentâneo de outras disposições que o escondem, o confundem, que irrompem sem, todavia, se fixarem, anuladas rapidamente pelo plano de fundo, residindo neste as condições necessárias para um aumento de lucidez do poeta, que a segunda parte da Ode Marítima evidencia. A presença das disposições e o seu carácter transitório e/ou permanente torna-se ainda mais complexo quando o que funciona como motor não é o mundo efectivo, imediato, da acção, mas a imaginação que serve o desejo do sujeito, enquanto elemento que o constitui e condiciona. É, por conseguinte, através da imaginação que são encontrados focos de sentido, em que se manifestam os múltiplos significados do objecto. E a propósito do objecto, é interessante acentuar a relação invulgar de Campos com o primeiro: o desaparecimento da função de cada objecto para o poeta - a noção de instrumento com uma função activa - transformado em instrumento de possibilidade (ligado à sensação). Assim, a relação do poeta com o objecto é de multiplicidade de sentidos/significados, alterando a percepção comum dentro do mundo: do desinteresse pelo objecto (o uso quase indiferente dele ou mesmo o facto de não ser sequer notado) passamos a uma extrema atenção às possibilidades que ele abre (muitas vezes na relação com outros). Possibilidades que, mais uma vez, só são alimentadas pela imaginação que dota o objecto de sentido. Mediante estas pequenas considerações, constatamos que a Ode Marítima é material relevante para a compreensão não só do que está GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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em causa na perspectiva fictícia do sujeito poético Campos, mas também de aplicação literária de condições continuamente presentes na vivência real, de modo que este objecto assume duas funções: como instrumento de análise do texto em si, do seu conteúdo e do que isso representa para o poeta, e como instrumento que revela a relação, muitas vezes peculiar, com o mundo, o já estar nele (e querer estar fora ou dentro) e a complexidade que essa ligação comporta para a compreensão do sujeito e do meio que o circunda.

ÁLVARO DE CAMPOS: THE POET'S STATES OF MIND ON ODE MARÍTIMA ABSTRACT: This essay aims to achieve a new reading of Ode Marítima, by Álvaro de Campos, in light of the unlimited nature of the poet, which is revealed through the continuous search of possibilities that show a complete passion for life's totality. Some authors, such as Whitman, Keats and Emerson, point out that the poet is, in his own poetical condition, continuously permeable to the rotativity of life's possibilities, as a way of creating his own ontological nature. As such, we intend to clarify that the Ode Marítima is an example of that neverending search of the poet, visible through the interpretation of the dispositions which show the relation between subject and world. It is our purpose, then, to analyse the poet's states-of-mind in his passion for life and the ways through which they - subject and world - are interchangeable. This reading allows to see the complexity of the dispositional alphabet of human nature and the close relation with the world's perception, that points out the peculiar poet's point of view, based on life's multiplicity. But this point of view brings some problems related to its viability, in the way that it moves away from the usual parameters, and follows a path towards infinity, which the subject, through his finitude, seems uncapable of reaching. KEY-WORDS: Poet. Disposition. Totality. Life

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REFERÊNCIAS PESSOA, Fernando. Ode Marítima. In:Pessoa, Fernando; Sá-Carneiro, Mário (dir.). Orpheu, nº 2, Abril-Maio-Junho, Lisboa, Tipografia do Comércio, 1915 EMERSON, Ralph Waldo. Essays: First Series. 1841 [Acesso em 16/09/2014.Disponível no endereço http://www.emersoncentral.com/essays1.htm]. Keats,John. Letters of John Keats to his family and friends. Edited by Sidney Colvin. Macmillan and Co., London, 1925 RILKE, Rainer Maria. Cartas a um Jovem Poeta. Tradução de Vasco Graça Moura, Lisboa, Edições Asa, 2002 WHITMAN, Walt. Leaves of Grass. The Pennsylvania State University, Eletronic Classic Serie, 2007

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A EFABULAÇÃO TRÁGICA EM A TRAGÉDIA DA RUA DAS FLORES E OS MAIAS Luciana Ferreira Leal 1 RESUMO: O artigo discorrerá sobre a efabulação trágica nas obras A Tragédia da Rua das Flores e Os Maias de Eça de Queirós. O Objetivo será o de discutir os elementos constitutivos da fábula trágica, a peripécia, peripeteia, o reconhecimento, anagnorisis, e a catástrofe, sparagmós nas duas obras em questão. O desenvolvimento da intriga, visto que é descoberta a feição incestuosa dos amores de Victor e Genoveva e de Carlos e Maria Eduarda, se dá de acordo com a efabulação trágica definida por Aristóteles (1973). Tanto na obra A Tragédia da Rua das Flores quanto em Os Maias ocorre a repentina mudança das ocorrências, ocasionando a reviravolta do sucesso à desventura. Em se tratando da catástrofe, ela é mais calamitosa em A Tragédia da Rua das Flores, uma vez que Genoveva suicida-se, Victor sofre e Timóteo, abatido, morre. Em Os Maias, a catástrofe se limita à separação dos dois amantes e à morte de Afonso da Maia, que não suporta viver em face do incesto dos netos e da insistência consciente de Carlos no engano trágico. Eça de Queirós consegue representar, por meio dos elementos constitutivos da fábula, a sua visão trágica do homem e do mundo. PALAVRAS-CHAVE: Fábula trágica. A Tragédia da Rua das Flores. Os Maias. Trama: introdução A trama da tragédia é a estruturação artística que é dada à fábula e é caracterizada pela mudança da “sorte” do herói. Na Poética, Aristóteles determina, como elementos constitutivos da fábula trágica, 1

FACCAT/UNESP – Tupã [email protected]



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Brasil.

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a peripécia, peripeteia, o reconhecimento, anagnorisis, e a catástrofe, sparagmós. A peripécia, peripeteia, definida pelo filósofo grego como a repentina transformação dos sucessos no contrário (1973), é a ocorrência que altera a face das coisas e modifica a ação e situação das personagens. A peripécia diz respeito à inversão da situação da personagem no estabelecimento da “contradição inconciliável”, já que, para Goethe(Apud LESKY, 1996), o caráter contraditório, inconciliável do trágico é a tradução mais fiel de sua essência. O herói, por determinação dos valores tradicionais do lar (oîkos), entra em choque com os valores dominantes e democráticos da pólis. A peripécia consiste, pois, no estabelecimento do conflito. O anagnorisis (reconhecimento) diz respeito, por sua vez, à passagem da ignorância ao conhecimento, que não se dá por meio de revolta da personagem; ao contrário disto, dá-se de forma com que a personagem admita o erro e voluntariamente aceite o retorno à ordem, mesmo que isto custe a própria vida. O reconhecimento ou anagnorisis presentifica-se no final do enredo trágico. A sparagmós ou catástrofe, última parte da fábula trágica, é definida por Aristóteles (1973) como ação perigosa e dolorosa, como mortes, sofrimentos,e dores veementes. A sparagmós ou catástrofe é o registro da dor que acontece no final da obra. Tal registro da dor diz respeito ao processo evolutivo iniciado com a peripécia e configurado no reconhecimento. Frente a seu destino, o herói acaba por se mutilar ou por se suicidar. O estabelecimento da ordem é o resultado desta ação em que a hybris e a hamartia do herói atuam como desvio. A trama da tragédia é constituída pelo estabelecimento do equilíbrio perdido (nemesis). Acontece tanto por meio da exibição da onipotência do destino exterior que é denominada moira e diz respeito à expressão da essência divina, pela justiça e pela providência, quanto pela onipotência da necessidade (ananké), que existe sem depender da ação humana. O agente responsável pelo restabelecimento da nemesis varia, uma vez que tanto pode ser a vingança de um deus, quanto de um mortal, tanto pode ser a ação do acaso, quanto a organização das ações do herói. A ordem restabelece-se transparecendo a existência de lei, que pode ser tanto da natureza, quanto divina ou até mesmo uma GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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estrutura social rígida. Dessa forma, o indivíduo nunca sai vitorioso de obra de arte literária trágica. A trama em A Tragédia da Rua das Flores A trama presente na tragédia ática é caracterizada através da peripécia, do reconhecimento e, algumas vezes, da catástrofe configurada como espetáculo grotesco, seja pela forma como se efetua a morte do herói, seja por sua mutilação.

A peripécia, o reconhecimento e a catástrofe são elementos constitutivos da fábula trágica e estão presentes em A Tragédia da Rua das Flores, de Eça de Queirós. Constata-se a peripécia, que consiste na súbita inversão dos acontecimentos, a partir do momento em que Timóteo manifesta a oposição ao casamento de Victor com a estrangeira e, inconscientemente, precipita a tragédia naquele 3º andar da Rua das Flores. A visita de Timóteo à Genoveva a fim de dissuadi-la do casamento com o sobrinho infunde toda a verdade, por meio de revelações que evidenciam a verdadeira identidade dos amantes. Tio Timóteo, como agente do destino, converte a felicidade de Victor e Genoveva em infelicidade completa, desencadeando a tragédia, ao descobrir que a aventureira é, afinal, mãe de Victor. Com as revelações de Genoveva a Timóteo e vice-versa, defronta-se com a segunda etapa básica da ação trágica: o reconhecimento, isto é, a passagem da ignorância ao conhecimento. Genoveva agora reconhece a condição em que se encerra e, em vez da indignação, admite o desacerto, aceita o regresso à ordem, que tem como valor a própria vida. Ante à enormidade da tragédia incestuosa que vivencia sem saber, Genoveva suicida-se. Ao saber que é amante do próprio filho que um dia abandona, Genoveva atira-se da varanda de sua casa, na presença de Victor. Genoveva, pelo caráter forte e resoluto, assim como pela profundidade psicológica, pode ser considerada uma das mais realistas personagens queirosianas. Assim como nas tragédias gregas, em A Tragédia da Rua das Flores, há o momento da anagnorisis, da revelação ou do reconhecimento. É tio Timóteo quem o ocasiona, pois é o responsável pela educação de Victor e não aprova a ligação do sobrinho com Genoveva. Na discussão travada com ela, descobre que ela é a mulher GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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que abandonou o seu irmão, Pedro da Ega, e, portanto, é a mãe de Victor. Ao reconhecimento segue-se, inevitavelmente, a catástrofe pelo fato de inviabilizar-se o prosseguimento de vida ditosa. As marcas da catástrofe estão patentes no suicídio de Genoveva, na morte de Timóteo e na tristeza, infinita, de Victor. Observa-se que as personagens, atingidas pela catástrofe, denotam certo sentimento de padecimento atroz diante do conjunto de circunstâncias imprevisto e infeliz. Os protagonistas, sofredores, são motivo de piedade e compaixão. No final de A Tragédia da Rua das Flores a dor violenta é registrada com a consumação da morte da personagem. A ordem estabelece-se onde a hybris e a hamartia da personagem atuam como desvio. A tensão dramática progride até o suicídio de Genoveva. Após o funesto clímax, o narrador aventa dois rápidos capítulos que abrandam a tensão por meio de enumeração corriqueira e trivial de acontecimentos. Sabe-se, por meio do que é relatado, que Victor não vem a conhecer a legítima verdade acerca da própria condição, ocultada pelo tio. Sabe-se, outrossim, que após o sentimento de pesar e dor pela morte da mulher amada, retorna à vida de indolente e medíocre e conserva, por meio dos versos, o sentimento de dedicação absoluta por Genoveva, passando a viver em concubinato com Joana, mulher de feição rústica e natural de grande sensualidade e subserviente, que cobiça um dia, quando ainda é mulher do amigo pintor Serrão. Joana é a figura feminina queirosiana de mais intenso e violento sensualismo erótico. Crê-se que tenha ficado claro ao leitor o vínculo da obra com o conceito de trágico que hoje se tem. Genoveva, protagonista da ação, é uma personagem cuja subjetividade é extrema. É esta subjetividade que a conduz à ação, responsável por sua derrota: a infeliz constatação de que é amante do próprio filho provoca-lhe o suicídio. Existe, em A Tragédia da Rua das Flores, semelhança com a tragédia Édipo Rei de Sófocles, visto que a decisão dos deuses colocase sobre a decisão dos humanos. O infortúnio, indiretamente, revestido de subterfúgios, e por intermédio de identidades alteradas e confundidas leva ao fatal desfecho (sparagmós). GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Há, na obra analisada, a peripécia, peripeteia, ou seja, a inversão da situação da personagem que abandona a França e o amante brasileiro rico para viver em Portugal, onde apaixona-se perdidamente pelo próprio filho. Há o reconhecimento, anagnorisis, uma vez que tio Timóteo, revela a Genoveva a adversa verdade de que é mãe de Victor. Ocorre a catástrofe, sparagmós, pois o registro da dor acontece no final da obra e é decorrência do processo evolutivo que se inicia com a peripécia e se configura no reconhecimento. Genoveva finda por suicidar-se. Trama e personagem estão, pois, concordes com a especificidade trágica. A fábula, por sua vez, trabalha com história conhecida pelo público. Nada mais comum em sociedade historicamente católica, que a irreverência do incesto. Se a fábula trabalha com o conhecido, assim como nas fábulas da tragédia grega, esta mesma é estruturada de modo a desconcertar o leitor e causar-lhe estranhamento. Assim, a narrativa torna-se espaço para questionamento de problemas concernentes ao universo do leitor, obrigando-o a refletir sobre valores e formas de conduta da sociedade. Há, portanto, como na tragédia grega, uma função cívica por trás do romance apresentado. Como os valores se instituem? Qual o posicionamento do homem frente aos valores aceitos? Carlos Reis (1984), Óscar Lopes (1966)e Machado da Rosa (1963) admitem a relação de Eça de Queirós com a tragédia grega. Para eles, o realista português mantém vínculo e respeito com as regras e com os três elementos nucleares do texto trágico, determinados por Aristóteles e expostos nos parágrafos anteriores.

A Trama em Os Maias A peripécia, o reconhecimento e a catástrofe são elementos constitutivos da fábula trágica e estão presentes na obraOs Maias de Eça de Queirós. Verifica-se a peripécia, que consiste na súbita inversão dos acontecimentos, na circunstância em que Guimarães denuncia a consangüinidade entre Carlos e Maria Eduarda. O destino, eficaz e encoberto, corporificado na missão de mensageiro interpretado por Guimarães por ocasião das revelações fatídicas, é o impulso de conseqüências trágicas e calamitosas que governa as ocorrências conducentes aos acontecimentos finais. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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O clima trágico intensifica-se no momento em que Guimarães, por meio do cofre de Maria Monforte, traz a revelação que aniquila os amores de Carlos e Maria Eduarda e transforma a felicidade dos dois amantes em completa desdita. O fatalismo, a temática do incesto, o grande valor conferido ao destino, enquanto impulso de aniquilamento, os presságios e os símbolos de natureza trágica conjugam-se nesse momento funesto. Sr. Guimarães, o “mensageiro de Corinto”, diga-se a propósito, de Paris, chega a fim de acelerar a anagnorisis da tragédia de Carlos da Maia e Maria Eduarda, entregando a Ega a irrevogável caixa de charutos onde, colocado no meio de papéis de modista e outros sem valia, esconde a confidência do incesto, o acontecimento maléfico e danoso que recai sobre a família Maia. O portador da destruição tem aspecto de apóstolo. De vestimentas e barba negras, Guimarães prenuncia declaração danosa. O cofre entregue a Carlos contém os documentos decisivos da vida passada de Maria Monforte, responsáveis pela revelação à Maria Eduarda e a Carlos do fado que os castigam. O cofre, assim como os papéis nele contidos, adquirem a devida constituição oracular délfica. Com as revelações de Guimarães a Ega, defronta-se com a segunda etapa básica da ação trágica: o reconhecimento, isto é, a passagem da ignorância ao conhecimento. Guimarães revela a verdadeira identidade de Maria Eduarda. Quando ele diz para Ega entregar o cofre a Carlos ou à irmã, o amigo, que não conjetura que Carlos possui irmã, assombra-se, todavia a circunstância é esclarecida e Ega entrevê toda a catástrofe: Carlos é amante da irmã. Assim como nas tragédias gregas, em Os Maias, há o momento da anagnorisis, da revelação ou do reconhecimento. A relação com Maria Eduarda faz de Carlos um homem feliz, vivem na Toca uma paixão intensa demonstrada no decorrer da narrativa. Todavia, ao reconhecimento, sucede-se, fatalmente, a catástrofe pela maneira de tornar-se inexequível a continuação de vida venturosa. Os sinais do desastre se evidenciam na morte solitária de Afonso da Maia e no total afastamento de Carlos e Maria Eduarda. Guimarães aparece para revelar aos amantes o parentesco, a consanguinidade. Tal revelação provoca reviravolta, peripécia, mudança de situação, da felicidade para o infortúnio, da ventura à GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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infelicidade e provoca a catástrofe (catastrophe). A desgraça cai sobre os irmãos que reconhecem (anagnórise) o incesto involuntário. A catástrofe atinge diferentes personagens e a consequência é o sentimento de horror que as domina, pois são confrontadas com situações inesperadas e adversas que as transformam e as fazem padecer, tornando-se objeto de compaixão. Os Maias são, essencialmente, romance sobre o destino. O núcleo central da obra é a tragédia, tanto pela irrealizável história de amor entre Carlos e Maria Eduarda, quanto pelo fracasso dos planos e das aspirações de Carlos da Maia e João da Ega, em se tratando da modificação do país. O esquema trágico da obra Os Maias tem como pano de fundo a teoria aristotélica, porém afasta-se dela no que diz respeito à fabulação trágica. Pois, de acordo com Aristóteles(1973), as personagens trágicas conservam a índole engrandecida e forte até o fim, sempre em condições para o bom exercício ou desempenho das situações. Quando essas personagens enganam-se e cometem erros, não é por imperfeição de índole, e sim pela interferência do destino (fatum) que se encontra antecipadamente planeado. ConsoanteElisa Valério (1997), ao cometer o incesto consciente, Carlos afronta as leis da moralidade; mostra-se débil, incapaz de resistir ao domínio da paixão, distanciando-se, assim, do perfil da personagem clássica, que em tempo algum perpetra erros consciente deles, ou seja, após certificar que os cometeu. Nesse sentido, quando volta à cama da irmã, Carlos toma para si a culpa e desafia a ira dos deuses. Ao repetir a falta, Carlos converte-a em crime. Édipo, por exemplo, depois da fatal deliberação do embate, padece pelas consequências da falta desintencional e assume a punição dignamente. A solução encontrada por Carlos para fugir das ocorrências desagradáveis é fazer uma viagem, o que não é, de maneira alguma, uma punição. Quando retorna ao Ramalhete, lembra com saudade de bons momentos ali vividos, todavia, não sente, em nenhum momento, arrependimento ou remorso pela falta cometida. Maria Eduarda também afasta-se e quando torna a aparecer figura como Madame Trelain. Não se sabe qual o fim de Maria, todavia não há dúvida de que Carlos continua a desfrutar da boa vida que o dinheiro GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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lhe proporciona. Em lugar de purificado pelo horror da tragédia, tornase mais ocioso e boêmio. Conforme Maria Manuel Lisboa, o amor de Carlos da Maia por Maria Eduarda provoca a tragédia, mas – ao mesmo tempo – possibilita a ele o único meio de fugir do diletantismo emocional e existencial que, depois de perdê-la, se estabelece eternamente: O crime do incesto (ou a sua eventual punição) teria sido então o preço a pagar por uma vida plenamente vivida. Dilema moral característico de qualquer tragédia que se preza, mas aqui resolvido não no banho de sangue da praxe, mas simplesmente por via da desilusão, do desencanto, e do retorno a uma moralidade convencional (a vida respeitável sem a irmã amada). Essa moralidade, porém, fica ela própria arguivelmente maculada pela insignificância desmoralizante das existências por si fomentadas. (2000, p. 392). Encontra-se em Os Maias muitos dos elementos inerentes à efabulação trágica: os três elementos nucleares, melhor dizendo, a peripécia, oreconhecimento e a catástrofe; a disseminação de vaticínios e presságios e a instauração de um fatum marcando os destinos individuais. Acontece, no romance Os Maias, a peripécia, peripeteia, ou seja, a inversão da situação da personagem que abandona o amante brasileiro rico e apaixona-sepelo próprio irmão. Ocorre o reconhecimento, anagnorisis, visto que Guimarães revela a Ega a consanguinidade de Carlos e Maria. Sucede a catástrofe, sparagmós, pois o registro da dor acontece no final da obra e é decorrência do processo evolutivo que se inicia com a peripécia e caracteriza-se no reconhecimento. Afonso morre de desgosto ao constatar que os netos mantêm relação incestuosa e que Carlos comete incesto consciente. Carlos e Maria Eduarda também morrem. A morte de Carlos será a vida futura no estrangeiro; ele atira-se à vida luxuosa “de aristocrata rico, bem instalado num apartamento dos Campos Elísios” (LIMA, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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1987, p. 84), onde o imobilismo é completo. A morte de Maria Eduarda é nominal. Ela é sepultada numa realidade campestre, longe de Portugal e numa união sem amor com Monsieur de Trelain. Eça de Queirós evoca a proposição demonstrada por Sófocles e o pensamento dominante grego quanto à impossibilidade de reger a sucessão de fatos que ocorrerão na vida de um homem, pois a vida é incoercível pela interferência da força pertencente ao ser humano.

Pode-se dizer que três intervenções do destino concorrem para o encadeamento dos incidentes que ocorrem em Os Maias, tendo como consequência a contingência funesta do incesto. São elas: a fuga de Maria Monforte, arrastando consigo a filha que ignora e é ignorada pela família Maia, pois Afonso julga-a morta; as situações ou condições que conduzem Maria Eduarda de volta a Lisboa e a relação amorosa com Carlos e, finalmente, a coincidência do encontro de Ega e Guimarães, provocando o desfecho trágico, com a declaração da consanguinidade dos amantes e a dispersão da família Maia. Esses lances da narrativa que alteram a face dos acontecimentos, modificando a ação e a situação das personagens, estabelecem, no romance, a aplicação de elementos da tragédia clássica. A Tragédia da Rua das Flores e Os Maias:a fábula trágica Em se tratando dos elementos constitutivos da fábula trágica, pode-se dizer que estão presentes nas duas obras analisadas. Peripécia, reconhecimento e catástrofe são elementos da tragédia clássica, perfeitamente aplicáveis aos romances queirosianos em questão. O desenvolvimento da intriga, visto que é descoberta a feição incestuosa dos amores de Victor e Genoveva e de Carlos e Maria Eduarda, se dá de acordo com a efabulação trágica definida por Aristóteles. Tanto na obra A Tragédia da Rua das Flores quanto em Os Maias ocorre a repentina mudança das ocorrências, ocasionando a reviravolta do sucesso à desventura. Na primeira, com a denúncia do tio; na segunda, com a de Guimarães. Tanto numa quanto noutra, o reconhecimento se dá com a transição do desconhecer ao conhecer: Genoveva conhece a verdadeira identidade de Victor e Carlos, a de GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Maria Eduarda. Maria Monforte é a enunciadora ausente da declaração catastrófica da procedência carnal de Maria Eduarda. Em se tratando da catástrofe, ela é mais calamitosa em A Tragédia da Rua das Flores, uma vez que, frente à descoberta da relação incestuosa que vive sem saber, Genoveva suicida-se, Victor sofre e Timóteo, abatido, morre. Em Os Maias, a catástrofe se limita à separação dos dois amantes e à morte de Afonso da Maia, que não suporta viver em face do incesto dos netos e da insistência consciente de Carlos no engano trágico. Em Os Maias, Eça de Queirós tenta desculpar a relação incestuosa de Carlos da Maia e Maria Eduarda. O interdito social, moral e religioso perde, em certa medida, o antigo valor de proibição e, dessa maneira, ainda assim sem solução, o homem, não sabendo a quem conferir as “arbitrariedades do destino” experimenta, inutilmente é claro, retirar-lhes o valor. No que diz respeito aos elementos da efabulação trágica, podese dizer que Ega exerce a função de coro trágico, uma vez que prenuncia a sorte inevitável que definirá o futuro amor de Carlos e faz comentários decisivos em pontos estratégicos da intriga. A personagem João da Ega de Os Maias pode ser associada ao coro que existe na tragédia grega – o seu comportamento possibilita tal ligação – ele esclarece, alerta, aconselha, enfim, está sempre junto de Carlos para qualquer eventualidade. O tema da tragédia alcança, nessas duas obras, destaque peculiar. A proposição do incesto, a fatalidade, o fado, os indícios de acontecimento futuro, a desmedida, o patético e a efabulação trágica concorrem para a efetivação do drama que envolve as personagens. A tragédia se realiza sob a influência de um romantismo enganoso. Victor, Maria Eduarda e Carlos, filhos da mulher romântica, padecem todas as faltas do romantismo e todas as mágoas do naturalismo. A morte, na tragédia clássica, é o termo de todas as personagens maculadas pela transgressão. O papel do destino se fixa ao mesmo tempo em valores determinados e sublimes. A magnitude das personagens tem origem na luta com forças enigmáticas e invictas. Afonso da Maia e Genoveva caem; no entanto, essa queda é digna. A dignidade da queda é um dos requisitos para o trágico apontados por Albin Lesky em A Tragédia Grega (1996). Genoveva e Afonso da GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Maia sucumbem com grandeza e magnitude. O destino fatal declara culpados os inocentes. A morte confusa e dolorosa dessas personagens desperta no leitor terror e piedade. Ainda no que diz respeito à efabulação trágica, Genoveva se aproxima da personagem clássica pela coragem, complexidade e grandiosidade do seu ato. Diante da perplexidade da relação incestuosa, põe fim à sua vida e atira à queima roupa contra todo o seu engano. Opostamente, Carlos se distancia da personagem trágica, porque comete o incesto consciente. Ao repetir a falta, transforma-a em delito. Carlos não é punido como Genoveva, nem sequer se sente arrependido por ter insistido no incesto quando já sabe que Maria Eduarda é sua irmã. Por mais que Maria Eduarda seja o duplo de Maria Monforte, ela é mais juvenil, sedutora e pura, sendo, por esse motivo, possível a obra findar com a separação “amigável” dos dois irmãos, ao passo que A Tragédia da Rua das Flores acaba com a mãe dando morte a si própria. O castigo de Maria Eduarda pela culpa, mesmo que involuntária, é o de se separar de Carlos para sempre. A paixão, apesar de superior, é impossível. Na dignidade de seu sofrimento moral, no espanto diante do amor e futuro destruídos, ela, trajada de luto e silenciosa, se retira para todo o sempre. Mas se esse não for um castigo suficientemente trágico, pode-se dizer então, de outra perspectiva, que ela também não é castigada. O fato de cometer o incesto inconsciente não justifica a ausência de punição, pois Édipo e Jocasta também desconhecem os laços consanguíneos que os unem e são submetidos à pena. Diga-se de passagem, Maria Eduarda é premiada no final da intriga com a definição da situação pessoal e social, casando-se com M. de Trelain. O casamento não se dá por amor, mas por conveniência, para ostentar um nome, porque, apesar de descendente dos Maias, não pode se reconhecer como tal, não pode usar esse nome. Quando é revelado à Maria Eduarda que o homem a quem ela ama como nunca amou outro é seu irmão, ela constata a verdade sarcástica e dura de que outra vez, e para sempre, o coração ficará adormecido e o corpo frio. Com o seu casamento, tudo se acaba, definitivamente. Apesar da presunção e da fraqueza de vontade, Carlos ainda é superior à sociedade que o circunda, porquanto apresenta certa GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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sensibilidade e escrúpulo. A prova disso se dá na renúncia à amante, quando vê Hermengarda com o marido e o filhinho; no trabalho gratuito que presta a pessoas carentes e no desejo, ainda que ilusório, de enfrentar o incesto, indo pessoalmente revelar à Maria Eduarda os laços consanguíneos. É autêntica e grandiosa sua capacidade de amar, desposar e respeitar uma mulher que já teve outros amantes, mas também é perversa a incapacidade de a deixar de amar sensualmente, no momento em que a descobre sua irmã. Com a separação definitiva da irmã, Carlos passará a vida sem grandes emoções, render-se-á ao tédio, a algum deleite ou satisfação, deixará dominar-se pelo vício e nunca mais será capaz de amar. Carlos é um fracassado. Em dez anos que fica longe do seu país, não lhe acontece nada, se deixa atingir pelo malogro. Victor também fracassa e, da mesma maneira que Carlos, não mais voltará a amar. Vale ressaltar que, em se tratando da catástrofe, incesto é suavizado em Os Maias. Em vez de mãe e filho tem-se o incesto entre irmão e irmã. A tragédia, como se vê, também teve outro aspecto, pois os que realizam incesto na obra não são punidos, separaram-se, apenas e tão somente. O incesto em Os Maias é diferente daquele de A Tragédia da Rua das Flores. A união sexual entre irmãos é, de acordo com Maria Leonor Carvalhão Buescu (1990), sociológica e antropologicamente diferente da união sexual entre pais e filhos. Dessa maneira, a catástrofe é atenuada, apesar de que a morte física de Genoveva, guardadas as devidas proporções, pode ser comparada à morte, ainda que simbólica, de Maria Eduarda. Quando parte para França, é como se morresse também, pois na única referência que se faz a ela depois da partida, já não é mais à Maria Eduarda e sim à Madame Trelain. O incesto entre irmãos participa da vivência dos deuses mitológicos e da existência dos heróis da lenda. O incesto realizado por irmãos é, de certa maneira, abrandado, entretanto, o abrandamento desaparece quando Carlos persiste no incesto consciente. Após a detecção dos elementos constitutivos da fábula trágica emOs Maias, verifica-se a presença de caracteres inerentes à tragédia clássica, o que possibilita refletir acerca da herança cultural grega presente nesse escritor do século XIX. Contudo, constata-se também a presença, principalmente, de um elemento que não aparece na tragédia GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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grega: nem Maria Eduarda nem Carlos são punidos rigorosamente. Consoante Beatriz Berrini (1990), os dois protagonistas, implicados incestuosamente, vivem comodamente como burgueses ricos, bem instalados e bem acolhidos em sociedade. Tanto em A Tragédia da Rua das Flores quanto em Os Maias, o princípio ou causa da tragédia é a paixão. O sentimento e emoção intensos despertados em Victor ao ver Genoveva pela primeira vez são os mesmos provocados em Pedro ao ver Maria Monforte e em Carlos ao contemplar Maria Eduarda. Está na paixão a origem de todo o drama. Nenhum deles age com propósito de lesar, mas todos saem lesados e ofendidos. Apesar da desmedida de todos eles, com exceção feita ao incesto voluntário cometido por Carlos, nenhum deles tem culpa, entrementes, Afonso e Timóteo são os mais puros inocentes. O incesto, determinante da catástrofe nas duas obras, frequente na manifestação artística literária e desenvolvido desde a Antiguidade, é proposição tratada por Eça. A relação amorosa da mãe com o filho, em A Tragédia da Rua das Flores, é substituída por uma entre irmãos em Os Maias. Em nenhum dos dois casos, a união sexual entre os parentes é impedida a tempo. Nas duas circunstâncias também, a interferência do destino é responsável pela realização do incesto, mas, no momento em que é voluntariamente consumado por Carlos, deixa de ser de responsabilidade superior e passa a ser de responsabilidade humana. O destino em A Tragédia da Rua das Flores e em Os Maias é, em certa medida, condicionado pela atuação e hybris, desmedida das personagens. Genoveva abandona o filho bebê e suicida-se ao certificar-se de que é amante do próprio filho; Pedro casa-se, contrariando as ordens do pai, é traído e suicida-se; Carlos falha em razão da falta de vigor e energia. São personagens impulsionadas pela emoção e não pela razão. O impulso que rege o destino das personagens dimana dos atos inconseqüentes e românticos delas próprias. A efabulação trágica, ou seja, a construção do enredo sobre o fatalismo trágico afigura-se ao homem que o seu itinerário existencial resulta inevitavelmente de forças superiores, contra as quais se faz impossível combater. Victor e Carlos, do mesmo modo que Édipo, são afetados inocentemente pelas malhas do destino. Assevera-se, pois, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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que é o destino o responsável pela aproximação e estabelecimento de relações entre as personagens incestuosas e, do mesmo modo, é também ele o responsável pela separação delas. Tanto Victor quanto Carlos sentem e quase chegam a ter consciência de que são impelidos por impulso e força incompreensíveis. Eles mesmos se perguntam acerca do motivo da aproximação e do relacionamento com as respectivas amadas. Na ironia comovente de A Tragédia da Rua das Flores e de Os Maias, as personagens sucumbem à desgraça, porque são vítimas inconscientes de um destino demolidor. O destinolega vestígios por onde passa e estes não são levados em conta pelas personagens. Elas se enganam e se iludem irrefletidamente pelos próprios sentimentos e avançam cegamente para o incesto. Carlos ilude-se ao tentar persuadir a si próprio com argumentos e razões justificáveis de que é sua obrigação ir dizer a verdade à Maria Eduarda, pois são pessoas fortes e seguras. Carlos desafia as leis morais ao estar novamente com ela. O incesto consciente de Carlos, vítima de subjetividade e paixão que se sobrepõem à lucidez da razão, é o resultado de uma ironia trágica que representa o homem como vítima passiva de forças que desconhece e sobre as quais não tem nenhum controle. O fado favorece o encontro de Victor e Genoveva e de Carlos e Maria Eduarda, provocando acontecimento funesto com a fatalidade simbólica da tragédia grega. Peripécia, reconhecimento e catástrofe se configuram no incesto, que é, na própria essência, proposição trágica com fixadas memórias na tragédia grega. Carlos desfruta de hábitos e costumes elevados e deseja felicidade amorosa intensa, atraente e eterna; no entanto, a ironia do destino ordena que seu amor converta-seno que há de mais desprezível, mais repugnante e mais assombroso. Ele tem tudo e por isso desperta a ambição desmedida dos deuses: é rico, bonito, inteligente, jovem e tem o amor de uma sensível e formosa mulher. Por isso, o seu destino não pode deixar de ser trágico, ao contrário do de Dâmaso, uma personagem sem nenhuma espessura trágica, já que em si nada tem que possa suscitar a cobiça dos deuses. Carlos, apesar de não ser considerado totalmente um herói trágico, porque não é punido com veemência, traz consigo alguns GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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traços desse herói quando, por exemplo, afasta do caminho tudo o que possibilite impedimento para a realização dos seus desejos, como, por exemplo, o funesto mocho da alcova, mas mesmo assim não consegue desviar da vida a infâmia da relação impura que aniquila todos os sonhos e aspirações. Os espíritos apolíneo e dionisíaco, referenciados por Nietzsche (1996), estão presentes no espírito de Carlos. A medida, bem como a desmedida, se instalam nos seus atos. Educado de acordo com o princípio apolíneo, Carlos cai sob o peso do dionisíaco. A saciedade e o asco que sente da relação antes sublime, agora marcada pela estupidez alimária, são, em certa medida, um tipo de castigo. Depois do indispensável afastamento de Maria Eduarda, Carlos toma para si a pena capital do próprio crime, conferida pela morte do avô. Já o aniquilamento de Maria Eduarda se dá por meio da abdicação do desejo de tornar possíveis as aspirações de felicidade e de união por amor para consentir ou conformar-se com casamento conveniente, que concilia duas pessoas desenganadas da e com a vida. Carlos afasta-se e deixa de ser visto durante dez anos. Poder-seia dizer que a personagem cumpre itinerário expurgatório no espaço de todo o período de ausência. Assim, se em algum momento tem-se a possibilidade de dizer que Carlos atinge, seguramente, a condição de herói, e de herói trágico, é nesse. Maria Eduarda, pode-se dizer, tem características do herói trágico, porém não no conceito exato do clássico, mas na evolução romântica da concepção de tragédia. Circunstâncias ruinosas a seguem de perto desde o seu nascimento. Não aceita pelo avô, separada do pai e abandonada moralmente pela mãe, tem de, desde cedo, entregar-se à vida das paixões mundanas. Consoante Suely Flory (1983), a subjetivação do trágico funda-se na modificação do sentido de culpa e suas conseqüências. A culpa do herói romântico é relativa, porque a sociedade é falsa e se fundamenta num mundo de dissimulações. Assim, Maria Eduarda denota a subjetivação do trágico que provém das tragédias românticas. Particularidades e condições externas estabelecem as condições do seu comportamento, todavia, conserva-se firme, fiel a si mesma, no princípio certo de seu sentimento. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Está-se diante de dois romances em que os elementos constitutivos da fábula trágica estão presentes, até mesmo em se tratando do aspecto ameaçador da morte que abarca as obras A Tragédia da Rua das Flores e Os Maias. O conflito, nos romances queirosianos em questão, manifestase através de uma oposição que põe em cheque a vida, assim como a felicidade e o sucesso daqueles que estão implicados. Em ambos os romances, depara-se com conflitos cerrados, em que as personagens são aniquiladas. Em Os Maias, Pedro suicida-se por ter sido abandonado por Maria Monforte, esta se arruina com a vida de andante e prostituta. Afonso da Maia morre de desgosto ao descobrir que os netos se relacionam incestuosamente. Maria Eduarda concebe uma vida sem grandes emoções, ao lado de um marido mais velho e rico, e Carlos Eduardo viajapelo mundo em busca de coisa alguma. Volta a Portugal para matar alguns desejos, como, por exemplo, degustar a comida tradicional; decide, por fim, viver em Paris. Contudo, não consegue encontrar a felicidade, nem mesmo a paz de espírito que tanto busca. Na Tragédia da Rua das Flores, Pedro da Ega morre logo depois de ter sido abandonado pela mulher, que volta depois de muitos anos ao país de origem a fim de refazer a vida, mantém relação incestuosa com o filho que deixa bebê e, ao descobrir, endoidece e joga-se da janela. Timóteo lamenta e não suporta. Victor, o filho, enlouquece, viaja para Paris, sente uma saudade infinita, mas nunca vem a saber que Genoveva é sua mãe. Em Eça de Queirós, a busca do sentido termina por afirmar de modo absoluto o sem-sentido de tudo, o desatino do incesto, da morte e da completa incerteza da vida. A implacabilidade do destino, a impossibilidade da real comunhão com o outro ou a transitoriedade dos instantes de plenitude levam, inevitavelmente, as personagens queirosianas, ao mais completo estágio de destruição, angústia, aflição e amargura. Não há dúvida de que a visão de Eça de Queirós é trágica. E isso, possivelmente, deve-se à própria visão pessoal do escritor e de sua geração, e não necessariamente à visão do que realmente foi Portugal. Essa visão trágica muda nas últimas obras do escritor. Em ACidade e as Serras, por exemplo,a crítica à decadência do país diminui ou, pelo menos, está mais entranhada no texto literário. Eça GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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parece encontrar, segundo Antônio Cândido (1978), a tradição de Portugal, pois cria narrativa integrada no espaço principal da civilização portuguesa, afastando-se do naturalismo militante, do realismo de combate e do romance social. A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras perdem em consistência e força dramática, porém, consoante José Maria Bello (1977), esses romances ampliam e, ao mesmo tempo, abrandam a visão de mundo do autor. Nas últimas narrativas que Eça de Queirós produz, o socialismo, assim como a irreverência, apesar de não destruídos, são equilibrados, uma vez que a convicção reformista da juventude é amortecida. Para finalizar, acredita-se importante considerar que muito mais que ideológica, a trajetória de Eça de Queirós é literária, mais que a visão socialista e irreverente da obra, o que soa é o caráter artístico, o que permanece é a realização do ideal de arte. Conforme Etelvina Maria de Jesus Soares (1996), para ser grande, qualquer obra literária tem de, concomitantemente, refletir os problemas de determinado tempo e introduzi-los num plano histórico importante para o desenvolvimento da civilização. Assim sendo, podese considerar que Eça de Queirós utiliza e explora o cenário local com os seus dramas pessoais e consegue representar, com grande propriedade, por meio dos elementos constitutivos da fábula, a sua visão trágica do homem e do mundo. THE TRAGIC STORYTELLING IN “A TRAGÉDIA DA RUA DAS FLORES” AND “OS MAIAS” ABSTRACT: The article will discuss about the tragic storytelling in the books A Tragédia da Rua das Flores and Os Maias, by Eça de Queirós. The objective is to discuss the constitutive elements of the tragic fable, the adventure, the recognition, anagnorosis and the catastrophe, sparagmós in the two books presented. The development of the intrigue happens according to the tragic storytelling defined by Aristotle as the incestuous affection of Victor and Genoveva and Carlos and Maria Eduarda are discovered. In both books A Tragédia da Rua das Flores and Os Maias, there is a sudden change in the occurances, causing a turnaround from success to misfortune. About the catastrophe, it is more calamitous in A Tragédia da Rua das Flores, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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because Genoveva commits suicide, Victor suffers and Timóteo, miserably dies. In, Os Maias, the catastrophe is limited to the separation of the two lovers and to the death of Afonso da Maia, who could not live after the incest of his grandchildren and the conscious insistence of Carlos in his tragic mistake. Eça de Queirós can represent, through constitutive elements of the fable, his tragic point of view of the men and the world. KEYWORDS: Tragic fable. A Tragédia da Rua das Flores. Os Maias REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973. BERRINI, B. O incesto: traço romântico da ficção queirosiana? In: EÇA E OS MAIAS: CEM ANOS DEPOIS. Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Actas do 1º Encontro Internacional de Queirosianos. 1 ed. patrocinada por Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação Eng. António de Almeida. Porto: Asa, 1990. p. 31-38. BUESCU, M. L. C. O regresso ao “Ramalhete”. In: ______. Ensaios de Literatura Portuguesa. Lisboa: Presença, 1986. p. 104-119. FLORY, S. F. V. A semiologia dos objetos e a configuração do trágico em Os Maias. 1983. 191f. Dissertação (Mestrado em Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Assis, 1983. LESKY, A. A tragédia grega. Tradução de J. Guinsburg, Geraldo Gerson de Souza e Alberto Guzik. São Paulo: Perspectiva, 1996. LIMA, I. P. de. As máscaras do desengano. Para uma abordagem sociológica de Os Maias de Eça de Queirós. Lisboa: Caminho, 1987. LISBOA, M. M.. Teu amor fez de mim um lago triste. Ensaio sobre Os Maias. Porto: Campo das Letras, 2000. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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NIETZSCHE, F. A origem da tragédia. Tradução de Álvaro Ribeiro. Lisboa: Guimarães Editores, 1996. REIS, C. Perspectivação e crise do Naturalismo: Os Maias. In: ______. Estatuto e perspectiva do narrador na ficção de Eça de Queirós. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1984. p. 115-153. ROSA, A. M. da.Eça, discípulo de Machado? Um estudo sobre Eça de Queirós. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1963. SARAIVA, A. J.; LOPES, Ó. Realismo e Naturalismo; Alguns aspectos do romance realista queirosiano. In: ______. História da Literatura portuguesa. I Das origens ao Romantismo. Histórias das grandes Literaturas, VIII. Literatura Portuguesa. v. 1, Lisboa: Estudios Cor, S.A.R.L., 1966, p. 202-209; 246-248. SOARES, E. M. de J. S. O trágico em Bernardo Santareno. 1996. 166f. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa) – Faculdade de Letras de Coimbra,Universidade de Coimbra. Coimbra, 1996. VALÉRIO, Elisa. Os Maias de Eça de Queirós. Lisboa: Editorial Presença, 1997.

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A FICÇÃO DO PORTUGUÊS Tatiana Batista Alves 1 RESUMO: O artigo analisa como a obra Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, representa o português colonizador do Brasil. Ao relatar minuciosamente a formação do povo lusitano e sua aptidão para a miscigenação, o autor Gilberto Freyre transcende os discursos oficiais da época e constrói um personagem empreendedor e contemporizador, que se destaca positivamente dos demais colonizadores europeus. Por sua vez, o português colonizador também inventa a imagem da sociedade brasileira- a ficção da ficção. Ao afirmar que a nossa colonização formou uma sociedade e uma cultura híbridas, o autor não se esquece de apontar para o caráter híbrido do português, no que diz respeito as suas origens. Análise polêmica, que recebe críticas severas ao longo dos anos, a obra é também um das maiores contribuições para o entendimento da formação da sociedade brasileira patriarcal e escravocrata. PALAVRAS-CHAVE: Ficção. Sociedade.

Ciência.

Português.

Colonização.

O terceiro capítulo de Casa-grande & senzala procura definir os contornos do colonizador português. Ao construir a imagem do lusitano, muito mais que diferenciá-lo dos índios e negros, o ensaio procura estabelecer as características que o fazem superior aos demais colonizadores europeus, basicamente o espanhol e o inglês. Figura vaga [a do colonizador], falta-lhe o contorno ou a cor que a individualize entre os imperialistas modernos. Assemelha-se nuns pontos à do inglês; noutros à do espanhol. Um espanhol sem a flama guerreira nem a ortodoxia dramática do conquistador do México e do Peru; um inglês sem as duras linhas puritanas. O tipo do 1

Colégio Pedro II, Departamento de Língua Portuguesa e Literaturas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, CEP 2203-011, [email protected] . Doutora em Literatura Comparada (UFF).

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contemporizador. Nem ideais absolutos, nem preconceitos inflexíveis. (C.G.S., 189)2 É pela imagem do colonizador “contemporizador” e flexível que Gilberto Freyre ratificará a miscigenação no Brasil. A imagem imprecisa do português nos retira a incapacidade de defini-lo com objetividade e clareza, o que poderia ser um problema para o escritor, mas, ao contrário, é encarado como um ponto positivo no português. Se a sociedade brasileira é híbrida devido à fusão dos três grupos étnicos, o próprio colonizador já vinha também de uma origem híbrida. Essa característica tornou o português mais flexível frente às diferenças culturais e religiosas dos nativos e dos escravos africanos. Num movimento pendular, Gilberto Freyre procura equilibrar a balança caminhando sempre de um lado para o outro — ora mostrando o português como um genial colonizador, ora apresentando o seu lado truculento nas relações de poder com os escravos. Entretanto, o ponto de vista do autor fala mais alto e acabam se fortalecendo os aspectos positivos do português. O escravocrata terrível que só faltou transportar da África para a América, em navios imundos, que de longe se adivinhavam pela inhaca, a população inteira de negros, foi por outro lado o colonizador europeu que melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores. O menos cruel nas relações com os escravos. É verdade que, em grande parte, pela impossibilidade de constituir-se em aristocracia européia nos trópicos: escasseava-lhe para tanto o capital, senão em homens, em mulheres brancas. Mas independente da falta ou escassez de mulher branca o português sempre pendeu para o contato voluptuoso com a mulher 2

Todas as citações de Casa-grande & senzala partem da edição FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime e economia patriarcal. 36ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. Elas serão referidas por C.G.S., para simplificar a leitura.

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exótica. Para o cruzamento e miscigenação. Tendência que parece resultar da plasticidade social, maior no português que em qualquer outro colonizador europeu. (C.G.S., 189) A maleabilidade do português favoreceu a deformação e a caricatura de sua imagem no sentido de vulgarizá-la à medida que foi se miscigenando com os negros e índios. Em estilo literário, o autor mostra que o nosso colonizador é visto de forma achatada — a imagem do bufão, do gordo e do guloso por quitutes e negras. Para Gilberto Freyre, tal deformação seria um preconceito com o fundador da “maior civilização moderna nos trópicos”. Portanto, a tentativa de torná-lo herói aparece como um contraponto ao estereótipo do português como figura engraçada e quixotesca difundida pelo resto da Europa e, de certa forma, admitida pelos brasileiros após a proclamação da República. A deformação do português tem sido sempre em sentido horizontal. O achatamento. O arredondamento. O exagero da carne em enxúndia. Seu realismo econômico arredondado em mercantilismo, somiticaria, materialização bruta de todos os valores da vida. Seu culto da Vênus fosca, de formação tão romântica como o das virgens louras, desfigurado em erotismo rasteiro: furor de donjuan das senzalas desadorado atrás de negras e mulecas. (C.G.S.,190) Mesmo tendo uma posição que enaltece o colonizador, Gilberto Freyre nos oferece uma imagem múltipla e rica de tudo o que vê, porque mostra os antagonismos das pessoas, de suas relações e da própria história. Outro aspecto importante é a distinção do colonizador e do português da metrópole. A obra aponta que, na colônia, o poder da Igreja foi substituído pelo poder da casa-grande de engenho, fato que será determinante na nossa organização social, bem como nos nossos GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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costumes e cultura. Os jesuítas tinham como inimigos os senhores de engenho, já os demais padres, “gordos e moles”, acomodavam-se à casa-grande — muitas vezes morando nela — como pessoas da família, como aliados do sistema patriarcal. É muito importante essa caracterização freyreana do português colono, porque nos dá suporte para compreendermos as estruturas políticas e sociais da nossa sociedade, que bebem até hoje na fonte do patriarcalismo, nas relações de senhor e escravo. Para representar a imagem do colonizador, o autor se utiliza dos mesmos recursos do resto da obra; dentre eles, conta histórias, “causos” de que ouviu falar, para dar mais veracidade a sua tese, deixando-nos a sensação de estarmos lendo algo íntimo, um segredo, aquilo que é informal, como a passagem abaixo. Narra Coreal que dizendo um dia a um santista já ter servido entre ingleses flibusteiros o homem imediatamente arrepiou. Perguntoulhe mais de trinta vezes se Coreal não era herege. E apesar de todas as suas afirmativas em contrário não resistiu ao desejo de espargir com água benta o aposento em que estavam. (C.G.S., 199) A proposta de Gilberto Freyre é apresentar o português como o homem cosmopolita, capaz de se relacionar com várias etnias e de formar o brasileiro, homem híbrido, indefinido, amálgama de várias origens. O ensaio nos mostra que o colonizador foi capaz de se misturar não apenas com o índio e o negro, mas com europeus das mais variadas procedências que aqui chegavam. Livres da suspeita de heresia, todos eram recebidos amigavelmente. Essa liberalidade com as demais etnias é resultado da própria composição cosmopolita e heterogênea do povo lusitano, “formando um todo social plástico”. O autor vai até o português histórico para demonstrar sua tese. Ao apresentá-lo como um indivíduo híbrido já nas suas origens, o ensaio procura, na verdade, saudar o português colocando-o como herói na história da colonização brasileira, porque seria o verdadeiro GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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responsável pela maior riqueza da nossa nação — a diversidade cultural e uma “etnia” formada a partir da mistura. Sabemos que tudo isso só aconteceu por causa da capacidade contemporizadora do lusitano. Contudo, esse caráter “plástico e macio” do português vem da herança africana que suavizou a inflexibilidade européia. Gilberto Freyre marca enfaticamente essa diferença que existe entre a Península Ibérica, sobretudo em Portugal, e o resto da Europa — o quente e macio peninsular em oposição ao frio e rígido anglo-saxão. Quando afirma que Portugal foi uma região de fácil trânsito “para onde primeiro e com mais vigor transbordaram as ondas de exuberância africana” (C.G.S., 208), Freyre não estabelece um confronto entre o exotismo africano e a rigidez cristã portuguesa. Ao contrário, sugere uma fusão no sentido de transformar a cultura lusitana em algo mais suave e, agora sim, cordial.“De modo que ao invadirem a Península, árabe, mouros, berberes, mulçumanos foram-se assenhoreando de região já amaciada pelo sangue e pela sua cultura; e talvez mais sua que da Europa” (C.G.S., 208). A tentativa de exaltação do povo lusitano percorre toda a obra, mas, sem dúvida, será mais recorrente no capítulo III de Casa-grande & sensala, que tratará especificamente do colonizador. Chega mesmo a ponto de confrontar a bondade cristã portuguesa com a frieza e crueldade dos judeus que habitavam em Portugal. A criação do Tribunal do Santo Ofício seria uma forma de “conter os ódios que se levantaram quentes, fervendo, contra a minoria israelita”. Os judeus haviam se tornado antipáticos menos pela sua abominação religiosa do que pela falta completa de delicadeza de sentimentos, tratando-se de questões de dinheiro com os cristãos. Suas fortunas acumularam-se principalmente pela usura, proibida pela Igreja aos cristãos, ou pelo exercício, na administração pública, nas grandes casas fidalgas (...). (C.G.S., 208)

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Dessa forma, o português, mais uma vez, é transformado em herói. Contudo, não se pode associá-lo diretamente ao modelo de herói cristão produzido pela literatura romântica do século XIX, que é valorizado pelo fato de ser branco, europeu e, sobretudo, cristão. O português de Casa-grande & Senzala é heroificado, porque possui a superioridade da cultura europeia e a alma do continente africano, já é, portanto, híbrido, vindo de uma sociedade “móvel e flutuante”, que se desenvolvia através de intensa circulação horizontal e vertical entre vários povos. Um povo “cujo passado étnico e social não acusa predomínio exclusivo ou absoluto de nenhum elemento, mas contemporizações e interpenetrações sucessivas.” (C.G.S., 217) Configura-se, portanto, uma tese baseada tipicamente na concepção dialógica. Já contemplado em vários estudos, o português se afirmaria pela sua transição entre o Oriente e o Ocidente e, mais tarde, pela presença na América. No Brasil, será a partir dos estudos de Gilberto Freyre que teremos dados, referências e informações baseadas em profunda pesquisa para entender melhor a especificidade do português, pois o autor afirmará a nossa pluralidade a partir da verificação do “não-europeísmo” do colonizador lusitano. Pela comprovação do caráter híbrido do português, apresentará e justificará sua tese sobre a formação nacional brasileira a partir da miscigenação de raças e cultura e, portanto, a partir de dialogismos étnicos e culturais. A experiência portuguesa do bicontinentalismo começa em sua préhistória e é retomada com a colonização do Brasil. É a partir daí que se justifica o processo da miscigenação: a capacidade do português de existir a partir dos contrastes, do plural, das diferenças, e que mais tarde é transferida à sociedade brasileira, torna-o capaz de conviver com o outro em harmonia e de se adaptar a outros espaços. Assim, a própria relação senhor e escravo permite que o africano (escravo) assuma também o papel civilizador na sociedade patriarcal. Da mesma forma, elementos que em muitos países são motivos de lutas e separações, no Brasil acabam por se harmonizar. Será a partir dos ensinamentos de seu maior mestre, Franz Boas, e da observação de uma cultura mestiça no Brasil que Gilberto Freyre perceberá a diferença entre os conceitos de raça e de cultura. A idéia de uma raça híbrida estaria associada a uma noção de não-raça, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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isto é, o cruzamento impossibilitaria a existência de uma raça. Essa inexistência ou “a-racialidade” (McNee, 2006) seria a base não só do português, mas, sobretudo, do tipo brasileiro, porque “vira uma racialidade hiperbólica. A singularidade da nação se apoia precisamente no seu confronto com a raça” (McNee, 2006). Esse tipo novo é concretizado no espaço da escrita e da poeticidade, formando, dessa forma, uma verdade criada por ambivalências e interações de ideias, espaço de fascínio e de repulsa. Quando Freyre inova a partir de seu pioneirismo nos estudos culturais e na micro-história, apresenta uma proposta de texto extremamente inclusiva, na medida em que dá voz a pequenos representantes da história e também a escritas não-hegemônicas, isto é, que não eram tratadas como “disciplinas”. O grande liame da questão, que deu espaço a inúmeras críticas posteriores, é que as pequenas vozes que conversam em Casa-grande & Senzala acabam, muitas vezes, cantando a música lusitana, no sentido de abrandar as imagens truculentas produzidas no sistema colonial. Quando Freyre aponta para o caráter plástico do português (o europeu com alma africana) através da hibridez cultural, ele não só suaviza aquele que está no poder como o próprio colonialismo, construindo um Brasil “cronicamente viável”. O próprio autor entende que o português foi o colonizador capaz de estabelecer “o sistema econômico que nos dividiu, como um deus poderoso, entre senhores e escravos.” (C.G.S., 379) Ao criticar o conceito de raça, Gilberto Freyre acaba tomando também um pensamento a partir das bases econômicas, porque direciona a análise para o modo de produção colonial, no qual a “casagrande” e a “senzala” dariam conta de explicar a singularidade brasileira. O autor afirma também que a dualidade cultural e de caráter dos portugueses, promovida pelo enlace com os povos árabes e africanos, foi fortalecida pelo sistema de escravidão, que estreitava as relações entre culturas e etnias diferentes. Após a afirmação cristã em Portugal, os mouros tornaram-se escravos, favorecendo assim a influência dessa etnia (leia-se escravo) sobre o povo português (leia-se senhor). Diz o autor de Casa-grande & Senzala: “influência que predispõe como nenhuma outra para a colonização agrária, escravocrata e polígama — patriarcal, enfim — da América tropical” (C.G.S., 208). GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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É possível apontar para o autor romântico, mas é preciso entender que se trata do seu caráter idealizado e subjetivo, não podemos associá-lo à ideologia romântica da época. Seu nacionalismo está muito mais em sintonia com a postura modernista, no sentido de querer refletir e responder o que é o Brasil, através da combinação de culturas. Essa sintonia, porém, merece algumas ressalvas significativas: se pensarmos sobre a relação entre cultura e raça na obra de Gilberto Freyre, verificaremos sua diferença com muitos contemporâneos modernistas, embora todos tenham o mesmo objetivo. Casa-grande & Senzala dialoga, sobretudo, com os modernistas de 1920, no sentido de apresentar outra tese que difere da deles. Se a 1ª geração entendia a mestiçagem como mistura e cruzamento das três etnias e culturas para formar um quarto produto — o brasileiro — que não seria nenhum dos três, mas algo formado a partir deles, Gilberto Freyre apresenta outra perspectiva. Para ele o brasileiro seria tudo ao mesmo tempo, isto é, sua idéia de miscigenação seria o caráter plural do indivíduo, a capacidade de ser múltiplo, vários ao mesmo tempo. Não seria mais a mistura oswaldiana, formando um outro, mas a presença de todos ao mesmo tempo, uma formação tipicamente polifônica. Para comprovar tal tese, o autor decompõe o brasileiro contemporâneo até chegar a seus mínimos denominadores — o índio, o negro e o português — fazendo um grande inventário de cada manifestação brasileira e de suas origens. A tese é fortalecida ainda mais quando ele mostra a multiplicidade ao decompor a figura do português — o colonizador formado a partir da união do ocidente com o oriente — e, logo em seguida, ao transpor essa imagem híbrida para o povo americano. Nesse momento, é bem-vinda a reflexão sobre o conceito de mestiçagem para Gilberto Freyre, porque se trata de uma idéia do povo brasileiro/povo mestiço, a partir da noção do povo lusitano, também povo mestiço. Esclarecendo melhor, a presença das várias culturas no processo civilizatório do Brasil se daria pela capacidade do colonizador de conviver com as demais culturas, dentro do espaço da casa-grande. Essa capacidade se explicaria na própria origem da cultura portuguesa — formada pela presença de várias outras, através do convívio entre senhor e escravo. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Há, portanto, nessa abordagem, uma transposição para os trópicos desse mecanismo de hibridização ocorrido na Península Ibérica, que só é possível, segundo Freyre, no sistema patriarcal de escravidão. Nesse sentido, Freyre prova que a família patriarcal é a base da formação não só da sociedade como da esfera pública. Através da convivência, na casa-grande, entre as três culturas, formar-se-ão os mecanismos de relação das instituições públicas e a cultura brasileira, fundamentadas, principalmente, na confusão entre o público e o privado. É evidente que Gilberto Freyre inaugura uma nova posição que daria conta dessa sensação de indefinição no momento de se definir o brasileiro. distinguindo raça de cultura e por isto valorizando em pé de igualdade as contribuições do negro, do português e — em menor escala — do índio. nosso autor [Gilberto Freyre] ganha forças não só para superar o racismo que vinha ordenando significativamente a produção intelectual brasileira mas também para tentar construir uma outra versão da identidade nacional, em que a obsessão com o progresso e com a razão, com a integração do país na marcha da civilização, fosse até certo ponto substituída por uma interpretação que desse alguma atenção à híbrida e singular articulação de tradições que aqui se verificou. (Araújo, 2005:28) A heterogeneidade do português-colonizador, bem como a sua integração com diversos grupos sociais, caracteriza a nossa colonização e a formação da sociedade brasileira. Nesse sentido, a obra construirá a imagem de um português rabelaisiano, cheio de contrastes, porque foi habituado a viver no espaço da cultura oficial e da popular ao mesmo tempo. Ricardo Benzaquen de Araújo (2005) já aponta para a forte relação do estudo de Mikhail Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais e de GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Gilberto Freyre em Casa-grande & Senzala, porque ambos preocupam-se com o universo de uma civilização baseada em contrastes entre a “cultura oficial, baseada na seriedade, na hierarquia e em aristocráticas separações, e uma popular, preocupada com a promoção da familiaridade, da liberdade e do humor.” (Araújo, 2005:66) Embora acabe volatilizando o problema da divisão de classes entre pobres e ricos com sua ideia de miscigenação, Freyre inova quando retrata poeticamente a vida privada das pessoas comuns e quando destrói a hierarquização das raças e inventa um Brasil desejado na imaginação utópica. Apresentar uma leitura fechada de Casa-grande & Senzala é algo extremamente contraditório, na medida em que a própria obra não conclui, isto é, não constrói um sistema fechado. A obra é uma tese, com suas hipóteses e comprovações, mas comprovações extremamente vivas e abertas e, por isso, não comunga com os discursos acadêmicos tradicionais. Ela permite múltiplas interpretações e um debate infinito, pois, sendo sua grande questão o que é ser brasileiro, trata de algo que está sempre em construção, uma vez que, enquanto o brasileiro existir, estaremos sempre refletindo e ao mesmo tempo construindo a nossa brasilidade. Dessa forma, pesquisar o que nos faz brasileiros não se trata de pensar em algo que foi, mas de alguma coisa que é e sempre será. Essa perspectiva envolve a questão do tempo e da história em processo, em que o passado, o presente e o futuro não devem existir de forma isolada. O conceito de tempo tríbio, formulado por Gilberto Freyre, é um dos pontos principais para se entender a tese contida em Casagrande & Senzala. Entender o que é ser brasileiro na visão de Gilberto Freyre é analisar a partir de uma concepção de história, cultural e de tempo contínuos, isto é, passado, presente e futuro estão conjugados para sempre. O nosso presente é a continuidade de um processo histórico, portanto, um tempo em formação, vivo, que se renova num processo cíclico, no qual a história é eterna e infinita. Casa-grande & Senzala deixa muito claro que a história do Brasil não tem fim e deve ser vista a partir de várias vertentes. Gilberto Freyre, para explicar o brasileiro, vai até o português histórico para entender o nosso colonizador nas raízes. Da mesma forma, procurou GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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entender quem eram os habitantes que já aqui viviam, os índios, e, por fim, quem foram as pessoas que formavam a força motriz da nossa cultura e da nossa economia, os escravos africanos. Para se tentar construir uma imagem do brasileiro, o autor segue um método indutivo de raciocínio, ou seja, a reflexão parte de um dado particular para o geral. No caso, através da indução, partimos de observações isoladas sobre o índio, o negro e o português, seus hábitos, suas origens e suas culturas para, então, examinarmos e chegarmos a um dado geral — a sociedade brasileira. Portanto, o autor pressupõe que a cultura brasileira é algo vivo, fruto de um constante diálogo com culturas que se cruzam. Nesse sentido, Gilberto Freyre demonstra como culturas anteriores a nossa foram reinterpretadas e absorvidas pela sociedade atual e como aspectos do passado possuem vida na cultura brasileira. O tempo tríbio freyreano entende que existe um diálogo entre culturas distintas no tempo e no espaço, capaz de deixá-las vivas além do seu tempo, herdadas, relidas e reformuladas por culturas posteriores. A proposta fundamental de Casa-Grande & Senzala está ligada diretamente à ideia do grande tempo. Trata-se de avaliar a capacidade que a cultura portuguesa, a indígena e a africana tiveram de se manter vivas na cultura brasileira, ganhando novos sentidos, através de um grande diálogo entre si no grande tempo. Essa leitura é muito clara na medida em que Gilberto Freyre em nenhum momento faz análise de fatos isolados, ao contrário, os fatos para ele estão sempre relacionados. E talvez seja essa uma questão importante para tentar compreender a sua visão em relação ao sistema escravocrata. Só é possível compreender sua posição se levarmos em conta que seu olhar sobre o escravo está sempre relacionado com outros grupos da civilização. Em artigo para o Diário de Notícia3, o autor afirma Quando se diz, por exemplo, que o escravo, de modo geral, foi bem tratado no Brasil, não se faz uma afirmativa absoluta mas relacionada 3

“Fatos isolados e fatos relacionados”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 23/04/1950. (Disponível na Biblioteca virtual Gilberto Freyre – http://bvgf.org.br)

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com outros fatos. Relacionada com a vida vivida por outros grupos da sociedade brasileira, livres porém abandonados à sua sorte pelo então vago paternalismo do governo. Relacionada com a vida vivida por outros grupos de escravos em outras sociedade escravocratas da América. Relacionada com a vida vivida por outros grupos escravocratas em outras sociedades escravocratas ou quaseescravocratas da Ásia, da África, da própria Europa. Relacionada com a vida vivida por outros grupos de operários, aparentemente livres, da Europa, nos primeiros decênios que se seguiram à Revolução Industrial: período em que o sistema escravocrata esteve entre nós em pleno vigor. Relacionada com a vida vivida pelos próprios senhores brasileiros da época: pela maioria e não apenas pelos mais opulentos ou fartos. Sem dúvida, o artigo foi uma resposta às críticas que o acusavam de fazer apologia ao sistema escravocrata e um esclarecimento de que, para o autor, não se trata de ser a favor ou não da escravidão no Brasil, mas de fazer uma análise a partir de um contexto histórico e geográfico. Assim, a primeira conclusão a que chegamos é que a leitura de Casa-grande & Senzala deve ser feita a partir das concepções de tempo tríbio e de fatos relacionados, isto é, não podemos fazer análise dos fatos isolados no seu tempo e no seu espaço. Tal postura de observação mostra-se como uma questão capital, quando se deseja fazer uma leitura crítica da obra. Gilberto Freyre coloca os dois lados da moeda do sistema escravocrata, sem deixar, porém, de eleger um lado como ponto de vista – o lado do colonizador. A obra faz um movimento pendular — para mostrar que a nossa miscigenação é marcada por antagonismos — mas não é uniforme. Valoriza-se muito o sistema e o colonizador, e em alguns momentos mostram-se as suas mazelas e fatos hediondos cometidos com os nativos e com os escravos. Como se fosse uma estratégia GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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metodológica de persuasão, o autor vai de um ponto ao outro, mostrando as contradições e os antagonismos da história, mas sem deixar de colocar mais peso no lado benéfico da colonização portuguesa. Percebe-se que é um ponto da obra em que o autor se põe “em xeque”, na medida em que acentua a nossa cultura formada a partir da relação do mais alto (o senhor) com o mais baixo (o escravo), numa perspectiva muito festiva e utópica. É necessário considerar que Freyre tenha “errado na mão”, ao desenvolver, a partir dessa relação, sua tese de sociedade híbrida, pois, quando apresenta essa tese, acaba amenizando as relações de poder e a hierarquia entre o senhor e o escravo, gerando, assim, toda a polêmica em torno da ideia de democracia racial. Por outro lado, se o olhar predominante na obra é o do português-colonizador, não podemos deixar de notar que, curiosamente, Casa-grande & Senzala termina com o olhar do dominado — a voz do escravo – mostrando que o dia-a-dia do negro não foi só de alegria, que muitos escravos se suicidaram comendo terra, enforcando-se ou se envenenando, por causa dos maus tratos ou do “banzo”, saudades da África. Aponta para as doenças de brancos que os negros domésticos adquiriram e as que se apoderaram deles devido à má higiene no transporte da África para América. As contradições são infinitas na própria história relatada e na forma de se relatar. Sua conclusão se dá repentinamente e não representa o apanhado da obra, isto é, não resume o viés que ele vai eleger como ponto fundamental: o lado que diz que o Brasil só foi possível devido à capacidade de contemporização e a maleabilidade do colonizador português. Analisando a estrutura da obra, podemos notar também que o último parágrafo termina subitamente, não seguindo o estilo tradicional de um parágrafo conclusivo. O autor termina com uma citação de outro estudioso, dando-nos a sensação de que o texto teria prosseguimento. A sensação de algo inacabado é justificada porque, em primeiro lugar, Casa-grande & Senzala é a primeira parte de uma trilogia, que segue com Sobrados e Mocambos e Ordem e Progresso; em segundo lugar, porque o autor entende que a história não tem fim, ou seja, uma obra não deve ser conclusiva, já que os fatos possuem continuidade, renovam-se. É como se a história da colonização do Brasil não tivesse terminado, mas se renovado, estivesse em processo, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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readaptando-se e transformando-se à luz dos novos costumes e da nova mentalidade da sociedade. A escolha dessa conclusão é realizada muito mais pelo escritor do que pelo cientista, para poder seduzir o leitor. Assim, elimina-se qualquer possibilidade de rejeição da obra por causa de uma ideologia ou olhar único. Nas várias, porém pequenas pinceladas em que ele mostra o grito da senzala e, sobretudo, também na finalização do livro, o autor procura anteparar-se para uma crítica que o acusaria de unilateralismo. Portanto, se o ensaio é a imagem da intimidade da casa-grande, contraditória e inesperadamente, o último flash é o da senzala. Dessa forma, as estratégias discursivas da obra são elementos fundamentais na construção do sentido. O estilo literário, a linguagem escolhida, a estrutura da obra e o uso da língua devem ser levados em consideração para o bom entendimento da obra freyreana. Não estamos diante apenas de um escritor “que fala bonito”, mas diante de uma obra cujo sentido é produzido pela soma das pesquisas e dos dados colhidos pelo autor, mais as imagens construídas pela linguagem — o plano literário. Ler Casa-grande & Senzala é perceber que estamos concomitantemente diante de conteúdos científicos e de estruturas literárias. Nesse sentido, é muito importante que o leitor saiba diferenciá-los, identificando o que é realidade e o que é ficção para a construção do Pensamento Social Brasileiro. Entender a obra como um texto inacabado, híbrido e contraditório não significa falta de caráter analítico; ao contrário, a ausência de uma conclusão fechada amplia a tensão argumentativa, tornando possíveis revisões e releituras contínuas, haja vista a imensa variedade de análises da obra. Ricardo Benzaquen de Araújo, por exemplo, diz que o emprego da oralidade em Casa-Grande & Senzala facilita o caráter inacabado da obra. Portanto, mais uma vez, constatamos que a metodologia discursiva é tão importante quanto os dados e conceitos presentes no texto. A oralidade, o falar comum, é o instrumento que melhor ilustra as raízes da nossa tradição popular — linguagem e objeto de estudo estão sempre em sintonia na obra. Esse estilo permite que o autor transfira para o interior da obra a ambiguidade, o excesso e a instabilidade próprios das relações sociais da casa-grande. O tom de conversa, de bate-papo que a obra propicia termina por subverter o pensamento científico estilizado e, ainda, permite com que haja um raciocínio paradoxal, uma espécie de GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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reflexão dicotômica, na qual a cada avaliação positiva possa se suceder uma crítica ou vice-versa. Logo, se a oralidade é um ponto negativo dentro da ciência tradicional da época, nas análises freyreanas será um elemento impulsionador da cadeia reflexiva. A sua argumentação será enriquecedora justamente porque estabelece contradições entre princípios coerentes, que, em vez de se anularem, caminham de forma justaposta. Portanto, é possível concluir que o discurso de Casa-grande & Senzala está sempre em sintonia com seu objeto, sobretudo no terceiro capítulo, em que se analisa a figura do português. Ao demonstrar que a sociedade brasileira se formou a partir do cruzamento, das trocas, de uma miscigenação cheia de contradições, Gilberto Freyre constrói um texto híbrido, formado também pela pluralidade, pela miscigenação de várias formas de representação da cultura brasileira e, também, pelo equilíbrio de antagonismo, como se o texto, o próprio discurso, fosse um monumento que representasse o caráter e a cultura brasileira, isto é, como se o verbo se transformasse no objeto. Os antagonismos que se equilibram são a principal marca da cultura brasileira e do próprio ensaio freyreano. O vai-e-vem, o ziguezague discursivo e o caráter inacabado também acentuam isso na obra. Assim, não se trata de um processo dialético, em que a reflexão é marcada por progressivas ideias que se opõem e se negam, mas sim de uma análise dicotômica, na qual os conceitos se dividem em partes contrárias que se complementam. A tensão intelectual entre o Gilberto Freyre e a escola paulista (num primeiro momento, os modernistas dos anos 1920 e, depois, o grupo da USP dos anos 1950 e 1960) ocasionou algumas leituras equivocadas de Casa-grande & Senzala. Explicando melhor, ficamos com a sensação de que ou devemos abraçar a corrente marxista dos paulistas ou a corrente mais liberal do grupo pernambucano, representado por Gilberto Freyre e José Lins do Rego. Tal obscurantismo chegou ao limite de extinguir os estudos freyreanos nos cursos de Ciências Sociais durante os anos 1970 e 1980, já que o período da ditadura militar obrigava-nos a fazer escolhas políticas e ideológicas. Infelizmente, algumas escolhas (inevitáveis e necessárias!) conduziram-nos à desaceleração e ao empobrecimento do pensamento intelectual brasileiro. A breve análise dessa questão não deseja estabelecer as diferenças conceituais entre ambos os grupos, o GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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objetivo é mostrar que não se trata de escolher uma corrente, negando cegamente a outra, nem muito menos desejar um equilíbrio harmonioso das duas. O importante é que os estudiosos aproveitem essa tensão intelectual positiva e, infelizmente, tão rara em nosso país para promover conhecimento. Em vez de evitar um possível “malestar” acadêmico, são necessários a reflexão e o embate contínuo para a evolução do Pensamento Social Brasileiro. Por isso, são corretas as palavras de João Cezar de Castro Rocha (2004:249) sobre tensão no sistema intelectual brasileiro, quando reflete sobre a cisão entre paulistas e Gilberto Freyre: Ler com olhos menos comprometidos a tradição do pensamento social brasileiro talvez estimule a escrita de relatos que, em lugar de trincheiras, estabeleça pontes para compreensão mais fecunda, quer dizer, mais complexa, especialmente de pensadores cuja orientação não coincida com a nossa. Nesse sentido, devemos reconhecer que Gilberto Freyre, sobretudo em Casa-grande & Senzala, teve um papel fundamental, senão revolucionário e inovador, nas Ciências Sociais e na historiografia do Brasil. A preocupação com o singular, com a microhistória, com a experiência individual e com a sociologia na vida cotidiana passou a ter, no Brasil, valor fundamental na investigação de uma sociedade e de sua cultura. Essa metodologia inovadora já dava seus primeiros indícios não só no Brasil, através de Freyre, mas também nos EUA, com a New History, na U.R.S.S., nos estudos de Mikhail Bakhtin, e na França, através da Escola da Annales. Portanto, o sociólogo brasileiro passa a ser uma espécie de ponte intelectual entre os trópicos e o mundo.Reconhecendo a importância de sua obra nos estudos sobre o Brasil e a América Latina, Gilberto Freyre foi convidado a fazer parte de várias comissões de revistas e de centros de estudos dos mais renomados do mundo. Em 1942, por exemplo, o autor foi convidado por Georges Gurvitch para ser membro do comitê do Journal of legal and political sociology e, também em 1945, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Fernand Braudel o convida para ser membro, representando o Brasil, da Revista da Annales (Annales d’histoire économique et sociale).4 Na 2ª edição de Casa-grande & Senzala, já podemos verificar a necessidade do autor em dialogar e acentuar suas posições e diferenças com demais críticos e estudiosos. Examinando também os sucessivos prefácios de Freyre a Casa-grande & Senzala, vemos ratificada sua posição positiva no que diz respeito às divergências para a evolução do pensamento intelectual. Nos prefácios, que vão desde a 1ª edição (1933) até a 20ª edição (1980), encontramos reavaliações de considerações passadas do próprio autor, e, ao mesmo tempo, uma relação de diálogo com o leitor e com a crítica presente. Nem sempre nomeando, mas recorrendo muitas vezes ao “dizem que eu...”, “dizem que minha obra...”, Gilberto Freyre procura dialogar com as reflexões que se opunham aos deles. Também nas notas de rodapé, constantemente ampliadas e alteradas, o autor aproveita para corroborar ou negar comentários sobre a obra de algum crítico da época. Com isso, deduz-se que era intenção do ensaísta manter atualizadas a reflexão e a avaliação sobre a sua obra. Estamos, portanto, diante de um pensador que valoriza o debate e o confronto de ideias. Como um verdadeiro produtor de conhecimento, não tem medo das críticas, nem do mal-estar, não se fecha arrogantemente em seu gabinete com livros “comparsas”. Ao contrário, possui uma visão de quem prima pelo crescimento intelectual, ultrapassando o círculo de pessoas que comungam com seu pensamento, para dialogar com as mais diversas expressões. A partir desse ponto, podemos passar exatamente para o outro lado da moeda, no qual a idéia de democracia racial acaba fortalecendo as diferenças entre classes. Ou seja, a sensação de miscigenação cultural e étnica mascara a luta de classes. É importante percebermos que, muito mais que ideologia, estamos diante de um mito que intensifica a ideia de unidade nacional (do brasileiro híbrido, a mistura de todos) e, consequentemente, a sensação de que a nação brasileira é contemporizadora e, portanto, não-violenta. A nação fica preservada

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As cartas encontram-se no nos arquivos do Centro de Documentação da Fundação Gilberto Freyre

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em sua integridade, a partir da noção de que a sociedade brasileira é fruto de uma união democrática entre índios, negros e brancos. Se fomos capazes de tal façanha, devemos estar associados à imagem de pacificadores, e nunca ligados ao autoritarismo e à tirania. Esse é o nó que Gilberto Freyre não foi capaz de desfazer. Não obstante, gostaríamos de finalizar retornando à primeira perspectiva desse jogo que é Casa-grande & Senzala, lembrando que, pela primeira vez, um intelectual branco e brasileiro, amplamente reconhecido, nos traz elementos de valorização da cultura negra numa época em que a sua valorização era condenada pelos governos e pela sociedade. Enquanto o mundo pregava a pureza racial, Gilberto Freyre enaltecia a cultura brasileira afirmando, afirmando que o grande diferencial do brasileiro, aquilo que o torna mais rico culturalmente dos demais povos é justamente a sua composição híbrida, que o faz um indivíduo plural e maleável. Para tal comprovação o autor desobedece às linhas do pensamento e do discurso científico da época, criando uma escrita híbrida, com estrutura e estilo que retratam o próprio objeto de estudo – o brasileiro. THE FICTION OF THE PORTUGUESE ABSTRACT: The article examines how Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre, represent the portuguese colonizer of Brazil. To thoroughly report the formation of the lusitanian people and their ability to miscegenation, the author Gilberto Freyre transcends the official discourse of the time and builds an entrepreneur and temporizing character that stands out positively from the other European colonizers. In turn, the Portuguese colonizers also invents the image of brazilian society - fiction from fiction. To say that our colonization formed a partnership and a hybrid culture, the author does not forget to point to the hybrid character of the Portuguese, regarding its origins. Controversial analysis, which receives severe criticism over the years, the work is also a major contribution to the understanding of the formation of patriarchal slavery and brazilian society. Keywords: Fiction. Science. Portuguese. Colonization. Society. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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REFERÊNCIAS: ARAÚJO, Ricardo Benzaquén de. Guerra e paz:Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre Nos anos 30, 2ª ed., São Paulo: Ed.34, 2005. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento:o contexto de François Rabelais. (trad. Yara Frateschi), 4 ed. São Paulo:Hucitec/Brasília:EDUNB, 1999. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime e economia patriarcal. 36ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. _______________.“Fatos isolados e fatos relacionados”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 23/04/1950. (Disponível na Biblioteca virtual Gilberto Freyre – http://bvgf.org.br) MCNEE, Malcolm K. “O sublime e o monstruoso: a poética nacionalmonumental de Gilberto Freyre e Francisco de Oliveira” [Comunicação para a ABRALIC, Simpósio: Leituras multidisciplinares sobre o topos e seus sentidos na contemporaneidade, Rio de Janeiro/UERJ:Abralic, 4 de agosto de 2006]. ROCHA, João Cezar de Castro. “Gilberto Freyre e a escola paulista” in. O exílio do homem cordial. Rio de Janeiro:Museu da República, 2004. BIBLIOGRAFIA: ADORNO, Theodor W. “O ensaio como forma” in. Notas de Literatura I (trad. Jorge de Almeida), (coleção Espírito Crítico), São Paulo: Duas cidades, 34. eEd. , 2003. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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ARAÚJO, Ricardo Benzaquén de. Guerra e paz:Casa-grande & senzala e a obra de Gilberto Freyre Nos anos 30, 2ª ed., São Paulo: Ed.34, 2005. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento:o contexto de François Rabelais. (trad. Yara Frateschi), 4 ed. São Paulo:Hucitec/Brasília:EDUNB, 1999. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929 – 1989): a revolução francesa da historiografia. (trad. Nilo Odalia) São Paulo: Ed. Unesp, 1997. COUTINHO, Edilberto. A imaginação do real: uma leitura da ficção de Gilberto Freyre, Rio de Janeiro: J.Olympio; Brasilia: INL, 1983. FEBVRE, Lucien. “Préface”. In. FREYRE, Gilberto. Maitres et Esclaves. (trad. /Roger Bastide), Paris:Gallimard, 1952. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime e economia patriarcal. 36ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 1999. _______________.“Fatos isolados e fatos relacionados”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 23/04/1950. (Disponível na Biblioteca virtual Gilberto Freyre – http://bvgf.org.br) ________________. O mundo que o Português criou. (coleção documentos brasileiros), v.28, Rio de Janeiro: J. Olympio, 1940. MCNEE, Malcolm K. “O sublime e o monstruoso: a poética nacionalmonumental de Gilberto Freyre e Francisco de Oliveira” [Comunicação para a ABRALIC, Simpósio: GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Leituras multidisciplinares sobre o topos e seus sentidos na contemporaneidade, Rio de Janeiro/UERJ:Abralic, 4 de agosto de 2006]. PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Leituras Cruzadas: diálogos da História com a Literatura. Porto Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS, 2000. ROCHA, João Cezar de Castro. “Gilberto Freyre e a escola paulista” in. O exílio do homem cordial. Rio de Janeiro:Museu da República, 2004.

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VERGÍLIO FERREIRA E O ESPANTO DE EXISTIR: UMA INTERPRETAÇÃO DE APARIÇÃO Maurício Silva 1 RESUMO: O presente artigo procura analisar o romance Aparição de Vergílio Ferreira, destacando aspectos que contribuem para a constituição de um singular universo romanesco, caracterizado sobretudo pela introspecção e responsável por sua inserção na linhagem existencialista da literatura ocidental. Em Aparição, o existencialismo conhece, por assim dizer, várias dimensões, pois provoca a secção do eu em outro, cujo mútuo reconhecimento é apenas pressuposto ou sugerido, jamais certo, fazendo emergir, repentina e inexoravelmente, a consciência do próprio ser. PALAVRAS-CHAVE: Vergílio Ferreira. Romance. Introspecção. Existencialismo. Publicado em 1959, o romance Aparição de Vergílio Ferreira possui - a par de uma complexidade estrutural e simbólica flagrantes um enredo bastante simples: trata-se da história da ida do professor Alberto Soares a Évora, onde permanece por um ano, ministrando aulas no liceu local. Ali, passa a freqüentar a casa de Moura e sua família, conhecendo suas três filhas (Ana, Cristina e Sofia), além de se relacionar com outros moradores da cidade (Alfredo, Chico, Carolino etc.). Sua estada em Évora acaba provocando - involuntariamente uma série de acontecimentos inesperados, culminando com a morte de Sofia (com quem tivera um complexo relacionamento amoroso) e seu afastamento da cidade. Afora essa trama, como dissemos, simples, todo o restante revela um inusitado enredamento, a começar pela caracterização das personagens principais (Alberto e Sofia), as quais - na categorização de Forster (FORSTER, 1969; CÂNDIDO, 1987) - podem ser definidos 1

Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Programa de Mestrado e Doutorado em Educação. São Paulo - SP - Brasil. Email: [email protected]

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com personagens esféricas, isto é, construídas a partir de um deliberado aprofundamento psicológico. Outra complexidade evidente diz respeito, ainda, à constituição da narrativa, que se manifesta sob dois planos distintos, mas inter-relacionados: o plano da enunciação e o plano do enunciado, estrutura que se desdobra - consequentemente em presente e passado, narrador puro e narrador personagem, macrofábulas e microfábulas, de acordo com a análise estruturalista de Salvatore D’Onofrio (D’ONOFRIO, 1983). Uma análise igualmente de natureza estruturalista - como a de Maria Lúcia Dal Farra - dá conta não propriamente dos planos da narrativa do romance, mas de suas consequências no âmbito do discurso empregado na obra, em que a distância entre narrador e personagem é eliminada por meio do emprego da função poética da linguagem (DAL FARRA, 1978). Mas é necessário que saiamos dos limites das análises estruturalistas, para que possamos alcançar outros aspectos da dimensão estética do romance de Vergílio Ferreira. Narrado em primeira pessoa, Aparição possui, desde o princípio, um incisivo tom memorialístico, mesclando - como um caleidoscópio temporal - duas fases distintas, mas que se entrecruzam, vividas pelo autor: uma presente, em que narra, num casarão solitário, os acontecimentos vividos no agora; outra passada, que ganha continuidade numa miríade de fatos pretéritos, por meio dos quais o narrador recorda fatos vividos no outrora. No final das contas, prevalece mesmo, como afirmamos, seu sentido memorialístico, presente em quase todos os capítulos do romance, tudo resumindo-se a um conjunto quase indistinto de recordações sem fim: “neste vasto casarão, tão vivo um dia e agora deserto, o outrora tem uma presença alarmante e tudo quanto aconteceu emerge dessa vaga das eras com uma estranha face intocável e solitária” (FERREIRA, 1983, p. 22). Assim, o autor - imbuído de uma personalidade única, no seu imaginar-se a si mesmo - vai tecendo a existência presente com os fios da memória do passado, fios que se multiplicam, fios que se entrelaçam, fios que se ligam uns aos outros num contínuo e ininterrupto gerar-se, reproduzir-se, desenvolver-se. Neste sentido, pode-se dizer que Aparição é um romance, para além de memorialístico, existencialista, em que o viver humano GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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apresenta-se construído sob o imponderável peso da solidão e povoado por indefectíveis silêncios. Suspenso pelos fios da memória, esse romance autenticamente proustiano - na acepção que tal designativo possa ter de busca-do-tempo-perdido - pode, portanto, ser definido como existencialista num sentido lato: reconstrói o mundo do narrador a partir de indagações que nascem, simplesmente, do espanto de existir, numa linhagem literária que vai de Camus a Artl, de Buzatti a Malraux, de Lúcio Cardoso a Virginia Wolf: “lembro-me bem dessa primeira chuvada de Inverno, porque a chuva tem para mim o abalo da revelação e abre como auréola o halo da memória ao que nela aconteceu" (FERREIRA, 1983, p. 70). Com efeito, seu existencialismo manifesta - como em todos os autores citados - como autêntica aventura humana, não isenta da irrefreável consciência da morte, em sua luta insana contra um viver irracional. É o resgate, sem dúvida, das mesmas inquirições essenciais que, desde a tradição lírica camoniana, perscrutam infatigavelmente os mais recôndidos segredos do ser: em Aparição, emerge como temática principal do romance a própria condição humana, explorada no indissolúvel dilema entre a vida-sem-sentido e a morte-sem-razão. De fato, como já ressaltou uma vez Nelly Novaes Coelho, “Aparição é o romance onde Vergílio se debruça sobre o ser-em-si e projeta num plano vertical a sondagem da aventura humana. Seu herói, Alberto, busca o ‘eu’ essencial - aquele que se oculta sob a forma do existente e cuja verdade autêntica só é alcançada (...) numa súbita e fugaz ‘aparição’, porém jamais apreensível pelo conhecimento lógico-objetivo (...) No conflito íntimo de Alberto e nos dramas das demais personagens configura-se a problemática existencialista: a conscientização do ‘eu’ absurdamente voltado para a morte e a obscura certeza de que é no Homem que estão as respostas definitivas” (COELHO, 1973, p. 209-247). GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Em Aparição, o existencialismo conhece, por assim dizer, várias dimensões, pois provoca a secção do eu em outro, cujo mútuo reconhecimento é apenas pressuposto ou sugerido, jamais certo, fazendo emergir, repentina e inexoravelmente, a consciência do próprio ser: “no outro dia, assim que me levantei, coloqueime no sítio donde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia e me metia medo” (FERREIRA, 1983, p. 64). Não é de se espantar que isso aconteça, pois para o autor esse desdobramento do eu em outro nasce do reflexo da realidade que se espelha no mundo das formas, lembrando o célebre mito platônico das cavernas: “há uma vida atrás da vida, uma irrealidade presente à realidade, mundo das formas de névoa, mundo incoercível e fugidio, mundo da surpresa e do aviso. Assim, o próprio presente pode ter a voz do passado, vibrar com ele à obscuridade de nós” (FERREIRA, 1983, p. 71). Nesse universo habitado por seres que, embora conhecidos, parecem tão distantes, cuja intimidade necessita ser, a todo instante, conquistada ou seduzida, há apenas uma figura que mantém contraditoriamente, por sua ausência física - uma presença GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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memorialística constante: a figura do pai. Com efeito, é essa mesma figura que emerge, no romance, como ponto de partida e de chegada, como modelo e referência existenciais, como meta a ser alcançada ânsia que se objetiva numa relação atavicamente metafísica. Porém - e aí reside, ao mesmo tempo, a grandiosidade e a fragilidade da figura paterna -, seu pai, na realidade, não passa de difusa e quase impalpável lembrança: “como os místicos em certas horas, eu sentiame em secura. Fechei os olhos raivosamente e quis ver. Regressava à aldeia, a essa noite em Setembro, quando meu pai morreu. Se tu viesses, imagem da minha condição... Se aparecesses... Como me esqueces tão cedo, como te sei e te não vejo!” (FERREIRA, 1983, p. 39). Perseguido pela lembrança do pai - a qual, contudo, não deixa, por sua vez, de perseguir -, o autor passa a fazer parte de uma engrenagem em que o eu se revela múltiplo, buscando as similitudes possíveis com a figura paterna. Com efeito, a hipertrofia do eu na obra de Vergílio Ferreira é uma das questões mais candentes desse seu romance, como já se disse uma vez: “em Aparição, ocorre a hipertrofia do ‘eu’, tentando conhecer-se e ao mesmo tempo buscando integrar-se com outros ‘eu’, no sentido de atingir a verdade” (DÉCIO, 1982, p. 87). O autor tem consciência de que, não obstante, é a memória, ainda uma vez, o fio condutor de sua existência humana, uma existência vivida como mise-en-abîme. Para o autor, assim, viver se resume à lembrança de um passado remoto, em oposição à realidade mais imediata: “a evidência da vida não é a imediata realidade mas o que a transcende e estremece na memória” (FERREIRA, 1983, p. 117). Logo, toda essa dispersão do ser (aparente ou real), toda essa inexorabilidade do existir (forçada ou consentida) é resgatada, no final, pela profunda consciência da essencialidade do ser, uma idéia que, conquanto se mostre conceitualmente pleonástica, possui o inestimável GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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mérito de expor a própria psicogêse dessa mesma consciência, como revela uma das mais antológicas passagens do romance: “SOU. Jacto de mim próprio, intimidade comigo, eu, pessoa que é em mim, absurda necessidade de ser, intensidade absoluta no limiar da minha aparição em mim, esta coisa, esta coisa que sou eu, esta individualidade que não quero apenas ver de fora como num espelho mas sentir, ver no seu próprio estar sendo, este irredutível e necessário e absurdo clarão que sou eu iluminando e iluminando-me, esta categórica afirmação de ser que não consegue imaginar o ter nascido, porque o que eu sou não tem limites no puro acto de estar sendo, esta evidência que me aterra quando um raio da sua luz emerge da espessura que me cobre. E estas mãos, e estes pés que são meus e não são meus, porque eu sou-os a eles, mas também estou neles, porque eu vivo-os, são a minha pessoa e todavia vejo-os também em cima, de fora, como a caneta com que vou escrevendo...” (FERREIRA, 1983, p. 180). Reflexão sobre a vida, sobre o ser-alguém-no-mundo, sobre como dissemos - a essencialidade do ser. Enfim, sobre a existência. Num plano pouco conceitual, como é o da linguagem ou do estilo, a narrativa de Aparição procura manter a mesma “introspecção”, manifesta por meio de um jogo de tempos verbais, de insólitas e inesperadas metáforas, de uma adjetivação difusa, um tanto simbólica, como se percebe, por exemplo, em mãos subtis, silêncio inconsútil, céu espumoso, dente ingênuo ou olhar oblíquo. Desse modo, o autor procura aliar a essa linguagem singular uma verdadeira profusão de sentidos, imagens e recordações, tudo a compor o perfil psicológico do protagonista, o que quase nos faz esquecer - como sugerimos no início - que há um enredo, uma trama, uma ação romanesca. E, curiosamente, é essa quase falta de ação (ou, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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sob uma ótica diversa, essa ação em filigranas) - adensada pelos contornos de uma psiquê sutil, mas caudalosa, introvertida, mas abismal -, que faz do romance uma obra de impacto, capaz de causar a mais profunda impressão, não raro um doloroso incômodo. É que, pelos olhos do artista, perscrutamos nossa própria alma; com suas palavras, falamos ao nosso próprio íntimo; e suas dúvidas, anseios e angústias compõem, no final das contas, nossa própria vertigem de viver, nosso mais inexplicável espanto de existir. E, ao terminarmos o livro, já não somos o mesmo... VERGÍLIO FERREIRA AND ASTONISHMENT TO EXIST: AN INTERPRETATION OF APARIÇÃO ABSTRACT: The present article analyzes the romance Aparição of Vergílio Ferreira, detaching aspects that contribute for the constitution of a singular fictitious universe, characterized for the introspection and for existentialist meaning. In Aparição, the existentialism know several dimensions, carrying leads to consciousness of self.

KEY WORDS:Vergílio Ferreira. Novel. Introspection. Existencialism. REFERÊNCIAS: CÂNDIDO, Antônio. "A Personagem do Romance". In: CÂNDIDO, Antônio et alii. A Personagem de Ficção. São Paulo, Perspectiva, 1987, p. 51-80. COELHO, Nelly Novaes. “Vergílio Ferreira. Ficcionista da Condição Humana”. Escritores Portugueses. São Paulo, Quíron, 1973, p. 209247. DAL FARRA, Maria Lúcia. O Narrador Ensimesmado (O Foco Narrativo em Vergílio Ferreira). São Paulo, Ática, 1978. DÉCIO, João. “A problemática do ‘eu’ no romance de Vergílio Ferreira”. Arquivos do Centro de Estudos Portugueses, Curitiba, Universidade Federal do Paraná, Vol. 4, No. 1: 85-94, Jan. 1982. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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D’ONOFRIO, Salvatore. O Texto Literário. Teoria e Aplicação. São Paulo, Duas Cidades, 1983. FERREIRA, Vergílio. Aparição. São Paulo, Difel, 1983. FORSTER, E. M. Aspectos do Romance. Porto Alegre, Globo, 1969. BIBLIOGRAFIA: ABDALA JÚNIOR, Benjamim. História Social da Literatura Portuguesa. São Paulo, Ática, 1990. LORENÇO, Eduardo. A Nau de Ícaro e Imagem e Miragem da Lusofonia. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. MOISÉS, Massaud. História da Literatura Portuguesa. São Paulo, Cultrix, 1994. _______________. Dicionário de Termos Literários. São Paulo, Cultrix, 1998. SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. Lisboa, Europa-América, 1986. SARAIVA, António José. Iniciação à Literatura Portuguesa. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.

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O ACENTO NO PORTUGUÊS DO BRASIL: ANÁLISE ACÚSTICA DOS GRAUS DE TONICIDADE EM DIFERENTES POSIÇÕES SILÁBICAS Consuelo de Paiva Godinho Costa 1 Michael Douglas Silva Dias 2 RESUMO: O presente trabalho faz uma avaliação instrumental dos parâmetros acústicos de frequência fundamental, intensidade e duração para investigar os graus de tonicidade no Português Brasileiro, principalmente no que concerne às diferenças entre esses correlatos acústicos nas posições tônica, pré-tônica e pós-tônica. O propósito é verificar se a posição silábica influencia esses parâmetros e se o acento relaciona-se mais com a tonicidade ou com o peso silábico. PALAVRAS-CHAVE: Acento. Duração. Graus de tonicidade. Introdução Os estudos de fonologia numa perspectiva estruturalista não se atêm suficientemente às características duracionais das sílabas, nem dos segmentos, exceto quando se verifica uma oposição sistemática, o que passa a ser usado como método de determinação de fonemas na língua, pois têm valor distintivo. Durante o período de domínio do pensamento Gerativo, entre as décadas de 1960 e 1970, as questões prosódicas3, foram praticamente desconsideradas. Exemplo disso é o 1

Doutora em Linguística pela UNICAMP e professora do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguística – PPGLin/Capes – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista – BA. CEP 45083-900. Email: [email protected]

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Mestrando em Linguística pela UESB, Programa de Pós-Graduação em Linguística – PPGLin/Capes – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista – BA. CEP 45083-900. Email: [email protected]

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De fato, os eventos suprassegmentais de maneira geral.

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próprio traço [+acento], ligado à matriz de traços da vogal acentuada, e não ao nível da sílaba. Mais recentemente, no entanto, a fonologia tem dado maior atenção aos fenômenos prosódicos e suprassegmentais como unidades e processos constitutivos do sistema fonológico das línguas, o que pode ser confirmado, por exemplo, pelos estudos iniciados na década de 1980 nos moldes da Fonologia Métrica, da Fonologia Prosódica, da Teoria da Sílaba, que foram os antecessores dos novos estudos acerca da natureza duracional de segmentos vocálicos e consonantais e outros voltados para a duração silábica. Como já se sabe, no nível fonético, a ocorrência de sílabas leves e pesadas está associada a fatores prosódicos. Entretanto, Mattoso (2004) e outros teóricos já buscaram estabelecer um padrão acentual para o Português Brasileiro (doravante PB), através de graus de tonicidade. Segundo Mattoso (2004), existem, para o PB, no nível do vocábulo fonológico, dois graus de acento: “A sua presença (do acento) assinala a existência de um vocábulo. No registro formal da pronúncia padrão do português do Brasil há a rigor uma pauta acentual para cada vocábulo. As sílabas pretônicas, antes do acento, são menos débeis do que as postônicas, depois do acento.” (CÂMARA, 2004, p.63). De acordo com o modelo de Hayes (1980), o qual desenvolve uma teoria métrica do acento e do ritmo levando em consideração o peso silábico, a sílaba é, em qualquer língua natural, a unidade que carrega o acento. E sobre isso Cagliari (2007) observa que toda sílaba carrega determinados parâmetros acústicos relevantes para sua determinação e esses elementos são primordiais para a noção de sílabas átonas e tônicas: Toda sílaba traz consigo uma certa intensidade acústica que pode variar muito em diferentes circunstâncias. As sílabas que são produzidas com um jato de ar reforçado, mais forte, apresentam uma intensidade acústica mais forte são chamadas sílabas tônicas. A tonicidade de uma sílaba pode ser reforçada por outros parâmetros como a presença de um tom GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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melódico mais agudo, uma duração mais longa e mesmo por fatores estruturais da formação das palavras. (CAGLIARI, 2007, p. 112). Para o PB, falta-nos ainda uma análise plenamente satisfatória do acento das palavras. No que concerne ao domínio de aplicação da regra de acento, os trabalhos de Bisol (1992) e Massini-Cagliari (1999) postulam que a regra de acento de verbos e não-verbos aplica-se no domínio da palavra. Por outro lado, os trabalhos de Lee (1995) e Pereira (1999) defendem que a regra de acento dos nomes aplicar-se-ia no domínio do radical derivacional, ao passo que a regra de acento dos verbos seria aplicada no domínio da palavra. Tanto Bisol (1992) quanto Massini-Cagliari (1999) defendem que o acento, no PB, é uma entidade fonológica, ou seja, são favoráveis ao valor quantitativo do peso silábico nesta língua. Diferentemente, Lee (1995) e Pereira (1999) postulam fatores lexicais, morfológicos e rítmicos para a atribuição do acento no PB. Partindo desses pressupostos, este trabalho objetiva investigar os diferentes graus de tonicidade de algumas palavras, levando em conta parâmetros acústicos como a duração, a frequência fundamental e a intensidade, além de verificar se esses correlatos acústicos podem fornecer indícios que levem a um melhor entendimento do acento no PB. Investigamos, portanto, se o grau de tonicidade está acusticamente mais relacionado ao peso (quantidade) silábica ou à posição tônica. Este trabalho não pretende esgotar as discussões em torno da posição do acento lexical no PB, mas busca apontar indícios de como uma análise acústica pode enriquecer a discussão no tocante ao acento, pois a influência da qualidade vocálica, a quantidade de segmentos na rima e outros aspectos mostram-se bastante relevantes, como veremos, para tal avaliação. Existem na literatura convergências e divergências entre os postulados das teorias fonológicas quanto ao peso silábico em relação à duração intrínseca das sílabas na sua realização fonética. Desse modo, pretende-se verificar se o grau de tonicidade está mais relacionado com a estrutura silábica ou com a posição tônica da GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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palavra. Para tanto, levaremos em consideração a posição tônica, a prétônica e a pós-tônica. Material e Método Para a realização deste estudo, foi composto um corpus com palavras trissilábicas e polissilábicas, que apresentam alternância quanto às posições de acento, com o intuito de providenciar palavras com diversos tipos de estruturas relacionadas à tônica, com uma ou duas sílabas pré-tônicas e também uma ou duas sílabas pós-tônicas. Além disso, algumas palavras que apresentam estruturas silábicas complexas foram selecionadas, no intuito de verificar se a quantidade silábica exerce influência sobre a duração em detrimento da sílaba tônica. Têm-se, então, as seguintes palavras: 1. borboleta 2. cachaça 3. cinderela 4. espátula 5. espetáculo 6. liberdade 7. literatura 8. matemática 9. patrimônio 10. triângulo Estas palavras foram inseridas numa frase-piloto (Digo “X” baixinho), transcritas individualmente em cartões brancos e apresentadas a três informantes (todos do sexo masculino, com perfeita dicção, naturais de Vitória da Conquista-BA) de forma aleatória, com um intervalo de tempo indeterminado entre uma frase e outra. Os informantes foram orientados a ler cada uma das frases em voz alta da forma mais natural possível. As gravações ocorreram numa câmera acusticamente fechada, usando-se um programa de computador de alta qualidade. Depois disso, as palavras que constituem o corpus foram analisadas por meio do software Praat, desenvolvido por Boersma e GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Weenink (2002), que possibilita a segmentação da palavra da frase e a mensuração dos parâmetros de duração, intensidade e variação da frequência fundamental em cada uma das sílabas. Esse programa converte os sinais acústicos em ondas e espectrogramas. Para medir a duração das sílabas, considerou-se o mecanismo de manipulação da sílaba dada pelo Praat e, consequentemente, o número que é automaticamente fornecido pelo programa em milisegundos (ms.). A intensidade foi medida levando em consideração o pico máximo da mesma, identificada no espectrograma através de uma linha amarela e medida em dB. No tocante à frequência fundamental, em decorrência da variação que é dada pela vibração das pregas vocais, ela foi medida através da média entre o pitch máximo e mínimo, obtidos de maneira bastante simples pelo Praat e calculada pelo Excel. As tabelas abaixo apresentam as médias das repetições dos parâmetros acústicos dos três informantes, com todos os cálculos feitos pelo Excel. Dessa forma, a análise dos dados deu-se de maneira bastante cuidadosa, uma vez que todos esses parâmetros apresentam um nível de variedade bastante tênue entre eles, o que poderia comprometer o resultado da pesquisa. Resultados e Discussões De acordo com os resultados obtidos, pode-se verificar que, a depender da estrutura silábica, há uma variação sistemática entre a duração das sílabas. Geralmente as sílabas pré-tônicas apresentam um valor relativamente maior da duração do que as sílabas pós-tônicas não finais, que, por sua vez, apresentam duração maior do que as sílabas pós-tônicas finais. Verifica-se, também, que a duração apresenta um valor matematicamente maior para as sílabas tônicas, desde que tal palavra não apresente outra sílaba com estrutura complexa. Sendo assim, percebe-se que o peso silábico, de fato, contribui para a maior duração da sílaba, em detrimento da sílaba tônica. Essa evidência pode ser vista na tabela 1:

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Intensidade Pré-tônica 1 55,8 Tônica 53,7 Pós-tônica 53,6 1 Pós-tônica 52,9 2

Fo 21,6 20,9 41,9

Duração 0,27 0,23 0,12

50,2

0,11

Tabela 1 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições da palavra triângulo Neste caso, observamos que a sílaba tônica não apresenta uma diferença significativa quanto ao parâmetro de intensidade. Já em relação à duração, a sílaba pré-tônica é maior em decorrência da quantidade, ou seja, uma influência da estrutura silábica. O mesmo pode ser verificado nas tabelas 2 e 3: Intensidade Pré-tônica 1 59,0 Pré-tônica 2 58,2 Tônica 52,9 Pós-tônica 53,6 1

Fo 33,8 21,1 12,4 19,5

Duração 0,20 0,16 0,18 0,17

Tabela 2 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições da palavra borboleta Intensidade Pré-tônica 1 50,9 Pré-tônica 2 56,4 Tônica 53,7 Pós-tônica 51,5 1

Fo 34,5 23,0 7,0 21,4

Duração 0,26 0,10 0,17 0,14

Tabela 3 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições da palavra cinderela GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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É interessante observar que a duração da sílaba pós-tônica final, neste caso, supera o valor da pré-tônica. Além disso, a intensidade mantém uma média similar entre as diferentes posições silábicas das palavras analisadas.

Pré-tônica 1 Pré-tônica 2 Tônica Pós-tônica 1

Intensidade 57,6 55,6 52,6 50,0

Fo 4,2 21,9 17,2 55,1

Duração 0,17 0,20 0,26 0,21

Tabela 4 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições da palavra patrimônio

Intensidade Pré-tônica 1 53,2 Pré-tônica 2 53,2 Tônica 51,9 Pós-tônica 51,9 1

Fo 16,1 27,2 23,9 23,2

Duração 0,12 0,24 0,29 0,20

Tabela 5 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições da palavra liberdade As tabelas 4 e 5 chamam especialmente a nossa atenção no que se refere à duração das sílabas pesadas das respectivas palavras. No primeiro caso, nota-se que a sílaba pesada (tri) não supera o valor da tônica devido ao valor bifonêmico da vogal presente na sílaba (mô). Por outro lado, em liberdade, a qualidade vocálica da sílaba tônica parece ser o aparente motivo para a maior duração em comparação à sílaba pesada pré-tônica 2. Segundo Major (1985), evidências instrumentais de correlatos acústicos apontam para o fato de que sílabas tônicas apresentam maior GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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nível de intensidade, maior pitch e maior duração. Para ele, a duração é o correlato mais consistente do acento, uma vez que os parâmetros de freqüência fundamental e intensidade são mais inconstantes: Os correlatos acústicos do acento nas línguas naturais são um ou mais dos seguintes: pitch, intensidade e duração. (…) uma sílaba tônica é mais intensa e mais longa. No PB, os dados mostram os mesmos três correlatos do acento, apesar de que a duração é o mais consistente. (MAJOR, 1985, p. 260).4 De fato, a duração é maior para as sílabas tônicas, mas cumpre observar que isso somente ocorre se não houver uma sílaba pesada na palavra. Contudo, em relação à freqüência fundamental e à intensidade, segundo os resultados da nossa pesquisa, não se confirma a hipótese de Major, visto que não há uma sistematicidade entre estes correlatos nas diferentes posições silábicas, como pode ser visto nas tabelas 6 a 10: Intensidade Pré-tônica 1 54,6 Tônica 56,4 Pós-tônica 52,9 1 Pós-tônica 53,0 2

Fo 10,1 16,4 14,5

Duração 0,15 0,21 0,19

9,0

0,12

Tabela 6 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições da palavra espátula 4

Do original: “The acoustic correlates of stress in natural languages are one or more of the following: pitch, intensity and duration. (...) a stressed syllable is more intense, and longer. In BP, the data given show the same three correlates of stress, although duration is the most consistent.” (tradução de Michael Douglas Silva Dias).

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Neste caso, a sílaba tônica é aquela que intensidade, maior duração e maior variação fundamental. Quanto à intensidade, levando-se em átonas, nota-se que a mesma não apresenta uma grande entre as posições pré e pós-tônica. Intensidade Pré-tônica 1 53,9 Pré-tônica 2 52,1 Tônica 51,9 Pós-tônica 53,0 1 Pós-tônica 51,4 2 Tabela 7 – Média dos parâmetros acústicos palavra matemática Intensidade Pré-tônica 1 54,3 Tônica 57,9 Pós-tônica 51,2 1 Tabela 8 – Média dos parâmetros acústicos palavra cachaça Intensidade Pré-tônica 1 55,2 Pré-tônica 2 58,0 Tônica 53,7 Pós-tônica 51,5 1 Pós-tônica 52,1 2 Tabela 9 – Média dos parâmetros acústicos palavra espetáculo GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

apresenta maior da frequência conta as sílabas diferença muito

Fo 12,2 33,0 22,0 21,7

Duração 0,13 0,12 0,28 0,18

22,9

0,19

entre as três repetições da

Fo 19,7 19,8 20,0

Duração 0,22 0,34 0,23

entre as três repetições da

Fo 8,8 5,2 14,7 25,3

Duração 0,15 0,11 0,29 0,20

16,8

0,13

entre as três repetições da 353

Intensidade Fo Duração Pré-tônica 1 54,4 56,7 0,13 Pré-tônica 2 55,5 14,8 0,13 Pré-tônica 3 54,3 13,7 0,12 Tônica 54,1 12,5 0,29 Pós-tônica 54,3 15,7 0,11 1 Tabela 10 – Média dos parâmetros acústicos entre as três repetições da palavra literatura Considerações Finais Como colocamos anteriormente, ainda não há, para o português brasileiro, uma análise do acento primário que seja plenamente satisfatória. No entanto, as análises aqui feitas apontam para o fato de que o português efetivamente é uma língua sensível ao peso silábico, e o peso, além de estar associado à proeminência sonora, parece também estar associado ao tipo de vogal que constitui as sílabas da palavra. Outros trabalhos mais descritivos e mais amplos precisam ser feitos para que se possa chegar a conclusões mais precisas no tocante a essa controversa questão. De qualquer maneira, as mensurações aqui feitas apontam que não há uma grande diferença matemática entre as sílabas nas diferentes posições no tocante à intensidade. Já a freqüência fundamental apresenta maior variabilidade, o que confirma a hipótese de Major (1985) de que, dentre os correlatos acústicos do acento, o mais estável é a duração. Entretanto, apesar da maior manifestação do acento em sílabas tônicas, a duração se apresenta maior quando levamos em conta a estrutura silábica. Dessa forma, as análises acústicas desenvolvidas aqui mostram que o grau de tonicidade está mais relacionado com a estrutura da sílaba do que sua posição tônica.

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THE STRESS IN THE BRAZILIAN PORTUGUESE: AN ACOUSTIC ANALYSIS OF THE DEGREES OF TONES IN DIFFERENT SYLLABIC POSITIONS ABSTRACT: The present work is an instrumental evaluation of the following acoustic parameters: fundamental frequency, intensity and duration and it aims at investigating the degrees of tone in the Brazilian Portuguese, especially concerning the differences among these acoustic correlates in tonic, pre-tonic and post-tonic positions. The purpose is to verify if the syllabic position influences these parameters and whether the stress relates more with the tone or the syllabic weight. KEYWORDS: Stress. Duration. Degrees of tone. REFERÊNCIAS BISOL, L. O acento: duas alternativas de análise. UFRGS/PUCRS. Texto não publicado, 1992. BOERSMA, P. & WEENINK, D. Praat software. Versão 4.0. The Netherlands, Amsterdam: 2002. CÂMARA JR., J. M. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis: Vozes, 2001. 36ª edição: 2004. CAGLIARI, L.C. Elementos de Fonética do Português Brasileiro. Paulistana: São Paulo, 2007. HAYES, B. A metrical theory of stress rules. Tese de doutorado. MIT, 1980. LEE, S.H. A regra do acento do português: outra alternativa. IN: Letras de Hoje. Porto Alegre. V. 29, nº4, p.37-42, 1995.

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MAJOR, R.C. Stress and Rhythm in Brazilian Portuguese. IN: BRIGHT, W. Language: Journal of the Linguistic Society of America. Vol. 61, number 2, District of Columbia: 1985. MASSINI-CAGLIARI, G. Do poético ao linguístico no ritmo dos trovadores: três momentos da história do acento. São Paulo. Cultura Acadêmica Editora, 1999. PEREIRA, M.I.P. O acento da palavra em português: uma análise métrica. Dissertação de Doutoramento em Linguística Portuguesa apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1999.

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DIVERSOS

Estudos Linguísticos Estudos Literários

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ESTUDO COMPARADO ENTRE CIRANDA DE PEDRA E A CASA DOS ESPÍRITOS: A LITERATURA E O PENSAMENTO PÓS-GUERRA NA PROSA LATINO-AMERICANA Kamila Rodrigues Lima1 Tânia Sarmento-Pantoja 2 RESUMO: O presente artigo proporciona um levantamento panorâmico sobre a Literatura Comparada, a fim de subsidiar a presente análise que tem como corpus de pesquisa os romances latinoamericanos Ciranda de Pedra, da brasileira Lygia Fagundes Telles e A Casa dos Espíritos, da chilena Isabel Allende. Neles investigamos como as relações familiares, ou melhor, os dramas familiares refletem ou até mesmo metaforizam a atmosfera da época documentada pelas autoras. Desta forma, a discussão proposta vem tornar possível uma análise comparatista que pode ser estabelecida entre a produção literária de Lygia e Allende, nos proporcionando um diálogo entre literatura brasileira e literatura hispano-americana, através da produção literária de duas autoras engajadas na vida política e social de seus países de origem. A literatura e o pensamento pós-guerra na prosa latino-americana são trabalhados pelas autoras por meio de uma linguagem instigante que vai desde reflexões concernentes a sociedade patriarcal até uma escrita que debruça-se sobre a ditadura na América Latina. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Comparada. Lygia Fagundes Telles. Ciranda de Pedra. Isabel Allende. A Casa dos Espíritos.

1

Graduada em Letras. Aluna do Mestrado em Letras (Estudos Literários) do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA.

2

Professora Associada de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA. Doutora em Estudos Literários, UNESP-Araraquara.

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Considerações iniciais Este artigo constrói-se com base na produção de um panorama com considerações a respeito da Literatura Comparada, bem como as ressonâncias desse método de análise no âmbito literário. Observamos que análises comparatistas proporcionam diálogos entre a literatura brasileira com a literatura de outras nacionalidades, neste sentido, segundo Nitrini (2000, p. 117), “uma das tendências atuais da teoria da literatura comparada é antes de tudo transcender as fronteiras nacionais e linguísticas, a fim de examinar as questões literárias gerais de um ponto de vista tradicional”. Desse modo, os estudos comparados podem ser realizados com vistas a confrontar diferentes produções e, sobretudo, observar o lugar – enunciativo, etnogeográfico, cultural, ético – ocupadas por essa produção. Considerando tais parâmetros abordamos no presente trabalho a produção literária de duas autoras latino-americanas engajadas na vida social da nação a que cada uma pertence, estamos falando da autora brasileira Lygia Fagundes Telles e da escritora chilena Isabel Allende. Lygia e Allende no atual panorama da literatura contemporânea conseguiram firmar-se no cânone literário brasileiro e hispanoamericano, respectivamente. Suas obras são dotadas de coerência estética e lucidez histórica e social. No contexto brasileiro Lygia integra um seleto grupo de escritores que abordam a realidade urbana em suas produções, sobretudo em função do período de efervescência cultural e intelectual vivido no Brasil pós-guerra. No contexto hispanoamericano, Allende sempre esteve envolvida na vida política do Chile, chegando a tornar-se uma exilada política com a derrubada do governo do seu tio Salvador Allende. A literatura comprometida de ambas as autoras fez eclodir em suas obras o conturbado período histórico que vivenciaram. Desta maneira, selecionamos como corpus para este estudo os romances Ciranda de Pedra, de Lygia Fagundes Telles e A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende. Neles investigamos como as relações (dramas) familiares refletem, ou metaforizam o clima da época documentado pelas escritoras latino-americanas.

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Ressonâncias da Literatura Comparada no Âmbito Literário Ao traçarmos um panorama concernente às ressonâncias da Literatura Comparada no âmbito literário é válido salientar que seu surgimento “está vinculado à corrente de pensamento cosmopolita que caracterizou o século XIX, época em que comparar estruturas ou fenômenos análogos, com a finalidade de extrair leis gerais, foi dominante nas ciências naturais” (CARVALHAL, 2006, p. 8), embora sua existência consista desde a época medieval com as literaturas grega e romana, visto que, conforme afirma Carvalhal (2006, p.8), o adjetivo “comparado”, derivado do latim comparativus, já era empregado “na Idade Média”. Assim, é perceptível que “bastou existirem duas literaturas para se começar a compará-las, com o intuito de se apreciar seus respectivos méritos, embora se estivesse ainda longe de um projeto de comparatismo elaborado, que fugisse a uma mera inclinação empírica” (NITRINI, 2000, p. 19). Apesar da difusão da Literatura Comparada em toda a Europa é no território francês que esta expressão ganhará plenitude e se consolidará. Ao que tudo indica foi o francês Abel-François Villemain que iniciou em 1828 a propagação desse estudo na França, seguido dos também franceses Jean-Jacques Ampère e Philarète Charles, em 1830 e 1835, respectivamente, que juntos deram início aos estudos referentes à literatura comparada nas universidades francesas. Segundo Carvalhal (2006, p.13) foi nas primeiras décadas do século XX “que a literatura comparada ganha estatura de disciplina reconhecida, tornando-se objeto de ensino regular nas grandes universidades européias e norte-americanas e dotando-se de bibliografia específica e publicações especializadas”. Aludindo aos estudos considerados clássicos neste ramo, percebe-se que estes seguiam duas orientações, também apontadas por Carvalhal: “a primeira era a de que a validade das comparações literárias dependia da existência de um contato real e comprovado entre autores e obras ou entre autores e países”; “a segunda orientação determinava a definitiva vinculação dos estudos literários comparados com a perspectiva histórica” (2006, p. 13). Precursores dos estudos comparados, os franceses ficaram conhecidos como comparativistas clássicos, pois GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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A maioria dos manuais adota a denominação “escola francesa” para designar um grupo representativo de estudos onde predominam as relações “causais” entre obras ou entre autores, mantendo uma estreita vinculação com a historiografia literária. Assim, a designação indica menos uma restrição geográfica do que a adoção de determinados princípios, que assumiram também caráter doutrinário em vários países, pois o comparativismo literário foi dominado por personalidades francesas durante muito tempo. (CARVALHAL, 2006, p. 14). Um autor francês que deixou sua contribuição ao comparativismo foi Paul Van Tieghem, segundo o qual o conceito de literatura comparada, explícito em seu livro La littérature comparée, é de “uma disciplina particular que se situa entre a história literária de uma nação e a história mais geral” (NITRINI, 2000, p. 24). Nitrini também afirma que “Paul Van Tieghem formulou a distinção entre literatura comparada e literatura geral. A primeira tem por objetivo o estudo das relações entre duas ou mais literaturas. Tais conexões são argamassadas por contatos binários entre obra e obra, obra e autor, autor e obra, etc.” (p. 25). Já a literatura geral se encarregaria por fazer uma síntese dos estudos comuns que abarcam várias literaturas, sendo que para o autor “são do domínio da literatura geral os fatos de ordem literária que pertencem a várias literaturas” (TIEGHEM, 1951, p. 174 apud NITRINI, 2000, p. 25). Além da “escola francesa” outra que se destacou no campo dos estudos comparados foi a “escola norte-americana”, que se distinguiu da francesa por não abraçar a doutrina clássica seguida na França, devido ao fato de “privilegiar a análise do texto literário em detrimento das relações entre autores ou obras, os comparativistas norteamericanos aceitam os estudos comparados dentro das fronteiras de uma única literatura, atuação recusada pela doutrina clássica francesa” (CARVALHAL, 2006, p. 15). Os nortes-americanos tinham em René GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Wellek, crítico tcheco radicado nos Estados Unidos, a maior expressão da “escola norte-americana”, o qual se opunha às distinções de “literatura geral” e “literatura comparada” estabelecidas por Paul Van Tieghem, ao afirmar que “literatura ‘geral’ e literatura ‘comparada’ mesclam-se inevitavelmente. Talvez fosse melhor falar simplesmente de ‘literatura’” (WELLEK; WARREN, 2003, p. 51). Outra grande “escola” que ao lado da francesa e da norteamericana ganhou seu espaço, porém com menor destaque, foi a “escola soviética”, sendo que, conforme afirma Carvalhal (2006, p. 1516), Os comparativistas soviéticos que têm em Victor Zhirmunsky uma de suas figuras exponenciais, adotam como princípio básico, a compreensão da literatura como produto da sociedade. Preocupam-se, sobretudo, em distinguir entre analogias tipológicas e importações culturais (outra forma de designar as “influências”), que correspondem sempre a situações similares na evolução social. No que concerne à metodologia do comparatismo temos novamente o contraste entre a tendência francesa e a americana. A primeira tem sempre como ponto de partida o objeto da literatura comparada e desenvolve-se da seguinte maneira: Partindo-se do objeto da literatura comparada, que é descrever a passagem de um componente literário de uma literatura para outra, pode-se estudá-lo sobre dois pontos de vista: focalizando-se principalmente o objeto da passagem, ou seja, o que foi transposto (gêneros, estilos, assuntos, temas, idéias, sentimentos) e observando-se como se produziu a passagem. (NITRINI, 2000, p. 33).

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Já no comparatismo americano, Wellek vem criticar “o fato de a literatura comparada ter demarcado artificialmente seu objeto, acumulando uma enorme massa de paralelismos, similaridades e identidades que não contribuem em nada para uma teoria literária mais geral, além de ter se estagnado na sua metodologia” (NITRINI, 2000, p. 34-35). Como vimos, os contrates, ou até mesmo os conflitos, entre as tendências francesas e norte-americanas sempre estiveram presentes na história da literatura comparada. No Brasil, os anos 80 marcaram a instituição da literatura comparada neste país. Foi em 1986 que surgiu em Porto Alegre a Associação Brasileira de Literatura Comparada – ABRALIC, decorrente do I Seminário de Literatura Comparada no Brasil. Para Cândido (1996, p. 214-215) a criação da ABRALIC “equivale a uma certidão de maioridade da disciplina no Brasil. [...] A partir de agora ela [Literatura Comparada] poderá assumir o papel que lhe cabe num país caracterizado pelo cruzamento intenso das culturas, como é o Brasil”. Apesar deste mesmo autor já ter afirmado anteriormente “que ‘estudar literatura brasileira é estudar literatura comparada’, porque a nossa produção foi sempre tão vinculada aos exemplos externos, que insensivelmente os estudiosos efetuavam as suas análises ou elaboravam os seus juízos tomando-os como critério de validade” (1996, p. 211). Cândido complementa afirmando ainda que “praticamente desde as origens da nossa crítica até quase os nossos dias, um dos critérios para caracterizar e avaliar os escritores tem sido a alusão paralela a autores estrangeiros” (1996, p. 211), sendo esta prática um exímio exercício comparatista. O Brasil também teve em Tasso da Silveira um seguidor fiel da doutrina clássica francesa, do já citado Paul Van Tieghem, do qual Silveira extraiu os fundamentos comparatistas instituídos num manual brasileiro de sua autoria. Na visão de Carvalhal (2006, p. 20-21), neste livro observa-se claramente que o autor brasileiro “absorve integralmente as sugestões de seus mestres franceses, cuja receita era pesquisar influências, buscar identidades, ou diferenças, restringindo o alcance da literatura comparada ao terreno das aproximações binárias e à constituição de ‘famílias literárias’”. João Ribeiro é outro autor brasileiro que também disserta acerca da literatura comparada, num capítulo do seu livro Páginas de estética, sobre o qual Carvalhal GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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observa que diferente de Silveira “é curioso como [João Ribeiro] não se interessa pelo jogo dos confrontos, característico da visão clássica da disciplina, prevendo para ela uma atuação ‘crítica’, mesmo sem desvinculá-la da história” (p. 22). A partir destas diferentes atuações a que se propõem os estudos comparados, de acordo com a visão de cada autor, é que podemos perceber como é vasto o campo da literatura comparada, o que torna difícil delimitar seu conceito e sua área de atuação, talvez pelo fato destes serem múltiplos. Contudo, Helena Carvalhão Buescu no EDicionário de Termos Literários, organizado por Carlos Ceia, aponta quatro áreas de atuação deste campo: a primeira se refere à área dos “estudos da recepção”, sobre a qual Carvalhão ressalta que “para a literatura comparada, a recepção de uma obra não é um objeto de análise isolado, um fim em si mesma, mas seu estudo é uma etapa das relações interliterárias genéticas (nascidas dos contatos, diretos ou não)” (2010, p. 71). Desta forma, “a obra não pode mais ser vista como algo acabado a deslocar-se intocável no tempo e no espaço, mas como um objeto mutável por efeito das leituras que a transformam (2010, p. 70). A segunda área de atuação consiste nos “estudos de tradução”, sobre estes estudos Alzira Allegro, em seu artigo Das relações entre literatura comparada e tradução literária: algumas considerações, alega se tratar de um “intercâmbio cultural, de um diálogo entre culturas onde a tradução age como mediadora de relações interculturais” (2004, s/p). Logo, “a tradução, ao colocar em jogo conceitos de diferença cultural, histórica, social e até mesmo política, produz ou detecta relações de alteridade através da língua, evidenciando os íntimos laços existentes entre literatura, história e cultura” (2004, s/p). O terceiro campo de atuação referido por Buescu concerne aos “estudos interartes” ou “Literatura e outras Arte”. Para a autora, “neste contexto, a perspectiva comparatista oferece um campo particularmente fecundo para a execução de tais trabalhos permitindo a relação entre diversas manifestações da prática artística, como por exemplo, as várias artes visuais, a música, a dança, o teatro ou o cinema”. Para Carvalhal (1991, p. 10), GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Este novo modo de entendimento acentua, então, um traço de mobilidade na atuação comparativista enquanto preserva sua natureza “mediadora”, intermediária, característica de um procedimento crítico que se move “entre” dois ou vários elementos, explorando nexos e relações. Fixa-se, em definitivo, seu caráter “interdisciplinar”. Por último, Buescu aponta como a quarta especificidade comparatista os “Estudos Leste-Oeste”, para ela “trata-se da formalização da tendência anti-eurocêntica”. Neste sentido, Nitrini (2000, p. 44) ressalta que “o aparecimento na cena internacional dos comparatistas dos países do Leste também contribuiu para quebrar a polaridade das aproximações francesa e americana”. Em contribuição ao exposto Carvalhal (1996, p. 17) ressalta que É preciso evocar que se o mapa da Europa tem hoje outra configuração, diferentes questões se propõem ao comparatismo, levando à retomada de problemas como o dos nacionalismos, regionalismos e suas relações com o universal. Do mesmo modo, as conformações políticoeconômicas que se constroem, na América do Sul e na do Norte, estão a instigar questões de inter-relações culturais e literárias novas, o estudo da constituição de cânones literários, da análise de diferenças, de problemas de representação e de expressão de identidade, de estudo e confronto de imaginários culturais, que interessam diretamente à Literatura Comparada. Contudo, inserido no ramo da literatura comparada, o objetivo final do presente estudo é investigar com um olhar comparatista os diálogos possíveis a serem realizados entre obras latino-americanas, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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levando em consideração seus respectivos contextos históricos, políticos, sociais e culturais, realizando uma possível interação entre elas, pois, como veremos, apesar das diferenças encontradas nos contextos citados, os estudos comparatistas possibilitados pela Literatura Comparada vêm aproximar a obra brasileira Ciranda de Pedra (1954), da paulista Lygia Fagundes Telles e a obra hispanoamericana A Casa dos Espíritos (1982), da chilena Isabel Allende, devido às autoras expressarem por meio do ciclo familiar a sociedade marcada por transformações sociais vivenciadas por ambas. A hipótese que sobressai da análise é a de que a liberdade enquanto princípio serve de fio condutor para a constituição das protagonistas e consequentemente também move toda a economia narrativa. Esse princípio, por sua vez, é possível de ser observado como parte das projeções de um ideário pós-guerra que dialoga com uma atitude de resistência, ora confrontadora de um status quo patriarcalista no romance de Telles, ora desafiadora do estado de exceção no romance de Allende. Lygia e Allende: A prosa latino-americana A princípio, a confrontação entre a produção literária das autoras Lygia Fagundes Telles e Isabel Allende nos permite perceber que tanto Lygia como Allende refletem e denunciam em suas obras, em especial nos romances Ciranda de Pedra e A Cada dos Espíritos, respectivamente, as problemáticas sociais vivenciadas por elas. No contexto brasileiro, a produção lygiana é marcada pelos conflitos psicológicos travados pelas suas personagens cujos comportamentos refletem a realidade de um Brasil pós-guerra. Já no contexto hispanoamericano, a escritora chilena Isabel Allende relata com um olhar jornalístico o comportamento das personagens que vivenciaram a época de repressão ocasionada pela Ditadura Militar, ocorrida no Chile. Desta forma, temos em ambas uma literatura que se integra ao momento histórico protagonizado pelas autoras, visto que, Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sistema, ocorre outro GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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elemento decisivo: a formação da continuidade literária, - espécie de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo. É uma tradição, no sentido completo do termo, isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementos transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização (CÂNDIDO, 1981, p. 23-24). Assim, tal como acontece com a literatura no Brasil, “a relação entre literatura e História na América Hispânica sempre foi específica, e uma tornou-se complemento necessário da outra. Submersos na História – mesmo transformada em lenda –, os escritores recuperam a vida em sua profunda realidade” (JOSEF, 1986, p. 28). Desta forma, ainda segundo Josef (1993, p.15), “o romance nasce da História, mas a transcende. Como forma particular da narrativa, é um dos modos de nossa apreensão da realidade”. Com efeito, vimos que a partir dos traços comuns entre as autoras, podemos sintetizar que ambas são vozes femininas de considerável expressão, que se destacaram pelo engajamento políticosocial que proporcionou à literatura produzida pelas mesmas um teor histórico de denuncia a uma sociedade patriarcal marcada por repressões sociais, devido o período pós-guerra no Brasil e pelo período ditatorial no Chile. Nesse sentido, as narrativas de Lygia e Allende contribuem para o enriquecimento da literatura latinoamericana, pois se aprofundam em aspectos históricos, sociais, culturais que aproximam os países integrantes da América Latina, ao passo que o romance contemporâneo tomou ares sociais ao retratarem a sociedade através da ficção. Portanto, a possível análise comparatista que pode ser estabelecida entre Lygia e Allende vem proporcionar um diálogo entre literatura brasileira e literatura hispano-americana, visto que, segundo GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Nitrini (2000, p. 117), “uma das tendências atuais da teoria da literatura comparada é antes de tudo transcender as fronteiras nacionais e linguísticas, a fim de examinar as questões literárias gerais de um ponto de vista tradicional”. Contudo, o que em especial se perceberá na investigação dos romances precursores da carreira literária das autoras é a questão concernente às relações familiares. Nos romances Ciranda de Pedra e A Casa dos Espíritos veremos como as relações familiares refletem ou até mesmo metaforizam a atmosfera da época documentado pelas escritoras latino-americanas. O drama familiar e os conflitos sociais em um contexto pós-guerra “O romance nasce da História, mas a transcende. Como forma particular da narrativa, é um dos modos de nossa apreensão da realidade” (JOSEF, 1993, p. 15). Partindo deste princípio, podemos inferir que as autoras trabalhadas nesta análise abstraíram da realidade as personagens que deram vida as obras Ciranda de Pedra e A Casa dos Espíritos. Desta forma, Lygia Fagundes Telles e Isabel Allende têm como núcleo de suas obras a relação familiar. As autoras se valem dos dramas familiares para retratar com fidelidade os conflitos sociais perceptíveis na sociedade em que estiveram engajadas. Lygia enfatiza em Ciranda de Pedra a degradação dos valores patriarcais através da não inserção da personagem Virgínia no ciclo familiar. Tal ciclo, metaforizado pela “ciranda de anões de pedra”, representa as convenções sociais, caracterizadas por personagens que mascaram valores autênticos dentro da história demoníaca, ou seja, o romance como investigação de uma sociedade degradada, neste caso, utilizou-se de personagens problemáticas, que refletiram durante a narrativa uma vida social mantida pelas convenções da época. Allende, em A Casa dos Espíritos, se vale da saga familiar de uma família tradicional da sociedade chilena para contar através da ficção os conflitos sociais ocorridos no Chile, os quais transformaram a vida em sociedade naquele país. Com isso, nota-se em ambos os romances como as relações familiares refletem, ou até mesmo metaforizaram o clima da época, retratado tanto na obra brasileira como na obra hispano-americana. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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O romance Ciranda de Pedra trata de uma trama degradada, em que a personagem central caracteriza-se como uma heroína problemática. Neste sentido, Virgínia, a protagonista da narrativa, inserida num romance classificado como romance psicológico, no qual a heroína trava conflitos externos a partir de sua realidade interior, tenta inserir-se no ciclo familiar, que resiste a sua entrada, para então aceitá-la no final da narrativa, quando tarde, a personagem já tinha se libertado do desejo de fazer parte de uma sociedade degradada. Desta forma, por mais que tivesse descoberto ser o centro da ciranda, já não havia como fazer parte da roda. “A dança era antiga e exaustiva justamente porque ficara de fora, desejando participar e sendo rejeitada. E rejeitando-a para logo em seguida esforçar-se por entrar. Admitiram-na, finalmente. Mas era tarde, jamais acertaria o passo” (TELLES, 2009, p. 173). A metáfora no romance de Lygia se inicia com a simbologia de uma ciranda de anões de pedra que ornamenta o jardim da casa de Natércio. A ciranda composta por cinco anões remete aos cinco amigos da narrativa. Virgínia mostra seu fascínio em fazer parte do grupo em diversas passagens da obra, tal como: Aproximou-se dos anõezinhos que dançavam numa roda tão natural e tão viva que pareciam ter sido petrificados em plena ciranda. No centro, o filete débil da fonte a deslizar por entre as pedras. “Quero entrar na roda também!”, exclamou ela apertando as mãos entrelaçadas dos anões mais próximos. Desapontou com a resistência dos dedos de pedra. “Não posso entrar? Não posso?”, repetiu mergulhando na fonte as mãos em concha (TELLES, 2009, p. 79). Cada um dos cinco amigos simboliza a falência com o sistema opressor, que não permite a vivência fora das convenções, visto que, no grupo temos a alienada (Otávia), os adúlteros (Bruna e Afonso), o impotente (Conrado) e a lésbica (Letícia), personalidades não acolhidas pela sociedade convencional. Portanto, os integrantes do GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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grupo vivem sob máscaras, para sobreviverem mantidos pelas aparências num ambiente que não admitia a falência dos bons costumes. Então, Virgínia liberta-se da tentativa de entrar na ciranda, pois descobrindo o que está por trás do grupo, decide romper com uma sociedade falida, pois percebe não ser possível a busca por valores autênticos num ambiente degradado. A queda do patriarcalismo marca o romance Ciranda de Pedra, em que a protagonista, que desejou desde sua infância se inserir no ciclo familiar, metáfora do ciclo social, percebe a falência do sistema patriarcal. Com isso, rompe com a sociedade degradada e passa a buscar novos valores. Assim, a narrativa encerra com a viagem de Virgínia mundo à fora, sem rumo certo e sem data para voltar, pois para ela “já que é preciso aceitar a vida, que seja então corajosamente” (TELLES, 2009, p. 199). É válido ressaltar que Laura – mãe de Virgínia, a qual abandonara o lar para viver uma relação extraconjugal com Daniel, o verdadeiro pai de Virgínia – “não conseguiu sucesso ao romper com os valores opressivos, mas Virgínia resgata a luta de Laura, sai vencedora e obtém o prêmio da liberdade de viver feliz” (MORAES, 2002, p. 39). Esta aspiração por liberdade contra os valores opressivos é o que move Alba, personagem do romance A Casa dos Espíritos de Isabel Allende. A história de uma sociedade degradada é contada no referido romance através da saga familiar dos Trueba. A saga da família Trueba é marcada por conflitos dentro da própria família, que refletem os conflitos sociais da nação chilena. O romance A Casa dos Espíritos narra a história de várias gerações de uma mesma família que vivenciaram as transformações político-sociais ocorridas na sociedade chilena. A genealogia familiar é representada através dos tempos pelas personagens femininas Clara, Blanca e Alba, esposa, filha e neta, respectivamente, do patriarca da família, o senhor Esteban Trueba. A saga da família Trueba traz à tona as transformações ocorridas no Chile desde o período que compreende a Segunda Guerra na Europa até o período ditatorial desse país, que culmina com a prisão da menina Alba ao final da trama, visto que, é através da história da família Trueba que a história recente da nação chilena é contada na narrativa. Allende recompõe no interior de sua obra episódios históricos ocorridos em seu país relacionados à presença do estado de exceção. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Desta maneira, o romance histórico da autora debruça-se sobre “narração de eventos, testemunho imediato, análise de sentimentos, registro de vicissitudes sociais ou políticas, serviu a valores ideológicos, refletiu aspectos da vida social como da política, debruçou-se sobre angústias particulares e costumes coletivos” (JOSEF, 1993, p. 15) e, sobretudo, sobre experiências individuais da própria autora. Alba caracteriza-se como uma personagem problemática, inserida, tal como Virgínia (Ciranda de Pedra), numa sociedade degradada. Porém, Alba está consideravelmente envolvida com os conflitos políticos, e consequentemente sociais. Ela é símbolo de luta e resistência de uma sociedade que vivenciou o caos social ocasionado pela Ditadura Militar no Chile. Sua passagem na narrativa simboliza, também, a libertação do sistema patriarcal e do regime ditatorial. As posturas ideológicas e políticas da personagem aproximam-se do pensamento da autora, pois, como já mencionado, esta esteve engajada na política e na vida social chilena. Dor, sangue e amor marcam a trama do romance A Casa dos Espíritos, e Alba, seguindo os passos da mãe, vem romper com o patriarcalismo de uma sociedade tradicional ao apaixonar-se por um guerrilheiro de classe social considerada inferior para os padrões conservadores da família da protagonista. Miguel era um dirigente esquerdista que procurava por justiça. Ele “falava da revolução. Dizia que à violência do sistema havia que opor a violência da revolução” (ALLENDE, 2001, p. 344). Foi por amor a Miguel que Alba torna-se, também, uma revolucionária. Ela, Como todos os jovens que entravam [na Universidade] nesse ano, descobriu o atrativo das noites de insônia num café, falando das mudanças que o mundo necessitava e contagiando uns aos outros com a paixão das ideias. Regressava a casa já de noite com a boca amarga e a roupa impregnada de cheiro de fumo ressequido, com a cabeça quente de heroísmos, convicta de que, chegado o momento, poderia dar a sua vida por uma causa GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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justa. Por amor a Miguel, e não por convicção (ALLENDE, 2001, p. 344-345). A saga familiar dos Trueba nos permite identificar Alba com o símbolo de libertação com um sistema opressor, seja ele o sistema patriarcal ou o regime ditatorial. Alba transcende os dois como uma guerreira que luta pelos seus ideais e não se deixa intimidar pelos mais fortes. Alba encerra a saga familiar dos Trueba, terminando sozinha, com um filho na barriga. Assim, ela pensa: “Quero pensar que meu ofício é a vida e que a minha missão não é prolongar o ódio [...] enquanto aguardo que cheguem tempos melhores, gerando a criança que trago no ventre, filha de tantas violações, ou talvez filha de Miguel, mas sobretudo minha filha” (ALLENDE, 2001, p. 468). Assim, em A Casa dos Espíritos, Allende “preocupa-se em dar seu testemunho diante da repressão no Chile, recriando momentos que se tornaram marcos na história do país” (JOSEF, 1986, p. 288). Desta forma, percebemos nos romances analisados, Ciranda de Pedra e A Casa dos Espíritos, que projeções da vida social são reelaboradas e problematizadas pela ficção. Portanto, vimos que a sociedade interfere na relação familiar em ambas as obras, mostrando a desrealização do indivíduo dentro do círculo familiar. Alba e Virgínia, filhas bastardas, cada uma em sua época (e em seu romance), evoluíram nas narrativas em contradição às convenções institucionalizadas. A degradada relação das personagens em sociedade é fruto dos dramas familiares vivenciados por elas. A presença da figura do patriarca, Natércio em Ciranda de Pedra e Esteban Trueba em A Casa dos Espíritos, representa a falência e a ruptura das personagens com um sistema opressor iniciado na família e eclodido na sociedade, visto que, a família é a metáfora de um grupo maior: a sociedade. No entanto, esta sociedade referida é uma instituição degradada, marcada pelos conflitos sociais que interferem na conduta moral das personagens. Em todo caso, é notável que a realidade social interna das obras aluda a realidade social externa das autoras latino-americanas Lygia Fagundes Telles e Isabel Allende. Neste sentido, vimos que em Ciranda de Pedra, a crise da instituição familiar, bem como a percepção de valores amorais na obra GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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são consequências das transformações sociais ocorridas no Brasil, numa época de efervescência, como foi o período pós-45, visto que, Das desesperanças e traumas vividos no pósguerra, às frustrações nacionais correlatas aos anseios político-sociais aspirados pela sociedade brasileira, é dada a gênese de uma linguagem literária em que vêm suscitar as incertezas e perturbações comuns do indivíduo contemporâneo. (SILVA, 2008, p. 17). Do outro lado, em A Casa dos Espíritos, o contexto vivenciado pelas personagens, no que concerne a derrubada do governo socialista, alude ao contexto histórico que Isabel Allende vivenciou no Chile. Assim, o golpe militar ilustrado na obra chilena, a exemplo da passagem em que o presidente socialista pronuncia seu último discurso, equivale a fatos reais ocorridos naquele país: “Dirijo-me àqueles que serão perseguidos, para lhes dizer que não vou renunciar: pagarei com minha vida a lealdade do povo. Estarei sempre junto de vocês. Tenho fé na pátria e no seu destino. Outros homens superaram este momento e muito mais cedo do que se pensa se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Viva o povo! Vivam os trabalhadores! Estas são as minhas últimas palavras. Tenho a certeza de que o meu sacrifício não será em vão” (ALLENDE, 2001, p. 399). No tocante aos dados historiográficos, a História chilena nos conta que No dia 11 de setembro de 1973, as Forças Armadas chilenas (60 mil homens) comandadas pelo o general Augusto Pinochet, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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com o apoio dos Carabineiros (30 mil homens), deu um dos mais violentos golpes militares da história latino-americana. O Presidente Salvador Allende, eleito dois anos e dez meses antes, viu-se sitiado no Palácio de La Moneda pelas tropas e pela aviação golpista. Percebendo a inutilidade da resistência e para evitar mais derramamento de sangue, Allende matou-se3. Com o exposto, vimos que além do diálogo possível de ser estabelecido entre os romances analisados, também podemos realizar o diálogo entre a vida e a obra de cada uma das autoras, pois a família paulistana ficcionalizada por Lygia reflete as problemáticas urbanas de uma sociedade em plena transformação, ao passo que, Allende cria um clima de tensão política em sua obra, tal como ocorreu em sua própria realidade. Contudo, de acordo com Goldmann (1988, p. 17), Todo fato social é um fato histórico e inversamente. Segue-se daí que a história e a sociologia estudam os mesmos fenômenos e que, se cada uma delas captura um aspecto real, a imagem que ela dele nos dá não poderia ser senão parcial, na medida em que não for completada pelas contribuições da outra. A narrativa contemporânea da América Latina caracterizou-se, principalmente, pela oposição entre consciência estética versus engajamento social, Esta oposição é marcada pela história políticosocial dos países latino-americanos. Para o crítico literário Eduardo F. Coutinho (1984, p. 179) “a oposição entre esteticismo, ou melhor, consciência estética, e engajamento social também pode ser

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Citação disponível http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/chile_golpe.htm

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representada [...] pela presença de duas linhas de ficção centradas em torno de dois pólos distintos”. Neste caso, temos “a corrente esteticista, de um lado, baseada primordialmente numa preocupação com a forma, e uma outra dita ‘engajada’, voltada quase exclusivamente para o conteúdo” (1984, p. 179). Segundo ainda Coutinho (1984,p. 181), no romance contemporâneo “a realidade objetiva coexiste com o sonho e a fantasia, o engajamento político ou social se casa à consciência estética”, sendo a fusão destes “aparentes opostos” a essência de toda narrativa latino-americana. No que concernem os estudos dos fatos sociais, além da história e da sociologia que investigam esses fenômenos, acrescentamos a arte, principalmente quando se trata da arte de duas autoras engajadas na vida social de seus países. Assim, realidade social interna das personagens (ficção) e realidade social externa das romancistas resulta no imbricamento permanente entre literatura e sociedade, e a literatura comparada vem servir ao diálogo entre estas duas instâncias. Considerações finais Ao observarmos a construção textual de Lygia Fagundes Telles e Isabel Allende, em que expõem as frustrações dos protagonistas a partir de dramas familiares, percebe-se a aparente aproximação entre ficção e realidade. Neste sentido, percebemos no corpus deste trabalho como estes dramas familiares metaforizam os conflitos sociais que marcaram a época em que as autoras produziram as obras Ciranda de Pedra (1954) e A Casa dos Espíritos (1982), a primeira brasileira e a segunda hispano-americana. Como vimos, a multiplicidade dos estudos comparados abre um leque de possibilidades para investigações literárias. Porém, Henry Remak sintetizou com clareza as áreas de interesse da literatura comparada ao afirmar que A Literatura Comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país em particular, e o estudo das relações entre literatura de um lado e outras áreas do conhecimento e crença, como as artes (pintura, escultura, arquitetura, GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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música) filosofia, história, as ciências sociais (política, economia, sociologia) as ciências, religiões, etc. de outro. Em suma, é a comparação de uma literatura com outra ou outras, e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana. (REMAK, 1971, p. 1 apud CARVALHAL, 1991, p. 12). Contudo, inserido no ramo da literatura comparada, este trabalho alcançou seu objetivo, visto ter proporcionado um levantamento panorâmico sobre os estudos comparados no âmbito literário, ao passo que estabelecemos uma revisão geral de algumas publicações sobre esse método de análise conhecido por Literatura Comparada, sob a ótica de alguns autores, dentre os quais podemos destacar Tânia Carvalhal, Sandra Nitrini e René Wellek. Ainda, vimos que, com um olhar comparatista é plausível ultrapassar as fronteiras e investigar diálogos possíveis a serem realizados entre obras de nacionalidades distintas em diferentes contextos históricos, políticos, sociais e culturais, realizando uma possível interação entre elas, como foi feito com os romances Ciranda de Pedra e A Casa dos Espíritos, de Lygia Fagundes Telles e Isabel Allende, respectivamente, bem como os estudos comparados também podem ser realizados entre a literatura e outras artes. COMPARATIVE STUDY BETWEEN CIRANDA DE PEDRA AND A CASA DOS ESPÍRITOS: THE LITERATURE AND THE POSTWAR THINKING IN LATIN AMERICAN PROSE ABSTRACT: The present article provides a panoramic rising on the Literature Compared in the literary extent, in order to subsidize to present analysis that has as research corpus the novels Latin-American Ciranda de Pedra, by Brazilian Lygia Fagundes Telles and A Casa dos Espíritos, by Chilean Isabel Allende. In them, we investigated as the relationships family, or better, the family dramas contemplate or even metaphor the atmosphere of the time documented by the authors. This way, the proposed discussion comes to turn possible an analysis comparison that can be established between literary production by GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Lygia and Allende, providing us a dialogue between Brazilian literature and Hispano-American literature, through the two authors' literary production engaged in the political and social life of their countries of origin. The literature and the post-war thinking in Latin American prose are worked by the authors through an exciting language that goes from reflections concerning the patriarchal society to a writing that focuses on the dictatorship in Latin American. KEYWORDS: Compared Literature. Lygia Fagundes Telles. Ciranda de Pedra. Isabel Allende. A Casa dos Espíritos. REFERÊNCIAS: ALLEGRO, Alzira L. V. Das relações entre literatura comparada e tradução literária: algumas considerações. Revista eletrônica Unibero de Produção científica, mar. 2004. Disponível em: . Acesso: 13 mai. 2010. ALLENDE, Isabel. A Casa dos Espíritos. Tradução de Carlos Pereira. 28ª ed. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2001. BUESCU, Helena Carvalhão, s.v. “Literatura Comparada”, EDicionário de Termos Literários, cood. de Carlos Ceia, ISBN: 989-200088-9, . Acesso em: 25 mar. 2010. CÂNDIDO, Antônio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. ______. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1981. CARVALHAL. Tânia Franco. Literatura Comparada. 4ª ed. São Paulo: Ática, 2006. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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RENÉ MAGRITTE E MANOEL DE BARROS: INTERSECÇÕES ENTRE PINTURA E POESIA Suzel Domini dos Santos 1 Susanna Busato 2 RESUMO: Exploramos, no presente artigo, a possibilidade de aproximação entre a poesia de Manoel de Barros e a pintura de René Magritte. Para tanto, valemo-nos de uma abordagem comparativa entre alguns trabalhos dos dois artistas. Mais precisamente, selecionamos “La clef des songes” (1930) e “La trahison des images” (1928-1929), de autoria de René Magritte, e o poema de Manoel de Barros intitulado “O muro”, parte integrante do livro Poemas rupestres, de 2004. Com tal abordagem, buscamos verificar o modo como os dois artistas, cada um a seu modo, problematizam a questão da representação do mundo. Fazendo uso do recurso da metalinguagem, René Magritte e Manoel de Barros reiteram, em suas respectivas poéticas, um processo de desnudamento da arbitrariedade dos códigos comunicativos e sistemas de linguagem que balizam a realidade do homem. Além disso, Magritte e Barros sustentam a concepção de legitimidade da arte na proposição de formas diferenciadas de recodificação e percepção do mundo. PALAVRAS-CHAVE: Manoel Metalinguagem. Surrealismo.

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Barros.

René

Magritte.

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UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. Doutoranda em Teoria e Estudos Literários. São José do Rio Preto – SP – Brasil – 15054-000 – [email protected].

2

UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas. Departamento de Estudos Linguísticos e Literários. São José do Rio Preto – SP – Brasil – 15054-000 – [email protected]

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1. A poesia de Manoel de Barros – poeta que estreou no cenário da literatura brasileira no ano de 1937, com a publicação de Poemas concebidos sem pecado – caracteriza-se, em primeiro plano, pela atuação de dois pontos de força, a saber, a grande potência imagética e a presença constante da reflexão crítica acerca do ser e do fazer da poesia no interior do próprio discurso poético. As balizas de delimitação dos espaços imagético e metalinguístico perdem-se na poesia de Barros, uma vez que o poeta funde estes espaços, fazendo de sua poesia um universo figurativamente denso perpassado de ideias. Conforme defendemos em Santos (2013), a fusão dos espaços imagético e metalinguístico constitui o mecanismo de construção predominante da poesia de Manoel de Barros: Mais do que elementos de construção poética que convivem lado a lado como partes distintas e separáveis de um mesmo projeto de elaboração poética, a imagem e a metalinguagem estão intimamente entrelaçadas na poesia barrosiana, de modo que constituem uma imbricação tensional caracterizada pela presença marcada do pensamento crítico acerca da poesia nas malhas do próprio discurso poético. Em outras palavras, esse entrelace constitui uma imbricação tensional que se firma pela caracterização da imagem como signo que cifra a mensagem metalinguística. [...] Segundo nosso ponto de vista, esse entrelace tensional entre imagem e metalinguagem constitui o ponto-chave da poesia de Manoel de Barros, o ponto central a partir do qual sua poética atua. (p. 123) Manoel de Barros faz da própria poesia o principal objeto temático de seus escritos. Tal característica nos permite entendê-lo como herdeiro direto da modernidade lírica, haja vista que a GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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preocupação incisiva com os aspectos formais da poesia evidencia a busca por cravar uma assinatura poética particular em meio à tradição. Ao levar a efeito a elaboração de um projeto estético particular, fundando um modo próprio de organização estilística da linguagem na cadência em que estabelece diálogos críticos com determinados autores (como, por exemplo, Charles Baudelaire, Stéphane Mallarmé, Arthur Rimbaud, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade), Barros pode ser lido pelo viés da vertente que Octavio Paz (2013) denomina “tradição moderna da poesia” (p. 15). Para Paz, “a modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra. O moderno não se caracteriza apenas pela novidade, mas pela heterogeneidade.” (2013, p. 15; grifo no original). Sendo assim, “a modernidade está condenada à pluralidade: a antiga tradição era sempre a mesma, a moderna é sempre diferente.” (idem, p.15-16). Indo um pouco mais além, o autor define: Tradição do moderno: heterogeneidade, pluralidade de passados, estranheza radical. Nem o moderno é a continuidade do passado no presente nem o hoje é filho do ontem: são sua ruptura, sua negação. O moderno é autossuficiente: cada vez que aparece, funda sua própria tradição. (PAZ, 2013, p. 16) Entre as muitas referências estéticas que aparecem na poesia de Manoel de Barros, referências que acabam por constituir uma tradição que o poeta constrói para si, encontramos o Surrealismo, movimento artístico de vanguarda que eclodiu na Europa na primeira metade do século XX. O tecido imagético que caracteriza a poesia de Barros apresenta um aspecto estranho3, visto que o poeta resgata, como princípio de 3

Assim como Compagnon (2010), utilizamos o termo estranho sem vistas à evocação de qualquer conceito. Como o vocábulo em questão traz o sentido de “fora do comum”, “singular”, o utilizamos como qualificativo, pensando apenas na ruptura que as imagens poéticas criadas por Manoel de Barros promovem em relação à lógica convencionada.

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base da construção da imagem poética, um princípio do qual lançaram mão os surrealistas: a fusão de realidades dissonantes entre si atrelada à coordenação de imagens descontínuas (ADORNO, 2003). Seguem alguns exemplos dos muitos que encontramos em sua poesia: “Ando muito completo de vazios.” (BARROS, 2010, p. 310); “Vou encher de intumências meu deserto. / Sou melhor preparado para osga. / O infinito do escuro me perena.” (idem, p. 311); “A lua faz silêncio para os pássaros, / – eu escuto esse escândalo!” (idem, p. 313); “No Tratado das Grandezas do Ínfimo estava escrito: / Poesia é quando a tarde está competente para dálias.” (idem, p. 300). Por conta do princípio que mencionamos, a poesia de Barros mostra-se um universo de aspecto onírico, supra-real. Nesse universo, encontramos seres e objetos estranhos que, colhidos no âmbito do mundo concreto por um olhar sensível e perspicaz, são transfigurados pelo exercício poético. Ao promover uma organização sintática, bem como uma aproximação semântica, não convencionais e não previstas dos elementos que pertencem aos semas da inferioridade e da natureza, Barros recria-os. Nesse sentido, o leitor da poesia barrosiana tende a topar com imagens poéticas formadas por elementos familiares tornados irreconhecíveis pelo olhar automatizado por efeito das novas roupagens que desnudam esses elementos dos matizes semânticos e pragmáticos convencionais. Assim como os surrealistas, Manoel de Barros constrói imagens de aspecto estranho com o propósito de provocar no leitor o efeito de estupefação, uma vez que, conforme afirma Peñuela Cañizal (1986), As palavras nos forçam a conviver com o hábito e, desta maneira, transmutam os objetos e as pessoas que nos rodeiam em significados consuetudinários, repetidos, na manhã de cada dia, no ritual de quem toma seu cafezinho amarrado à convicção de que tal gesto se situa longe das irradiações da fantasia. (p. 1)

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O efeito de estupefação tende a redirecionar a percepção do leitor/do receptor, levando-o a enxergar as coisas que compõem o mundo por um prisma diverso, levando-o a enxergar as coisas como se as visse pela primeira vez. Dentro desse prisma de intersecções entre a poesia de Manoel de Barros e o Surrealismo, encontramos, ainda, um ponto de encontro bem significativo com a pintura de René Magritte, artista belga cujo operar estético se aproxima da proposta surrealista por conta da construção de imagens insólitas. A obra de René Magritte está marcada por um jogo quase obsessivo de contraste entre a noção de realidade e a de representação da realidade. Partindo de um exercício metalinguístico, Magritte desnuda, no âmbito do próprio objeto pictórico, o desvão que se coloca entre a realidade propriamente dita, ou a realidade material, e os códigos e linguagens engendrados pelo homem para nomeá-la e expressá-la. Conforme afirma Santos (2006), Sempre há esse abismo, esse lugar intransponível entre palavra e coisa. Jamais elas se tocam. Talvez se esbarrem no jogo do discurso, da linguagem, mesmo da literatura. Mas não se tocam, não podem jamais chegar tão perto uma da outra. Mesmo o que nos parece correto, o que aprendemos tão facilmente no cotidiano das coisas, mesmo o que nos torna menos analfabetos, isso tudo não serve para compreendermos a dimensão da distância que há entre a palavra e a imagem. (p. 32) Ainda de acordo com Santos, “René Magritte foi um artista da imagem e da palavra, dos jogos, do cotidiano interrompido pela surpresa, da banalidade dos objetos e da arbitrariedade da linguagem.” (2006, p. 15). Tanto que o pintor colocou em evidência, na linguagem pictórica, até mesmo o descompasso que se coloca entre as coisas que GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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compõem o mundo e a linguagem funcional, como é o caso da obra que segue abaixo:

La clef des songes (1930). Figura 1. Como se faz possível observar, Magritte expõe, neste trabalho, a figura de objetos, e, sob elas, legendas que não correspondem aos nomes que tais objetos receberam por convenção, e pelo qual são reconhecidos e designados pelos falantes da língua francesa. Mais precisamente, René Magritte usa o nome de outras coisas para designáGUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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los. Assim, temos aí um processo de renomeação das coisas, e, com isso, uma proposta de reorganização do mundo. Enfatizamos, nesse sentido, que os nomes que compõem as legendas aparecem com a inicial maiúscula, mostrando-se nomes próprios, segundo a proposta de renomeação das coisas elaborada pelo pintor. Salientamos que, com exceção da figura do ovo, todos os outros objetos que aparecem no quadro da Fig. 1 são criações do homem: sapato, chapéu, vela, copo e martelo. Mais: tais objetos são funcionais, todos foram criados com algum propósito de utilidade prática. E, quanto aos novos nomes que esses objetos recebem – com exceção do nome atribuído à figura da vela, “le Plafond” (o Teto, em português) –, são todos nomes atribuídos a elementos ou fenômenos da natureza: “l’Acacia” (a Acácia), “la Lune” (a Lua), “La Neige” (a Neve), “l’Orage” (a Tempestade) e “le Désert” (o Deserto). O modo como a obra de Magritte presente na Fig. 1 articula as figuras e as legendas faz lembrar uma cartilha de alfabetização. No entanto, ela funciona como uma proposta de realfabetização. René Magritte “reinventou a maneira de olhar os objetos, ele desmascarou a traição dos sistemas de representação e subverteu a noção habitual da cartilha escolar”, pontua Santos (2006, p. 15). Ao focalizar a arbitrariedade dos códigos que nos servem à comunicação, Magritte problematiza a ideia de que o verdadeiro ser das coisas escapa aos sistemas de linguagem. Não obstante, a arte pode se dar ao exercício de inventar novas “verdades estéticas” (PAZ, 1992) para as coisas, e, a partir disso, proporcionar visões imprevistas do mundo. Manoel de Barros também trabalha, fortemente, com o contraste entre o mundo e seus sistemas funcionais e convencionados de representação. A ideia de reorganização do mundo por intermédio do exercício de reorganização da linguagem faz parte da visão do poético de Barros, e pode ser notada, por exemplo, neste verso: “Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.” (BARROS, 2010, p. 299). Fazendo uso da metalinguagem, que aparece mesclada a uma composição metafórica, Manoel de Barros problematiza, com esse verso, a ideia de que o processo de desapropriação das coisas que compõem o mundo dos nomes e signos convencionados que as demarcam – processo de “desaprendizagem” – pode levar o homem a GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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uma maneira desautomatizada de experimentar as coisas, uma maneira, que, talvez, permita uma proximidade maior com o verdadeiro ser das coisas, já que o vocábulo “princípios” evoca a noção ideal de origem. 2. Com o propósito de explorar um pouco mais a possibilidade de aproximação entre a poética de Manoel de Barros e a de René Magritte – naquilo que concerne ao jogo que ambos os artistas promovem com a noção de representação no interior do próprio objeto artístico –, trazemos o poema de Barros intitulado “O muro”, parte integrante do livro Poemas rupestres, que foi publicado pela primeira vez em 2004, e o quadro de Magritte intitulado La trahison des images, de 19281929. Por intermédio do método comparativo, pretendemos tecer uma leitura crítica desses objetos de estudo com o propósito de elencar alguns dos elementos formais que os aproximam. Eis o poema de Barros: O menino contou que o muro da casa dele era da altura de duas andorinhas. (Havia um pomar do outro lado do muro.) Mas o que intrigava mais a nossa atenção principal Era a altura do muro Que seria de duas andorinhas. Depois o garoto explicou: Se o muro tivesse dois metros de altura qualquer ladrão pulava Mas a altura de duas andorinhas nenhum ladrão pulava. Isso era. (BARROS, 2010, p. 441-442) Observamos que Manoel de Barros aproveita características próprias do texto em prosa para construir o poema em análise, o que é feito, oportunamente, como procedimento apto a gerar um efeito de contação de histórias. Apresentando-se, portanto, como uma espécie de contador de histórias, o sujeito lírico reconta um episódio que pode ser GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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apreendido na seguinte fábula: um menino conta que o muro da casa dele tinha uma medida especial que impedia a ação de ladrões. Faz-se importante notar que todos os verbos que aparecem no poema estão conjugados no pretérito. Mais que isso: a grande maioria dos verbos está conjugada em tempos verbais que nos dão uma noção imprecisa de tempo: o pretérito imperfeito do indicativo (“era”, “havia”, “intrigava”, “pulava”), o futuro do pretérito (“seria”), o pretérito imperfeito do subjuntivo (“tivesse”). Tal aspecto coloca o episódio recontado pelo sujeito lírico em uma dimensão temporal em suspensão, uma dimensão que não pode ser precisada: “era uma vez...”. O título do poema, “O muro”, evoca, imediatamente, a visão de um objeto comum, plenamente reconhecível pelo leitor. Não obstante, há, no poema em si, um processo de singularização deste objeto que acontece por meio da atribuição de uma característica peculiar a este objeto. Tal processo torna o objeto irreconhecível, visto que se trata de uma característica inventada, isto é, uma característica atribuída pela imaginação do “menino”. Esta atribuição causa uma ruptura em relação à lógica que rege a realidade material, e o faz na medida em que estabelece, para “o muro”, uma medida que não existe, ou melhor, uma medida que só se faz possível dentro da lógica engendrada pelo poema. Se o título, em um primeiro momento, pode evocar o comum e habitual, ou, para lembrar Chklovski (1973), o automatizado, a atribuição de uma medida inventada, por sua vez, funciona como mecanismo de singularização, provocando o estranhamento. Enfatizamos, porém, que o procedimento de singularização não é utilizado por Manoel de Barros nos mesmos moldes da teoria de Chklovski. Para o formalista russo, o procedimento em questão é responsável por gerar o efeito de estranhamento e, a partir disso, fazer com que o leitor, ou o receptor da obra de arte, deixe de olhar as coisas que compõem o mundo como reconhecimento, ou seja, para que deixe de olhar as coisas em si mesmas de modo automático, sem percebê-las de fato. Chklovski defende que a obra de arte deve provocar, por via do estranhamento, um olhar para as coisas enquanto visão, para que as ações do homem não aconteçam de modo inconsciente. Observamos que, na poesia de Manoel de Barros, o procedimento de singularização tem, mais propriamente, a função de proporcionar novos modos de se ver as coisas, a função de reinventar as coisas que compõem o mundo GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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pela linguagem poética, ampliando as possibilidades de sentido. Segundo a perspectiva que fundamenta o fazer poético de Barros, não há nada além do poema em si, da realidade ficcional que ele engendra: metalinguagem, o poema aponta para si mesmo. Dito de outro modo, ao singularizar um objeto, a poesia de Barros não faz com que o leitor veja as coisas habituais em si mesmas enquanto visão, como teoriza Chklovski. Ao singularizar um objeto, Manoel de Barros recria-o, promovendo a desreferencialização. O objeto poeticamente recriado mostra-se outro, e enfatiza a si mesmo. O “muro” que temos no poema de Barros é de propriedade imaginativa do “menino”, e, sendo assim, pode ter as características que ele bem desejar. No âmbito do convencional, as medidas estão mais próximas do estável e são estabelecidas para precisar e/ou delimitar as coisas. Ao eleger como medida do “muro” a “altura de duas andorinhas”, o “menino” dá à noção de medida, dentro do poema, um caráter de instabilidade e de imprecisão. Andorinhas são pássaros migratórios, que voam alto e se deslocam a grandes distâncias. Como precisar a altura do muro que temos no poema? Como encontrá-lo? Para encontrá-lo, é preciso entrar no jogo que o poema estabelece, é preciso ultrapassar as margens do convencional, deixando de lado a lógica habitual, e aceitar a lógica construída pelo poema, uma lógica própria, nova. Uma vez tendo aceitado as regras deste jogo, o leitor poderá encontrar o “pomar”, segredo bem guardado entre parêntesis na grafia do poema, que não pode ser descoberto por nenhum ladrão, mas somente compartilhado com aquele capaz de adentrar os meandros da poesia. O prêmio? O gozo da leitura: “É nos desvios que encontramos as melhores surpresas e os ariticuns maduros” (BARROS, 2010, p. 319). O título do poema de Manoel de Barros, “O muro”, em sua relação com o poema em si, enreda o leitor, preparando-lhe uma armadilha. Em um primeiro momento, o título poderá evocar a referência comum do objeto. Contudo, uma vez tendo realizado a leitura do poema, o leitor desconsiderará uma dimensão completamente referencial ao perceber a dimensão estética que caracteriza o objeto que o texto constrói. O “muro” que o poema coloca diante de nós não é um objeto comum e reconhecível, um signo convencionado que evoca uma referência automatizada. O “muro” que GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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o poema nos traz trata-se de um signo singular: é “o muro do menino”, um “muro” com “duas andorinhas de altura” que guarda “um pomar”. Segundo nos parece, há, neste poema de Manoel de Barros, um processo semelhante àquele que caracteriza algumas obras de René Magritte. De acordo com Compagnon (2010), Magritte enreda o receptor e problematiza a questão da representação ao promover o estranhamento por intermédio da tensão que a linguagem gera em sua relação com a imagem. Tal processo acontece, por exemplo, em um de seus trabalhos mais conhecidos, La trahison des images, que tomamos aqui como objeto de estudo ao lado do poema de Barros. Eis o quadro de Magritte:

La trahison des images (1928-1929). Figura 2. Temos aí, destacando-se no quadro, uma figura que, por semelhança, representa pictoricamente um cachimbo. Esta figura, solta no espaço do quadro, mostra-se quase esquemática em seus contornos simples, e, à primeira vista, parece ter, nada mais, nada menos, do que GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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o propósito de evocar a referência convencional, ou seja, o objeto mesmo que representa. Porém, logo abaixo da figura, aparece a seguinte legenda: “Ceci n’est pas une pipe.” / “Isto não é um cachimbo.” A princípio, parece haver um descompasso entre a imagem e a legenda, o que tende a gerar no receptor o choque, o efeito de estranhamento ou de estupefação. “Como pode não ser um cachimbo, se o que vejo são os contornos de um cachimbo e não os contornos de outro objeto qualquer?”, pode indagar o receptor, confuso. Neste primeiro momento, em que a percepção do receptor sofre um abalo, forma-se a impressão de que as regras habituais de uso do recurso da legenda são contrariadas, tendo em vista que tal recurso tem como função convencional descrever e/ou explicar algo a que se refere. O descompasso entre a imagem e a legenda, porém, tem a exata duração do efeito de estupefação. Explorando as relações entre a imagem e a legenda do quadro da Fig. 2 com mais atenção, o receptor pode perceber que, referindo-se à figura do cachimbo pelo uso do demonstrativo (“Ceci”/“Isto”), a legenda afirma que a figura do cachimbo, a representação pictórica que está sobre ela, não é um cachimbo. Com isso, a legenda nomeia a figura, definindo-a, e, portanto, cumprindo sua função. Por fim, a legenda mostra-se perfeitamente precisa – e óbvia, até – na observação que traz: a figura do cachimbo não é o cachimbo em si, mas, sim, uma representação pictórica que se assemelha, em alguns aspectos, ao objeto real, evocando-o. No estudo que faz deste trabalho de René Magritte, Foucault (1988) tece o seguinte raciocínio sobre o processo que observamos: [...] talvez a frase [a legenda] se refira precisamente a esse cachimbo desmedido, flutuante, ideal — simples sonho ou idéia de um cachimbo. Será necessário então ler: “Não busquem no alto um cachimbo verdadeiro; é o sonho do cachimbo; mas o desenho que está lá sobre o quadro, bem firme e rigorosamente traçado, é este desenho que deve ser tomado GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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por uma verdade manifesta”. (p. 13; grifo nosso) À luz do raciocínio de Foucault4, torna-se clara a aproximação que fazemos entre o quadro de René Magritte e o poema de Manoel de Barros: ambos, cada um operando por via dos recursos de construção que lhe são próprios, defendem a concepção de que o objeto artístico engendra uma “verdade estética” (PAZ, 1992) das coisas, reinventando-as. Dito de outra maneira, ambos defendem a autonomia do objeto artístico em relação ao mundo material, afirmando a arte enquanto construção de uma realidade que transcende os limites do convencional. Se, por um lado, o quadro de René Magritte da Fig. 2 coloca diante de nossos olhos um cachimbo, a legenda que aparece logo abaixo deste cachimbo nos alerta: não é um cachimbo, é a representação de um cachimbo. Neste movimento, a obra propõe a seguinte reflexão: o objeto artístico engendra uma verdade particular na medida em que recria, pela linguagem que lhe é própria, as coisas e o mundo. Afirmamos, aqui, que “O muro” (BARROS, 2010, p. 441-442), poema de Manoel de Barros trabalhado anteriormente, problematiza a mesma questão por intermédio de uma estrutura semelhante à do quadro de René Magritte: o título do poema pode evocar, à primeira vista, a referência convencional, mas o poema traz uma verdade única, não convencional. O poema coloca diante do leitor um muro que só pode ser encontrado por intermédio do exercício da imaginação. Nesse sentido, parece-nos possível finalizar esta análise com a seguinte 4

Esclarecemos que elencamos, como fundamentação para o estudo comparativo que desenvolvemos no presente trabalho, o primeiro nível de leitura que Foucault (1988) tece, em seu Isto não é um cachimbo, do quadro de René Magritte da Fig. 2. O autor desdobra seu raciocínio em outros níveis de leitura, apontando La trahison des images como um caligrama às avessas. Entretanto, o que consideramos relevante para o presente estudo é a observação que Foucault faz de que a legenda do quadro de Magritte que temos na Fig. 2 funciona como recurso que enfatiza o objeto artístico em si mesmo, enquanto verdade construída.

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elaboração comparativa: se, por um lado, o título do poema de Manoel de Barros é “O muro”, por outro lado, o poema em si evidencia: “Isto não é um muro”. 3. Partindo do breve estudo que realizamos neste artigo, podemos concluir que a arte não pode transformar o mundo material, mas, na medida em que funda realidades ficcionais autônomas, pode, sim, cavar meios de reorganização e desdobramento da realidade. Manoel de Barros e René Magritte desnudam o desvão que há entre os sistemas de representação do mundo e o próprio mundo, e empreendem, de modo quase obsessivo, uma busca pelo verdadeiro ser das coisas. Tal busca mostra-se um ideal, uma empreitada de impossível realização. Contudo, realiza-se no limiar das possibilidades demiúrgicas da arte. O que nasce, efetivamente, dessa busca é a possibilidade de expressão de “verdades estéticas” (PAZ, 1992, p. 107) das coisas que compõem o mundo. Pensamos, no entanto, que é justamente aí que se coloca o diferencial, a originalidade e, até mesmo, a potência geradora da arte, haja vista que a elaboração estética das coisas que compõem o plano fenomênico configura uma nova maneira de percebê-las, para além das convenções. Se, por um lado, a arte não é, realmente, capaz de chegar à essência das coisas, por outro lado, ela promove um desdobramento da realidade humana em um nível tal, que proporciona ao leitor a possibilidade de rever as coisas. Em outras palavras, sendo a realidade do homem contornada e/ou desenhada pela linguagem funcional, pois, como afirma Paz (1996), “a natureza é linguagem e esta, por sua vez, é um duplo daquela” (p. 224; grifo nosso), a arte, especialmente a da modernidade, propõe-se, às vezes, enquanto tentativa de recuperação de uma linguagem original, adâmica. Todavia, a recuperação não acontece de forma plena, e a tentativa acaba por gerar um desdobramento da realidade, uma reorganização da linguagem. Operando por via da subversão da lógica convencionada que os sistemas funcionais de codificação e representação do mundo estabelecem, a arte moderna visa roubar do receptor a segurança que a GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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referência convencionada proporciona; e, com isso, pode ocasionar a re-visão das coisas e do mundo. RENÉ MAGRITTE AND MANOEL DE BARROS: INTERSECTIONS BETWEEN PANTING AND POETRY ABSTRACT: In this paper, we explore the possibility of approximation between the poetry of Manoel de Barros and the painting of René Magritte. For this, we use a comparative approach between some works of both artists. More precisely, we select “La clef des songes” (1930) and “La trahison des images” (1928-1929), from René Magritte, and “O muro”, a poem of Manoel de Barros that appears in the book Poemas rupestres (2004). From the comparative approach, we analyse the way how Magritte and Barros work the question about the world representation. Making use of metalanguage, René Magritte and Manoel de Barros reaffirm, in their respective poetics, a process of revelation of language systems arbitrariness. Moreover, Magritte and Barros sustain the conception of legitimation of art in the proposition of new ways of world recoding and perception. KEYWORDS: Manoel de Barros. René Magritte. Metalanguage. Surrealism. REFERÊNCIAS ADORNO, T. W. Revendo o surrealismo. In: ___. Notas de literatura I. Trad. de J. Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003, p. 135140. BARROS, M. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010. BARROS, M. Conversas por escrito: Entrevistas: 1970-1989. In: ___. Gramática Expositiva do chão: poesia quase toda. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 307-343.

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Normas para Submissão 1 – Arquivo apenas em extensão DOC. 2 – Os artigos deverão ter no mínimo 10 (dez) e no máximo 20 (vinte) páginas e as resenhas no mínimo de 03 (três) e no máximo de 08 (oito) páginas, respeitando-se a seguinte configuração, em papel A4: 1,25cm de margem para parágrafo, com margens esquerda e superior de 3,0cm e direita e inferior de 2,0cm, sem numeração de páginas. 3 – Os trabalhos de pós-graduandos, assim como os de Mestres e Doutores sem vínculo com instituições de ensino e pesquisa, só serão aceitos se apresentados em co-autoria com o Prof. Orientador. 4 – Os artigos, entrevistas ou resenhas devem ser enviados para o email [email protected], em programa DOC ou compatível, em um arquivo com o título do trabalho e com identificação do proponente e um arquivo com o título do trabalho e sem identificação do proponente. 5 – O Conselho Editorial, ao qual serão submetidos os textos, poderá sugerir ao autor modificações de estrutura e de conteúdo. Serão devolvidos para correção os trabalhos para as modificações. Nenhuma modificação de conteúdo ou estilo será feita sem o prévio consentimento do autor. É do autor a inteira responsabilidade pelo conteúdo do material enviado. 6 – Os artigos deverão ter a seguinte estrutura: 6.1 – Elementos pré-textuais: • Título e subtítulo: na primeira linha, centralizados, negrito. Fonte: Times New Roman, corpo 13, somente a primeira letra em maiúscula em ambos. • Nome do(s) autor(es): duas linhas abaixo do título, alinhado à direita, com o último sobrenome em maiúscula. Chamar para nota de rodapé, onde deve informar: Sigla –

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Universidade. Faculdade/Instituto – Departamento. Cidade – Estado – País. CEP – e-mail. • RESUMO: três linhas abaixo do nome do autor; em português. Colocar a palavra RESUMO em caixa alta, alinhado à esquerda, sem adentramento e seguida de dois pontos. Redigir o texto em parágrafo único, espaço simples, justificado, de, no mínimo, 150 palavras e, no máximo, 200. Fonte: Times New Roman, corpo 10, para todo o resumo. O resumo do artigo deve indicar objetivos, referencial teórico utilizado, resultados obtidos e conclusão. • PALAVRAS-CHAVE: em número de 3 (três) a 5 (cinco), duas linhas abaixo do resumo, alinhado à esquerda, sem adentramento, em itálico e caixa alta. Fonte: Times New Roman, corpo 10. Cada palavra-chave somente com primeira letra maiúscula, separada por ponto. Para maior facilidade de localização do trabalho em consultas bibliográficas, o Conselho Editorial sugere que as palavras-chave correspondam a conceitos mais gerais da área do trabalho. 6.2 – Elementos textuais: • Texto: O corpo do texto inicia-se duas linhas abaixo das palavraschave. • Fonte: Times New Roman, corpo 12, alinhamento justificado ao longo de todo o texto. • Espaçamento: simples entre linhas e parágrafos, duplo entre partes do texto (tabelas, ilustrações, citações em destaque, etc.). • Citações: no corpo do texto, serão de até 3 (três) linhas, entre aspas duplas. Fonte: Times New Roman, corpo 12. Quando maiores do que 3 (três) linhas, devem ser destacadas fora do corpo do texto. Fonte: Times New Roman, corpo 10, em espaço simples, com recuo de 4cm à esquerda. Todas as referências das citações ou menções a outros textos deverão ser indicadas, após a citação, com as seguintes informações entre parênteses: sobrenome do autor em caixa alta, vírgula, ano da publicação, abreviatura de página e o número desta. Exemplo: (CANDIDO, 1976, p. 73-88) (NBR 10520/03). GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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• Evitar a utilização de idem ou ibidem e Cf. Quando utilizar apud, o que também deve ser evitado, colocar as mesmas informações solicitadas para o autor do texto da qual a citação foi retirada. Exemplo: (BOSI, 2003, p. 1-10 apud SILVA, 1998, p. 23). Informar em rodapé os dados da obra citada de segunda mão e colocar somente as obras consultadas diretamente nas Referências. • Notas explicativas: se necessárias, devem ser colocadas no rodapé da página de ocorrência, numeradas sequencialmente, com algarismos arábicos, fonte Times New Roman, corpo 10, justificadas, mantendo espaço simples dentro da nota e entre as notas, no decorrer do texto. • Títulos e subtítulos das seções: Referenciados a critério do autor, devem estar alinhado à esquerda, sem adentramento, em negrito, sem numeração, inclusive Introdução, Conclusão, Referências e elementos pós-textuais, com maiúscula somente para a primeira palavra da seção, fonte: Times New Roman, corpo 12. • Elementos ilustrativos: tabelas, figuras, fotos, etc., devem ser inseridas no texto, logo após serem citadas, contendo a devida explicação na parte inferior da mesma, numeradas sequencialmente. Serão referidas, no corpo do texto, de forma abreviada. Exemplo: Fig. 1. Fig. 2, etc. 6.3 – Elementos pós-textuais: Colocados logo após o término do artigo. • Título: em inglês, centralizado, em itálico e caixa alta. Inserido duas linhas abaixo do final do texto. Recomenda-se procurar revisão por um especialista em língua inglesa. • ABSTRACT: Duas linhas abaixo do título. Colocar a palavra ABSTRACT, alinhada à esquerda, sem adentramento, em itálico e caixa alta, fonte Times New Roman, corpo 10 para todo o texto, seguida de dois pontos. Texto em parágrafo único, espaço simples e GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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justificado. Recomenda-se procurar revisão por um especialista em língua inglesa. • KEYWORDS: em número de 3 (três) a 5 (cinco), duas linhas abaixo do abstract, em inglês, alinhado à esquerda, sem adentramento, em itálico e caixa alta. Colocar o termo Keywords em caixa baixa. Fonte: Times New Roman, corpo 10, somente com primeira letra maiúscula, separada por ponto. Recomenda-se procurar revisão por um especialista em língua inglesa. • Referências: seguir as normas da ABNT em uso (NBR-6023/02). Duas linhas abaixo das palavras-chave em inglês, alinhada à esquerda, sem adentramento, em negrito e caixa alta, corpo 11. Usar espaçamento 1 entre as linhas da referência e uma linha em branco entre uma referência e outra, em ordem alfabética, alinhamento à esquerda, indicando-se as obras de autores citados no corpo do texto. • Bibliografia: se considerada imprescindível, deve vir duas linhas abaixo das referências, alinhada à esquerda, sem adentramento, em negrito e caixa alta, corpo 11. Podem ser indicadas obras consultadas ou recomendadas, não referenciadas no texto. Usar espaçamento 1 entre as linhas da referência e uma linha em branco entre uma referência e outra, em ordem alfabética, alinhamento justificado. 7 – Exemplos de referências (NBR-6023/02): AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Tradução de Cláudia Pfeiffer et al. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1998. LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Metodologia do trabalho científico. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1986. CORACINI, M. J.; BERTOLDO, E. S. (Orgs.). O desejo da teoria e a contingência da prática. Campinas: Mercado das Letras, 2003. Capítulo de livros: PECHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In: Orlandi, E. P. (Org). Gestos de leitura: da história no discurso. Tradução de Maria das Graças Lopes Morin do Amaral. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1994. p.15-50. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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Artigo em periódico: SCLIAR-CABRAL, L.; RODRIGUES, B. B. Discrepâncias entre a pontuação e as pausas. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, n.26, p.63-77, 1994. Artigo em periódicos on-line: SOUZA, F. C. Formação de bibliotecários para uma sociedade livre. Revista de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Florianópolis, n.11, p.1-13, jun. 2001. Disponível em: ... . Acesso em: 30 jun. 2001. Dissertações e teses: BITENCOURT, C. M. F. Pátria, civilização e trabalho: o ensino nas escolas paulista (1917-1939). 1988. 256 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998. Artigo em jornal: BURKE, Peter. Misturando os idiomas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 abr. 2003. Mais!, p.3. Documento eletrônico: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA. Coordenadoria Geral de Bibliotecas. Grupo de Trabalho Normalização Documentária da UNESP. Normalização Documentária para a produção científica da UNESP: normas para apresentação de referências. São Paulo, 2003. Disponível em: ... . Acesso em: 15 jul. 2004. Trabalho de congresso ou similar (publicado): MARIN, A. J. Educação continuada. In: CONGRESSO ESTADUAL PAULISTA SOBRE FORMAÇÃO DE EDUCADORES, 1., 1990. Anais ... . São Paulo: UNESP, 1990. p.114-118. CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UFPe, 4., 1997, Recife. Anais ... . Receife: UFPe, 1997. Disponível em: ... . Acesso em: 21 jan. 1997. GUAVIRA LETRAS, n. 18, ago.-dez. 2014

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CD-ROM: KOOGAN, A.; HOUAISS, A. (Ed.) Enciclopédia e dicionário digital 98. Direção geral de André Koogan Breikman. São Paulo: Delta; Estadão, 1998. 5 CD-ROM. Produzida por Videolar Multimídia. - BAIXAR ESTE ARQUIVO EM PDF: http://cptl.ufms.br/manager/titan.php?target=openFile&fileId=870

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Contato Editor Geral da Revista Guavira Letras: Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS) [email protected] Editor Adjunto da Revista Guavira Letras: Profa. Dra. Kelcilene Grácia-Rodrigues (UFMS) Email: [email protected] Telefone: (67) 3509-3416

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