A QUESTÃO DE DEUS NO ITINERÁRIO FILOSÓFICO DO FICHTE TARDIO: SABER, LIBERDADE, SER

June 3, 2017 | Autor: Luis Dreher | Categoria: Metaphysics, Philosophy Of Religion, German Idealism, Johann Gottlieb Fichte, The Absolute
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A QuESTÃo DE DEus na

História da Filosofia Volume II

A QuESTÃO DE DEus HISTÓRIA E CRÍTICA

FCT/CFUL

Coordenação

Maria Leonor L. O. Xavier

A QUESTÃO DE DEUS NO ffiNERÁRIO FILOSÓFICO DO FICHTE TARDIO: SABER, LIBERDADE, SER1

Luís H.

DREHER

1. Introdução

Grosso modo pode-se dizer que nosso tempo acostumou-se a compreender a liberdade como objeto marcado pela contingência, como fenômeno incuravelmente finito. Nesse contexto, a própria "transcendência" é e:~:plicada exclusivamente- assim parece- a partir de uma perspectiva por via de regra antropológica. Sem negar a validade parcial de tal perspectiva, Fichte empenhou-se em sua própria época, não por último de maneira "popular"2, em tematizar a "transcendência" no mínimo em dois outros sentidos claramente discerníveis. Particularmente em sua filosofia tardia transparecem com toda clareza dois elementos. Primeiro, e negativamente, que um princípio de infinita atividade efetiva-se ou "vive" na forma de uma exterioridade ao eu finito, e mesmo ao eu transcendental. Liberdade é, aqui, "Vida" excedente; ela inclui mas h·anscende a dimensão antropológica, a começar pelo "Saber" que lhe é implícito e ao qual ela pode e deve alçar-se. Segundo, e positivamente, que o h·mzscender do próprio Saber acha-se, em última análise, em estreita conexão com o "Absoluto" ou, cada vez mais desde a publicação da Exortação à Vida Bem-Avenh1rada (Anweisung zum seligen Leben, 1806), com o "Ser" ou "Deus". Faz-se mister observar que para Fichte haveria que pensar e viver/agir na unidade de ambos os termos concomitantes. Sua unidade efetiva é precisamente o que se entende por Vida (Leben): uma vida na"'qual os eus finitos obviamente têm parte. Como corolário dessa direção tardia temos que o próprio Fichte continuou a compreender seu pensamento, em mais de um aspecto, como uma filosofia da liberdade simultaneamente tida como capaz da transcendência num sentido filosófico-religioso. Essa transcendência diferencia-se daquela unilateralmente finita ou antropológica na medida em que ela, já pelo modo de constituição que lhe é peculiar, não pode ser realmente traída, seja por diminuição, seja por uma completa irnanentização: característica fundamental desta transcendência é, a despeito de sua relacionalidade, sua relativa independência mesmo do "Nós" (Wir) que vive e pensa em unidade- ou: que assim deve pensar e viver-, visto que este próprio "Nós" é, por sua parte, já algo com a qualidade de um plzaenomenon bene ftmdahmz no Absoluto discreto. Para nós isso implicará, nas considerações a seguir, buscar compreender a filosofia tardia de Fichte como pensamento que sequer divisa o limiar a partir do qual torna-se possível a traição decisiva e completa da transcendência, dado que não a reduz ao ponto de vista de parcela considerável daquelas filosofias que, de todo, ainda consideram viável pensar a liberdade. Isso significa dizer, porém, que para Fichte será imprescindível afirmar a transcendência da liberdade em sentido mais robusto, na intenção de vedar a passagem da reflexão a um caminho talvez já outrora pressentido - aquele que transtorna a unidade 1

Este artigo é urna versão adaptada de um texto algo mais longo do autor, a ser possivelmente publicado em alemão, produzido no contexto de um estágio pós-doutoral realizado junto à Universidade de Hamburgo, sob a coordenação do Prof. Dr. habil. J. Dierken e o título geral "Liberdade Divina e Humana no Idealismo Alemão". Ao nosso anfitrião, mas especialmente à CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Brasil), nosso reconhecimento e gratidão pelo imenso apoio recebido. 2 Para Fichte, "popular" não significava uma forma de apresentação arbitrária ou superficial, mas, por assim dizer, aquela dirigida ao senso comum (geszmder Mensc/zenverstmzd) do ouvinte. Logo, os pressupostos e/ ou resultados de tal forma de apresentação devem ser buscados e testados no contexto dos escritos sistemáticos do autor. 1181

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pensada e efetiva da vida, chegando ao limiar de assumir, filosoficamente, a irracionalidade completa como seu último horizonte. É nesse sentido, na confluência de termos como Deus/ Absoluto; transcendência; unidade; fundamento; e racionalidade; que Fichte considera ainda possível falar de Deus no último período de seu filosofar. Em geral, a filosofia (tardia) de Fichte entende-se ainda em linha de continuidade com a obra inicial. Ela declara ser idealismo da liberdade, embora não só da liberdade do eu, nem mesmo do eu meramente transcendental. Nisso ela segue a autocompreensão geradora do idealismo alemão enquanto filosofia da liberdade pura e simples. Assim, não causa surpresa que também no caso de Fichte, que é tido como iniciador do idealismo alemão em sentido estrito, venha, mais cedo ou mais tarde, explicitar-se totalmente esta tendência3• Sobretudo nos esboços mais tardios da Doutrina da Ciência (Wissenschaftslehre) - sempre entendida como "ciência" no sentido mais geral da palavra, ou seja, como filosofia4 -, a questão da liberdade é continuamente vinculada a questões mais gerais, de outro tipo. De que tipo, porém, são estas questões? Pretende-se demonstrar que se trata de questões pertinentes à filosofia da religião, mais especificamente do tipo que, com certa obstinação até, assume a figura de uma teologia filosófica cuja influência, malgrado todos os ajustes devidos à nova linguagem e exigência filosóficas, pode comprovar-se extremamente duradoura. Eis aqui a intenção primária deste trabalho. Tal exame, porém, toma indispensável também uma resposta, ainda que indireta, à pergunta adjacente, a saber, se e em que medida Fichte representa, pelo menos desde 1800, uma abordagem "metafísica" da filosofia, e isso justamente por razões que, numa consideração retrospectiva de sua obra, haveria que explicar em sua profunda relação com questões de teoria da fundamentação filosófica5• Em vista daquilo que até aqui vimos de introduzir, faz sentido supor heuristicamente que no modo de pensar fichteano, ao menos como dele se tem notícia no intervalo entre os anos de 1799-1800 e 1804-18066, vai condensando-se uma compreensão de liberdade que leva o filósofo a estabelecer um novo encadeamento de problemas e tópicos filosóficos. Este encadeamento nem sempre é passível de fácil apreensão. Imediatamente clara, porém, é a tentativa de ligar, numa espécie de síntese, o pensamento da liberdade - que permanece, ainda que como mera arbitrariedade, uma feição da nossa "época pós-metafísica" 7 - com questões pertinentes à teoria da fundamentação (do saber/ conhecer), à filosofia da religião como teologia filosófica e a uma nova versão de "metafísica".

Fez-se referência ao período posterior aos anos de 1799-1800, pois toma-se claro que após a disputa sobre o ateísmo (Atheismusstreit) Fichte volta-se paulatinamente a uma forma de pensamento que revela crescente interesse pela ocupação ainda mais intensa e radical com o problema da liberdade. De fato, não se explica de outro modo sua avaliação retrospectiva que desautoriza os ataques a sua pretensa autodeificação do Eu na seqüência da disputa sobre o ateísmo: (... )na verdade, o Absoluto propriamente dito é apenas a Luz: por isso já não se deve pôr a divindade no ser morto, e sim na Luz vivente. - Não, por hipótese, como também certamente se mal compreendeu a Doutrina da Ciência, [colocando a divindade] em Nós: pois isso é, independentemente do sentido que se lhe busque dar, carente de sentido.8

De forma igualmente retrospectiva, a literatura secundária já mais distante de Fichte no tempo pôde propor avaliações semelhantes, confirmando esta auto-interpretação do filósofo. Historiadores da filosofia como J. Hirschberger puderam afirmar - talvez até com certo exagero - que a filosofia tardia de Fichte tende a assumir a forma pronunciada de uma "teologia" 9 • Também um pesquisador de Fichte mais recente, o francês Jean-Christophe Goddard, coloca em questão a interpretação tradicionalmente dominante da disputa sobre o ateísmo10• Não por último, G. Zõller, que na verdade ocupa-se mais com o período de transição à filosofia tardia de Fichte - nisso ainda seguindo a tendência que vê a realização filosófica de Fichte como já presente, em seu todo, na obra inicial, nada querendo saber da obra tardia, suspeita de um retomo dogmático à "metafísica"11 -,constata que a obra fichteana a partir de 1800 não se ocupa apenas com uma teoria transcendental da consciência, mas, ao mesmo tempo, com o "ultimamente real" no quadro de referências daquela12• 8

Johann G. FICHTE, Die Wissensclzaftslelzre (1804), SW10:147. (=Siimmtliclze Werke. Ed. L H. Fichte. 8 v. Berlin: Veit

& Cornp., 1845/1846; as referências a seguir seguirão o padrão SW, v. : p.).

Cp. a carta a Karl Leonhard Reinhold, de 8/1/1800. ln: Johann G. FICHTE, Briefwec/zsel, v. 2, p. 206: "Meu sistema é, do começo ao fim, apenas urna análise do conceito da liberdade." (Obs.: as traduções de Fichte e da literatura secundária constantes do texto principal e das notas de rodapé são do próprio autor deste trabalho.) 4 Jean-Chr. GODDARD, Marc MAESSCHALCK. (Eds.) Ficlzte: La Plzi/osoplzie de la Maturité (1804-1814), p. 9. 5 Seria possível rotular tais questões corno pertinentes à "teoria do conhecimento". Mas já que este terna diz respeito ao contexto mais geral da interpretação da obra de Fichte e desta entendida corno urna unidade -, ele deve, no que se segue, permanecer em segundo plano. Sugere-se apenas: com a designação "metafísica" tem-se em mente sobretudo as conotações implícitas em expressões corno "metafísica da subjetividade", "metafísica da finitude" e metafísica no sentido de um "conceito mundano" da filosofia"; e, quiçá, ainda, metafísica já também corno forma de "hermenêutica", e não, estritamente, "ciência" (Wissensc/zaft). 6 A este intervalo temporal correspondem as conseqüências literárias da "Disputa sobre o Ateísmo" (Atlzeismusstreit), particularmente a escrita (1799) e a publicação, em 1800, da Detemzinação do Homem (Bestimmwzg des Mensclzen); a publicação da Exposição da Doutrina da Ciência do Ano 1801 (Darstellzmg der Wissensc/zaftslelzre nus dem Jalzre 1801); da Doutrina da Ciência de 1804 (Wissensc/zaftsle/zre 1804); e da Exortação à Vida Bem-Avenhzrada (1806). 7 Esta compreensão da liberdade como arbitrariedade, tomada clássica e popular ultimamente pela fórmula "anything goes", cunhada após a assim-mamada "morte do sujeito", é porém associada, aqui e ali, com formas de determinismo, p. ex. no artigo de Simon GLYNN, The freedom of the deconstructed postrnodem subject. Nesse artigo, a "cultura", e não a "natureza", limita decisivamente a liberdade [do sujeito], criando, por outro lado, também possibilidades de "transgressão". Embora, no artigo citado, tal modelo careça de um sentido filosóficoteológico, talvez ele não esteja, em sua estrutura formal, tão distante assim de problemas e tentativas de solução clássicos na área da filosofia da religião. (Obviamente, quer-nos parecer que a solução ficl1teana é mais radical, por não ficar adstrita ao marco de teorias cornpatibilistas da liberdade.)

Johannes HIRSCHBERGER, História da filosofia modema, p. 351: "E na última concepção da Teoria da Ciência a só verdadeira realidade é o ser divino, único, eterno, imutável." Para Hirschberger, é possível constatar a coerência do pensar tardio de Fichte com esta avaliação pelo menos desde a Exortação à Vida Bem-Avenhzrada de 1806, embora, para este autor, no sentido de haver um esquema necessário de "ou-ou" que comporta a prioridade do "ser" sobre o "agir e o dever" (ibid.) .. ~utros historiadores da filosofia concordam com a posição geral de Hirschberger. Assim o faz, p. ex. Karl VORLANDER, Gesclziclzte der Plzilosoplzie. v. 2, p. 282-84; mas também um autor extremamente perspicaz como W. Windelband, que vê a filosofia tardia de Fichte antes na proximidade do "idealismo religioso da doutrina das idéias schellinguiana"- ficando em suspenso, para ele, se na condição de "fenômeno paralelo" ou "conseqüente". Em consonância com isso, ele afirma em seu Lelzrbuclz der Geschiclzte der Philosoplzie: "Aquele que, em termos pessoais, é o mais interessante destes [sei/. fenômenos] é a doutrina tardia de Ficlzte, na qual ele pagou um tributo à vitória do espinosisrno ao permitir, de fato urna vez mais, que o impulso (Trieb) infinito do Eu procedesse de um »ser absoluto«, sendo também a este dirigido." (Cp. Wilhelrn WINDELBAND, Lehrbuclz der Gesc/zichte der Plzilosophie, p. 513). 10 GODDARD, El destino religioso dei hombre en la filosofía de Fichte, p. 221-22. 11 Em seu artigo sobre Fichte para a Stanford Encyclopedia ofPhilosoplzy, D. Breazeale constata que permanece certa dificuldade na tarefa de discernir a unidade da obra de Ficl1te: "Deve-se admitir que é difícil reconhecer estes textos tardios- que põe de lado a estratégia de iniciar com urna análise do eu, ligada à forte ênfase na 'primazia do prático', e que incluem referências, feitas sem qualquer sinal de embaraço, ao 'absoluto' e mesmo ao 'ser absoluto'- corno a obra do mesmo autor que escreveu a Fundação da Doutrina da Ciência Completa.( ... ). Portanto, não causa surpresa que a 'unidade' problemática do pensamento de Fichte continue a ser objeto de intenso debate dos especialistas na área." (Daniel BREAZEALE, Johann Gottlieb Fichte. ln: Edward N. ZALTA. (Ed.) Tlze Stmiford Enctjclopedia of Philosophy.) 12 Günter ZOLLER, Original Duplicity: The Ideal and the Real in Fichte' s Transcendental Theory of the Subject, p. 126: "Além disso, as versões posteriores da Wissensc/zaftslelzre (após 1800) representam tantas outras tentativas de desenvolver a idéia do ultimamente real (ultimately real) no contexto de uma teoria transcendental da consciência. A relação apropriada entre a duplicação, e de fato a multiplicação em todas as formas de consciência, e algum tipo de realidade original, absoluta, permaneceu sendo o foco do pensamento de Fichte sobre o sujeito." Cp. tb. o verbete "Transzendentalphilosophie", in Hans Jõrg SANDKÜHLER, (Ed.) Enzyklopiidie Philosoplzie, cols. 1638-39: "Comparada com isso, a situação motivacional a partir da qual se compreendem a filosofia transcendental de

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Desde o franqueamento a um público mais amplo, em edição crítica, de textos não publicados durante a vida de Fichte, a Doutrina da Ciência de 1804 parece, até o momento, representar um ponto alto quando se trata de situar o problema da liberdade no âmbito da filosofia. Nela encontra-se, em contexto que contém uma discussão com a filosofia de Espinosa e que representa o problema central de todas as filosofias da unidade última, a seguinte afirmação clássica do filósofo: Esta era justamente a dificuldade de toda filosofia que se recusava ser dualismo, levando a sério a busca da unidade: ou nós devíamos perecer (zu Gnmde gehen), ou Deus. Nós não queríamos, e Deus não deviaP 3 Na medida em que Fichte formula, nesta passagem, o problema mais fundamental por meio do par "querer j dever", já são estabelecidos os principais termos e balizamentos da discussão. "Deus não dever perecer" não é, ao menos não por princípio e num primeiro momento, uma afirmação meramente religiosa. Aos olhos do filósofo, nela não se tem um gesto arbitrário; antes, ela expressa a necessidade de um ,objeto" ou tema que qualquer forma de pensar (autenticamente) filosófica precisa explicitar- ainda que o tema "necessário" seja captado conceitualmente enquanto o contingente, o relativo ou o plural, como ocorre em inúmeras variantes da assim-chamada filosofia pós-modema ou pós-metafísica. O que porém, coloca-se aqui como novidade? Quer-nos parecer que o novo é justamente o pensamento simultâneo da liberdade humana, do ser finito, como algo que pode reivindicar validade em máxima sintonia - isto é, sistematicamente - com a necessidade do tema da filosofia, visto que também aquela liberdade de algum modo faz parte do tema. Como corolário, tem-se que há de preservar a liberdade finita, mas não às custas da liberdade divina, sua última fonte. Sendo assim, a proposta de solução de Fichte em última instância implicará compreender a transcendência, a incondicionalidade, a espontaneidade e a verdadeira independência da liberdade humana como expressão, participação ou, como ele mesmo diz, "aparição" ou manifestação (Erscheinung) do Absoluto. Ao mesmo tempo, Fichte irá empenhar-se por estatuir, com a máxima apreensão sistemática, um conceito de Deus à uma só vez vivo e racional. Com isso, ele também busca neutralizar, tanto quanto possível, e aparentemente à diferença do Schelling que propõe uma. doutrina teosóficaespeculativa da liberdade, os tradicionais traços de irracionalidade da liberdade humana - liberdade que, assim como é internamente" experimentada" por nós, aparece igualmente como o "fato" de uma atividade (Tat-sache) sem fundamento. Do ponto de vista contemporâneo, talvez isso pareça fazer filosofia de um modo e segundo um estilo já antigos; o que temos, porém, a oferecer em troca? Já porque esta última pergunta não se responde facilmente nos dias de hoje, e particularmente porque o problema da liberdade continua a desafiar a reflexão tanto ou talvez até mais que no tempo de Fichte, é indicado conhecer um pouco melhor o pensamento deste filósofo sobre o assunto. Nisso, buscar-se-á mostrar que a a questão da liberdade de fato se confunde com aquela pertinente à estrutura e ao fundamento do saber e de sua realidade, e assim com a questão de Deus ou, o que filosoficamente dá no mesmo, do Absoluto.

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11 Fichte, e sobretudo aquela do jovem Schelling, já adquiriu claramente outra qualidade. Inspirados pela idéia de sistema de Espinosa, eles intensificam o conceito kantiano de uma subjetividade transcendental, modificando-o até chegar no sujeito absoluto que se esparge por todos os momentos; entram, assim, numa relação de tensão com o antidogmatismo kantiano no qual, não obstante, ainda perseveram." Como se verá à frente, temos como ponto de partida interpretativo a tese de que, segundo o próprio Fichte que estudamos, é necessário e possível manter a compatibilidade de" subjetividade transcendental" e "sujeito absoluto". 13

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2. Situando o Problema no Pensamento Fichteano Pretende-se, a seguir, precisar algo mais qual problema temos em vista, sempre considerando o intento fichteano - por nós sugerido acima - de ligar, numa espécie de síntese, teoria da liberdade, teoria da fundamentação (do saber/conhecimento), filosofia da religião como teologia filosófica, e redefinição de "metafísica". Contudo, a fim de chegar ao ponto em que pode tomar-se visível o sentido de uma tal urdidura temática, faz-se primeiro necessário evidenciar brevemente uma certa continuidade na trajetória intelectual fichteana. Em segundo lugar, é preciso obter uma compreensão mais exata do termo "liberdade" para, num terceiro momento, proceder àquela que julgamos ser, propriamente, a construção do problema fichteano. Nesse processo, nossa bússola será antes a trajetória interna do pensar fichteano, e bem menos sua (pretensa) utilidade ou inutilidade para abordagens contemporâneas. E embora não se parta do pressuposto de que a filosofia de Fichte, considerada como um todo, seja completamente conseqüente14, tampouco é possível descartar sua continuidade factual como uma mera ficção interpretativa. Deve-se, portanto, tanto quanto possível, deixar Fichte mesmo enunciar sua intenção filosófica. Trata-se bem mais de compreender o problema fichteano e sua proposta de solução do que testar sua robustez- quer nos detalhes ou como um todo. Mais importante, porém, que esta continuidade factual, é a constatação de uma continuidade de jure no modo como Fichte trata questões já tradicionalmente situadas sob a rubrica de uma filosofia de religião. Mas quais seriam os critérios para demonstrar tal continuidade? Primeiro e antes de mais nada, é vital considerar a possibilidade de que em sua obra tardia Fichte não pretende simplesmente substituir um modo de explicação "filosófico-transcendental" por outro equacio:p,ável a uma "teoria do Absoluto", muito embora se possa com justiça falar de um certo "deslocamento" em sua forma de pensar15 • Nessa linha, é possível representar a Exposição da Doutrina da Ciência do Ano 1801 prioritariamente como um caminho ascendente ao Absoluto, entendendo a Doutrina da Ciência de 1804 antes como um descenso desde o Absoluto rumo a sua manifestação16 • Faz-se mister insistir, porém, em que a intenção de Fichte é justamente afirmar e alcançar a compatibilidade de ambos os caminhos. Seu pensamento acerca da liberdade - e este pensamento sem dúvida pode ser atestado em toda sua obra- nem mesmo parece tolerar uma contraposição de ambos os métodos. De ser assim, o limite de um pensamento do Absoluto não deveria ser posto numa restrição ou proibição epistemológica, mas antes na essência da própria liberdade. A decisão quanto a se Fichte efetivamente obtém (ou não) êxito no atendimento aos critérios intrínsecos a cada um dos dois métodos irá em última instância depender da decisão relativa a se, e em caso positivo, em que medida, o livre acesso ao Absoluto deriva da capacidade de persuasão do método "genético". Como se verá mais abaixo, o vigor argumentativo do método genético de Fichte - especialmente naquelas questões que tradicionalmente recaem no âmbito de competência da "metafísica"-, e, portanto, a "força" da fundamentação, depende ao fim e ao cabo de uma explicação de si (Selbstdeutung) determinada, ou seja autoefetivada- noutras palavras, da "força" da liberdade. O método genético de Fichte sugere a plena permutabilidade entre ascensus e descensus no pensar que, notadamente desde 1804, leva ao Absoluto como Ser e (re-)conduz Não deparamos com dificuldades apenas no tocante à unidade do pensamento fichteano em seu todo; já, p. ex., no que se refere à unidade e coerência de seu conceito de liberdade (em seus diferentes níveis semânticos e em sua função sistemática) elas se fazem notar. Assim, p. ex., constata Alais K SOLLER,
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