A Questão da Glória em Montaigne

June 16, 2017 | Autor: Bruno Alonso | Categoria: Michel de Montaigne, Montaigne, Michel de Montaigne (Philosophy)
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Universidade Federal Fluminense ICHF – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Curso de Graduação em Filosofia

BRUNO DE FIGUEIREDO ALONSO

A QUESTÃO DA GLÓRIA EM MONTAIGNE

Niterói, Rio de Janeiro

2015

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BRUNO DE FIGUEIREDO ALONSO

A QUESTÃO DA GLÓRIA EM MONTAIGNE

Monografia apresentada ao curso de graduação em Filosofia pela Universidade Federal Fluminense de Niterói, como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Filosofia.

ORIENTADOR: CELSO MARTINS AZAR FILHO

Banca Examinadora

............................................................................................................................................. Prof. Doutor Celso Martins Azar Filho (Universidade Federal Fluminense)

............................................................................................................................................. Prof. Doutor Marcus Reis Pinheiro (Universidade Federal Fluminense)

............................................................................................................................................. Prof. Doutor Guilherme Louis Wyllie Medici (Universidade Federal Fluminense)

Niterói 2015

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Ἀναχωρήσεις αὑτοῖς ζητοῦσιν ἀγροικίας καὶ αἰγιαλοὺς καὶ ὄρη, εἴωθας δὲ καὶσὺ τὰ τοια ῦτα μάλιστα ποθεῖν. ὅλον δὲ τοῦτο ἰδιωτικώ τατόν ἐστιν ἐξόν, ἧς ἂνὥρας ἐθελήσῃς, ἰδιω τικώτατόν ἐστιν, ἐξόν, ἧς ἂν ὥρας ἐθελήσῃς , εἰς ἑαυτὸνἀναχωρεῖν. οὐδαμοῦ γὰρ οὔτε ἡσ υχιώτερον οὔτε ἀπραγμονέστερον ἄνθρωπο ςἀναχωρεῖ ἢ εἰς τὴν ἑαυτοῦ ψυχήν, μάλισθ᾽ ὅστις ἔχει ἔνδον τοιαῦτα, εἰς ἃἐγκύψας ἐν π άσῃ εὐμαρείᾳ εὐθὺς γίνεται: τὴν δὲ εὐμάρει αν οὐδὲν ἄλλο λέγω ἢεὐκοσμίαν. συνεχῶς ο ὖν δίδου σεαυτῷ ταύτην τὴν ἀναχώρησιν κα ὶ ἀνανέουσεαυτόν: βραχέα δὲ ἔστω καὶ στοι χειώδη ἃ εὐθὺς ἀπαντήσαντα ἀρκέσει εἰς τὸ πᾶσαν λύπην ἀποκλύσαι καὶ ἀποπέμψαι σε μὴ δυσχεραίνοντα ἐκείνοις ἐφ᾽ ἃ ἐπανέρχῃ. τίνι γὰρ δυσχερανεῖς; τῇ τῶν ἀ νθρώπων κακίᾳ;ἀναλογισάμενος τὸ κρῖμα, ὅτι τὰ λογικὰ ζῷα ἀλλήλων ἕνεκεν γέγονε κ αὶ ὅτιτὸ ἀνέχεσθαι μέρος τῆς δικαιοσύνης κ αὶ ὅτι ἄκοντες ἁμαρτάνουσι καὶ πόσοιἤδη δι εχθρεύσαντες, ὑποπτεύσαντες, μισήσαντες, διαδορατισθέντεςἐκτέτανται, τετέφρωνται, παύου ποτέ. ἀλλὰ καὶ τοῖς ἐκ τῶν ὅλωνἀπο νεμομένοις δυσχερανεῖς; ἀνανεωσάμενος τὸ διεζευγμένον τό: ἤτοι πρόνοιαἢ ἄτομοι, καὶ ἐξ ὅσων ἀπεδείχθη ὅτι ὁ κόσμος ὡσανεὶ πόλ ις. ἀλλὰ τὰ σωματικάσου ἅψεται ἔτι; ἐννοήσ ας ὅτι οὐκ ἐπιμίγνυται λείως ἢ τραχέως κινο υμένῳπνεύματι ἡ διάνοια, ἐπειδὰν ἅπαξ ἑα υτὴν ἀπολάβῃ καὶ γνωρίσῃ τὴν ἰδίανἐξουσί αν, καὶ λοιπὸν ὅσα περὶ πόνου καὶ ἡδονῆς ἀ κήκοας καὶ συγκατέθου. ἀλλὰ τὸ δοξάριόν σε περισπάσει; ἀπιδὼν εἰς τὸ τάχος τῆς πάντων λήθης καὶτὸ χάος τοῦ ἐφ᾽ ἑκάτερα ἀπείρου αἰῶνος καὶ τὸ κενὸν τῆ ς ἀπηχήσεως καὶ τὸεὐμετάβολον καὶ ἄκριτο ν τῶν εὐφημεῖν δοκούντων καὶ τὸ στενὸν το ῦ τόπου, ἐνᾧ περιγράφεται: ὅλη τε γὰρ ἡ γῆ στιγμὴ καὶ ταύτης πόστον γωνίδιον ἡκατοίκ ησις αὕτη; καὶ ἐνταῦθα πόσοι καὶ οἷοί τινες οἱ ἐπαινεσόμενοι; λοιπὸν οὖν μέμνησο τῆς ὑποχωρήσεως τῆς ε 3

ἰς τοῦτο τὸ ἀγρίδιον ἑαυτοῦ καὶπρὸ παντὸς μὴ σπῶ μηδὲ κατεντείνου, ἀλλὰ ἐλεύθερος ἔ σο καὶ ὅρα τὰπράγματα ὡς ἀνήρ, ὡς ἄνθρω πος, ὡς πολίτης, ὡς θνητὸν ζῷον. ἐν δὲ τοῖς προχειροτάτοις, εἰς ἃ ἐγκύψεις, ταῦτα ἔστω τὰ δύο: ἕν μέν, ὅτι τὰ πράγματαοὐχ ἅπτεται τῆς ψυχῆς, ἀλλ᾽ ἔξω ἕστηκεν ἀτρεμοῦντα, α ἱ δὲ ὀχλήσεις ἐκ μόνηςτῆς ἔνδον ὑπολήψεως : ἕτερον δέ, ὅτι πάντα ταῦτα, ὅσα ὁρᾷς, ὅσον οὐδέπωμεταβαλεῖ καὶ οὐκ ἔτι ἔσται: καὶ ὅσ ων ἤδη μεταβολαῖς αὐτὸς παρατετύχηκας,σ υνεχῶς διανοοῦ. ὁ κόσμος ἀλλοίωσις, ὁ βίος ὑπόληψις.

A gente procura para si retiros nas casas de campo, na beira-mar, nas serras; tu também costumas anelar vivamente por isolamentos desse gênero. Tudo isso, porém, é o que há de mais estulto, quando podes retirar-te a ti mesmo à hora que o desejes. A lugar nenhum se recolhe uma pessoa com mais tranquilidade e mais ócios do que na própria alma, sobretudo quando tem no íntimo aqueles dons sobre os quais basta inclinar-se para gozar, num instante, de completo conforto; por conforto não quero dizer senão completa ordem. Proporciona a ti mesmo constantemente esse retiro e refaze-te; mas haja nele aquelas máximas breves e elementares que, apenas deparadas, bastarão para fechá-lo a todo sofrimento e devolver-te livre de irritação contra o ambiente aonde regressas. Com efeito, com o que te irritas? Com a maldade humana? Reaviva o juízo de que os viventes racionais nasceram uns para os outros; que a paciência é uma parte da justiça; que não pecam por querer; que tantos já, após ódios ferrenhos, suspeitas, rancores, jazem transpassados pela lança e reduzidos a cinzas; e sossega, enfim. Porém estás irritado também com os quinhões do todo que te couberam? Recorda a disjuntiva ou uma providência, ou os átomos e todas as provas de que o mundo é como uma cidade. Porém ainda te afetarão os interesses do corpo? Considera que a inteligência não se imiscui nas agitações, suaves ou violentas, do alento, uma vez que, recolhida, haja compreendido o seu poder

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próprio; recorda, enfim, tudo quanto ouviste e admitiste sobre a dor e o prazer. Porém a gloríola te fascinará? Volta a atenção para a rapidez com que tudo se esquece, para a extensão do tempo infinito num sentido e no outro, para o vazio da repercussão, para a volubilidade e falta de critério dos aparentes aplausos e na estreiteza do espaço onde se circunscrevem. A terra toda não passa de um ponto, e que diminuto cantinho dela é realmente a parte habitada! E ali quantos são e quem são os que te hão de louvar? Por fim, lembra-te de teu retiro para dentro dessa nesga de terra tua e, antes de tudo, nada de tormentos e contensões; sê livre e encara as coisas como um varão, como um ser humano, como um cidadão, como um vivente mortal. Entre as noções mais à mão, sobre as quais te inclinarás, estejam estas duas: primeira, que as coisas não atingem a alma; param fora, quietas, e os embaraços vêm exclusivamente dos pensamentos de dentro; segunda, que tudo quanto estás vendo se transformará dentro de instantes e deixará de existir. Pensa constantemente em quantas transformações tu mesmo presenciaste. O mundo é mudança; a vida, opinião. Meditações Livro IV Capítulo 3, Marcus Aurelius

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Agradecimentos

Agradeço primeiramente ao meu falecido pai Marco Aurélio Alonso e a minha mãe Márcia que me deu total apoio financeiro e moral para que eu me dedicasse unicamente à formação acadêmica. Sou muito grato ao meu orientador Celso Azar, que deu plena liberdade para que eu escolhesse o tema do meu trabalho de conclusão de curso. E também por me dar total confiança para desenvolve-lo com autonomia e personalidade. Presto as devidas homenagens ao professor Marcus Reis, que foi fundamental para minha formação acadêmica. Sobretudo pelo ensino da filosofia estoica, que me influenciou profundamente. E não apenas pelo ensino dos conteúdos de filosofia antiga, mas por ter me permitido exercitar constantemente a escrita nas disciplinas que fiz com ele. Agradeço ao professor Danilo Marcondes, que com o ensino da filosofia cética permitiu que eu me tornasse menos dogmático e tivesse uma visão mais saudável da filosofia como um todo. Sou grato à Universidade Federal Fluminense, à qual me sinto privilegiado e me orgulho de fazer parte. E por ter me proporcionado construir grandes amizades ao longo do curso de graduação em Filosofia.

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Resumo do Projeto

O que é mais importante para a realização da virtude, as honrarias e o reconhecimento de outrem ou nossa própria consciência? É inegável, como Montaigne admite, que a glória naturalmente acarrete em vantagens. Porém isso não significa que haja um propósito nela mesma. Em seu ensaio Da glória, texto de referência para este projeto de pesquisa, Montaigne problematiza a forma como lidamos com a glória e a estima questionável que atribuímos a ela. Deveríamos buscá-la por si mesma ou pelas vantagens que dela advém? Ou ao contrário, deveríamos desprezá-la e ater-se a si mesmo, num exercício de exame da própria consciência? Tendo como ponto de partida as doutrinas de grandes pensadores gregos e latinos, Montaigne retoma a questão filosófica sobre a glória e lança uma nova luz sobre o problema.

Palavras chave: Montaigne, glória, propósito, consciência, virtude, exercício.

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SUMÁRIO

Introdução..........................................................................................................................9

I.

A filosofia grega e o desprezo pela glória.....................................................11

II.

Uma abordagem cética..................................................................................13

III.

Até mesmo um filósofo pode sucumbir ao desejo de fama...........................15

IV.

A glória como fruto da sorte..........................................................................16

V.

A cultura espartana e a ética guerreira de repúdio à glória............................18

VI.

Miséria humana ou dignidade humana..........................................................20

VII.

Vaillance philosophique et vaillance militaire..............................................22

VIII.

Indiferença estoica, mediania aristotélica e dúvida cética.............................23

IX.

Crítica à autoridade do modelo e o princípio escolástico da imitatio............27

X.

Um sentido teológico para a glória................................................................30

XI.

Pirronismo católico........................................................................................33

XII.

Os pensadores latinos e a recusa à celebridade..............................................35

XIII.

Askesis e Ascese, Ataraxia e Amerimnia........................................................36

Conclusão........................................................................................................................39 Referências Bibliográficas...............................................................................................40

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Introdução

A questão da glória, tema do capítulo XVI do segundo livro dos Ensaios, é um assunto que aparece com maior expressão, na história da filosofia, no contexto helenístico. Isso não significa que Platão, Aristóteles e seus predecessores não tivessem dado a atenção devida a esta questão, que vinha desde a tradição poética de Homero. O ponto decisivo, que revolucionou a forma de conceber a filosofia, foi a atenção que passou a ser dada à prática de exercícios espirituais destinados a extinguir a ambição de glória. Montaigne, ao falar de Platão, no ensaio Da glória, foi categórico em apontar essa diferença: Platão que atentava para tudo o que pudesse impelir seus concidadãos à virtude, aconselha-os, entre outras coisas, a não desprezarem a consideração e a estima do povo, e diz que, por uma espécie de inspiração divina, até os maus sabem distinguir, em seus juízos, o mal do bem. Esse filósofo e Sócrates, seu mestre, entendem-se perfeitamente e não hesitam em fazer intervirem as revelações divinas sempre que a força humana se revele impotente.1

Platão não estava preocupado com os efeitos maléficos que a ambição de glória poderia trazer para a integridade da virtude do filósofo. Ao contrário do que era defendido pelas grandes escolas helenísticas, Platão acreditava que a fama era um bem, pois resultava de uma vida vivida belamente. E atribui a divindade o poder de conceder a glória aos homens. A glória – diz Montaigne sobre Platão – é um favor divino, dado para aqueles que se mostram dignos de louvor. No entanto, é preciso advertir que não podemos aqui ser categóricos quanto ao que Platão realmente defende sobre a glória. Montaigne fala de forma resumida e não se refere a nenhum dos diálogos. O que permite apenas trabalhar com aquilo que o próprio Montaigne afirma sobre a concepção platônica acerca da glória. A partir das escolas helenísticas a questão da glória surge como um problema ético fundamental. Estoicos, cínicos, céticos e epicuristas apresentam igualmente uma postura de aversão ao desejo de fama. Esses filósofos compreenderam o aspecto negativo inerente a glória, imensamente prejudicial ao filósofo. Quando dominado por essa ambição, o filósofo cai na cegueira e deixa de lado o cerne daquilo que realmente lhe impulsiona. A virtude.

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Montaigne, Ensaios. 1972. p. 294.

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Montaigne chama atenção para o perigo que a glória oferece. Se o filósofo se torna condescendente com a fama e alimenta esse desejo internamente, inevitavelmente perde de vista a razão que lhe sustenta. A virtude relaciona-se unicamente com a própria consciência. Pierre Hadot é o autor contemporâneo responsável pela retomada dos princípios filosóficos fundamentais que predominavam durante a época helenística e romana. Ele retoma a proposta de uma filosofia entendida como espiritualidade: Na Antiguidade, a filosofia é um exercício a ser praticado a cada instante; ela convida a se concentrar sobre cada instante da vida, a tomar consciência do valor infinito de cada momento presente se ele é colocado na perspectiva do cosmos, pois o exercício da sabedoria comporta uma dimensão cósmica.2

É nas escolas helenísticas que se torna expressivo o entendimento da filosofia como forma de vida. Platão e Aristóteles de certa forma já prenunciavam esse aspecto da filosofia, que não pode ser reduzida a um discurso teórico. A filosofia é, acima de tudo, uma escolha de vida. Que envolve um árduo caminho em direção à elevação espiritual, e exige uma conversão radical daquele que busca a sabedoria. Para tornar-se filósofo é preciso uma transformação radical no modo de ser e na maneira de viver. O ensaio Da glória é recheado com uma série de citações e menções aos filósofos helênicos. Crisipo, Diógenes, Epicuro e Carnéades são as fontes com a qual Montaigne se refere explicitamente. E expõe, em linhas gerais, a concepção acerca da glória de Platão e Aristóteles, que não apresentam a mesma preocupação desses filósofos. Também recorre a Homero, para mostrar como a questão da glória era cultuada e já aparecia como um tema importante na mitologia grega. Além desses filósofos, Montaigne apresenta uma gama de pensadores latinos: Juvenal, Cícero, Salústio, São Paulo, Ariosto, Tito Lívio, Quintiliano, Ovídio, Pérsio, Virgílio, Lucano e Sêneca. Que em muitos aspectos, defendem princípios muito semelhantes aos dos filósofos antigos. Contudo, cabe nesse ponto ressaltar, que tanto os gregos como os romanos, foram profundamente influentes na formação do seu pensamento. É impressionante como esse ensaio de Montaigne serve como um claro exemplo para aquilo que Pierre Hadot apontava como uma necessidade inalienável para o estudo da filosofia greco-romana.

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HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. 2014. p. 272.

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Duas trajetórias são então inseparáveis: de um lado, explicar o pensamento latino por seu pano de fundo grego, e, de outro, reencontrar, por meio dos escritores latinos, o pensamento grego perdido. Sendo assim, é totalmente impossível separar, na pesquisa, o grego e o latim. 3

Há uma continuidade entre essas duas tradições. A filosofia grega foi absorvida pelos romanos, que se apropriaram da sua cultura e da sua língua. Enquanto herdeiro dessas tradições, Montaigne reaviva o ápice da espiritualidade romana e helênica. No ensaio Da glória ele confronta as duas tradições, pondo-as lado a lado, e demonstrando a imensa identificação entre elas. Quanto à forma como a questão da glória é apresentada em Da glória, é prudente reconhecer que Montaigne se exime da tarefa de defender uma única doutrina. Este trabalho será desenvolvido sob a extrema dificuldade de destrinchar e trazer à luz um pensamento propriamente montaigneano. Dada essa dificuldade, imposta pelo próprio estilo do autor, é certo que, ainda assim, o trabalho será realizado com o objetivo de desvelar algo de autêntico e próprio ao filósofo francês.

I.

A filosofia e o desprezo pela glória

Ao pensarmos nas proezas do herói Aquiles, narradas na Ilíada, nos vem à mente um típico exemplo de um ideal moral que valoriza e chega até mesmo divinizar a glória. Aquiles enfrentou uma morte violenta e prematura pelo desejo que seu nome fosse lembrado e honrado pelas gerações vindouras. Sacrificou a própria vida pela glória de ter, através do canto do poeta, o seu nome preservado na memória da humanidade. Alguns filósofos gregos, por outro lado, problematizam a maneira como lidamos e questionam a demasiada estima que atribuímos a glória. Muitos deles viram no desejo de fama um perigoso obstáculo para a realização da virtude, chegando até mesmo a serem completamente indiferentes. Outros filósofos adotaram uma postura ainda mais radical pregando não uma simples indiferença, mas o total desprezo pela glória.

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HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. 2014. p. 239.

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Crisipo e Diógenes foram os primeiros a desprezar a glória, e com maior resolução. Diziam que, entre todas as volúpias, não há mais perigosa, nem de que mais se deva fugir do que a aprovação alheia.4

De acordo com Montaigne, o estoico Crisipo e Diógenes o cínico foram os primeiros filósofos a adotarem mais radicalmente o desprezo pela glória como um princípio de vida. Deixar-se levar pelo prazer da fama e pelos elogios dos aduladores é o que há de mais pernicioso para que o filósofo mantenha-se num estado de apatheia e não deixe de lado a autarkeia. Quem nutre o espírito com a opinião alheia e tem como horizonte para a virtude a fama, é passível de uma série de paixões que perturbam a alma. Segundo esses filósofos devemos não apenas ser indiferentes com a glória, e já que é um bem tão capaz de afetar nossa alma, devemos evitá-la ao máximo tratando-a com o devido desprezo. Era também um dos principais dogmas de Epicuro este preceito de sua escola: “esconde tua vida”, o qual proíbe que se embarace alguém com cargos e gestões dos negócios públicos. E pressupõe assim que forçosamente desprezemos a glória, a qual consiste na aprovação da coletividade às nossas ações mais evidentes.5

Segundo Montaigne, Epicuro também defende o desprezo pela glória como um dos princípios da sua doutrina moral. Uma vida mais reclusa, distanciada da multidão, é o ideal de vida epicurista. As lisonjas e honrarias atribuídas em razão da posição que o indivíduo ocupe na sociedade, pelo cargo que exerça e poder que detenha, são segundo a filosofia epicurista prejudiciais à conduta do filósofo. Epicuro prega que escondamos nossas vidas, de modo a evitar se expor em meio a atividades supérfluas, que desvirtuam o filósofo do seu estilo de vida contemplativo. O que há de comum entre as concepções dessas escolas helenísticas? Cínicos, estoicos e epicuristas, de um modo geral, buscam um único fim. Atingir a ataraxia, isto é, o estado de imperturbabilidade da alma.6 A glória seria então, conforme a concepção 4

Montaigne, Ensaios. 1972. p. 289. Idem. 6 Além dos cínicos, estoicos e epicuristas, os céticos também buscam esta tranquilidade da alma. No entanto, o caminho percorrido pela filosofia cética envolve uma série de passos rígidos que podem conduzir à ataraxia. Inicia-se a partir da sképsis (investigação), de onde provém o próprio nome da escola filosófica. A atividade investigativa conduz a zétesis (busca) por uma solução, isto é, por um veredicto de verdade. A epoché (suspensão do juízo) é o nível intelectual que o filósofo atinge após analisar minuciosamente a questão e constatar a isosthenia (equipolência) entre as doutrinas em conflito. As teses confrontadas são igualmente defensáveis. A incapacidade de solucionar esse conflito põe o filósofo num estado de aporia (impasse). Após se deparar com o conflito entre as doutrinas e se encontrar num impasse, o cético suspende o juízo, não afirmando verdades nem falsidades sobre as teses em conflito. No esquema cético a epoché é 5

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desses pensadores, um enorme obstáculo que impossibilitaria o filósofo de alcançar a tão sonhada ataraxia. Outros pensadores, ao contrário, não conceberam a glória de forma negativa. Mas viram nela um bem legítimo, digno de ser buscado. Carnéades foi o chefe da seita de opinião contrária. Afirma que a glória é desejável em si, como natural é a afeição que dedicamos aos filhos a nascerem depois de nossa morte, embora não os devamos conhecer. (...) Aristóteles coloca a glória em primeiro lugar entre os bens que nos vêm de fora de nós mesmos, e considera igualmente criticável busca-la exageradamente ou dela fugir.7

Carnéades, seguidor da academia de Platão, contraria a maior parte dos filósofos helenistas. Ele afirma que a glória é um bem naturalmente desejável. Assim como amamos nossos filhos porque eles darão continuidade à nossa existência, queremos que nossos nomes sejam preservados e lembrados na posteridade. Aristóteles faz uma abordagem mais moderada. Diferente do acadêmico Carnéades, considera que a glória não deve ser buscada por si mesma. Pois é um bem exterior que nos afeta apenas de forma indireta. Dentre esses bens, diz Montaigne, Aristóteles considera a glória como o mais nobre e valioso. Portanto, segundo a doutrina aristotélica, para agirmos virtuosamente, não devemos buscá-la exageradamente nem agirmos com desprezo.8

II.

Uma abordagem cética

Qual a pretensão de Montaigne ao confrontar as diversas concepções desses filósofos? A intenção de Montaigne é realizar uma abordagem cética, de modo que ao longo do ensaio, os argumentos sejam pura e simplesmente apresentados. O método

um ponto fundamental. Permite ao filósofo lidar com o estado de aporia sem abandonar a questão com que se defronta. Ao suspender o juízo e eliminar a necessidade de resolver a questão, o cético atinge a ataraxia, isto é, o estado de imperturbabilidade da alma. Elimina-se a necessidade de asserir juízos definitivos acerca do conflito entre as doutrinas, e consequentemente extingue-se a inquietude que antes perturbava a alma. Tendo alcançado esse estado de tranquilidade da alma, o cético finalmente encontra a eudaimonia. A felicidade advinda do exercício da filosofia. 7 Montaigne, Ensaios. 1972. p. 289. 8 Essa questão será melhor destrinchada no capítulo VIII. No entanto, cabe nesse momento ressaltar que essa questão já foi desenvolvida por Sérgio Xavier Gomes de Araújo. No capítulo 3.4 da sua tese de doutorado Uma leitura de Da glória e Da presunção e a ideia de autorretrato nos Ensaios de Montaigne, defende que Montaigne se apropriou do conceito aristotélico de mediania, num momento em que ele aceitava o desejo de glória como um bem próprio à natureza humana.

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cético pressupõe que o filósofo examine as doutrinas em conflito sem antecipar-se numa decisão precipitada em favor de uma ou outra doutrina. Por mais que o ensaio seja um estilo que encaixe no esquema do ceticismo e permita a elaboração de um texto essencialmente inconclusivo, em diversas passagens Montaigne deixa transparecer o que ele realmente pensa sobre a questão da glória. O que no final das contas não é necessariamente prejudicial à proposta de análise cética. O método cético pressupõe que não devemos rejeitar nenhuma teoria como falsa. Se há um conflito entre doutrinas põe-se em prática o princípio da diaphonia.9 Assim como a opinião que nos aparece como verdadeira deve ser posta em dúvida e em pé de igualdade com as opiniões divergentes, também devemos suspender o juízo frente à aparente falsidade das opiniões. E é o que parece estar presente no ensaio sobre a glória. Montaigne procura trazer para o texto, em pé de igualdade, diversas opiniões conflitantes. Sem antes antecipar-se precipitadamente em favor de uma ou outra doutrina. Sexto Empírico, nas Hipotiposes Pirrônicas, distingue três tipos de filosofia: Aqueles que afirmam ter descoberto a verdade são os “dogmáticos”, assim são chamados especialmente Aristóteles, por exemplo, Epicuro, os estóicos e alguns outros. Clitômaco, Carnéades e outros acadêmicos consideram a verdade inapreensível, e os céticos continuam buscando. Portanto, parece razoável manter que há três tipos de filosofia: a dogmática, a acadêmica e a cética. (...) nossas asserções futuras não devem ser entendidas como afirmando positivamente que as coisas são tais como dizemos, mas simplesmente registramos como um cronista (hystorikos), cada coisa tal como nos aparece no momento .10

O ceticismo é definido por Sexto Empírico como o tipo mais moderado de filosofia. Os dogmáticos consideram ser possível conhecer a verdade. Os acadêmicos, ao contrário, afirmam ser impossível descobrir a verdade, relegando toda a atividade intelectual ao campo da mera opinião. Os céticos ficam no meio do caminho. Não dizem ser possível nem impossível, mas que simplesmente não há nenhum critério que permita

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Um dos princípios básicos da filosofia cética é o da diaphonia. Que é estabelecer o confronto entre duas opiniões controversas com o objetivo de fortalecer ambos os lados. Já que o cético não pretende fechar a discussão, segue-se um método que lhe permite analisar cada tese, indo de um extremo ao outro. O cético filosofa na medida em que desenvolve o conflito entre as teses opostas e elabora cuidadosamente a discussão. Cultivando o conflito enquanto uma questão insolúvel, não passível de ser respondida nem encerrada em favor de uma das doutrinas. 10 SEXTO EMPÍRICO. Hipotiposes Pirrônicas, Livro I. 1997. p.115.

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examinar essa questão.11 Todo critério que possa ser usado como base para confrontar duas opiniões divergentes, inevitavelmente favorecerá uma ou outra, não sendo possível haver um critério que seja puro e imparcial. O diferencial do ceticismo está em valorizar o exercício de investigação, como um estado de constante atividade do filósofo. Assim como um “cronista” o filósofo cético tem a pretensão de agir com espontaneidade e apresentar livremente os argumentos sem esgotar nem encerrar a discussão.

III.

Até mesmo um filósofo pode sucumbir ao desejo de fama

A postura de Epicuro perante a glória, de acordo com a interpretação de Montaigne sobre sua carta a Hermaco, parece contradizer suas próprias ideias: (...) somos, não sei como, dois seres em um só, o que faz que, em uma mesma coisa, acreditemos e não acreditemos, não podendo desfazer-nos do que condenamos. Reportemo-nos, com efeito, às últimas palavras de Epicuro, ao morrer. São grandes e dignas de um filósofo como ele; revelam contudo vestígios de sua preocupação com a reputação ligada a seu nome e com essa disposição de espírito, que censurava em seus preceitos. (...) “Epicuro a Hermaco, salve!” (...) “meu sofrimento é compensado pelo prazer que traz à minha alma a recordação das ideias que inovei e a defesa delas” (...) O que me leva a pensar que esse prazer, que diz sentir em sua alma por causa das ideias inovadas, se liga à reputação que esperava adquirir depois de morto, são os dispositivos testamentários pelos quais determina que Aminômaco e Timócrates, seus herdeiros, fornecessem anualmente, no mês de janeiro, para a comemoração de seu aniversário, a soma a ser fixada por Hermaco; bem como a necessária às despesas com a recepção de seus amigos filósofos, os quais se reuniriam no vigésimo dia de cada lua para honrar sua memória e a de Metrodoro.12

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O problema do critério é fundamental para o ceticismo. Qualquer critério usado como base para confrontar as doutrinas inevitavelmente será dependente das próprias doutrinas. Poderá tender e valorizar aspectos que reforcem a veracidade de uma doutrina em detrimento de outra. Ora tendo em vista essa condição inerente ao problema, seria possível então desenvolver um critério que seja independente das próprias doutrinas? De acordo com os céticos, isso não é possível. Pois qualquer critério que estabelecermos, de uma forma ou de outra, será dependente das doutrinas que estão em jogo. Sendo assim impossível estabelecer um critério puro e independente das doutrinas em conflito. E é nesse ponto que reside o problema do critério. Não há possibilidade de aplicar a diaphonia de modo imparcial, nem analisar o conflito de forma clara e precisa. Todo critério que possa ser adotado estará necessariamente atrelado às próprias doutrinas. 12 Montaigne, Ensaios. 1972. p. 290.

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Por mais que Epicuro tenha se dedicado a exercícios espirituais direcionados a suprimir a ambição de glória e fosse a favor de uma vida mais reclusa, o desejo que suas ideias sobrevivessem ao tempo parece tornar a sua relação com a glória ambivalente e irresoluta. O momento em que a morte se aproxima leva o filósofo a fazer um exame rígido sobre a forma que conduziu sua própria vida. Montaigne, com essa crítica a Epicuro, tenta demonstrar que por mais que tratemos a glória com repúdio, não podemos nos livrar por absoluto, tendo que conviver inevitavelmente com esse conflito interno. Foi o desejo de perpetuar sua doutrina que fez Epicuro preocupar-se em como as coisas seriam conduzidas após a sua morte. Essa tentativa de Montaigne, de extrair de Epicuro um exemplo claro de incompatibilidade da teoria com a prática, visa mostrar ser impraticável – até mesmo por um sábio – uma vida conduzida sob um completo desprezo e indiferença pela glória. Esse é com certeza um dos pontos centrais do argumento de Montaigne e parece afastá-lo das concepções dos estoicos, cínicos e epicuristas. Essas escolas defendem que, através da razão, sejamos capazes de ser imune à aspiração pela glória. No entanto, Montaigne é mais descrente quanto as boas disposições do intelecto humano e defende a tese de que podemos não se deixar dominar pela glória. Mas que é humanamente impossível, exercitar-se ao ponto de atingir um estado de plena indiferença.

IV.

A glória como fruto da sorte

“Cabe a sorte fazer com que nossas ações sejam vistas e conhecidas; a sorte é que distribui a glória, ao sabor de sua fantasia”.13 Quantos homens louvados em vida, não tardaram em cair no esquecimento? Obter a glória e os feitos guardados na memória da humanidade, é uma simples obra do acaso. Montaigne afirma que esse reconhecimento, dado às nossas ações mais notórias, é um bem meramente fortuito que ultrapassa em muito nosso campo de ação. Não há esforço nem mais majestoso feito que assegure a obtenção da glória:

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Montaigne, Ensaios. 1972. p. 290.

16

A que devem César e Alexandre seu imenso renome, senão à sorte? (...) Quantos, cuja existência ignoramos, tiveram coragem idêntica a desses heróis mas se viram desde o início esmagados pelo azar?14

Ainda que tomemos como exemplo figuras grandiosas como Alexandre e César, que realizaram feitos extraordinários, que realmente justificam a glória que lhe dedicam, a preservação dos seus nomes depende de uma série de fatores contingentes. Para Montaigne mesmo quando se trata de personagens grandiosos como esses, a glória atribuída aos seus nomes só sobrevive sob o jugo sorte. Quão irrisória é a memória que temos desses homens. Por mais que César e Alexandre tenham seus nomes gravados nos livros de história e suas vidas minimamente narradas, seus nomes são cada vez mais obscurecidos pelo tempo e tornam-se inócuos, como um fantasma que sobrevive arduamente ao esquecimento. Ao analisar a questão sob o prisma da sorte, Montaigne conclui que a glória é um indiferente. Esse argumento o aproxima da concepção estoica sobre a glória. Se a glória é fruto do acaso, e não está na nossa alçada conquista-la, devemos então agir com indiferença frente aos juízos alheios. Quem procura agradar à multidão não o consegue jamais; ela oferece apenas um alvo mal definido e inatingível: “nada é menos honroso do que o julgamento da massa”.15

Na passagem acima, Montaigne cita o historiador romano Tito Lívio, que alertava para a perversidade dos julgamentos da multidão. Um filósofo deve se resguardar da influência da massa: diante da ofensa e da injúria não devemos nos abalar, perante o elogio e os aplausos não devemos nos envaidecer. Pois nada disso está acima da consciência. O julgamento da multidão é volúvel e não deve ser o horizonte norteador. Alguns filósofos, como Cícero, chegam a adotar uma postura excessivamente radical em relação a essa questão: Cícero é mais sarcástico ainda: “digo que uma coisa, embora não o seja, parece vergonhosa se louvada pela multidão”.16

A opinião da massa, delirante e manipulável, vicia a consciência individual e torna-lhe concupiscente e perturbada com os julgamentos exteriores. Ora um filósofo deve sempre fundamentar seus juízos no exame da sua própria consciência. A indiferença

14

Montaigne, Ensaios. 1972. p. 291. Ibidem. p. 292. 16 Idem. 15

17

frente a glória, de acordo com o argumento desenvolvido por Montaigne, conduz a uma valorização de si mesmo. O critério de uma alma sã está no próprio sujeito que obtém em si mesmo o seu refúgio.

V.

A cultura espartana e a ética guerreira de repúdio à glória

Como nos mostra Jean Pierre Vernant é significativo que nesse contexto a força do velho ideal grego da glória guerreira, tão vivo à época de Homero, se esvaziasse de sentido. O aparecimento dos hoplitas, dos guerreiros espartanos que lutavam em formação cerrada segundo o princípio da falange é indício importante da transformação da concepção tradicional da arete humana dentro do universo espiritual da polis. O valor militar não se definia mais então, tal como nos tempos homéricos, pela glória de grandes façanhas individuais realizadas em combates singulares. Ao contrário, vinculava-se substancialmente ao domínio de si, a um rígido controle dos próprios instintos – sophropsyne – que perturbariam a ordem geral da formação das falanges caso emergissem.17

Sérgio de Araújo fala nessa passagem sobre uma profunda mudança que ocorreu no núcleo da moral helênica. Na Grécia arcaica a virtude do guerreiro era tida como uma capacidade de realizar feitos extraordinários. Segundo o comentador, Jean Pierre Vernant diz que essa mudança se deu com o surgimento dos hoplitas. Esses guerreiros cultivavam uma outra concepção de virtude, menos centrada na figura do indivíduo e mais focada na organização coletiva da tropa. A nova forma de combater espartana, organizada em falanges, trouxe consigo um novo ideal de guerreiro, que não mais busca a realização de feitos heroicos para se diferenciar dos seus companheiros de combate. A glória do guerreiro passou a estar na moderação, em não agir com covardia e ao mesmo tempo não ser temerário diante dos perigos. Não se trata mais daquele guerreiro que se deixa dominar pela ira para agir de um modo sobre-humano. Assim como Aquiles, que irado com a morte de Patroclo, conseguiu vencer Heitor. Nessa narrativa Homero parece pôr a prova, num embate entre dois guerreiros excepcionais, que se equivalem em força, o diferencial da paixão que moveu Aquiles. O ódio, a indignação e o desejo de vingança, foram determinantes para a sua vitória.

17

ARAÚJO, S. X. G. Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a ideia do autorretrato nos Ensaios de Montaigne. 2008. p. 25.

18

O aparecimento do hoplita, pesadamente armado, combatendo em linha, e seu emprego em formação cerrada segundo o princípio da falange dão um golpe decisivo nas prerrogativas militares dos hippeis. Todos os que podem fazer as despesas de seu equipamento de hoplitas – isto é, os pequenos proprietários livres que formam o demos, como são em Atenas os zeugitas –, acham-se colocados no mesmo plano que os possuidores de cavalos. Mas, mesmo neste caso, a democratização da função militar – antigo privilégio aristocrático – causa uma transformação completa da ética do guerreiro. O herói homérico, o bom condutor de carros, podia ainda sobreviver na pessoa do hippeus; já não tem muita coisa em comum com o hoplita, esse soldadocidadão. O que contava para o primeiro era a façanha individual, a proeza feita em combate singular. Na batalha, mosaico de duelos em que se enfrentam os prómachoi, o valor militar afirmava-se sob forma de uma aristeia, de uma superioridade toda pessoal. A audácia que permitia ao guerreiro executar aquelas ações brilhantes, encontrava-a numa espécie de exaltação, de furor belicoso, a lyssa, onde o lançava, como fora de si mesmo, o menos, o ardor inspirado por um deus. Mas o hoplita já não conhece o combate singular; deve recusar, se se lhe oferece, a tentação de uma proeza puramente individual. É o homem da batalha de braço a braço, de luta ombro a ombro. Foi treinado em manter a posição, marchar em ordem, lançar-se com passos iguais contra o inimigo, cuidar, no meio da peleja, de não deixar seu posto. A virtude guerreira não é mais da ordem do thymós: é feita de sophrosyne: um domínio completo de si, um constante controle para submeter-se a uma disciplina comum, o sangue frio necessário para refrear os impulsos instintivos que correriam o risco de perturbar a ordem geral da formação. A falange faz do hoplita, como a cidade faz do cidadão, uma unidade permutável, um elemento semelhante a todos os outros, e cuja aristeia, o valor individual, não deve jamais se manifestar senão no quadro imposto pela manobra do conjunto, pela coesão do grupo, pelo efeito de massa, novos instrumentos da vitória.18

Essa nova concepção de virtude considera que a excelência do guerreiro reside no domínio de si próprio e em ser indiferente perante as paixões que afligem a alma. A glória, até então tida como algo digno de ser buscado, era ao mesmo tempo algo que motivava e também era o fim supremo da realização da virtude do guerreiro. O que, no entanto, mudou drasticamente. O soldado espartano não luta para ganhar honra e tornar-se famoso pelos seus feitos. A própria organização em falanges criou uma consciência da supremacia do caráter coletivo em detrimento das virtudes individuais. A relação com a glória tornou-se então menos enérgica. Não há exatamente um desprezo, mas uma postura mais indiferente. Desejar a glória não é mais visto como algo que fortalece e motiva positivamente o guerreiro para a batalha. Mas ao contrário, como uma paixão egoísta que o imiscui em pensamentos mesquinhos e tolos.

18

VERNANT, J. P. As Origens do Pensamento Grego. 2002. p. 66-67-68.

19

A elite aristocrática dos hippeis sustentava-se pelo diferencial das posses e riquezas, assim como pelo privilégio de possuir carros, cavalos e um armamento superior ao das classes menos abastadas. O que lhes dava uma enorme vantagem para o combate. O ideal de virtude dessa classe de guerreiros era calcado no thymós, que é um estado de espírito de intenso vigor. Eles se diferenciavam não somente pelo armamento e pelas posses, mas também por um caloroso ânimo que os elevavam a uma condição divina na arte da guerra. O hoplita, por outro lado, está em igual condição com os seus companheiros de combate. Possui o mesmo armamento e não faz diferença se ele é mais rico ou mais pobre. E o ideal de virtude também é de outra ordem. O hopilita se nutre de sophrosyne. Ao contrário do thymós, – que está estreitamente ligado a hybris, isto é, a uma emoção excessiva – a sophrosyne caracteriza-se pela moderação. O guerreiro espartano não aspira obter uma glória pessoal. Seus feitos só fazem sentido se estiverem selados com o destino da sua pátria.

VI.

Miséria humana ou dignidade humana?

A mentalidade grega arcaica, típica da poesia de Homero, certamente foi influente entre os contemporâneos de Montaigne. A virtude do guerreiro, na França renascentista, também era calcada numa valorização dos feitos individuais. O que de acordo com Montaigne, dava margem para que muitos nobres agissem pura e simplesmente pela ambição de conquistar uma glória imortal. A aspiração a afirmar a própria nobreza por feitos guerreiros marca forte presença na França de Montaigne devastada pelo caos das guerras de religião. Em sua crítica moral das ambições em Da glória ele ressaltou seu repúdio ao ethos guerreiro dos nobres que viam no ambiente dos conflitos civis um palco para dar mostras de sua coragem e valentia, a fim de conquistar o prêmio de uma honra imortal.19

Os conflitos entre católicos e protestantes serviam de palco para esses nobres, que se aproveitavam das intrigas políticas para angariar fama e renome. De acordo com Sérgio de Araújo, Montaigne acusa esses nobres de não serem guerreiros legítimos. Oportunistas 19

ARAÚJO, S. X. G. Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a ideia do autorretrato nos Ensaios de Montaigne. 2008. p. 31.

20

e descompromissados com a solução dos problemas políticos, almejavam somente a glória.20 Era o conceito de dignidade humana que estava no cerne da moralidade humanista, forjado a partir da retomada e do desenvolvimento dos pressupostos da virtus ciceroniana, desde a obra de Petrarca. Isto é, do alcance dessa perfeita excelência como possibilidade aberta a todos os homens e de uma sólida educação calcada na primazia dos estudos coligados de retórica e filosofia como sua precondição. É importante apreender esse contexto ideológico e o modo como se opunha à tradição medieval agostiniana que acentuava a noção da miséria humana, entre os séculos XIV e XV para que possamos dimensionar o alcance do elogio humanista da liberdade e da glória dos grandes homens.21 Com efeito, a ênfase que o humanismo pôs no ideal clássico de educação fundado no preceito ciceroniano da busca da virtus implicou num rompimento profundo com a tradição agostiniana, dominante nos séculos da Idade Média, que considerava inúteis todos os esforços humanos no sentido da transformação de sua condição miserável e lhe negava a excelência moral.22

Montaigne parece distanciar-se do ideal moral humanista que está por detrás dos valores da nobreza francesa. O conceito de dignidade humana foi o que superou a antiga concepção de homem que prevaleceu durante um longo período da Idade Média. Com essa mudança passou-se a acreditar que a excelência moral é algo atingível. E mais que isso, houve uma revalorização da natureza humana, que segundo os humanistas pode sim beirar a perfeição. Estudar filosofia e dedicar-se ao estudo das línguas era, de acordo com essa tradição, uma maneira de aperfeiçoar o espírito, tornando-se assim mais virtuoso. A tradição agostiniana medieval, fundamentada no conceito de miséria humana, contrariava tudo isso. De acordo com Agostinho, a natureza humana é decaída e aquilo que nos torna bons e virtuosos provém unicamente de Deus. Portanto de nada vale as ambições mundanas para a realização da virtude, que se dá por interioridade e iluminação, isto é, por providência divina. Montaigne, com sua persistência em nos alertar sobre a

20

É importante nesse ponto ilustrar o contexto político vivido por Montaigne. Richard Popkin, no terceiro capítulo de História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza, fala sobre a ascendência de Montaigne. Seu pai era católico e a sua mãe uma cristã recém convertida de origem judaica. “O jovem Montaigne era, como seu pai, católico, mas tinha um profundo interesse pelas várias correntes de pensamento da Reforma e da Contra-Reforma. (...) Durante suas viagens, Montaigne frequentemente parava para conversar com adeptos de várias religiões e mostrava um profundo interesse por suas crenças e práticas” (Richard Popkin, História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza: Rio de Janeiro; Livraria Francisco Alves, 2000. p. 90). Sua origem familiar e uma erudita educação fizeram de Montaigne um filósofo tolerante e cosmopolita. O que justifica claramente a profunda riqueza da sua obra. 21 ARAÚJO, S. X. G. Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a ideia do autorretrato nos Ensaios de Montaigne. 2008 p. 45. 22 Ibidem. p. 46.

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fragilidade e fraqueza da razão, acaba por se aproximar mais do princípio agostiniano de miséria humana. E se afasta do princípio de dignidade humana que prevalecia entre a maior parte de seus contemporâneos renascentistas.

VII. Vaillance philosophique et vaillance militaire

Com efeito, esse debate representava o sintoma de uma transição importante entre a Idade Média e a Renascença no que dizia respeito aos atributos definidores da verdadeira nobreza e excelência. Ligava-se à imensa importância que a glória das letras assumiu na cultura do Renascimento, do louvor à superioridade moral do caráter formado pelos estudos, valor que mais tarde, Montaigne também emularia, como vimos no ensaio acima, sob a designação do ideal da “vaillance philosophique”, em substituição da tradicional “vaillance militaire”.23

Sérgio de Araújo se refere ao ensaio Das recompensas honoríficas, onde a questão da supervalorização do valor militar é abordada por Montaigne. Na França do seu tempo a arte militar era tida como o maior dos saberes, do qual emanava a mais bela forma de virtude. No entanto, a preocupação de Montaigne se deve aos valores cultivados pela glória militar, que muitas vezes, alimentam a ignorância e a falsa valentia. A valentia não reside apenas na arte do combate. A diplomacia, o trabalho de inteligência numa guerra, o serviço médico, e muitos outros que poderíamos enumerar aqui, são também tão valorosos quanto a arte militar. É de se notar entretanto que entre nós dá-se à valentia o primeiro lugar como o testemunha seu nome, o qual vem de valor; e quando dizemos de um homem “que tem muito valor” ou que é um homem de bem, isso significado na linguagem da Corte e da nobreza que é um homem valente. Assim o entendiam igualmente os romanos. Entre eles a palavra virtude na sua acepção mais ampla queria dizer força. Em França somente o serviço militar concede título de nobreza. É condição essencial e exclusiva.24

A concepção de valentia, para os antigos romanos, não dizia respeito somente a aquele guerreiro corajoso que luta com firmeza e vigor. Ela envolvia aspectos espirituais muito mais complexos, onde a questão da indiferença frente as paixões, a capacidade de

23

ARAÚJO, S. X. G. Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a ideia do autorretrato nos Ensaios de Montaigne. 2008. p. 33-34. 24 Montaigne, Ensaios. 1972. p. 185.

22

suportar toda sorte de adversidades e na prudência em saber o momento correto e oportuno de agir. Uma pessoa letrada, capaz de discursar bem, com eloquência, certamente produz mais do que um indivíduo que se garante, simplesmente, nas suas experiências militares. Se por um lado, Montaigne se afasta do conceito humanista de dignidade humana, por outro lado, ele se identifica quanto a exaltação à glória das letras. Montaigne vive num tempo em que a herança cavalheiresca medieval ainda tem um forte peso. Na Idade Média havia uma cisão entre a atividade intelectual e a atividade militar: Essa tópica da glória das letras talvez nunca tenha sido mais exaltada do que à Época do Renascimento com a expansão do humanismo, em seu movimento de resgate das grandes obras da Antiguidade, e em sua moralidade centrada no estímulo ao exercício das aptidões naturais e criativas do espírito humano. Essa ênfase na profissão das letras seria impensável na Idade Média em que a profissão das letras era prerrogativa dos clérigos.25

A função militar, na tradição medieval, exigia uma dedicação exclusiva. E o estudo das letras ficava na esfera religiosa, sendo atribuição dos sacerdotes. O humanismo rompe com isso. E a grandiosidade dessa questão vai muito além. A crítica de Montaigne aos seus contemporâneos franceses, sobre a supervalorização da função militar, não queria simplesmente desqualificar a função militar, e coloca-la num nível inferior à profissão das letras. A genialidade reside na concatenação das duas atividades, que engrandecem uma à outra.

VIII. Indiferença estoica, mediania aristotélica e dúvida cética

Num primeiro momento do ensaio Montaigne parece estar de acordo com a doutrina estoica que manifesta uma aversão à ambição de glória. A questão é, se a virtude pode ser adquirida através do hábito ou se ela se manifesta espontaneamente pela natureza humana. Nesse ponto Montaigne aproxima-se da ética aristotélica e recorre à sua noção de mediania:

25

ARAÚJO, S. X. G. Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a ideia do autorretrato nos Ensaios de Montaigne. 2008. p. 34.

23

(...) a crítica da glória que Montaigne tomava para si recorrendo à tradição cristã e aos grandes filósofos do helenismo perdia espaço diante dessa sua aceitação como um bem próprio ao espírito humano. (...) o preceito aristotélico da mediania – fruto de um acréscimo posterior ao ensaio, que indicava novos rumos – parecia condizer mais com a posição de Montaigne sobre a glória do que a crítica estoica das paixões, que, (...) pretendia elevar o homem acima de si mesmo. A virtude conforme a entendia, dessa perspectiva aristotélica, não se definia, como para os estoicos, enquanto cumprimento de um dever preestabelecido pela ordem natural e universal dada pela providência divina.26

A postura estoica de querer suprimir completamente o desejo de glória, conduzindo o filósofo a um grau de sabedoria que lhe permite ser completamente indiferente, segundo o comentário de Sérgio de Araújo, não leva em conta as reais limitações da razão humana. Montaigne parece desconfiar severamente de haver qualquer possibilidade de tornar-se completamente imune a isso. Além disso, a noção estoica de destino põe a virtude como manifestação da ordem natural de todas as coisas. Aristóteles, ao contrário, reconhece o valor fundamental do hábito para a formação da virtude do filósofo. Não podemos deixar de considerar a complexidade da noção de destino estoica que não elimina o valor dos exercícios espirituais direcionados à formação de bons hábitos. Até que ponto o determinismo absoluto dos estoicos fecha espaço para a aceitação do exercício do hábito como meio necessário para a realização da excelência?27 Crísipos, no primeiro livro de sua obra Do Fim Supremo, Cleantes, Poseidônios em suas Exortações, e Hecáton afirmam que a excelência pode ser ensinada: outra prova de que a excelência pode ser ensinada é o fato evidente de que os maus se tornam bons.28

A constatação de que a excelência pode ser ensinada, refuta a tese de que a noção de destino dos estoicos elimina a relevância do hábito para a formação da virtude. Nessa passagem, Diógenes Laêrtios afirma que alguns filósofos estoicos admitiam que a

26

ARAÚJO, S. X. G. Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a ideia do autorretrato nos Ensaios de Montaigne. 2008. p. 76. 27 O conceito de destino é definido pelos estoicos como encadeamento natural de todas as coisas e também como razão que rege a harmonia do cosmos (D.L. VII, 149). Ao contrário dos epicuristas, para os estoicos nenhum evento ocorre por acaso. Há um profundo determinismo enraizado nos desígnios da razão seminal (logos spermatikós) que está por detrás de todo evento cósmico. De acordo com a filosofia estoica, a liberdade humana, persiste somente no eu interior, que integra e resulta do determinismo absoluto da natureza. O filósofo pode, portanto, exercitar o seu assentimento tornando-se mais virtuoso em seus julgamentos. As impressões, que lhe causam os impulsos e os desejos, denominadas phantasia akathaleptos, que são deturpadas e perniciosas ao pensamento, devem ser extirpadas. E transformadas em phantasia kataleptike, que são impressões adequadas, pois são avaliadas e decompostas pelo raciocínio, de modo que possam ser julgadas com coerência pelo filósofo. O que prova que a questão do hábito não é relegada pelos estoicos para um segundo plano. 28 Diógenes Laêrtios, Livro VII, 91.

24

excelência pode ser ensinada. Logo é razoável reconhecer que os exercícios voltados para a formação de bons hábitos são importantes tanto em Aristóteles quanto para os estoicos. De fato se a profissão de autonomia de Montaigne tinha por princípio a experiência cética da epoché e a constatação da fraqueza da razão, era sobretudo através dos argumentos próprios aos ideais helênicos de sabedoria, especialmente do estoicismo, que ele ressaltava e ampliava essa sua ênfase na independência e autonomia do espírito, em Da glória. Atualizava então a prerrogativa peculiar de sua escrita pessoal – baseada em sua maneira própria de aderir à dúvida cética – de utilizar-se indistintamente das tópicas que mais lhe convinham, sem aderir a nenhuma escola filosófica, a fim de expressar suas próprias ideias.29

Ainda que Montaigne pareça, de um modo geral, mais identificado com a filosofia pirrônica, seu ensaio sobre a glória é permeado por um profundo ecletismo. Num primeiro momento ele parece aproximar-se mais da atitude estoica e cínica, de ser completamente avesso à ambição de glória. Em seguida, fala de Epicuro, que defende uma postura semelhante à desses filósofos. Nele Montaigne encontra um exemplo de que essa tese, em última instância, não é fácil de ser sustentada. E, portanto, anuncia um certo afastamento dessa concepção, que exalta a natureza humana e faz crer que possamos ser completamente imunes ao desejo de glória. Num outro momento ele passa a identificarse mais com a concepção aristotélica, que prega que devemos ser amistosos com a glória. Não desejar exageradamente e ao mesmo tempo não depreciar. Com exceção da concepção aristotélica, as doutrinas mencionadas anteriormente demonstram igualmente uma postura de intensa preocupação com a glória. E de acordo com o argumento desenvolvido por Montaigne, essas doutrinas não fazem justiça a uma série de aspectos e limitações inerentes à natureza humana. A proposta de Aristóteles, num dado momento do ensaio, surge como a abordagem mais sóbria e coerente. No entanto, essa identificação com a concepção de Aristóteles não é definitiva. Mas faz parte de um longo caminho que Montaigne percorre para examinar as diferentes doutrinas acerca da glória. Defendendo o direito dos céticos de duvidar, assim como o era aos dogmáticos de assentir, Montaigne, na verdade, ressaltava a superioridade moral da epoché sobre o assentimento, destacando o prejuízo que o dogmatismo causava à faculdade do julgamento, comprometendo o exercício adequado da razão, segundo seu funcionamento natural. (...) Os céticos, dessa

29

ARAÚJO, S. X. G. Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a ideia do autorretrato nos Ensaios de Montaigne. 2008. p. 117.

25

perspectiva, eram os que usavam suas faculdades em sua inteira capacidade, justamente por não se pretenderem possuidores de verdade.30

Sergio de Araújo comenta nessa passagem sobre o afastamento de Montaigne para com a filosofia estoica. A necessidade de assentir – premissa básica para os estoicos – traz consigo um prejuízo ao intelecto. Ter que asserir sobre a verdade ou falsidade de uma proposição põe a razão diante de uma obrigação. O cético, por outro lado, opta por não atestar a veracidade nem a falsidade da questão. Ao contrário da postura do dogmático, o cético segue um caminho absolutamente distinto. Não é que o cético simplesmente não tenha que assentir sobre coisa alguma. A proposta fundamental da epoché é fugir desse entrave que o assentimento propõe. Suspender o juízo, no entanto, é uma maneira de manter a razão em seu perfeito funcionamento. Ao pôr para si a necessidade de assentir, o estoico se vê obrigado a esgotar a questão e dar uma solução final. Montaigne viu então na epoché um exercício menos pernicioso e mais salutar, que realmente respeita as disposições e limitações da razão humana. A afirmação da fraqueza da razão humana, jamais sugeriu em nenhum momento, nos Ensaios, a aspiração de alcançar um estado caracterizado pela renúncia ou pela limitação da atividade do conhecimento, mas levava Montaigne a apresentar suas asserções a título de opiniões e convicções próprias, referentes somente ao seu processo pessoal de reflexão, incapaz de instruir os homens.31

Reconhecer as próprias limitações da razão não significa o mesmo que desistir da busca pelo conhecimento. Como Sexto Empírico fala nas Hipotiposes Pirrônicas, o dogmático afirma ter descoberto a verdade e o acadêmico afirma que a verdade é inapreensível. O cético abre mão dessa questão e se foca somente no exercício de investigação. Ora não é possível decidir se a verdade é apreensível ou não. Logo o mais prudente é ocupar-se em desenvolver a investigação da melhor maneira possível.

30

ARAÚJO, S. X. G. Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a ideia do autorretrato nos Ensaios de Montaigne. 2008. p. 111. 31 Ibidem. p. 109-110.

26

IX.

Crítica à autoridade do modelo e o princípio escolástico da imitatio

A insistência de Montaigne em nos alertar sobre a fraqueza da razão humana, remete a um aspecto inerente ao discurso filosófico. Cada indivíduo possui algo de único, que precisa ser levado em consideração. Reconhecer as próprias limitações é ter em mente que aquilo que pensamos e defendemos como tese não passa de opinião. Esse processo particular de reflexão não pode ser comunicado. Se todo discurso é perpassado por esse processo particular, que não pode ser suprimido, não poderíamos nos servir de exemplos, que supostamente poderiam moldar nossa própria vida. Para Montaigne não é possível apropriar-se do discurso de outrem seguindo igualmente o seu caminho. Por isso ele se nega a servir de exemplo e se diz incapaz de instruir os seus leitores. O resultado desta crise que é tematizada no texto montaigneano é a de uma nova forma de ler a história. Tal novidade trazida por seu texto contrapõe-se frontalmente ao método escolástico da imitatio que preconizava a existência de modelos estáveis e universais a serem mimetizados pelos homens do presente de modo a formarem sua conduta. Necessário faz-se, então, aproximarmonos do ensaio Da Educação das Crianças, onde Montaigne expõe suas ideias quanto à frequentação dos textos antigos com fins de formação, cujas principais marcas serão a exigência de liberdade e o repúdio à autoridade do modelo.32

Julio Pattio, comenta nessa passagem, sobre a descrença de Montaigne quanto à influência dos grandes modelos de homem, para uma boa educação e uma boa formação do caráter humano. Diz Montaigne, no início do seu ensaio Da Educação das Crianças: “Por minha parte evito-o fazer. E se cito os outros é para melhor dizer de mim” .33 Com essa tese Montaigne contrapõe um princípio comumente aceito pelos filósofos escolásticos. O método da imitatio. Na tradição escolástica prevalecia a concepção pedagógica de que é possível adquirir a virtude através da apropriação de exemplos. E o maior de todos os princípios, ao qual esse método se aplica, é a Imitatio Christi, título da obra de Tomás de Kempis. A doutrina de Cristo é mais excelente que a de todos os santos, e quem tiver seu espírito encontrará nela um maná escondido. Sucede, porém, que muitos, embora ouçam frequentemente o Evangelho, sentem nele pouco enlevo: é que não possuem o Espírito de Cristo. Quem quiser compreender e

32

PATTIO, J. A. P. Exemplaridade em Montaigne: a arbitrariedade do modelo e autonomia do eu. 2008. p. 46. 33 Montaigne, Ensaios. 1972. p. 80.

27

saborear plenamente as palavras de Cristo, é-lhe preciso que procure conformar à dele toda a sua vida.34

O modelo da vida de Cristo, servia então para a tradição escolástica, como o maior de todos os modelos. Imitar Cristo era a mais elevada forma de aproximar-se da natureza divina.35 Que nenhum princípio, de Aristóteles, dos estoicos ou dos epicuristas, seja seu princípio. Apresentem-se-lhe todos em sua diversidade e que ele escolha se puder. E se não o puder fique na dúvida, pois só os loucos têm certeza absoluta em sua opinião.36

Montaigne mostra-se profundamente preocupado com a maneira tendenciosa que muitos estudiosos se dirigem aos filósofos clássicos. O bom exercício hermenêutico requer um distanciamento, para que se compreenda o verdadeiro sentido por detrás da obra. Aristotelismo, estoicismo e epicurismo. Não por acaso Montaigne refere-se a essas três grandes doutrinas. Que são alguns dos exemplos mais expoentes de filosofias fundamentadas em dogmas. A questão que Montaigne coloca é simples. Não cabe simplesmente escolher uma solução, dada por um dos grandes filósofos. E defende-la como a maior das verdades. Nesse ponto fica explícito a predileção do filósofo francês pelo ceticismo pirrônico. Mais prudente que eleger o melhor dos princípios é duvidar. Dúvida, portanto, não é um estado desesperador, que o filósofo tenha que se livrar a qualquer custo. Mas o apanágio essencial da atitude filosófica por excelência. Bem diversos, como sabemos, eram os designíos da forma pessoal dos Ensaios de Montaigne. A ética da lealdade que impulsionava seu discurso – inspirado na reflexão ciceroniana sobre a fides – traduzia-se sobretudo na exigência de manifestação livre de seu próprio juízo, pautado em sua

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TOMÁS DE KEMPIS. Imitação de Cristo. Livro I, Capítulo 1, Parágrafo 2. Marcos Ebeling em sua tese de mestrado Justificado Vivemos: A Justificação pela fé como fundamento de um modo de vida, explica como a obra de Kempis é dividida. O caminho da alma individual, em direção à Cristo, passa por três níveis: a via purgativa, “valorização da espiritualidade introspectiva; autoanulação; obediência a Deus, às escrituras e aos mais velhos; retirar-se do mundo para viver uma vida virtuosa; perfeição para fugir da ira de Deus; preparar-se para o juízo final” (EBELING, M. J. A Justificação pela fé como fundamento de um modo de vida. 2014. p. 56-57); a via iluminativa, que tem como fundamento as virtudes da humildade e do sacrifício; a via unitiva, “obediência irrestrita; autonegação; entrega a Cristo; vida em santidade” (Ibidem. p. 57). A Fides Christi foi o princípio adotado por Lutero, que se contrapunha à teologia escolástica clássica. Sua concepção parte do princípio que o pensamento humano não pode ser igualado a natureza de Cristo. O homem encontra a salvação de uma forma puramente passiva, por uma ação que provem unicamente de Deus. A proposta da reforma protestante transmite uma alta dose de ceticismo à proposta de Kempis, que acreditava no lado introspectivo e ascético, como meio necessário para se alcançar a natureza divina de Cristo. A concepção luterana, por outro lado, desacredita na capacidade do indivíduo conseguir a salvação por si mesmo. De acordo com a Fides Christi de Lutero, de nada serve exercitar o espírito, pois a salvação da alma individual é uma atribuição que nos vem de fora, isto é, pode ser dada apenas por Deus. 36 Montaigne, Ensaios. 1972. p. 81-82. 35

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dúvida cética em relação à validade dos exemplos de perfeição moral dos antigos. O intento de dar testemunho de si para si em sua verdade, implicava diretamente na aversão a uma pintura fixa e bem acabada, como imagem falsa, destinada somente a agradar os outros.37

A fides romana é um princípio jurídico baseado na fidelidade às promessas e no comprometimento com a verdade. Em linhas gerais, poderíamos definir como uma atitude de boa-fé. Inspirado em Cícero, Montaigne também adota a atitude perseverante dos romanos, que prezam pela fidelidade a tudo quanto foi dito e convencionado. É explícita a intenção de Montaigne em desqualificar a prática de se educar a partir de grandes modelos a serem imitados. Como afirma Sérgio de Araújo na passagem acima – “uma pintura fixa e bem acabada” – que serviria como modelo ético de perfeição. Idealizações invariavelmente mascaradas por uma série de omissões e exageros, que não contemplam os vários aspectos que envolvem a complexidade da natureza humana. Esse tipo de pedagogia, que busca educar servindo o aprendiz de modelos a serem imitados, é precária por suprimir o ânimo que dá personalidade à atividade intelectual da pessoa que aprende. Apenas anula o sujeito com falsos exemplos de perfeição, bombardeando-o com uma série de aberrações. É uma inversão o que ocorre aqui, não apenas no tocante ao uso do exemplo tal como era praticado na Antiguidade, mas também como era visto no Renascimento. Não é mais o modelo que precede e dita a ação do sujeito que a ele se dedica, mas é o sujeito presente que realiza um trabalho de aproximação e distanciamento com relação a este modelo, que será aprovado ou recusado de acordo com os interesses de seu apreciador. O exemplo presta-se à tarefa de educação do eu.38

Julio Pattio reconhece que não há em Montaigne uma negação absoluta sobre a possibilidade de uma influência positiva dos modelos. O que ocorre é uma inversão. Onde o sujeito passa a ter a primazia, recebendo e assimilando as influências da forma que lhe for conveniente. Num mesmo modelo, por exemplo, Alexandre Magno ou Júlio Cesar. Poderíamos nos aproximar em alguns aspectos, mas por outro lado, distanciar-nos sobre temas distintos daqueles em que nos identificamos. O modelo está então a serviço do sujeito, que peca ao trata-lo de modo puramente passivo. A crítica de Montaigne se

37

ARAÚJO, S. X. G. Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a ideia do autorretrato nos Ensaios de Montaigne. 2008. p. 129. 38 PATTIO, J. A. P. Exemplaridade em Montaigne: a arbitrariedade do modelo e autonomia do eu. 2008. p. 50.

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estende a concepção grega clássica típica da poesia de Homero. Assim como aos seus contemporâneos renascentistas, que se apropriavam da figura de grandes pensadores gregos no intento de usá-los como paradigma.

X.

Um sentido teológico para a glória Antes de iniciar uma discussão propriamente filosófica sobre a glória, Montaigne

traz a questão, logo ao início do ensaio, para a esfera teológica. Onde o tema é tratado numa dinâmica bem distinta do que vai ser doravante apresentado: Deus, que é, em Si, plenitude e inteira perfeição, não pode ampliar-se e crescer por dentro, em essência, mas Seu nome se amplia e engrandece com os louvores e bênçãos que damos às Suas obras manifestas. (...) A glória e a honra só a Deus pertencem, portanto nada será mais absurdo do que as reivindicarmos. Somos, essencialmente, tão pobres, tão necessitados, tão imperfeitos, que nossa preocupação constante deve ser a de trabalhar continuadamente, para melhorarmos.39

Os louvores e bênçãos que dedicamos à Deus em nada interferem na sua essência. Imóvel, incorruptível e pleno em sua perfeição, a sua essência não pode ser afetada pela vontade humana. Montaigne começa o ensaio Da glória com um argumento tipicamente cristão. Que retira do homem qualquer poder sobre o divino e o coloca numa condição de vã altivez. A condição humana exige uma constante atenção, sempre na iminência de cometer pecado e de entregar-se aos vícios. (...) Montaigne não pretendia tanto abordar as relações entre homem e Deus, quanto tematizar o mundo dos negócios humanos e suas relações entre si, denunciando como ignorância o culto que seus contemporâneos prestavam ao renome. (...) Montaigne desmascarava, desde já, como ignorância o orgulho humanista dos poderes do discurso, em sua prerrogativa de apreender a excelência humana e destituía também a glória mundana de qualquer validade moral.40

Montaigne não fomentou no ensaio Da glória nenhuma problemática sobre a premissa cristã de que a glória só a Deus pertence. Ele adere a essa máxima como uma premissa elementar para o desenvolvimento do ensaio. Seu foco, no entanto, estava voltado para a tradição humanista. Seu objetivo era esvaziar de sentido o conceito

39

Montaigne, Ensaios. 1972. p. 289. ARAÚJO, S. X. G. Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a ideia do autorretrato nos Ensaios de Montaigne. 2008. p. 64. 40

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humanista de dignidade humana, num retorno à concepção agostiniana de miséria humana. De acordo com a ética cristã e com a tradição agostiniana da natureza decaída do homem, a exaltação de sua liberdade de ação e de sua glória se definia como um dos mais graves vícios, pois, de sua perspectiva, a glória humana não passava de vã glória, implicando em blasfêmia contra a única verdadeira excelência que estava na plenitude de Deus.41

Voltamos aqui ao tema que foi trabalhado no capítulo VI, em que foi discutido o princípio de miséria humana, em contraposição com a noção humanista de dignidade humana. Sérgio de Araújo fala sobre a máxima moral que regeu os valores éticos da tradição cristã. Entregar-se ao mundo volúvel das jactâncias e deixar-se enganar pelos falsos triunfos, são atitudes altamente condenáveis na ética cristã. É uma das maiores blasfêmias, clamar para si, a glória que só a Deus pertence. Não há nada mais ardiloso do que usar de subterfúgios para se apropriar de um bem que está muito acima da nossa compreensão. Como era miserável e como procedestes para que sentisse a minha desgraça, naquele dia em que me preparava para declamar louvores ao imperador! Neles mentiria muito, e os que sabiam apoiavam o mentiroso! Meu coração agitava-se com estes cuidados e ardia na febre de pensamentos corrompidos, quando, ao passar por um bairro de Milão, reparei num pobre mendigo, já ébrio, julgo eu, mas humorístico e alegre. Gemi e falei aos amigos que me acompanhavam das muitas angústias provenientes das nossas loucuras. Com todos os esforços – quais eram os que então me preocupavam, carregado, sob o aguilhão das paixões, com o peso da minha desgraça, que aumentava ao arrastá-lo – só queríamos chegar à alegria segura, aonde já tinha chegado, primeiro que nós, aquele mendigo e aonde nunca, talvez, chegaríamos. Dirigiame para aquilo mesmo que ele já alcançara com poucas moedas pedidas de esmola, isto é, para a alegria da felicidade temporal, dando voltas e rodeios trabalhosos.42

No capítulo 6 do Livro VI das Confissões, Agostinho narra um fato que muito marcou a sua vida. O encontro com um mendigo, na cidade de Milão, que tanto mexeu com as convicções do filósofo. Envolvido na mais alta sociedade, conhecido até mesmo pelo imperador Valentiniano e pela imperatriz Justina, Agostinho faz um exame sobre a forma que vinha conduzido a sua vida. Tão clamoroso por obter celebridade e ainda assim vivendo uma vida angustiada e cheia de perturbações. E o mendigo isento de

41

ARAÚJO, S. X. G. Uma leitura de Da Glória e Da Presunção e a ideia do autorretrato nos Ensaios de Montaigne. 2008. p. 45. 42 AGOSTINHO, Confissões. 17° Edição. p. 123.

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preocupações, vivendo com o mínimo necessário, e ainda sim alegre e livre de qualquer ambição. Esse embate do filósofo com o mendigo lembra o encontro de Diógenes o cínico com Alexandre o grande.43 A simplicidade de Diógenes e do mendigo relatado por Agostinho, ultrapassam toda a glória que o poder e a celebridade podem trazer. Agostinho, a partir dessa narrativa, mostra que as duas formas de conduzir a vida, em última instância, não diferem em nada. É claro que não devia me antepor a ele por ser mais culto, pois da ciência não tirava alegria, antes pelo contrário, procurava com ela simplesmente agradar aos homens, não para os instruir, mas só para lhes ser agradável.44

Para Agostinho o homem não se torna mais virtuoso através do conhecimento. Ele atenta para o caráter vão e fútil da ciência. Dela o homem não extrai nada de transformador para o seu espírito. É ai que reside o princípio da miséria humana. O conhecimento não engrandece o homem, que é decadente em virtude da sua condição corpórea e mortal. A única diferença que Agostinho reconhece, entre ele e o mendigo, é que enquanto esse vive perturbado com uma série de ambições e desejos vãos, aquele vive uma vida alegre e livre de preocupação. Os humanistas, por outro lado, reconheciam a capacidade do homem atingir a excelência como uma possibilidade dada. De acordo com essa tradição, o estudo da filosofia e o maior domínio sobre a linguagem, permitem ao homem atingir a excelência. Sendo assim, não é por acaso que Montaigne começa o ensaio atribuindo um sentido teológico para a glória. A concepção cristã não dá margem para que a glória seja trazida para a esfera humana. No entanto, não seria um absurdo afirmar que o filósofo francês seja completamente avesso a concepção humanista de dignidade humana. Sua postura cética, quanto a capacidade do homem poder atingir a excelência, o coloca muito mais próximo ao princípio agostiniano de miséria humana e o afasta dos seus contemporâneos que exaltavam a condição humana.

43

Diógenes Laêrtios, Livro VI, 37: Enquanto em certa ocasião o filósofo tomava sol no Cranêion, Alexandre, o grande, chegou, pôs-se à sua frente e falou: “Pede-me o que quiseres!” Diógenes respondeu: “Deixa-me o meu sol!”. 44 AGOSTINHO, Confissões. 17° Edição. p. 124.

32

XI.

Pirronismo católico

Neste capítulo, deixarei de lado, momentaneamente, o debate sobre a questão da glória, para realizar um estudo, direcionado, a explicar como a tradição cética foi recebida pelo autor dos Ensaios. O ceticismo, em linhas gerais, estabelece limites para a razão humana e nos considera incapazes de solucionarmos uma série de questões. E foi nesse ponto que os primeiros cristãos mais se apoiaram. De acordo com a tradição cristã, a única maneira de podermos nos relacionar com a divindade é através da fé. Não é possível entender a natureza de Deus e da santíssima trindade através da razão. Esses são dogmas altamente refinados que só fazem sentido na esfera da fé. A filosofia acadêmica também exerceu influência sobre os primórdios do cristianismo, visto que ela vai além, e propõe que somos incapazes de conhecer a verdade. Alguns pensadores do início do cristianismo ocuparamse com a tradução de textos de referência para o ceticismo antigo, como as Hipotiposes Pirrônicas de Sexto Empírico. Através do estudo dessa e de outras obras, e de uma maior disseminação das ideias céticas, os primeiros cristãos pretendiam distanciar a mentalidade da época do imaginário pagão e afastá-la de um racionalismo pernicioso. A estratégia deles foi difundir a filosofia cética como uma ferramenta usada para demonstrar como a razão deve ser superada através da fé. (...) o homem está em desacordo seja consigo mesmo, seja com os outros, como se pode ver claramente graças à diversidade das leis e dos costumes; os sentidos enganam, a razão é discordante, a apresentação compreensiva é determinada pela mente e a mente volta-se em várias direções. Não se pode então conhecer o critério; logo, não se pode também conhecer a verdade.45

Montaigne foi um dos principais autores da modernidade responsável pela retomada do pirronismo antigo. Há uma longa discussão sobre a verdadeira origem da filosofia cética. Diógenes Laêrtios avalia uma série de possibilidades. Homero, Eurípedes (D.L. IX, 71), Xenófanes, Zenão de Eléia, Demócrito, Platão (D.L. IX, 72), Heráclito, Empédocles e Hipócrates (D.L. IX, 73). Esses autores já prenunciavam características essenciais ao pensamento cético. No entanto, as tradições céticas foram desenvolvidas somente com o surgimento de Pirro. E com a herança do seu pensamento, que se

45

Diógenes Laêrtios, Livro IX, 95.

33

perpetuou em diversas formas de ceticismo, reinterpretadas pelos seus discípulos e demais pensadores posteriores. A filosofia cética era quase sempre associada ao nome de Pirro e de certo modo também à filosofia acadêmica de Carnéades e Arcesilau, que sustentavam um ceticismo negativo, numa espécie de dogmatismo às avessas.46 Pirro prevaleceu como a maior referência cética da antiguidade, sobretudo, pela maneira que a tradição cética foi transmitida por Sexto Empírico através das Hipotiposes Pirrônicas, dando atenção exclusiva a esse filósofo, como o maior expoente do ceticismo na antiguidade. Richard Popkin fala sobre a estratégia de Montaigne, de articular o ceticismo pirrônico com a premissa de primazia da fé na tradição católica, numa ofensiva contra o protestantismo. No século XVI havia um intenso conflito entre católicos e protestantes. E ambas as partes recorriam a argumentações céticas, numa tentativa de desqualificar o seu adversário. Uma vez que o cético completo não possui pontos de vistas positivos, ele não pode possuir pontos de vistas errôneos. E já que o pirrônico aceita as leis e costumes de sua comunidade, ele aceitará o catolicismo. Finalmente, o cético completo se encontra no estado ideal de receber a Revelação, se Deus assim quiser. O casamento da Cruz de Cristo com as dúvidas de Pirro consistia na combinação perfeita para dar à Contra-Reforma francesa sua ideologia.47

Pirro defendia que devemos crer e agir em conformidade com os valores culturais e saberes científicos do contexto ao qual pertencemos. Montaigne segue essa linha argumentativa, e na Apologia de Raymond Sebond, ataca o luteranismo na defesa de um fideísmo católico. O novo pirronismo de Montaigne foi uma importante ofensiva da Contra-Reforma francesa. A aceitação da tradição de muitos séculos, que transformou o cristianismo numa religião que preza a impessoalidade. Se a condição humana é degradante e cheia de limitações, não seria prudente atribuir a um único indivíduo – como propunha Lutero – a difícil tarefa de interpretar as sagradas escrituras. A hierarquia da 46

A filosofia acadêmica, assim como a pirrônica, também admite não ter encontrado a verdade. A diferença entre elas reside na consideração sobre a possibilidade de apreensão da verdade. O filósofo acadêmico afirma não ser possível alcançar a verdade. O cético, por outro lado, suspende o juízo, e não diz ser nem não ser possível apreender a verdade. O filósofo pirrônico apenas aprecia o problema sem ter a pretensão de esgotar a questão, isto é, o pirronismo trata o problema enquanto uma questão que não pode ser resolvida de forma definitiva. 47 POPKIN, Richard. História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza. 2000. p. 96.

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igreja católica, os concílios e o papel dos padres e demais sacerdotes, eram então uma forma mais substancial de estudar as escrituras sem se deixar levar por uma exegese leviana.

XII. Os pensadores latinos e a recusa à celebridade

Não é para se exibir que nossa alma deve desempenhar seu papel; é para nós e em nós onde ninguém a vê senão nós mesmos, onde nos resguarda do temor à morte, da dor e da vergonha, onde nos dá ânimo se perdemos filhos, amigos e bens, e, quando necessário, nos impele a enfrentar os azares da guerra: “não em vista de alguma recompensa mas pela satisfação da virtude”.48

Um filósofo não pratica a virtude em vista de algum retorno ou reconhecimento pelos seus esforços, mas pelo bem-estar que isso traz para sua própria consciência. A recusa ao prazer oriundo da celebridade é um tema corrente na tradição latina, e Montaigne comprova isso com uma série de citações desses pensadores. Na passagem acima, Montaigne cita o filósofo romano Cícero, que assim como a maioria dos pensadores latinos citados no ensaio Da glória, manifestam uma postura de voltar-se à consciência individual, retirando do mundo externo qualquer legitimidade em matéria de virtude. “Quem pode ser sensível à lisonja e temer a calúnia, senão o desonesto ou o mentiroso?” Eis por que todos os juízos que assentam nas aparências exteriores são eminentemente incertos e duvidosos, e ninguém tem mais fiel testemunha de si do que a própria consciência.49

Atribuir a outrem, o que está na nossa alçada julgar e compreender, é se eximir de uma responsabilidade que é somente nossa. É certo que não podemos facilmente ignorar a opinião da multidão, que nos afeta de diversas maneiras. Porém não há limite para o que podem pensar e dizer sobre nós. Não temos controle nenhum sobre isso. Mesmo que realizemos boas obras e sejamos úteis ao convívio com os demais cidadãos, basta um deslize para perdermos a boa fama e ser achincalhado por aqueles que antes nos adoravam. Na citação acima Montaigne refere-se ao poeta Horácio, que alertava para o fato de que, aqueles que mais se importam com a fama, invariavelmente são os mais 48 49

Montaigne, Ensaios. 1972. p. 291. Ibidem. p. 292.

35

pobres de espírito. Mentem sobre suas façanhas assim como tentam difamar aqueles que consideram como seus rivais. O filósofo, que trabalha arduamente para manter-se íntegro frente à toda sorte de adversidades, não pode recorrer a esse tipo de artimanha. Nem deixar-se enganar pelos falsos testemunhos e provocações que fatalmente terá de enfrentar pelo caminho. Quantos homens virtuosos conhecemos que, sobrevivendo à sua reputação, tiveram a desgraça de ver, ainda em vida, apagarem-se a honra e a glória, justamente conquistadas em sua mocidade! Nesse ponto, tão importante propõe os sábios um fim mais belo e justo: “a recompensa a uma nobre ação está em a ter realizado; o fruto do serviço prestado é o próprio fruto”. Será possivelmente muito compreensível que um pintor ou qualquer artista, ou um retórico, ou um gramático, se esforce para ganhar renome com sua obra; mas os atos que nos inspira a virtude são demasiado nobres em si para que busquemos uma recompensa fora deles, principalmente na inanidade dos juízos humanos.50

Citando o filósofo romano Sêneca, Montaigne atenta para a verdadeira natureza da virtude, que está na própria ação realizada. Praticar a virtude, por si só, já consiste naquilo que a virtude é por excelência. A virtude relaciona-se unicamente consigo mesma, e o seu propósito está nas boas ações realizadas. Segundo Montaigne, é compreensível que um retórico, um pintor ou um gramático pretendam angariar fama através das suas obras. Porém quando o assunto refere-se a valores éticos, e versa sobre a excelência do espírito, nada se busca além da própria consciência. Não existe nenhuma recompensa a altura do mais valioso bem, que é a virtude. Os julgamentos provenientes do exterior, vem sempre carregados pela presunção e pelo desgosto alheio, incapazes de reconhecerem a nobreza de uma bela ação. Não há mistério na questão proposta por Montaigne: se queremos examinar nossa própria vida e avaliar nossos vícios e virtudes, o único caminho a ser seguido é o da introspecção.

XIII. Askesis e Ascese, Ataraxia e Amerimnia

Nos filósofos da Antiguidade, a palavra askesis designa unicamente os exercícios espirituais dos quais falamos, isto é, uma atividade interior do pensamento e da vontade. Que existam em certos

50

Montaigne, Ensaios. 1972. p. 294.

36

filósofos antigos, por exemplo nos cínicos ou neoplatônicos, práticas alimentares ou sexuais análogas à ascese cristã é uma outra questão. Essas práticas são diferentes dos exercícios de pensamento filosóficos.51

Pierre Hadot distingue, nessa passagem, duas formas de exercícios espirituais. A askesis dos gregos, envolvia, acima de tudo, um movimento no próprio pensamento. É um exercício de si para consigo mesmo: (...) o pensamento é tomado, de algum modo, como matéria e busca modificar a si mesmo.52 No caso da abstinência sexual, na prática de um regime vegetariano e na busca por lugares apropriados ao isolamento, é um exercício de outra ordem. Porque diz respeito a algo que nos afeta a partir do mundo externo. No entanto, não deixa de ser um tipo de exercício, que afeta o espírito, ainda que indiretamente. “É necessário que a lei divina inspire o medo a fim de que o filósofo adquira e conserve a tranquilidade da alma (amerimnia), graças à prudência (eulabeia) e à atenção a si mesmo (prosoché), tornando-se em todas as coisas isento de queda e de erro”. Essa lei divina, no espírito de Clemente, é ao mesmo tempo a Razão universal dos filósofos e o Verbo divino dos cristãos; ela inspira um medo, não no sentido de uma paixão, condenada como tal pelos estoicos, mas no sentido de uma circunspecção no pensamento e na ação. Essa atenção a si mesmo traz a amerimnia, a tranquilidade da alma, um dos objetivos que serão buscados no monasticismo.53

A partir de uma citação do Stromata de Clemente de Alexandria, Pierre Hadot explica como a amerimnia era entendida pela tradição cristã. A prosoché (atenção a si mesmo) e a eulabeia (prudência) conduzem a amerimnia, isto é, a tranquilidade da alma. O intenso temor à divindade, típico da religião cristã, segundo Hadot, é desmistificado por Clemente. O medo de Deus não envolve nada de exterior, que Ele supostamente poderia nos causar. Esse temor envolve uma relação consigo mesmo de extrema responsabilidade com a própria conduta. Assim como os estoicos, que traziam para si a total seriedade no cumprimento daquilo que está em nossas mãos. A ascese cristã é um exercício espiritual que por meio da meditação e da oração leva ao aperfeiçoamento interior.

51

HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. 2014. p. 69. Ibidem. p. 20. 53 Ibidem. p. 73. 52

37

(...) a apatheia desempenha um papel capital na espiritualidade monástica. O valor de que ela se reveste está intimamente ligado ao da paz da alma, da ausência de preocupação, da amerimnia ou da tranquillitas.54

Os exercícios monásticos visam, sobretudo, suprimir as emoções, de modo a se alcançar a apatheia, isto é, a completa ausência de paixão. Para aproximar-se de Cristo era preciso uma intensa preparação. Expurgar as necessidades do corpo para longe da mente, tornar-se mais puro, voltar a consciência para coisas elevadas. A tranquillitas ou amerimnia, só podia ser alcançada após longos e árduos exercícios ascéticos. O conhecimento perfeito, a gnose, é um tipo de morte que separa a alma do corpo, que a promove a uma vida inteiramente consagrada ao bem e lhe permite aplicar-se à contemplação das verdadeiras realidades com um espírito purificado. 55

Assim como na filosofia neoplatônica, a gnose cristã compreendia o conhecimento mais elevado como uma separação da alma para com o corpo. O conhecimento gnóstico pode ser definido como uma espécie de morte em vida, em que as influencias causadas pelo corpo são extirpadas, e a atenção é voltada unicamente para a alma.

54 55

HADOT, Pierre. Exercícios espirituais e filosofia antiga. 2014. p. 84. Ibidem. p. 85.

38

Conclusão

Contudo, a questão da glória é certamente um alvo central da ascese cristã, assim como da askesis dos gregos. A ambição de glória é uma das paixões que mais perturbam o espírito, e trazem malefícios inestimáveis. Recorrer a esses exercícios espirituais é então a única forma de se livrar desse desejo maligno e chegar a tranquilidade da alma. O ensaio Da glória é permeado por uma constante hostilidade ao desejo de fama. E Montaigne não esconde isso em nenhum momento. No entanto, a influência da filosofia cética no seu pensamento teve o papel de amenizar essa profunda hostilidade. Reconhecendo a fraqueza da razão humana e os limites da nossa capacidade, Montaigne acaba por desacreditar seriamente na possibilidade de nos tornarmos imunes à ambição de glória. Devemos nos exercitar a desprezar a fama, porém, tendo em mente que esses exercícios possuem um limite inerente. Evitar a glória sim, mas saber que no âmago do nosso ser, nós a desejamos e a queremos. O que é a glória, que tanto nos fascina? Tudo se esvai num curto período de tempo. A fama é um mero fruto da opinião volúvel da multidão, que não tarda em se extinguir, afásica, no vazio da repercussão.

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Referências bibliográficas

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