A questão do consenso na ditadura militar brasileira (comunicação ao VIII Colóquio Internacional Marx e Engels

July 4, 2017 | Autor: Demian Melo | Categoria: Consenso, Ditadura Militar Brasileira, Revisionismo Historiográfico
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VIII COLÓQUIO MARX ENGELS Grupo Temático 3 - Marxismo e Ciências Humanas

A questão do consenso na ditadura militar brasileira: apontamentos a partir de Gramsci Demian Bezerra de Melo∗ Resumo: Em 2004, uma série de eventos acadêmicos relacionados aos quarenta anos da implantação da última ditadura brasileira evidenciaram a existência de fortes tendências relativizadoras, dispostas a amenizar aspectos até então consensuais daquela experiência histórica. O propósito destas linhas agora é o de atualizar este debate crítico de modo a poder verificar a influência das proposições revisionistas em um tema capital: o apoio social à ditadura. Palavras-chave: ditadura militar, consenso, revisionismo histórico

Abstract: In 2004, a series of academic events related to the fortieth anniversary of implementation of the last Brazilian dictatorship showed the existence of strong relativizing trends, willing to soften hitherto consensual aspects of that historical experience. The purpose of these lines is now updating this critical debate in order to verify the influence of the revisionist propositions in a capital theme: social support to the dictatorship. Keywords: military dictatorship, consensus, historical revisionism

Em 2004, uma série de eventos acadêmicos relacionados aos quarenta anos da implantação da última ditadura brasileira evidenciaram a existência de fortes tendências relativizadoras, dispostas a amenizar aspectos até então consensuais daquela experiência histórica, particularmente no que se refere às responsabilidades pelo golpe de Estado e o papel da resistência armada à ditadura. Em outros trabalhos, tivemos a oportunidade de elaborar críticas a esta historiografia (Cf. MELO, 2006; MELO, 2014a), partindo do conceito de revisionismo histórico. O propósito destas linhas agora é o de atualizar este debate crítico de modo a poder verificar a influência das proposições revisionistas em um tema capital: o apoio social à ditadura. A capacidade de regimes ditatoriais manterem sua dominação com amplas bases de apoio nas chamadas “sociedades de massa” do século XX, sempre foi objeto de muita polêmica entre os analistas. No início do século XX ninguém menos que Benito Mussolini (1883-1945), já na condição de chefe de governo, escreveu o artigo “Forza e



Doutor em História pela UFF e Prof. Adjunto de História Contemporânea do IEAR-UFF. E-mail: [email protected]

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consenso”, publicado na revista fascista Gerarchia, em 1923, re-introduzindo o tema do consenso no debate político contemporâneo. Do sociólogo Vilfredo Pareto (1848-1923), ao dirigente comunista e filósofo Antonio Gramsci (1891-1937), passando pelo filósofo liberal napolitano Benedetto Croce (1866-1952), a questão da capacidade do Estado produzir um consenso ocupou as preocupações daqueles interessados no problema do poder, seja de sua manutenção, seja do “assalto” ao mesmo (Cf. BIANCHI & ALIAGA, 2011: 19).1 Na historiografia a questão foi introduzida por Renzo De Felice, em um dos volumes de sua magistral biografia de Benito Mussolini em meados dos anos 1970 (DE FELICE, 1996 [1974]).2 Já naquela época, a proposição do autor recebeu um volume significativo de críticas, a maior parte destas considerando que De Felice inflaciona o consenso – a partir da ênfase na ideologia fascista e na psicologia de Mussolini –, esvaziando a coerção, aspecto central em qualquer regime ditatorial.3 Num ambiente intelectual marcado pela influência da obra de Antonio Gramsci, a introdução do tema do consenso para tratar do regime que selou a sua sorte, a proposição de De Felice – ex-militante do Partido Comunista Italiano – parecia uma grande provocação. Afinal, como se sabe, na problemática da hegemonia, cara ao marxista sardo, o par dialético coerção/consenso tem um lugar central, e nos seus Quaderni o consenso parece sempre associado ao regime democrático parlamentar. O exercício ‘normal’ da hegemonia, no terreno clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública – jornais e associações –, os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados. (GRAMSCI, CC 3, 2007: 95)

Não há nada, contudo, na obra gramsciana que desautorize pensar o consenso em experiência ditatoriais, ainda que, diferentemente da abordagem defeliciana, Gramsci se refira à capacidade da classe dominantes exercer sua dominação através de uma combinação equilibrada entre coerção e consenso. Portanto, a questão do consenso não 1

Cf. BIANCHI, Alvaro & ALIAGA, Luciana. “Força e consenso como fundamentos do Estado.” Revista Brasileira de Ciência Política, n.5, Brasília, pp.17-36, janeiro-junho de 2011, p.19. 2 Que começou a publicar em meados dos anos 1960 e terminou em meados dos anos 1990. 3 Ver a discussão na revista Passato e Presente (Roma, n.1, 1982, p.3-30), Discussioni. Il Mussolini di Renzo De Felice, com a participação de Adrian Lyttelton, Jens Petersen e Gianpasquale Santomassimo.

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é colocada apenas no nível do apoio social a um governo, nem pode ser confundida com a noção mais usual de legitimidade. Mais ou menos consciente dos problemas que envolvem o uso do conceito de consenso, a historiografia latino-americana vem paulatinamente incorporando o mesmo para pensar o apoio social ao ciclo de ditaduras militares dos anos 1960/1970 (Cf. p. ex. ROLLEMBERG & QUADRAT, 2010; LVOVICH, 2010). No que se refere à ditadura militar brasileira, são historiadores da Universidade Federal Fluminense que têm trabalhado nessa chave, especialmente Daniel Aarão Reis e Denise Rollemberg. Em outro lugar (2014a) já tivemos a oportunidade de submeter à crítica as proposições de Aarão Reis, cabendo aqui apenas lembrar que a mesma está inserida em sua reflexão sobre a memória social da ditadura, sendo sugerido que nesta tem havido um “silêncio” quanto suposto ao apoio da sociedade ao golpe e aos governos ditatoriais mais repressivos, como o de Médici, além da substantiva performance eleitoral do partido de sustentação da ditadura, a Arena (Cf. AARÃO REIS, 2010). De cara, a fragilidade empírica da tese do apoio “da sociedade” à deposição de Goulart ficou evidenciada pela lembrança dos levantamentos produzidos pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) em março de 1964, que demonstram um substancial apoio ao governo Goulart e sua agenda reformista.4 Tendo ficado desconhecidas durante toda a ditadura, foi só no fim dos anos 1980 que as mesmas foram conhecidas pela comunidade acadêmica.5 No questionário utilizado pelo Ibope, em resposta à pergunta “Se o Presidente João Goulart também pudesse candidatar-se à Presidência”, temos o seguinte resultado:6 Na Cidade de Fortaleza Recife Salvador Belo Horizonte Rio de Janeiro São Paulo Curitiba Porto Alegre

Votariam Nele 57,0% 60,0% 59,0% 39,0% 51,0% 40,0% 41,0% 52,0%

Não Votariam 34,0% 28,0% 32,0% 56,0% 44,0% 52,0% 45,0% 44,0%

Não Sabem 9,0% 12,0% 9,0% 5,0% 5,0% 8,0% 14,0% 4,0%

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Publicamos estes levantamentos em forma fac-similar em Melo (2014b). A partir de uma comunicação do cientista político Antonio Lavareda em um simpósio da ANPOCS. 6 “Resultados comparados da pesquisa de opinião realizada nas cidades de Fortaleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.”, 9 a 26 de março de 1964. Fundo Ibope, MR/0277, Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp, Campinas (SP), folha 19.

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Ou seja, não só seu governo possuía apoio, como parte significativa do eleitorado poderia apoiar uma eventual mudança na Constituição que lhe permitisse concorrer a mais um mandato. Lembrando unilateralmente das Marchas com Deus pela Família, e se esquecendo desta comprovada popularidade do governo deposto, Daniel Aarão Reis acabaria por se aproximar da própria memória dos vencedores em 1964, que sempre buscou explicar o evento como resultado de um “clamor popular” pela intervenção militar. A riqueza de informações disponíveis nestes levantamentos do IBOPE, disponíveis no Arquivo Edgar Leuenroth (AEL) para a consulta dos pesquisadores desde os anos 1990, motivaram outro pesquisador a reexaminar a questão de modo mais cuidadoso. Em artigo publicado na revista Tempo, o historiador mineiro Rodrigo Patto Sá Motta (2014) comparou os levantamentos de março de 1964 com outros feitos em maio e junho do mesmo ano e em fevereiro do ano seguinte, onde foi possível demonstrar que o apoio majoritário à deposição de Goulart se construiu após o golpe, sendo esta extremamente efêmera. No que pese o perturbador apoio de massas às primeiras ações da ditadura contra as esquerdas, já em fevereiro de 1965 o apoio ao governo Castello Branco estava em baixa, provocado, entre outras coisas, pelas medidas que levaram à prorrogação do mandato do marechal. Assim, embora possa ser constatado o apoio a medidas eminentemente autoritárias, isso não se traduzia num grande apoio à implantação de uma ditadura – que na verdade já estava em curso. Já o apoio ao governo Médici, o mais repressivo de todo o período, é geralmente afirmado tendo em vista um levantamento do IBOPE feito em 1971, onde o ditador aparece apoiado por 82% dos entrevistados. A dificuldade em considerar esse dado como um retrato da realidade – deixando de lado uma problematização mais pertinente do próprio conceito de “opinião pública” – reside na desconsideração que é feita à relações de forças encontradas num contexto altamente repressivo como era o do início dos anos 1970, onde o slogan adotado pelo governo era nada mais nada menos que “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Qual seria então o valor de um levantamento naquelas condições? Comparativamente é interessante como o autor recalcou os levantamentos de opinião pública feitos ainda num contexto democrático (o pré-golpe de 1964) e tem valorizado esta sobre o presidente Médici. Em seu livro Ditadura e democracia no Brasil, Aarão Reis chega ao ponto de sugerir que o auge do apoio ao governo do general Médici foi durante os festejos do sesquicentenário da Independência do Brasil, em razão do grande número de pessoas 4

que afluíram ao desfile militar (AARÃO REIS, 2014: 81). Cabe aqui transcrever a forma como o autor entende a noção de consenso: Numa gama diferenciada de atitudes que contribuíram para a estabilidade do governo e do país merecem ainda ser registradas a simpatia não entusiasta, a neutralidade benévola, a indiferença, ou, no limite, a sensação de absoluta impotência. Ziguezagueando entre elas, em atitudes ambíguas ou ambivalentes, muitos erravam em áreas indefinidas de penumbra, que um autor chamou de zona cinzenta. Em determinados momentos, parecia que o governo havia conseguido construir, em torno de si, uma espécie de consenso, embora o debate sobre a questão, e sobre o próprio conceito, ainda permaneça em aberto. (AARÃO REIS, 2014: 83-84)

Preliminarmente cabe apontar que esta formulação difere da elaboração gramsciana já que desloca a questão da dominação de classe para a das diferentes atitudes individuais perante o poder. Um dos mais influentes divulgadores e intérpretes da obra de Gramsci no Brasil, Carlos Nelson Coutinho também já havia abordado o tema do consenso sob a ditadura, reconhecendo que em alguns momentos esta conseguiu um consenso passivo entre alguns setores importantes das classes sociais brasileiras, no entanto nunca se efetivou um consenso ativo, como (alega ter conseguido) o regime fascista na Itália (COUTINHO, 1999: 202 e 216-217). A questão do consenso também já havia sido mencionada no trabalho de Youssef Cohen, The Manipulation of Consent (1989), onde através de entrevistas com trabalhadores feitas entre os anos 1972 e 1973 – em suma, a partir de um trabalho de campo – alegou haver uma grande adesão ao governo Médici, em razão de uma suposta presença entre os trabalhadores da ideologia estadonovista, que alegadamente estariam interessados em um “Estado forte” e ao mesmo tempo “benevolente” (COHEN, 1989: 39). Deixando de lado qualquer possibilidade de considerar o último regime ditatorial como “benevolente”, Cohen parece não ter buscado matizar seu levantamento de opinião do início da década com os massivos protestos operários do fim dos anos 1970, que se chocaram com a política econômica da ditadura. Denota-se que sem levar em conta a relação de forças sociais, num regime que embora tenha capacidade de produzir algum consenso, sendo uma ditadura, não se funda no consenso, predominando a força, exagerar esse ponto nos parece temerário. Afinal, sob o argumento de que se pretende desconstruir uma memória confortável da 5

sociedade sobre a ditadura, acaba-se confluindo numa em proposições que, numa sofisticada linguagem acadêmica, reabilita-se a memória dos vencedores. E ao contrário do que se afirma com certa freqüência, tal memória parece cada vez mais influente.

BIBLIOGRAFIA AARÃO REIS, Daniel. Ditadura, anistia e reconciliação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.23, n.45, pp.171-186, 2010. ____________. Ditadura e democracia no Brasil. Do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. BIANCHI, Alvaro & ALIAGA, Luciana. “Força e consenso como fundamentos do Estado.” Revista Brasileira de Ciência Política, n.5, Brasília, pp.17-36, janeiro-junho de 2011. COHEN, Youssef The Manipulation of Consent: The State and Working-Class Consciousness in Brazil. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1989. COUTINHO, Carlos Nelson. “As categorias de Gramsci e a realidade brasileira.” In. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. DE FELICE, Renzo. Mussolini il duce. Gli anni del consenso (1929-1936). Turim: Einaudi, 1996 [1974]. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Notas sobre Maquiavel e o Estado moderno. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. LVOVICH, Daniel. A questão do consenso durante a ditadura militar argentina: problemas metodológicos e contextos historiográficos (1976-1983). In. BEIRED, José Luís Bendicho; BARBOSA, Carlos Alberto Sampaio (org.). Política e identidade cultural na América Latina. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010, p.201-220. MELO, Demian Bezerra de. A miséria da historiografia. Outubro, São Paulo, n.14, p.111-130, 2006. _____. O golpe de 1964 e meio século de controvérsias: o estado atual da questão. In. MELO, Demian Bezerra de (org.). A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Consequência, 2014a. _____. A opinião pública às vésperas do golpe de 1964. Marx e o Marxismo, Niterói, v.2, pp.214-216, 2014b. MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe de 1964 e a ditadura nas pesquisas de opinião. Revista Tempo, Niterói (RJ), v.20, p.1-21, 2014. ROLLEMBERG, Denise & QUADRAT, Samantha Viz. A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Brasil e América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

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