A Questão do Impeachment da Presidente Dilma Roussef

June 15, 2017 | Autor: C. Guimarães Dos ... | Categoria: Estudo Sobre Direito Constitucional
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A questão do Impeachment da Presidenta Dilma Rousseff



Clilton Guimarães dos Santos



"Preliminarmente, é necessário deixar claro que falar sobre impeachment de um (a) presidente da República de um país de 200 milhões de habitantes não é um ato de torcida. Ou se faz um parecer técnico, suspendendo os seus pré-juízos (Vor-urteil) ou se elabora uma opinião comprometida ideologicamente. Mas daí tem de assumir que não é técnico. O que não dá para fazer é misturar as duas coisas: sob a aparência da tecnicidade, um parecer comprometido."( Lênio Streck e Martônio Mont'Alverne Barreto Lima, in Conjur, 05.02.2015, www.conjur.com.br ).






Duas figuras públicas do universo jurídico, e mais uma jovem criminalista, postulam junto ao Congresso Nacional a admissão do processo voltado ao Impeachment da atual Presidenta da República, Dilma Rousseff, descrevendo em alguns itens as irregularidades justificadoras do pleito.
Desse modo, recolhendo elementos localizáveis em opinião jurídica do Prof. Ives Gandra da Silva Martins – aliás, Prof. Emérito desta Casa -, e acrescentando outros extraídos de recente julgamento de contas realizado pelo Tribunal de Contas da União, pelo qual se estabeleceu a ocorrência de violação à Lei Complementar 101/2.000, Miguel Reale Jr., Hélio Bicudo e Janaína Paschoal pretendem a declaração de impedimento, com respectiva interrupção do mandato da atual Presidenta da República.
Há, todavia, múltiplas razões para se afirmar a incompatibilidade dessa postulação com o sistema jurídico-constitucional em vigor, cujas diretrizes não se compadecem com a superficial interpretação tanto dos fatos conducentes como das diretrizes normativas e principiológicas atinentes ao instituto do Impeachment.
Inicialmente, e por meio de uma abordagem estritamente técnica, vale lembrar que é característica quase imanente ao presidencialismo brasileiro o fato de o primeiro mandatário da nação haurir sua legitimidade diretamente da intenção popular manifestada pelo voto (Bonavides, Paulo. Ciência Política, Ed. Malheiros), protegida, por sua vez, pelo mandato, que sintetiza nas democracias representativas uma garantia do eleito para o desenvolvimento de sua ação política.
Daí a importância da tutela ao mandato presidencial, cuja interrupção pressupõe a ocorrência de grave violação aos interesses nacionais, e não apenas, como imaginam alguns precipitadamente, uma possível quebra de confiança alicerçada em motivação essencialmente ideológica ou política.
Em outras palavras, o Impeachment, oriundo da tradição inglesa e voltado desde seu surgimento à destituição de autoridades ante a prática de gravíssimos delitos (Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional, 39ª Ed., Saraiva, p. 163), não consolida, desde sua admissão na ordem jurídica nacional, uma hipótese de mero recall político, gestado pela incidental insatisfação do eleitorado com a implementação deste ou daquele item da agenda a ser desenvolvida.
Em pleno acordo com esse ponto de vista, aliás, Gilberto Bercovici, eminente Professor da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e Constitucionalista emérito, salienta o seguinte em parecer sobre o caso: "O impeachment nada mais é que o processo de apuração de responsabilidade política do Presidente da República. Não se trata de um instrumento passível de ser utilizado em virtude da baixa popularidade de um governo ou de sua falta de apoio parlamentar. Portanto, não se pode confundir o impeachment com o voto de desconfiança, existente nos países de sistema parlamentarista, ou com institutos tais como o recall de cargos eletivos, presente em alguns Estados norte-americanos, como a Califórnia, ou como o referendo revogatório de mandato, da Constituição da Venezuela de 1.999".
Afirmar a natureza eminentemente política do instituto não pode servir ao propósito de reduzi-lo à condição de meio resolutor de litígios gerados por idiossincrasias ideológicas, o que equivaleria à minimização dos fatores que pesaram na sua concepção e desenvolvimento histórico, dentre os quais o atinente à urgência em se garantir a estabilidade política, alicerce indiscutível de qualquer boa governança.
A propósito, como consigna a doutrina sobre o instituto, houve desde sempre uma divergência acerca de sua virtual natureza penal, afirmada por Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967, vol.3, p.138), malgrado outros autores, como Paulo Brossard (O Impeachment: Aspectos da Responsabilidade Política do Presidente da República, Ed. Saraiva, 1.992), respondessem negativamente a essa possibilidade, ressaltando seu caráter político.
Essa divergência não é assunto de somenos pois espelha dúvida hermenêutica capaz de significar porta aberta a distorções indesejáveis, cuja consequência, a propósito, pode ser não apenas uma visão equivocada sobre o instituto, mas, para além disso, sua completa desnaturação, em prejuízo efetivo a primado político-constitucional de primeira ordem.
Sendo assim é que se deve prestar atenção ao disposto na Carta, que prefigura os pressupostos típicos da deposição do Presidente da República exigindo sua plena configuração como fundamento da interrupção do mandato, referendando posicionamento verdadeiramente estruturado, no sentido de que há igualmente elementos de natureza criminal a integrá-lo.
Por isso mesmo, afinal, colhe-se em sede doutrinária o seguinte, e abalizado, posicionamento "...A consulta à Constituição de 1988, Art. 85, revela ser ele ( o fundamento) uma conduta contrária à Constituição. A lei, todavia (Lei nº 1079, de 10-04-1950), define as figuras que dão ensejo ao impeachment. Sem dúvida, a maior parte dessas figuras retrata comportamentos politicamente indesejáveis e não anti-sociais. Essas figuras, pois, não são crimes, no sentido que a ciência penal dá a esse termo. Todavia, a ocorrência de fatos que se enquadram exatamente na figura da Lei 1079 é indispensável para desencadear o impeachment. Assim, o fundamento deste em sua substância é político, mas em sua forma é crime (em sentido formal)" (Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Op. Cit., p.165).
Ora, essa visão é em si reveladora de que o regime jurídico do impeachment longe está de conferir aos encarregados do julgamento ampla discricionariedade política, de modo a lhes facultar o olvido em relação à escorreita interpretação de fatos e provas, assim como de sua inteira submissão e conformidade com os elementos típicos da infração imputada.
Depreciativa desses parâmetros, portanto, a opinião tomada em consideração pelos signatários da petição encaminhada ao Congresso Nacional, proveniente de parecer sobre a matéria ofertado pelo Prof. Ives Gandra Silva Martins, que em essência propugna por que se reconheça suficiência na cogitada culpa - em sentido estrito - da Presidenta da República, Dilma Roussef, face à sua negligência em relação aos atos de improbidade praticados pela Diretoria da Petrobrás ao tempo em que presidia seu Conselho, uma vez incondizente com as figuras tipificadas na legislação estipuladora dos crimes de responsabilidade, todas de cariz próprio e exigentes de comportamento essencialmente doloso, pelo menos.
Acrescente-se, por oportuno, que não dialoga com o texto do Art. 85 da CR/88 as disposições da Lei Federal nº 8429/92 – Lei de Improbidade Administrativa -, que consabidamente lista entre as condutas vedadas a ação culposa que viole as diretrizes constitucionais e legais da Administração, já por ser legislação não intercambiável em relação aos casos, únicos e restritivamente previstos, de crimes que autorizem o impedimento.
Frente a isso é que importa respaldar o judicioso pronunciamento de Lênio Streck e Martônio Mont'Alverne Barreto Lima, constitucionalistas de nomeada, ao assinalarem sobre a matéria que: "...a Constituição é uma mediação, no tempo, entre Direito e política. Falar em elementos jurídicos que justificam uma decisão política, nos termos do argumento de Gandra, pressupõe o argumento autoritário de um direito como instrumento da política. Esse é o busílis do equívoco do professor. Assim, ao invés de mediação, o que ocorre é um curto-circuito entre Direito e política no plano constitucional, chame-se isso de colonização do Direito pela política, corrupção do código do Direito pela política, ação predatória da política no Direito, ilegitimidade política ou, simplesmente, defesa de uma tese inconstitucional!! (...) O curto-circuito detectado pelos leitores da ConJur
Onde está o curto-circuito no argumento do professor Gandra? Observemos como nem é necessário lançar mão de grandes compêndios sobre a matéria. Vários leitores da ConJur mataram a charada. O comentarista G. Santos (serventuário) escreveu: "O Professor mistura lei de improbidade com lei de crimes de responsabilidade. Lança mão do vago art. 9º, 3, da Lei 1079/50 para justificar seu parecer de que se admite crime de responsabilidade culposo, e, pior, chega a afirmar que o art. 85, V da CF seria auto-aplicável! Só que o parágrafo único do mesmo artigo é expresso ao prescrever que "Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento". (...)E complementa o nosso leitor conjurista: "A parte final do parecer é assustadora. Quando o Professor vai 'aos fatos', não consegue disfarçar sua parcialidade, concluindo que está caracterizado crime de responsabilidade culposo, e fundamenta no art. 11 da Lei de Improbidade! Cria um tertium genus com o uso indiscriminado da Lei 1.079 com a lei 8429, sem sequer mencionar os entendimentos do STF e do STJ sobre o tema". (CONJUR, 04.02.2015).
De outra parte, persistir na responsabilidade da atual presidenta em razão de seu possível, ou virtual, conhecimento dos ilícitos praticados por integrantes da Diretoria Executiva da Petrobrás enseja algumas impropriedades que carecem da respectiva impugnação.
Por primeiro, importa ter presente que esses fatos precederam o mandato atual da presidenta, fator importante na consideração da viabilidade do impeachment, especialmente à vista do Art. 88, parágrafo 4º da CR/88, que se refere à exigência de crime praticado no curso do mandato como pressuposto do impeachment, sendo vedado que se possa imputar fato estranho a ele ou ocorrido em mandato anterior (Bercovici, Gilberto. Parecer).
Claro, por outro lado, que nenhum elemento probatório, ainda que no plano restrito dos meros indícios, a liga aos fatos ilícitos praticados por parte da diretoria da estatal, sendo insuscetível de qualquer grau de credibilidade elementos que não ultrapassem o escasso limite da suspeita abstrata, ou seja, sem apelo ou reflexo qualquer nos elementos probatórios que se recolheram a respeito dos fatos.
Convém lembrar, a propósito, que o recebimento de denúncia pela prática de crime, cujos critérios são parâmetro na hipótese, até para se garantir acesso ao devido e justo processo ( CR/88, Art. 5º, LIV), exige um mínimo, ou seja, justa causa, sem o quê não há como permitir o curso do processo de impeachment, uma vez que se sabe do rigor dos precedentes tomados como parâmetro, no sentido de se reconhecer tratar-se de um "ônus da acusação de demonstrar, ainda que superficialmente, porém com fundamento de relativa consistência, nesta fase preliminar do processo, os fatos constitutivos sobre os quais se assenta a pretensão punitiva do Estado" (Inq. 3507, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 08/05/2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-112 DIVULG 10-06-2014 PUBLIC 11-06-2014).
De resto, no tocante ao julgamento das contas de 2014 pelo Tribunal de Contas da União, importa reconhecer que seu pronunciamento se refere a fato estranho ao atual mandato da Presidenta da República, incidindo no caso a restrição constitucional já antes referida, ou seja, aquela residente na disposição do Art. 88, parágrafo 4º/CR.
Além disto, vale trazer a lume a opinião técnica irrebatível da ilustre Profa. Mônica Herman Caggiano, que com a reconhecida autoridade acadêmica no assunto registra em parecer que o impeachment deve fundar-se em dois requisitos imprescindíveis, ou seja: (a) que o ato praticado venha a se subsumir às hipóteses do Art. 85/CR-88, e, assim, estritamente aos casos tipificados pela Lei Federal 1079/1950, e (b) que o ato inquinado de eventual ilicitude tenha sido praticado no exercício do mandato que se pretende extirpar ( CONJUR, 29.10.2015).
Comunga o mesmo pensamento, a propósito, malgrado com fundamentos distintos, o ilustre constitucionalista e Professor Titular da Cadeira de Direito Econômico da Universidade de São Paulo, André Ramos Tavares, para quem a tese da possibilidade do impeachment baseada no parecer do Tribunal de Constas da União goza de manifesta impropriedade.
Sua convicção nessa matéria, a propósito, é assim exteriorizada por ele: "A questão orçamentária, contudo, parece ter ganhado destaque próprio depois do parecer elaborado pelo Tribunal de Contas da União, que concluiu pela rejeição das contas anuais prestadas pela Presidenta da República, com base no art. 71, I, da CB. Nesse caso, em combinação direta com o art. 85, VI da CB, estaria delineada a comprovação para instaurar imediatamente o processo de impeachment. Nada mais ilusório, considerados dois pontos centrais que devem ingressar nesse cálculo: (1) o Tribunal de Contas é órgão auxiliar do Parlamento, proferindo parecer indicativo; e (2) as contas devem ser julgadas pelo Congresso Nacional ( Art. 49, IX, da CB). Como assinalo em meu Curso de Direito Constitucional, falar em órgão auxiliar do Parlamento equivale a afirmar, é "organicamente atrelado à estrutura do Congresso Nacional. Considerado que o julgamento no caso depende de decisão parlamentar, é consectário normativo que a autoridade competente para julgar as contas presidenciais é o Congresso Nacional. E essa competência deve ser exercida com as garantias constitucionais do processo parlamentar, incluindo uma decisão final por maioria de votos (Art. 47 da CB)" (CONJUR, 20.10.2015).
Logo, inexistem razões tecnicamente apreciáveis e juridicamente conformes ao Texto da Carta a referendar o propósito de setores da sociedade, que tratam o impeachment como mero instrumento saneador de insatisfação eleitoral.
Não é demais lembrar, por sinal, que a persistência em emparedar um governo instalado por força das urnas, e, assim, com sobrada legitimidade constitucional, afronta interesses nacionais de alta relevância, em demonstração de insensível irresponsabilidade política, notadamente porque instabiliza o clima das relações econômicas, facilitando o descarrilamento do mercado, em detrimento da própria sociedade brasileira.
A crise econômica, aliás, tem seu vínculo com a crise política, por sua vez determinada mais pela insatisfação do conhecido bloco político mal sucedido no pleito eleitoral de 2014, que vem se notabilizando por uma atividade predatória da democracia e da própria estabilidade institucional.
Irracional, o discurso pró-impeachment retrata nada além de um hate speech, objetivamente voltado à cisão da sociedade brasileira, com os prejuízos políticos, morais e sociais que poderão se tornar irreversíveis ao longo do tempo.












Mestre e Doutor em Direito pela USP – Universidade de São Paulo, Professor dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação Stricto Sensu da UNIFIEO – Centro Universitário Fieo – Osasco.



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