A QUESTÃO DO SUJEITO EM SCHOPENHAUER: BREVE ENSAIO SOBRE SUA DIMENSÃO FENOMENOLÓGICA EM TORNO DO PSEUDOPROBLEMA DO SOLIPSISMO

June 13, 2017 | Autor: Dax Moraes | Categoria: Phenomenology, Schopenhauer, Solipsism, Subjectivity
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Divisão de Serviços Técnicos Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede O sujeito em questão : temas de ética e filosofia política [Recurso eletrônico] / organizadores Maria Cristina Longo Cardoso Dias, Joel Thiago Klein. – Natal, RN : EDUFRN, 2015. PDF Modo de acesso: ISBN 978-85-425-0525-2 1. Ética. 2. Filosofia. 3. Política. 4. Sujeito (Filosofia). I. Dias, Maria Cristina Longo Cardoso. II. Klein, Joel Thiago. RN/UF/BCZM

2015/75

CDD 121.4 CDU165.12

A QUESTÃO DO SUJEITO EM SCHOPENHAUER: BREVE ENSAIO SOBRE SUA DIMENSÃO FENOMENOLÓGICA EM TORNO DO PSEUDOPROBLEMA DO SOLIPSISMO ................... 165 Dax Moraes COLETIVIDADE, INTENÇÃO E AÇÃO COLETIVAS ...................195 Geraldo Miniuci SUJEITO POLÍTICO E IMAGINAÇÃO EM SPINOZA ..................213 Leon Farhi Neto O INUMANO E OS LIMITES DO HUMANO: REFLEXÕES A PARTIR DE BENJAMIN E LYOTARD .................241 Sônia Campaner Miguel Ferrari REFLEXÕES KANTIANAS SOBRE O SIGNIFICADO E A LEGITIMIDADE DA POLÍTICA .....................267 Joel Thiago Klein O JULGAMENTO FILOSÓFICO DA POLÍTICA ............................309 Sérgio Dela-Sávia OS PROTESTOS DE JUNHO NO BRASIL ....................................323 Maria Cristina Longo Cardoso Dias

A QUESTÃO DO SUJEITO EM SCHOPENHAUER: BREVE ENSAIO SOBRE SUA DIMENSÃO FENOMENOLÓGICA EM TORNO DO PSEUDOPROBLEMA DO SOLIPSISMO Dax Moraes1

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

O presente texto, demasiado breve para dar conta de toda a questão do sujeito na filosofia schopenhaueriana e – talvez, de maior interesse – sua fecundidade para se pensar questionamentos mais recentes, é delimitado como uma introdução. Nesse sentido, pretende-se destacar alguns pontos de partida e indicar caminhos para discussões ulteriores. Isto considerado, as eventuais e quase incontornáveis insuficiências do presente ensaio, uma vez oferecidas ao debate, devem suscitar aprimoramentos. Afinal, o que se pretende, em primeiro lugar, é apresentar a necessidade de tal debate, no qual o diálogo entre Schopenhauer e a Fenomenologia se dá, especialmente, recorrendo-se a Merleau-Ponty.

1

É professor doutor pelo departamento de filosofia da UFRN.

O sujeito em questão

O solipsismo De início, o problema crucial que se coloca a toda doutrina da representação é o do solipsismo, que, conforme pretendo sustentar, enquanto problema, é antes psicológico do que ontológico. O solipsismo decorre da tese de que todo objeto, enquanto dado conformado pelo sujeito, tira dele toda sua constituição. Ou seja, todo objeto existiria em virtude de, ou como efeito de um sujeito constituinte, o que significaria dizer, por sua vez, que o sujeito é causa do objeto. Semelhante perspectiva faz jus à denominação “intelectualismo” ou, em termos menos precisos, porém mais correntes, “racionalismo”. Schopenhauer, de sua parte, não é, como veremos adiante, tão apressado, sendo isto verificado na longa refutação do Idealismo alemão que, para ele, constitui um caso único e risível na História da Filosofia. Por enquanto, vejamos apenas um pequeno trecho dessa refutação que se dirige não apenas ao idealismo, mas também ao materialismo. Diz Schopenhauer no início do §7 de O mundo como vontade e representação acerca da peculiaridade de sua posição: Nela não partimos do objeto nem do sujeito, mas da representação, que já contém e pressupõe a ambos, pois a divisão em sujeito e objeto é sua forma primeira, mais universal e mais essencial. [...] Tal procedimento diferencia por inteiro o nosso modo de consideração de todas as filosofias ensaiadas até agora, que partiram ou do sujeito ou do objeto e, por conseguinte, procuraram explicar um a partir do outro, na verdade segundo o princípio de razão, de cuja jurisdição eliminamos a relação entre sujeito e objeto, deixando-a apenas ao objeto.2

Várias questões relevantes emergem desta breve passagem: (1) a precedência da representação a sujeito e objeto; (2) o caráter irrepresentável de uma relação sujeito-objeto, posto que é forma primeira de toda representação; (3) a afirmação de que apenas objetos e relações entre objetos são representáveis. O solipsismo, embora comumente atribuído a Schopenhauer, infringe as três teses acima explicitadas. Para que o solipsismo 2

SCHOPENHAUER, 2005, p. 69-70.

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fosse aceitável, o sujeito deveria ser previamente dado como substância (realidade) suficiente para que, enfim, objetos se tornassem possíveis, ao passo que o sujeito é apenas necessário enquanto forma primeira de toda representação, assim também o objeto. Ora, mediante a radicalização do conceito de “substância”, Spinoza chegara à doutrina da substância única, procurando corrigir o que seria o dualismo cartesiano. Tentativa análoga seria a de Leibniz em sua “monadologia”. Kant, por sua vez, de fato radica no sujeito a condição de possibilidade de objetos serem conhecidos e pensados, mas não como condição substancial de sua existência ao modo dos racionalismos de Spinoza ou de Leibniz. Todavia, em Kant ainda permanece a possibilidade de um sujeito como coisa em si, que não pode ser conhecido como tal, mas, ainda assim, pode ser suposto como existente por meio de um procedimento analítico, assim como uma objetidade em si pode ser pensada pela razão como causa do fenômeno. À luz da doutrina kantiana, pode parecer à primeira vista estarmos diante de um passo atrás rumo ao solipsismo ao lermos bem no início de O mundo como vontade e representação, mais precisamente na abertura de seu §2: Aquele que tudo conhece mas não é conhecido por ninguém é o sujeito. Este é, por conseguinte, o sustentáculo do mundo, a condição universal, sempre pressuposta de tudo o que aparece, de todo objeto, pois tudo o que existe, existe [apenas] para o sujeito. Cada um encontra-se a si mesmo como esse sujeito, todavia, somente na medida em que conhece, não na medida em que é objeto de conhecimento.3

Todavia, a posição schopenhaueriana nesse debate é, portanto, claramente declarada já no início da obra capital: (1) O sujeito é reconhecível – ou melhor, como que “flagrado” – na representação; (2) Tal “reconhecimento” não se dá sob a forma de conhecimento objetivo, i.e. como representação; (3) Na representação, apenas o objeto é dado, enquanto o sujeito é meramente “pressuposto” como sua “condição”. A dificuldade maior 3

SCHOPENHAUER, 2005, p. 45.

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O sujeito em questão

reside neste último item. Tal “condição” deve ser entendida não como uma causa, mas como polo relativo, uma contraparte necessária, mas não suficiente, do objeto. Ou seja, dado que todo objeto é objeto intelectual (representação), sua realidade é dada para e no intelecto “de um sujeito”; se o objeto não fosse intelectual, mas sua extensão, por exemplo, fosse exterior, dir-se-ia ser ele a condição do conhecimento do espaço pelo intelecto, alternativa realista recusada já por Kant na medida em que, insustentável, leva ao ceticismo. Antes de tudo, vale observar que o conhecimento se constitui de três elementos: aquele que representa, aquilo que é representado, e a representação. A representação é o conhecimento atual, o representado é o conteúdo, o que representa não é, contudo, a “forma”, mas o “portador”, o “suporte” da forma – “Träger”: na tradução, “sustentáculo”. O representado e o que representa já são dados em conjunto em toda representação, em que o objeto é dado e em cuja aparição se reflete o sujeito. As formas de que se vale o sujeito e os conteúdos intuídos por seu intermédio são dados também em conjunto no ato de representar segundo as figuras do princípio de razão suficiente. Dentre essas formas, distingue-se a forma do tempo – suficiente à contemplação da Ideia, porém sem consciência, pois sujeito e objeto ainda não se distinguem, mas se identificam – e a forma do espaço – graças à qual objetos se separam na coexistência de “meu corpo” e “outros corpos”, que só se manifestam como tais e segundo relações causais pela intervenção do entendimento, que nada mais do que intuição completa de um objeto delimitado e sujeito a modificações. O sujeito só “aparece” como condição porque o fato da representação assim o exige, mas apenas por reflexão o sujeito pode adquirir essa posição, sempre relativa. Sem a reflexão, não há distinção consciente entre o eu e o mundo, apenas experiência imediatamente vivida. Como dirá Merleau-Ponty, “a percepção originária é uma experiência nãotética, pré-objetiva e pré-consciente”, de sorte que “cada ato perceptivo manifesta-se como antecipado em uma adesão

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global ao mundo”.4 Desse modo, a abordagem de Schopenhauer, de acordo com suas próprias palavras ao fim do já referido §7, diferencia-se “toto genere, na medida em que não partimos do objeto nem do sujeito, mas da representação como primeiro fato da consciência, cuja forma primeira fundamental, mais essencial, é a divisão em sujeito e objeto”.5 Eis o que permite a aproximação entre Schopenhauer e a Fenomenologia. Sua doutrina não tem início em nenhuma espécie de dogma naturalista ou pressuposto da razão, mas com a análise do mais irrefutável e concreto fato da consciência: o de que representamos. Esse fato independe de toda convicção ou de todo ceticismo com relação à “realidade exterior”, mas não se dá o direito de afirmá-la ou de negá-la – apenas diz: toda realidade conhecida é intelectual e isto é fato. Estamos restritos à concretude da imanência do mesmo modo que todo conhecimento é como um transcender do sujeito para junto do que não é ele, mas simples fenômeno. Em vez de lançar-se ao questionamento sobre a existência de algo de que nossas representações ou objetos mentais sejam um duplo, cópia ou reflexo, como quer o materialismo, ou ainda sobre a existência da mente, ou sobre a existência prévia do sujeito, como quer o idealismo, Schopenhauer toma o caminho que haverá de dispensá-lo de tais perguntas. Como exemplo, podemos ler na Fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty já na Introdução, algo análogo: Não é porque a “forma” realiza um certo estado de equilíbrio, resolve um problema de máximo e, no sentido kantiano, torna possível um mundo que ela é privilegiada em nossa percepção; ela é a própria aparição do mundo e não sua condição de possibilidade, é o nascimento de uma norma e não se realiza segundo uma norma, é a identidade entre o exterior e o interior e não a projeção do interior no exterior. [...] uma fenomenologia [...] estuda a aparição do ser para a consciência, em lugar de supor a sua possibilidade previamente dada.6 4

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 324s.

5

SCHOPENHAUER, 2005, p. 80.

6

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 95-96.

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O sujeito em questão

Nesse sentido, Schopenhauer reformula o conceito de “matéria”, por ele entendida como “efetividade” (Wirklichkeit), pois a aparição do mundo para mim é o mesmo que sua realização para nós no entendimento. (De fato, o projeto de superação do subjetivismo e do objetivismo já é encontrado em Hegel, espécie de “arqui-inimigo” de Schopenhauer, mas não me deterei aqui nas possibilidades de diálogo entre eles, o que excederia os limites do presente ensaio.7) “O interior e o exterior são inseparáveis. O mundo está inteiro dentro de mim e eu estou inteiro fora de mim.”8 Tal identidade entre “exterior” e “interior” é tratada nas várias ocasiões em que Schopenhauer emprega a metáfora do “espelho”, pela qual o mundo é visto como espelho da Vontade, isto é, do “sujeito puro”, já que o sujeito empírico tende por natureza a aderir à distinção entre “exterior” e “interior” pela ação reflexiva, isto é, pelo uso da faculdade abstrativa, da razão. O “sujeito puro” nada mais é, dito brevemente, do sujeito que representa, já implicado no objeto representado, antes de qualquer tematização abstrata de sua polarização ou posição relativa. Portanto, a análise schopenhaueriana da representação toma o lugar de uma investigação abstrata e em separado acerca da natureza do sujeito que representa ou do objeto representado, cujos respectivos modos de ser são antes determinados segundo suas posições perceptivas concretas em todo e qualquer ato intuitivo de representar. Nenhuma entidade é investigada como algo de absoluto, em-si, mas tão-somente segundo a relação já sempre posta na representação. Eu e o mundo, sujeito e objeto, intelecto e matéria são correlatos congêneres, assim como contemporâneas são a consciência do mundo e a consciência de si, nas palavras de Merleau-Ponty.9 Podemos fazer ainda outra comparação entre Schopenhauer e Merleau-Ponty no que diz respeito ao erro do idealismo absoluto: 7

Sobre isto, basta remeter o leitor à Introdução da Fenomenologia do Espírito (HEGEL, 1992, p. 63-73).

8

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 546

9

Cf. MERLEAU-PONTY, 2011, p. 400.

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A filosofia da identidade [...] não pode ser excluída da oposição anteriormente estabelecida entre os dois erros, já que, apesar da identidade entre sujeito e objeto (não pensável, e intuível apenas intelectualmente, ou experimentada por imersão nela10), a referida filosofia une em si os dois erros quando se decompõe em duas disciplinas, a citar: o idealismo transcendental, que é a doutrina-do-eu de Fichte e, por consequência, em conformidade com o princípio de razão, faz o objeto ser produzido ou tecido fio a fio a partir do sujeito; e a filosofia da natureza, que, semelhantemente, faz o sujeito surgir aos poucos a partir do objeto mediante o uso de um método denominado construção [...] conforme o princípio de razão em várias figuras.11 Na realidade, a imagem de um mundo constituído em que eu seria, com meu corpo, apenas um objeto entre outros e a ideia de uma consciência constituinte absoluta só aparentemente formam antítese: elas exprimem duas vezes o prejuízo de um universo em si perfeitamente explícito. Uma reflexão autêntica, em lugar de fazê-las alternar como sendo ambas verdadeiras à maneira da filosofia do entendimento, rejeita-as a ambas como falsas (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 72). 10

Schopenhauer não recusa que, em si mesmos, sujeito e objeto sejam o mesmo – a Vontade e sua expressão fenomênica –, mas, diferente de filosofias da identidade absoluta, como a de Fichte, que pretendem demonstrar tal identidade por “intuição racional”, a intuição intelectual schopenhaueriana é nãoracional. Exemplos da imersão aí referida são a contemplação estética e a despersonalização em que se assenta a compaixão, fundamento da moral, segundo Schopenhauer – em ambos os casos, a suspensão da forma do espaço suprime a relação de causalidade, de modo que o objeto se retira produzindo-se o impensável e inconsciente aniquilamento da distinção entre eu e nãoeu, uma vez que a distância concreta entre eles e, portanto, sua coexistência, desaparece. Com isto, temos claro que a filosofia de Schopenhauer não é dualista. O fato de esta identidade não ser pensável diz respeito ao fato de que sujeito e objeto implicam-se reciprocamente e se distinguem na representação: perceber é ter diante de si um percebido e, do mesmo modo que essa distinção é insuperável no conhecimento, o que proíbe sua identificação, sujeito e objeto não podem ser considerados absolutos independentes como querem o materialismo e o intelectualismo. Em resumo, a filosofia da identidade é um terceiro erro que não supera, mas inclui em si o essencial dos erros anteriores.

11

SCHOPENHAUER, 2005, p. 70.

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O sujeito em questão

Elementos bastantes para a refutação da interpretação solipsista sobre o pensamento de Schopenhauer também podem ser encontrados no primeiro capítulo dos Suplementos, com destaque para o diálogo final entre sujeito e matéria, muito embora o termo “solipsismo” sequer apareça nessa obra. Em acréscimo, Cartwright12, na introdução ao seu dicionário dedicado à filosofia de Schopenhauer, recorda que “Schopenhauer nunca tomou muito seriamente qualquer forma de ceticismo, e enquanto admitia que o egoísmo ou o solipsismo teoréticos não poderiam ser refutados por provas, via como uma doutrina que ninguém fora de um hospício poderia levar a sério”. Talvez, por esta razão Schopenhauer refira-se à doutrina de Fichte como uma filosofia para fazer rir, justamente por querer retirar do sujeito o objeto... Em seu comentário introdutório, Cartwright alude ao que é dito no §19 por Schopenhauer, onde o lemos afirmar que o egoísmo teórico, “que considera todos os fenômenos, exceto o próprio indivíduo, como fantasmas”, foi empregado na filosofia “apenas como sofisma cético, ou seja, como encenação”, complementando, na sequência, que levá-lo a sério não precisa “tanto de uma refutação mas de cura”.13 Ora, o solipsismo, para além da retórica, é como uma esquizofrenia filosófica! Como também diz Merleau-Ponty: O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta. [...] Portanto, com o mundo enquanto berço das significações, sentido de todos os sentidos e solo de todos os pensamentos, nós descobriríamos o meio de ultrapassar a alternativa entre realismo e idealismo, acaso e razão absoluta, não-sentido e sentido. O mundo [...], enquanto unidade primordial de todas as nossas experiências [...], não é mais o desdobramento visível de um Pensamento constituinte [...], mas a pátria de toda a racionalidade.14

12

CARTWRIGHT (2005, p. L).

13

SCHOPENHAUER, 2005, p. 162.

14

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 576.

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Aquilo para que se precisa atentar, portanto, é que peso demasiado fora dado à afirmação (nada original!) de que o nãoeu é sempre representação, como se se tratasse de mero “fantasma”, quando o que está em jogo é dizer que o próprio sujeito, quando supostamente conhecido, é, em verdade, um simulacro, também um objeto e, portanto, também um “fantasma”. Está em jogo repensar os conceitos de “matéria” e “realidade”. Diz Schopenhauer no §5: Neste sentido, o mundo intuído no espaço e no tempo, a dar sinal de si como causalidade pura [i.e. como fenômeno pré-racional da efetividade], é perfeitamente real, sendo no todo aquilo que anuncia de si – e ele se anuncia por completo e francamente como representação, ligada conforme a lei da causalidade [i.e. como o fazer-efeito da matéria sobre meu corpo]. Trata-se da realidade empírica do mundo. [...] Desta perspectiva não é uma mentira nem uma ilusão. Ele se oferece como é [...]. Aqui o mundo se dá aberto aos sentidos e ao entendimento, com ingênua verdade como aquilo que é, como representação intuitiva [...].15

Trata-se da mesma “ingenuidade” buscada pela redução fenomenológica em seu projeto de retorno “às coisas mesmas” como “a este mundo anterior ao conhecimento do qual o conhecimento sempre fala, e em relação ao qual toda determinação científica é abstrata, significativa e dependente”.16 O leitor mais resistente e “crítico”, por isso mesmo mais atento, poderá insistir, com razão, que, ainda assim, esse simulacro – i.e. o Eu, conhecido por abstração da experiência – permanece sendo objeto para uma consciência, ou seja, para uma subjetividade. Contudo, isto apenas reforça que o sujeito, em si mesmo, ao invés de Absoluto, não é nada – “a subjetividade absoluta não é senão uma noção abstrata de mim mesmo”;17 as subjetividades

15

SCHOPENHAUER, 2005, p. 57-58.

16

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 4.

17

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 601.

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O sujeito em questão

se alojam nas “fissuras, lacunas” do mundo.18 O sujeito não tem realidade, pois apenas objetos são propriamente ditos “reais” – reais são os fenômenos dados na intuição, não o sujeito em si que os representa, os têm diante de si. É, pelo contrário, negar isto que faz surgirem as dúvidas céticas envolvendo a realidade do mundo exterior, como se este dependesse do sujeito como efeitos dependem de uma causa, mas alerta Schopenhauer logo no início do §5: “guardemo-nos do grande mal-entendido de que, por ser a intuição intermediada pelo conhecimento da causalidade, existe uma relação de causa e efeito entre sujeito e objeto”.19 À mesma conclusão chega Merleau-Ponty no último capítulo de sua Fenomenologia da percepção, sobre a liberdade, onde inicia dizendo ser “evidente que não é concebível nenhuma relação de causalidade entre o sujeito e seu corpo, seu mundo ou sua sociedade”, sendo justamente por isso que “não posso pôr em dúvida aquilo que minha presença a mim mesmo me ensina”.20 O mesmo vale para o contato sensível com as coisas: “Não sou eu que toco, é meu corpo”,21 pois meu corpo, como o objeto imediato schopenhaueriano, é distinto dos demais objetos enquanto mediador entre o sujeito e seu mundo, nisto residindo sua ambiguidade de sua existência.22 Assim, é um engano colocar a sensação como começo do conhecimento ou anterior a ele, como se os sentidos conhecessem algo, como se a intuição fosse sensível, não intelectual. Para Merleau-Ponty a “pura sensação [...] é o ‘efeito último’ do conhecimento”,23 assim como, para Schopenhauer a expressão kantiana “sensibilidade pura” é inadequada “visto que a sensibilidade já pressupõe a matéria”,24 ou seja, o objeto, a presença de mundo. 18

Cf. MERLEAU-PONTY, 2011, p. 447.

19

SCHOPENHAUER, 2005, p. 55.

20

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 581.

21

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 424.

22

Cf. MERLEAU-PONTY, 2011, p. 268-269.

23

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 66.

24

SCHOPENHAUER, 2005, p. 53.

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Schopenhauer, nesse sentido, refere-se ao “problema da realidade do mundo exterior” como “tola controvérsia” na qual, baseados naquela “pressuposição falsa”, “se enredam dogmatismo e ceticismo, o primeiro entrando em cena ora como realismo, ora como idealismo” (2005, p. 55-56). Tal diagnóstico faz lembrar aquele de Heidegger expresso no §43a de Ser e tempo: O “problema da realidade”, no sentido da questão se um mundo exterior é simplesmente dado e se é passível de comprovação, apresenta-se como um problema impossível. Não porque tenha por consequência aporias intransponíveis, mas porque o próprio ente que, nesse problema, é tematizado, recusa por assim dizer esse modo de colocar a questão. O que se deve não é provar o fato ou como um “mundo exterior” é simplesmente dado, e sim de-monstrar por que a pre-sença, enquanto ser-no-mundo, possui a tendência de primeiro sepultar epistemologicamente o “mundo exterior” em um nada negativo para então permitir que ele ressuscite mediante provas. [...] Após a desagregação do fenômeno originário do ser-no-mundo desdobra-se, com base no que resta [além de um mero “interior” enquanto único ser simplesmente dado certo e seguro], ou seja, no sujeito isolado, a correlação com um “mundo”.25

No contexto do trecho citado, Heidegger vinha de diagnosticar o caráter de “sujeito desmundanizado” para o qual a “fé na realidade do ‘mundo exterior’” se mostra exigente de asseguramento, e também que a colocação do problema decorre do deslocamento da “compreensão primordial do ser para um ser como algo simplesmente dado”. Colocar “em dúvida todas as coisas e em suspenso todas as nossas crenças” só permite “entrever o fundo inumano através do qual” não se está no mundo.26 “O solipsismo só seria rigorosamente verdadeiro para alguém que conseguisse constatar tacitamente a sua existência sem ser nada e sem fazer nada, o que é impossível, já que existir é ser no mundo”.27 Ou seja, aproximando-nos do que dissera 25

HEIDEGGER, 2000, p. 273.

26

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 546.

27

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 484.

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O sujeito em questão

Schopenhauer, para quem o sujeito, já sempre seguro, certo de si mesmo, tem sempre o mundo como seu correlato, fenômeno da vontade que ele mesmo é, concluímos legitimamente que o problema da realidade exterior e do próprio solipsismo é consequência da análise das representações, não uma explicação para a existência do que quer que seja. O que a filosofia pode fazer não é provar que há “mundo”, mas entender como se pode pensar a possibilidade de não haver. Não é à toa que o “problema da realidade exterior” não é tão interessante aos olhos dos adolescentes que leem as Meditações pela primeira vez na escola, e que o mesmo seja motivo de riso para quem, vivendo, está certo de si e de “seu mundo” – até o senso comum compreender o absurdo da dúvida. Dito de outro modo, para que tenha lugar o egoísmo teórico, é antes necessário que o sujeito, por experiência, acostumado a tomar a si mesmo como objeto dado em meio a outros, afaste-se de seu próprio modo de ser em si como Vontade cega para então julgar-se a salvo de toda dúvida, mas é apenas na abstração que a “coisa pensante” pode pensar-se como “realidade” e independente de um mundo exterior então posto sob inquérito. Compare-se mais uma vez as palavras de Schopenhauer e de Merleau-Ponty a este respeito: Meramente ao espírito pervertido por sofismas pode ocorrer disputar acerca da [realidade do mundo], o que todas as vezes ocorre pelo uso incorreto do princípio de razão [...]; um absurdo, visto que apenas objetos podem ser fundamento e, em verdade, sempre de outros objetos. Caso se investigue mais a fundo a origem dessa polêmica acerca da realidade do mundo exterior, então se encontrará que, além daquele falso uso do princípio de razão naquilo que se encontra fora de seu domínio, ainda há uma confusão especial envolvendo [...] a figura que ele tem exclusivamente em referência aos conceitos ou representações abstratas [...] aplicada às representações intuitivas, aos objetos reais [...]. [...] o mundo intuitivo, por mais que se permaneça nele, não desperta escrúpulo nem dúvida no contemplador. Aqui não há erro nem verdade (confinados ao domínio abstrato da reflexão). Aqui o mundo se dá aberto aos sentidos e ao entendimento, com ingênua verdade como aquilo que é [...].28 28

SCHOPENHAUER, 2005, p. 57-58.

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O percebido é e permanece, a despeito de toda educação crítica, aquém da dúvida e da demonstração. [...] Cada coisa pode depois parecer incerta, mas pelo menos para nós é certo que existem coisas, quer dizer, um mundo. Perguntar-se se o mundo é real é não entender o que se diz, já que o mundo é justamente não uma soma de coisas que sempre se poderia colocar em dúvida, mas o reservatório inesgotável de onde as coisas são tiradas. [...] Não poderia haver erro ali onde ainda não há verdade, mas realidade, onde ainda não há necessidade, mas facticidade.29

De acordo com Craig o solipsismo se apresenta sob três formas: (1) a tese de que há um único centro de consciência, ou eu, para tudo que se conhece; (2) a de que nada existe separadamente da própria mente ou dos próprios estados mentais; e, mais recentemente, (3) a de que todo o conteúdo dos pensamentos de alguém é independente da exterioridade, sendo determinado de maneira intrínseca e nãorelacional.30 Uma vez que Schopenhauer não admite a cognoscibilidade do sujeito na mesma medida em que não admite a do objeto ou matéria fora de qualquer relação entre si, seu pensamento não se adéqua a nenhuma das três teses, especialmente à terceira. Pode-se, contudo, disputar sua não adesão à primeira ou à segunda. Ainda que Schopenhauer afirme, como base de toda sua doutrina, que todo conhecimento se dá segundo representações e que toda representação é um produto intelectual, portanto, subjetivo, pretende dizer com isto que, por um lado, todo objeto supõe um sujeito, mas, por sua vez, todo sujeito de conhecimento o é enquanto tem a percepção de alguma matéria. A mente e seus estados são inseparáveis do conteúdo que lhes é dado como exterior ou em alguma medida distinto. Tanto isto está certo para Schopenhauer que ele expressamente identifica intelecto e cérebro como sendo a mesma coisa sob duas perspectivas distintas, sem contudo recorrer a teses da emanação ou do materialismo: o cérebro está para o intelecto como o corpo próprio para a vontade individual e o objeto para o sujeito. Se a 29

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 460.

30

Cf. CRAIG, 1998.

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O sujeito em questão

consciência é o centro do mundo ou se o mundo só existe nela e para ela, tal consciência é ela mesma um fenômeno derivado de uma relação já posta no próprio dar-se do fenômeno, recusandose toda forma de realismo dogmático ou de ceticismo. Não há uma dependência do conteúdo da consciência com relação à consciência ela mesma, mas uma interdependência. Nas palavras do próprio Schopenhauer, “a consciência é propriamente a familiaridade com o próprio si mesmo que surge do próprio modo de agir e que cada vez se torna mais íntima”, “conhecimento de nós mesmos que se torna cada vez mais completo”, de modo que “o curso da própria vida, com seus multiformes impulsos, nada mais é do que o mostrador daquela engrenagem originária ou o espelho no qual, só para o intelecto de cada um, manifesta-se a natureza de sua vontade, que é o seu âmago”.31 Isto, por si só, se Merleau-Ponty está correto, impossibilita que o solipsismo seja “rigorosamente verdadeiro” ou efetivamente compatível à teoria schopenhaueriana do sujeito. Embora essa consciência esteja epistemologicamente separada dos objetos como por um abismo intransponível – por isso mesmo seu modo de perceber é transcender a si mesma –, o fato de não conhecer outras consciências ou sujeitos32 decorre do fato de ela não poder conhecer tampouco a si mesma como é em si, pois apenas se conhece objetos dados a uma consciência e os sentimentos de dor e prazer que lhe inspiram, para o que é necessário já ser no mundo. A consciência já está lá, sem quaisquer privilégios, quando se lhe oferecem objetos, mas não antes – sua precedência reside apenas no fato de que seu conteúdo revela o caráter predeterminado que se expressa nas ações. Tanto o egoísmo teórico quanto o egoísmo prático se valem do mal-entendido referido mais acima. Mesmo a intuição “imediata” do próprio corpo se dá segundo a sensibilidade afetada pela matéria que o constitui. O conteúdo de uma autoconsciência 31

SCHOPENHAUER, 2001, p. 97,200,202.

32

Esta é, por exemplo, uma exigência de SARTRE (2013, p. 68, n. 77).

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não ultrapassa o saber imediato acerca de seu próprio querer, como vontade satisfeita ou insatisfeita33. Desse modo, não há em Schopenhauer um sujeito absoluto e isolado que independa da realidade exterior, mesmo porque só a realidade material pode ser conhecida propriamente, e segundo este conhecimento é que o conhecedor se constitui como sujeito, regra que vale para todos os sujeitos. Dito de outro modo, o solipsismo é uma ilusão ou mesmo uma loucura da subjetividade que se julga certa de si mesma como existente em si e por si, ou seja, como objeto puro. Na perspectiva da filosofia de Schopenhauer, o solipsismo jamais poderia dar sentido à existência de qualquer objeto, pois a consciência não tem poder algum sobre objetos. Embora a matéria, em certa medida, dependa do sujeito, não é por ele causada; enquanto objeto conhecido, a matéria é dependente uma vez que supõe um conhecedor, apenas isto. Para Schopenhauer é tão falso afirmar a existência do sujeito na ausência de qualquer objeto quanto a existência do objeto na ausência de algum sujeito, não se podendo defender a tese que o mundo se origine de um ou de outro – intelecto e matéria são correlatos. Sendo seu tema o sujeito em geral, sempre relativo a objetos quaisquer, não há lugar para Eu Absoluto e, por conseguinte, não há exclusão de nenhuma consciência, apenas a afirmação do fato de que, para si, toda consciência (vontade) é seu próprio centro enquanto consciência de algo. Enfim, a percepção que o sujeito tem de si mesmo como corpo, isto é, como indivíduo, nada diz dele exceto que é fenômeno e, como tal, tudo que pode saber conscientemente sobre si é que é tão real quanto todo o resto. A consciência de si mesmo como Vontade, por sua vez, revela-o como idêntico a todo nãoeu. Diz Schopenhauer na última seção de seu ensaio Sobre o fundamento da moral: “a multiplicidade e a diferenciação dos indivíduos é um mero fenômeno, quer dizer, só está presente

33

Cf. SCHOPENHAUER, 2002, p. 45-46.

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na minha representação. Minha essência interna verdadeira existe tão imediatamente em cada ser vivo quanto ela só se anuncia para mim, na minha autoconsciência”.34 Diante disto, a filosofia Schopenhauer deslegitima toda e qualquer recusa do que é, para a consciência, nãoeu, seja humano, seja nãohumano. Sua fundamentação da moral, portanto, está radicada na nãoverdade do solipsismo, pois exige que se faça caso da dor intrínseca à toda forma de vida, enquanto que o solispsimo não pode produzir senão uma ratificação da vontade má, indiferente ao sofrimento de tudo que não é eu-mesmo e, por isso, tido por irreal. Se, de fato, a “loucura solipsista” é danosa para a Ética e para a Política, a tese schopenhaueriana do sujeito, antes de contribuir para o mal, lhe desvela o contrassenso e mesmo a ilegalidade epistemológica.

O mundo objetivo Se minha realidade consiste em que sou fenômeno e, como tal, tão sujeito à extinção quanto qualquer outro, minha morte põe fim subjetivamente a toda realidade que me é dada como meu mundo. No entanto, a extinção do fenômeno que sou, ou de qualquer outro, em nada afeta minha essência comum a tudo que existe, em nada afeta o mundo como tal. O que verdadeiramente sou, Vontade, permanece manifesto no mundo objetivo, na Natureza, como espécie, manifestação fenomenal da Ideia, para a qual o indivíduo não passa de uma gota no oceano, que evapora e torna a cair como chuva, retroalimentando as ondas do querer. Que é, então, o sujeito schopenhaueriano, se não se trata de um solus ipsum produtor de aparições, como uma racionalidade absoluta que espontaneamente projeta de si mesma uma realidade exterior que é mero reflexo seu, como Razão preexistente? Afinal, o próprio sujeito, como se viu há pouco, é também reflexo de suas ações no mundo junto a tudo o que nele há. 34

SCHOPENHAUER, 2001, p. 219.

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Não se deve reconhecer sequer no sujeito lógico invariável, obtido a posteriori por análise das condições de possibilidade das representações, uma entidade propriamente dita, uma “substância”, pois apenas como objeto um sujeito pode ser dito um “suporte de propriedades” ou o que se conserva sob acidentes, como dotado de tal ou qual caráter e assim por diante. Esse “sustentáculo”, ou “portador do mundo”, é aquele que serve de suporte e carrega consigo (ou em si) o mundo – ele é seu próprio mundo visto “como estando fora” de si. No segundo capítulo dos Suplementos, lemos: Isto é assim explicável: o fora de nós é uma determinação [Bestimmung] exclusivamente espacial, o espaço mesmo é uma forma de nossa faculdade intuitiva, isto é, uma função de nosso cérebro; portanto, o fora de nós, para onde nós transferimos objetos, por motivo da sensação visual, jaz dentro de nossas próprias cabeças: pois aí está todo cenário. Mais ou menos como nós vemos no teatro montanhas, floresta e mar, porém tudo permanece ali dentro da casa. Com isto se torna compreensível que nós intuamos de modo inteiramente imediato a coisa com a determinação fora de..., mas não uma representação nela mesma diferente de coisas situadas no exterior. Pois no espaço e, por conseguinte, também fora de nós estão somente as coisas enquanto as representamos: daí estas coisas que nós intuímos em tal medida imediatamente serem de fato exatamente o mesmo que nossas representações, não simples cópias suas, e, como tais, existirem [vorhanden] somente em nossa cabeça.35

Desse modo, o próprio dualismo tradicional entre realidade e aparência entra em colapso dando lugar à verdade essencial e seus modos de expressão fenomenal. Interior e exterior são o mesmo, pois a suposta barreira que os separa é a posta pela forma transcendental do espaço, que, aliada à do tempo, individua-se como a matéria imediatamente reconhecida pelo sujeito como seu próprio corpo. Assim, pode-se perguntar: como é possível que este quarto esteja em minha cabeça se eu, com esta cabeça, estou no quarto? A resposta simples é: meus olhos, que estão em minha cabeça, como partes de meu corpo 35

SCHOPENHAUER, 2012, p. 332.

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imediatamente percebido, veem o quarto ao seu redor graças a determinação intelectual espacial de seu ver, e esta perspectiva do cenário em que me encontro é conhecida no intelecto pelo sujeito que sou, mas esse sujeito, que não está ele mesmo nem no tempo, nem no espaço, não está no quatro, ele o vê com meu corpo ali. Feita esta observação inicial, podemos retomar o assunto. O termo técnico escolástico mais afim do que nos quer fazer entender Schopenhauer por “sujeito” não é “substantia”, mas, sim, “substratum”. No entanto, é necessário compreender adequadamente o que Schopenhauer entende por “sustentáculo” neste contexto a fim de que se possa reconhecer seu passo adiante, além de Kant, em seu retorno às coisas mesmas. Em primeiro lugar, deve-se observar que Schopenhauer emprega “substância” (Substanz) para designar coisas existentes, objetos, como no §4 Schopenhauer, identificando-a à matéria (em um sentido muitíssimo peculiar, pois, já se vê, é uma matéria intelectual), já contendo em si as propriedades elencadas pela física.36 Neste último caso, substância é tudo aquilo que pode ser percebido e pensado, dado no entendimento como conteúdo concreto dos conceitos. O objeto é, portanto, simplesmente o que jaz diante de... “Quem” tem diante de si o objeto, é o sujeito lógico, cuja existência, porém, é tratada de modo ainda mais radical do que o fora por Kant em seu dogmatismo residual, pelo qual ao fenômeno se supunha poder corresponder uma coisa em si efetivamente existente, ou seja, de modo absoluto e não apenas de modo relativo para, pelo e no conhecimento. Enquanto representação vazia, uma vez que incognoscível, da questão ontológica acerca da existência do sujeito em si como “Eu penso” substancial ao modo cartesiano depende qualquer possibilidade de se atribuir existência ao sujeito psicológico, empírico, ou eu. Afinal, o sujeito lógico é um objeto meramente abstrato da razão. Sem que se resolva antecipadamente a problemática ontológica, nada se pode afirmar contra ou a favor do solipsismo. Nesse sentido, Schopenhauer bloqueia a resposta 36

Cf. SCHOPENHAUER, 2005, p. 52.

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solipsista cortando-a pela raiz, ou seja, fechando qualquer via de acesso à postulação de uma subjetividade pura em sentido próprio e radical, pois toda subjetividade é relativa a um objeto representado, mesmo o “puro sujeito do conhecimento” que, no livro III, aparece identificado à Ideia representada segundo a forma do tempo, porém independentemente da forma do espaço. “Substratum” corresponde a “hypokeimenon” em sentido estrito, aquilo que está “subjectus”, que subjaz por debaixo e subentendido no objeto, na matéria; portanto, inerente à “substantia” sem se confundir com ela. Desse modo, conclui-se que não há objeto, coisa alguma que já não sempre deixe subentender um sujeito, caindo em petições de princípio quaisquer teorias que procurem afirmar o contrário, como a do próprio Kant, uma vez supondo a existência de coisas em si como algo cuja possibilidade dever-se-ia admitir no pensamento. Tal suposição erra ao aplicar o princípio de razão para além dos fenômenos, na medida em que pretende fazer da coisa em si a causa do fenômeno – uma exigência do entendimento, não do mundo em si –, como se a aparição devesse remeter a algo existente de modo independente da percepção. Abrindo sua obra capital com as palavras “o mundo é minha representação”, Schopenhauer fecha por completo a adução sequer da possibilidade de existir algo além de representações subjetivas. Considerando que a Vontade não é um objeto, algo com que um sujeito possa se deparar diante de si – um “objectum”, o que jaz diante de... –, não é apropriado dizer que ela tenha existentia, sendo, antes, a essentia de tudo quanto existe, a saber, a matéria, o mundo, os objetos, o que neles a cada vez se mostra. Contudo, não há uma relação de “antes e depois” entre essência e existência, apenas uma precedência ontológica da Vontade com relação aos fenômenos, o que pode ser esclarecido ao se dizer: o que as coisas verdadeiramente são ganha existência na forma de fenômeno, ou ainda, as coisas são tal como se aparecem, e isto de modo imediato, pois não há tempo, espaço ou causalidade que separem a essência de sua objetivação, ou existência, uma vez que tempo, espaço e causalidade se aplicam apenas a objetos realmente dados a um sujeito.

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Nessa condição, o sujeito se assemelha ao substratum/ hypokeimenon como o que jaz no fundo dos fenômenos, como o que conhece sem ser conhecido, tal qual se lê no livro III de O mundo como vontade e representação: vendo-se a si mesma espelhada no mundo como Ideia, sua representação universal e máxima, a Vontade é puro sujeito do conhecimento. Mesmo aqui, na ausência de um eu consciente de que representa, o objeto em questão, a pura representação, ou Ideia, remete a um sujeito, embora coincidindo com ele pela supressão de espaço e causalidade. Em seu puro e relativamente perfeito espelhamento, a Vontade como que conhece a si mesma, de modo a se identificarem contemplante e contemplado na contemplação, analogamente ao que ocorre na compaixão. Se a Vontade conhece, é porque não há como sujeito um “eu” contraposto a um “nãoeu”, não há um conhecimento entre existentes, mas do que é pelo que é. Se o sujeito é consciência, a familiaridade com a própria interioridade enquanto Vontade graças à relação com objetos que motivam sentimentos e ações do eu empírico, o único fator que distingue o conhecimento empírico cotidiano da experiência estética ou da experiência moral tematizadas nos livros III e IV é que, nestas últimas, não há a interferência da consciência, menos ainda de um eu reflexivo representado na abstração. Eis como ontologia, epistemologia, ética e estética se unem como discurso sobre uma mesma verdade exposta mediante – poder-se-ia dizer – a simples análise do sentido profundo da sentença inicial: “o mundo é minha representação”. O mundo é mundo na medida e enquanto eu o represento, enquanto permanece sendo objeto de meu intelecto. Nada disso, contudo, nos permite inferir qualquer existência absoluta, exterior a esta relação, a respeito do que basta a leitura do §5 da obra capital onde se encontra a posição de Schopenhauer acerca do suposto problema da realidade exterior. Diz ele:

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O dogmatismo realista, ao considerar a representação como efeito do objeto, quer separar representação e objeto, que no fundo são uma coisa só, e assumir uma causa completamente diferente da representação, um objeto em si independente do sujeito: algo no todo impensável, pois, precisamente como objeto, este já pressupõe sempre de novo o sujeito e permanece, por isso, sempre apenas uma sua representação.37

Mas isto poderá significar que a doutrina schopenhaueriana estabelece o solipsismo da Vontade ou recusa da realidade exterior enquanto realidade? A meu ver, conforme os argumentos já elencados, a resposta deve ser negativa. Penso que, conforme já adiantei, Schopenhauer sequer deixa caminho livre para que outros o façam. Como se pode observar no trecho citado, desconsiderar o caráter subjacente do sujeito produziria um regresso ao infinito, pois todo objeto é conhecido apenas como representação e toda representação é representação de uma consciência, de maneira que falar de uma objetividade (ou mesmo de uma subjetividade) em si é um contrassenso. Mais uma vez, Merleau-Ponty pode oferecer apoio a uma tradução fenomenológica do que está em jogo: [...] se sei onde estou e me vejo no meio das coisas, é porque sou uma consciência, um ser singular que não reside em parte alguma e pode tornar-se presente a todas as partes em intenção. Tudo o que existe existe como coisa ou como consciência, e não há meio-termo. A coisa está em um lugar, mas a percepção não está em parte alguma porque, se estivesse situada, ela não poderia fazer as outras coisas existirem para ela mesma, já que repousaria em si à maneira das coisas. A percepção é portanto o pensamento de perceber.38

Mas isso não é tudo, pois o “pensamento do perceber” já é uma reflexão posterior ao perceber ele mesmo, que, originário, não é pensamento, mas intuição, daí tirando sua certeza.39 De fato, dizer “o mundo é minha representação” indica uma 37

SCHOPENHAUER, 2005, p. 56.

38

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 67.

39

Cf. MERLEAU-PONTY, 2011, p. 515.

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diferença ontológica fundamental entre sujeito e mundo análogo àquela entre ser e ente, não implicando sua dissociabilidade. O que ocorre é que o mundo é o mundo das “coisas”, dos objetos, dos fenômenos, inclusos aí meu próprio corpo como objeto ambíguo e meu próprio eu. Já o sujeito é aquela consciência que, enquanto tal, tem mundo ou é seu próprio mundo analogamente ao Dasein heideggeriano, ao menos sob este aspecto. É certo que o Dasein não é um sujeito, mas diz o próprio Heidegger no §69c de Ser e tempo: “Concebendo, ontologicamente, o ‘sujeito’ como presença que existe e cujo ser está fundado na temporalidade, deve-se então dizer: mundo é ‘subjetivo’. Mas, do ponto de vista transcendente e temporal, este mundo ‘subjetivo’ é mais ‘objetivo’ do que qualquer ‘objeto’ possível.”40 Não é que o sujeito faça com que o mundo exista, mas com que exista significativamente para ele. O modo fenomenal, portanto objetivo, pelo qual essa consciência pode “se situar”, “se ver”, “se tocar” e “agir” nesse mundo é precisamente como corpo, seu corpo, um objeto peculiar e ambíguo que, enquanto objeto, é percebido intuitivamente segundo o princípio de razão, mas também, enquanto próprio, está na base da construção de um eu consciente gradativamente abstraído da experiência do próprio corpo e das próprias ações. Em suma, o sujeito, para ter mundo, precisa ser algo distinto dele – não ser objeto, ou representação –, precisa ser fora de “seu mundo” e então, como consciência, tê-lo em perspectiva. Desse modo, se o sujeito é o mesmo que consciência ou vontade, é como que o ponto de vista da Vontade afirmada como indivíduo, ele não é dado como coisa, estando porém em toda parte onde se encontre o objeto de seu querer. Tudo isto faz recordar ainda as famosas proposições 5.631 e 5.632 no Tractatus de Wittgenstein a que acrescento a 5.641, respectivamente: “O sujeito que pensa, representa, não existe”, “não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo”; “O eu filosófico não é o homem, não é o corpo humano, ou a alma 40

HEIDEGGER, 1989, p. 168.

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humana, de que trata a psicologia, mas o sujeito metafísico, o limite – não uma parte – do mundo”.41 Como, então, afirmar que há solipsismo quando o sujeito, propriamente dito, não existe, mas, pelo contrário, apenas o mundo existe em toda a sua pluralidade fenomenal e real? Enquanto limite metafísico, o sujeito manifesta-se como fronteira sob a forma do corpo próprio – aí também se deve reconhecer a fronteira entre os domínios da Física e da Metafísica. Afirmando que tudo que se conhece é objeto, Schopenhauer não está apenas pretendendo postular a incognoscibilidade do sujeito contra qualquer pretensão de autoconsciência que, aliás, já havia sido barrada por Kant. Todo objeto se constitui segundo as formas do tempo e do espaço bem como a causalidade que lhe imprime o sujeito, mas isto não significa que o objeto seja extraído do sujeito como o efeito de uma causa, torno a repetir. Significa, em vez disso, que o sujeito não pode ser pensado sem que estejamos vislumbrando, em seu lugar, um objeto. O “eu”, em que penso, de que falo, que apresento, qualifico etc. como “o sujeito que sou” é, em verdade, um objeto, ou seja, a representação que concebo a partir da experiência de que “tenho experiências” – pensar a experiência vivida é diferente de viver experiências como o abstrato é diferente do concreto e o refletido do irrefletido. Como isto se dá? Por meio de meu próprio corpo, entendido como objeto imediato e, portanto, percebido de modo irrefletido e inconsciente. Aliás, vale ressaltar que este objeto que é meu corpo, enquanto meio pelo qual chegam à minha consciência sensações tomadas como oriundas do exterior ou do interior, conforme o modo como aparecem ligadas a outros objetos segundo a lei da causalidade pela qual me são dadas no entendimento, não é cognoscível em sua imediaticidade, mas, também, apenas mediatamente. Por isso lemos no já citado §2: “o corpo é objeto entre outros objetos

41

WITTGENSTEIN, 1994, p. 245,247.

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e está submetido à lei deles, embora seja objeto imediato”.42 Mais adiante, no §6, Schopenhauer escreve sobre o caráter sempre mediato pelo qual conhecemos nosso próprio corpo, de maneira que isto deve inspirar cautela na abordagem do papel do corpo no contexto de sua doutrina: Portanto, o corpo como objeto propriamente dito, ou seja, como representação intuível no espaço, só é conhecido, justamente como os demais objetos, de maneira mediata, pelo uso da lei de causalidade na ação de uma de suas partes sobre as outras, logo, na medida em que o olho vê o corpo, a mão o toca. Por meio do mero sentimento ordinário não conhecemos a figura do nosso corpo, mas o fazemos apenas pelo conhecimento, na representação. Noutros termos, apenas no cérebro é que também o nosso corpo primeiramente se expõe como algo extenso, formado de membros, vale dizer, um organismo. [...] Com esta restrição, portanto, é que se deve compreender o que dizemos ao nos referirmos ao corpo como objeto imediato.43

Portanto, o objeto imediato não é tanto um “objeto entre objetos” quanto uma espécie de ponto-cego que apenas nos aparece, em primeiro lugar, quando afetado por alguma matéria, sendo ele mesmo percebido como matéria, objeto, segundo o princípio de razão, sendo daí derivada a consciência do próprio corpo como organismo completo sempre junto a mim. O mesmo vale para os animais, acrescenta Schopenhauer, sendo notável o caráter estritamente lógico e psicológico da substantia no sentido de objeto, bem como no de “sujeito dotado de qualidades”, o que dá no mesmo. O eu e o próprio corpo são também, em suma, fenômenos intelectuais. Uma vez que apenas os objetos, isto é, as representações, inclusos aí os nossos próprios corpos, estão sujeitos ao princípio de razão, apenas entre eles podem se estabelecer – para, pelo e no conhecimento – relações causais, de modo que a percepção do próprio corpo, bem como o pensar o próprio corpo, somente são possíveis graças à ação de uma 42

SCHOPENHAUER, 2005, p. 45.

43

SCHOPENHAUER, 2005, p. 63-64.

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parte do corpo sobre a outra, analogamente ao que se dá na ação de um corpo sobre o outro. Nada havendo, porém, que separe e faça a mediação entre o sujeito e o objeto imediato passivo da ação de outros corpos sobre si e capaz de agir sobre os outros corpos ou ainda de sofrer a ação de uma de suas próprias partes sobre outra, como quando “nos tocamos a nós mesmos”, nossa tendência imediata é associar nosso corpo à nossa subjetividade empírica, ao nosso eu psicológico-reflexivo, graças ao processo de abstração. Isto se dá pelo simples fato de não termos consciência intuitiva alguma da diferença entre sujeito, eu mesmo e meu próprio corpo, uma vez que nenhum dos três pode ser percebido por si e em si mesmo. Avançando nesta abstração, e já tão distantes da verdade intuitiva, conforme estima Schopenhauer, é que chegamos à perspectiva dualista de que sujeito e o objeto imediato não apenas correspondam ao eu e ao corpo mediatamente percebido como, além disso, podemos considerá-los entidades independentes uma da outra, como corpo e alma. Aliás, é justamente pelo fato de ser uma entidade abstrata que o eu, embora objeto, não tem qualquer poder sobre a matéria, sequer sobre o próprio corpo. Se “eu tenho a experiência de querer um objeto e mover meu corpo em sua direção”, na verdade, é o objeto do desejo que exerce a função de causa sobre o movimento de meu corpo, o qual, em última instância, sendo fenômeno da Vontade, age segundo motivações objetivas de acordo com seu caráter, e isto de modo predeterminado. Não há, deve-se repetir, dualismo mente/corpo: ambos são o mesmo no ato de querer que manifesta o caráter aí determinado. Claro está, a esta altura, que o sujeito propriamente dito, que nada tem de objeto ou representação, não pode ser senão incognoscível. Por outro lado, havendo o objeto, o que jaz diante de..., deve necessariamente estar diante de algo – a este “algo” é que se dá o nome de sujeito, aquilo que jaz no fundo das representações, seu substrato ou sustentáculo. Nesse sentido, jamais o poderemos encontrar em nós mesmos pela reflexão,

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tampouco pelos sentidos, sejam “internos” ou “externos”, mas pelo reconhecimento da forma fundamental de toda representação possível, qual seja, o princípio de que todo objeto concebível é objeto para um sujeito. Portanto, não se trata de uma entidade postulada por Schopenhauer, de uma substância propriamente dita, tampouco de uma realidade, mas de uma condição não apenas epistemológica, mas ontológica, pois que para toda existência objetiva deve-se supor sua referência a uma subjetividade à qual as leis do mundo objetivo-intelectual são, por definição, inaplicáveis. “Por definição” porque todo conhecimento é conhecimento de algo. Esta transitividade de todo conhecimento de... exige ontologicamente um conhecimento por... uma subjetividade intencional, à qual, no entanto, não pertence necessariamente a existência nem qualquer outra qualidade aplicável a objetos em geral. Qualidades, incluindo a existência, pertencem tão somente aos objetos, os quais somente as possuem do ponto de vista do conhecimento por representações. Pode parecer ainda injustificada a negativa à pergunta sobre se daí decorreria necessariamente o solipsismo. Em primeiro lugar, não teríamos em Schopenhauer um Eu Absoluto autoconsciente que, como tal, fosse o centro de tudo que se conhece. Uma vez que todo conhecimento é conhecimento de algo, a existência absoluta de um sujeito deveria implicar o autoconhecimento, o que vimos ser impossível na medida em que o sujeito não é conhecido, apenas conhece, pois escapa ao princípio de razão que já sempre o supõe em relação a um objeto, não podendo precedê-lo. Se a consciência é – conceda-se – o centro do mundo ou se o mundo só existe nela e para ela, tal consciência é ela mesma um fenômeno derivado de uma relação já posta no próprio dar-se do fenômeno, recusando-se toda forma de realismo ou de ceticismo. Em segundo lugar, o fato de nenhum objeto existir independentemente do intelecto de um sujeito nada pode dizer de sua existência fora desta relação; isto vale igualmente no sentido inverso, ou seja, nenhum sujeito pode ser reconhecido independentemente dos objetos que conhece. Há,

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pois, entre sujeito e objeto, uma relação indissociável e dada a priori como condição de toda percepção e de todo pensamento. Quando Descartes chegara à certeza do cogito, o objeto já estava implicado como coisa conhecida pelo “eu sou”, e consistia precisamente no dubitável. Descartes apenas misturou conhecedor e conhecido na mesma substância – quem duvida e sua dúvida –, então tomada como pensamento autoconsciente. Desse modo, em terceiro lugar, é absolutamente abstrato, para não dizer absurdo e vazio, afirmar a independência do sujeito com relação àquilo que ele representa como diferente de si e exterior às suas próprias faculdades intelectivas intrínsecas, que fazem dele o que ele é enquanto polo da relação de conhecimento.

Derivando algumas consequências, à guisa de encerramento A queda do “véu de Maia”, através do qual o sujeito ordinariamente vê como que diante de si uma multiplicidade de objetos, deixa ver a unidade essencial da Vontade. Justamente porque o sujeito só subjaz à representação de um objeto, o que se encontra não é, finalmente, um Eu Absoluto, como se ele mesmo fosse uma Unidade Absoluta, mas, sim, o “sujeito puro” como contraparte da Ideia, ou o próprio Nada. Nesta superação do princípio de individuação e aniquilamento da individualidade é que se situa a origem intuitiva do fundamento da moral – a compaixão perante a “experiência” radical da supressão da distância entre eu e nãoeu. Desse modo, as “experiências” cruciais na estética e na ética schopenhauerianas remetem não a uma Consciência Pura, mas à inconsciência de si como indivíduo e como pessoa, mas é no mundo da consciência refletida apenas que tem lugar o solipsismo inescapável, não sendo, portanto, um problema ontológico, mas psicológico. Não há de ser a metafísica schopenhaueriana a pagar pelos excessos de um psicologismo por ele combatido e refutado ao longo de toda a sua obra.

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Contudo, o problema do solipsismo se agrava e se torna ainda mais preocupante em suas largamente discutidas implicações éticas e políticas, mas não porque seus obstáculos teóricos se situem na ontologia. Não se trata de uma questão de existência ou de essência, mas de comunicabilidade de pensamento e sentido. Desse modo, o lugar do problema é, além da psicologia, a linguagem. Por conseguinte, torna-se um problema da cultura lançado pelo conhecimento histórico.44 No campo político, a imagem mais infernal e realmente perigosa do verdadeiro solipsismo é genialmente desmascarada por Orwell em seu romance 1984, sintetizada em um dos slogans do Partido nos seguintes termos: “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado” – trata-se de usar o poder da linguagem para criar o passado que se quer, lançando mão do fato de que “o passado não tem existência real”.45 Tal solipsismo não pode, todavia, ser erigido em doutrina, mas combatido por atitudes e pelo pensamento acerca do absurdo que envolve seu mistério característico, pois seus perigos não provêm do que o solipsismo tem de verdadeiro, mas do que o realismo do senso comum tem de falso. Fora isso, o solipsismo resta irrefutável desde o Mênon, de Platão, de maneira que, se é uma banalidade filosófica pretender prová-lo, é também absurdo oferecer-lhe fundamentação teórica, seja ela pró ou contra. Como o solipsismo assim se converte em uma questão de palavras que procuram dar conta de experiências interiores inexplicáveis, qualquer debate tende a girar em círculos, pois só se pode tratar, ao tematizar o solipsismo real do dia a dia, das representações linguísticas, que, nesse caso, nada têm de conteúdo intuitivo real. A metalinguagem, como dirá Wittgenstein, não trata de coisas reais; comunica-se apenas a forma, enquanto o sentido é dado apenas na representação de cada sujeito, sendo inútil falar do sentido ou 44

MERLEAU-PONTY, 2011, p. 578-579.

45

ORWELL, 2009, p. 291.

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da ideia com a pretensão de transmiti-los em palavras; apenas a matéria pode ser percebida e pensada, o mesmo valendo para o aspecto “exterior” dos conceitos (as palavras enquanto signos). Em suma, embora o solipsismo seja uma experiência íntima e inescapável, geralmente inconsciente, em realidade, ou objetivamente, não existe. Suas piores consequências – que o tornam problema a ser encarado com seriedade –parecem se dar no processo de ensino e aprendizagem, não sendo à toa que já há muito a pedagogia já descobriu dever apelar, na medida do possível, às experiências concretamente vividas pelo educando.

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