A Questão dos Antecedentes: por que não uma \" pré-história \" do pensamento econômico

May 23, 2017 | Autor: L. Simões de Souza | Categoria: History of Economic Thought, Methodology
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A Questão dos Antecedentes: por que não uma “pré-história” do pensamento econômico1 Luiz Eduardo Simões de Souza2

Resumo O objetivo dessas breves notas é o de suscitar a discussão sobre o emprego da periodização na historiografia do pensamento econômico. Em particular, busca-se o questionamento do uso do termo “pré-história” do pensamento econômico para todo o período anterior à segunda metade do século XVIII. Em nosso ver, tal emprego constitui equívoco, não apenas semântico, mas conceitual, e causa prejuízo ao estudo e entendimento da disciplina, devendo ser mudado para “antecedentes”. Sugere-se o emprego de antecedentes remotos para o pensamento econômico observado da Antiguidade até a Medievalidade, sendo os antecedentes mais imediatos do pensamento econômico clássico, o que “funda” a ciência econômica moderna aqueles vindos a partir do Renascimento e da Expansão Marítimo-Comercial Europeia.

Palavras-Chave: História do Pensamento Econômico; Economia Política; Periodização; PréHistória; Antecedentes.

Abstract The purpose of these brief notes is to raise discussion on the use of periodization in the history of economic thought. In particular, it seeks to questioning the use of the term "prehistory" of economic thought for the entire period prior to the second half of the eighteenth century. In our view, this employment is misunderstanding, not only semantic, but conceptual, and causes injury to the study and understanding of the subject and should be changed to "antecedent". It is suggested the use of remote antecedents for the observed economic thought from antiquity to the Middle Ages, the most immediate antecedents of classical economic thought, which gives the foundation of modern economics those coming from the Renaissance and the Maritime and Commercial Expansion European.

Keywords History of Economic Thought; Political Economy; Periodization; Prehistory; Antecedents. Classificação JEL: B400; B110

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Artigo apresentado em 13/01/2016. Aprovado em 15/04/2016. Doutor em História Econômica. Professor do PPGDSE da Universidade Federal do Maranhão. E-mail: [email protected].

6 Revista de Economia Política e História Econômica, número 36, agosto de 2016.

1. Introdução

O objetivo deste breve comentário é o de suscitar a discussão sobre o emprego da periodização na historiografia do pensamento econômico. Em particular, busca-se o questionamento do uso do termo “pré-história” do pensamento econômico para todo o período anterior à segunda metade do século XVIII. Em nosso ver, tal emprego constitui equívoco, não apenas semântico, mas conceitual, e causa prejuízo ao estudo e entendimento da disciplina, devendo ser mudado para “antecedentes”; remotos, no caso da Antiguidade e da Idade Média, e imediatos, para o período até o final do século XVIII. Para tanto, estas notas se encontram organizadas da seguinte maneira: a esta introdução, segue uma reflexão sobre o pensamento historiográfico e sua relação com a História das Ideias, continuada em mais algumas reflexões sobre a continuidade, ruptura e linearidade no discurso historiográfico. Após a apresentação do conceito de “préhistória” do pensamento econômico, das acepções pelas quais ele vem sendo usado na historiografia do tema, e das implicações de tais acepções na prática do historiador do pensamento econômico, é apresentada uma possibilidade de emprego terminológico alternativa, qual seja a de “antecedentes”, à guisa de considerações finais.

2. História e História das Ideias

Qualquer incursão dentro da História do Pensamento econômico necessariamente estuda uma evolução3 das ideias econômicas ao longo do tempo. Isso quer dizer que, do ponto de vista lógico, implicam-se nessa condição duas hipóteses, a saber: 1. As ideias, no caso as econômicas, podem ser vistas a partir de uma perspectiva evolucionária, ou seja, elas trilham um caminho em direção à resolução de perguntas previamente formuladas em um ponto A (localizado em espaço e tempo definidos), e caminham até um dado ponto B sofrendo transformações observáveis. Contar uma história dessas ideias significa também descrever sua trajetória de A a B, o que nos conduz à segunda hipótese; 3

Por evolução entenda-se a trajetória de uma partícula no espaço e no tempo, não necessariamente significando, mas sempre que possível realizando, uma possibilidade comparativa das condições da partícula no intervalo tt+a.

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2. Essa evolução ocorre ao longo do tempo, quer dizer, a diferença primordial entre A e B se dá na dimensão temporal. Observa-se a situação em A e B, admitindo-se que o caminho entre as duas observações seja a causa das características observadas e de suas alterações. Assim se aborda, na história do pensamento econômico, a evolução das ideias econômicas desde a origem da humanidade até a consolidação da Economia Política como ciência, entre os séculos XVIII e XIX da Era Cristã e seu desenvolvimento posterior. Este recorte temporal histórico se encontra limitado pela associação da origem do pensamento econômico com a origem da espécie humana, de um lado, e com uma classificação arbitrária, dada pelas condições do objeto de outro, qual seja a consolidação da Economia Política como ciência. Os elementos que caracterizariam a Economia Política como ciência encontramse na própria evolução da ideia de ciencia da humanidade. Em princípio, é possível que esse momento chegou para a Economia Política por motivos internos e externos ao universo da própria questão. Como questões internas, podemos citar a constituição de um conjunto de conhecimentos acerca do universo de que é capaz de tratar a chamada ciência social da economia. Quando esse conjunto se torna capaz de apresentar uma resposta hegemônica na comunidade de estudiosos, cria-se um paradigma, o qual é posto em teste até alterar-se ou ser substituído por outro. Mas há também questões externas, ligas estas às necessidades objetivas de seu tempo. Por hora, é suficiente afirmar que, no recorte de saída destas notas, acreditava-se que a ciência econômica já houvera ocupado seu lugar na prática e no discurso científico. Assim, as ideias econômicas podem ser apresentadas desde uma perspectiva temporal-evolucionista (ou histórica, dependendo da concepção de História que se tenha), segundo a qual estas caminham no sentido de constituir, em um dado momento, uma ciência econômica. Note-se que “caminho” e “perspectiva” não asseguram o teor e os percalços da evolução sugerida. Mesmo a proposta evolutiva é mais uma sugestão retórica, em muitos momentos, ao seu final, do que um fato ou uma constante.

3. Linearidade, Continuidade e Ruptura em História

Escrever História constitui uma tentativa de linearização, a partir da dimensão temporal, de elementos cuja linearidade é, na melhor das hipóteses, uma de múltiplas

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possibilidades. Estruturas, fatos, narrativas, descrições, discursos, fenômenos e processos possuem a volatilidade que confere ao trabalho do historiador, de um lado, a necessidade do rigor para que não se descarrilhe o trem de sua narrativa ao longo do tempo – anacronismo, o erro fatal de todo historiador! - e de outro a sensibilidade necessária para não deixar sua obra com a graça literária de um catálogo telefônico. Alguns defensores do catálogo telefônico dirão maravilhas sobre sua utilidade, enquanto seus detratores sugerirão uma percentagem da utilidade efetiva das informações dadas pelo catálogo em relação ao total. Mas essa necessidade de seguir a trajetória da dimensão temporal que a história possui pode ser traiçoeira no campo da história das ideias. Afinal, nada garante que o tempo melhore por si só a qualidade de uma ideia. Ou mesmo o pressuposto dialéticoretórico, de que a contraposição de ideias eventualmente conduza a uma situação melhor do que a inicial. Isso nos leva à seguinte pergunta: como isso seria factível, ou justificável, para a Economia Política? Assumir seu processo de desenvolvimento como ciência, sua autonomia lenta e progressivamente constituída da filosofia pura, filosofia moral e da política – ciência do poder – , sua afirmação como ciência social aplicada, marcada pela observação analítica e crítica da realidade, usando como “laboratórios” a História, a Geografia, a Sociologia, chegando a flertar com a Antropologia e a Psicologia? Nesse caso, onde e em que momento seria colocado o anteparo das ciências exatas e naturais à frente de seus flertes mais ou menos interdisciplinares, afinal, a ciência econômica quer primar pela objetividade, acima de tudo? A questão das continuidades e rupturas é mais ampla, especialmente no ramo da história da ciência. Em se tratando a Economia de um conhecimento plural, multívoco, com praticamente cada elemento insurgente contribuindo ao sistema de pensamento, o modelo de exposição é análogo ao de uma história da Filosofia, ou o que seria concebido dele enquanto história das ideias. As conexões se dão de uma maneira espontânea, muitas vezes entre a proposição dos problemas a serem abordados, as respostas a serem oferecidas a tais problemas, e o método de resolução a ser constituído e adotado, o qual pode ser conexo, comum, ou análogo. Por outro lado, correntes de pensamento podem se estabelecer totalmente à margem de outras, sem que se entrecruzem em momento algum, e sem que isso tenha maior relevância em seus desenvolvimentos. Quando se estabelece como linearidade de um discurso historiográfico a constituição de uma “corrente principal” ou “linha-mestra” em uma dada área do conhecimento, pelo menos alguma parte do ambiente converge ou dialoga com a “linha-mestra”. Este é o caso do discurso da “história do pensamento econômico”, em que um conjunto disperso converge, parcial ou essencialmente, para o

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cânone da Economia Política, qual seja a chamada Escola Clássica, surgida no final do século XVIII de nossa era, fundada por Adam Smith e David Ricardo, sintetizada por John Stuart Mill, e criticada por Karl Marx e Friedrich Engels. Essa é a história para a qual os fatos, estruturas, processos e fenômenos convergem. Os pontos de entrada e saída dessa convergência também são importantes no sentido de mostrarem os caminhos de consenso e ruptura no debate e proliferação de ideias. Assim, tão importantes como a ruptura que se dá no pensamento econômico a partir da segunda metade do século XIX, a partir da questão da teoria do valor, são os caminhos de consenso a respeito das principais pautas que constituiriam a Economia Política no final do século XVIII.

4. Características de propostas com o conceito de “pré-história do pensamento econômico”.

Obras mais recentes da área têm utilizado o conceito de “pré-história” do pensamento econômico, no sentido de preparar a ênfase do fenômeno do surgimento da uma “história” do pensamento econômico a partir de sua “pré-história”4. Existem problemas ligados a essa liberalização semântica desse termo. Ela concebe o marco fundador da Economia Política como ciência iluminista a obra de Adam Smith, A Riqueza das Nações, publicada em 1776. Por uma série de razões envolvendo o mérito da obra de Smith, seja como catalisador de ideias até a época esparsas, seja como sistematizador de um pensamento até então disperso entre parte da Política e da Ética, o qual teria se tornado “independente” a partir do impacto alcançado pela obra do escocês no pensamento ocidental, essa corrente tende a considerar as contribuições anteriores incipientes ao nível de não constituírem uma história do pensamento econômico ainda, mas sua pré-história5. Há, em nosso ver, uma tendência a abrir mão do impacto dado a posteriori à obra de Smith, invariavelmente maior do que o dado em sua época. O reconhecimento posterior parece distorcer a visão do impacto da obra quando da época de seu lançamento. O próprio Smith considerava-a a um passo intermediário anterior a uma

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Como exemplos, podemos citar BIANCHI (1988) , BRUE (2005) e PTAK (2009) e RONCAGLIA (2001). Mas a lista é numerosa. As características desse tipo de corrente na História da Ciência aparecem sob a devida descrição em FEYERABEND (1997).

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integração com as ideias de sua Teoria dos Sentimentos Morais (1759), a qual terminou por não se consubstanciar em obra, pelo menos antes de sua morte, em 17916. Mesmo deixando de lado essa visão que o próprio Smith parecia ter de seu projeto intelectual, ainda subsiste a questão de que, ainda que tivesse tratado de algumas das pautas de A Riqueza das Nações de maneira original, nenhuma delas o era em si, o que mostra ao menos um conjunto de ideias capaz de ser apresentado em sua historicidade como algo mais do que conhecimento disperso. Se tal conjunto não pode ser ainda caracterizado como uma ciência nos moldes estabelecidos pelo ideário iluminista7, também é verdadeiro que não pode ser descrito como material bruto sobre o qual Smith e os demais clássicos trabalharam a partir do zero. Se existe uma cultura e um pensamento econômico registrados, e existe, portanto, uma história dele dotada de linearidade rumo à “constituição” do pensamento de “clássicos” como Smith e outros, não faz sentido apresentar essa cultura e esse pensamento como uma “pré-história”. Por mais elegância ou engenhosidade que possa sugerir o empréstimo do termo junto a outros fazeres historiográficos, o resultado termina sendo uma concepção que não faz justiça à diversidade observada e esbarra no anacronismo8. Por mais que a discussão terminológica pareça ociosa a cientistas sociais aplicados, o erro dessa concepção é suficiente grave para prejudicar uma de suas características mais positivas à teoria, qual seja a possibilidade de retroagir o exame de teorias pretéritas. A própria história do pensamento econômico é bastante pródiga em oferecer exemplos disso9.

5. Caracterização de uma proposta com o conceito de “Antecedentes do pensamento econômico”.

É notória a dificuldade em nomear-se o trajeto rumo ao fenômeno histórico, ainda mais em se tratando da história da ciência ou história das ideias. Em princípio, a sobriedade do termo “antecedentes” remete ao tom anódino dos positivistas, mas o 6 7 8

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SCHUMPETER, 1993. FEYERABEND, 2001. PTAK (2009) é um exemplo claro disso ao buscar associar o pensamento grego clássico de Aristóteles com a “escola austríaca”do século XIX, em linha direta, assumindo o lado estagirita como “pré-histórico”. Em termos de primitivismo e rudimentaridade de formulações, a situação é obviamente inversa a quem quer que se dedique ao exame comparativo das partes. Este é tremendamente desfavorável aos austríacos, ao contrário do que Ptak quer sugerir. BLAUG, 1999.

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reconhecimento do caráter não somente heterogêneo, mas tortuoso do desenvolvimento do pensamento econômico desde o Oriente Antigo até a formulação da Economia Política no final do século XVIII termina às vezes por ser confundido com “ruído branco”, uma calmaria inexpressiva e dispersiva de proporções seculares. Ao se dividir tais antecedentes em “remotos” e “imediatos”, percebe-se que essa definição oferece algo mais do que a anterior, que teria de oferecer apenas não uma pré, mas uma “protohistória” do pensamento econômico, a antecipar-lhe o surgimento do fenômeno estudado, historiando-o. Uma história do pensamento econômico, afinal! Uma história não pode ser uma pré-história, posto que contém elementos que podem (e devem) ser estudados sob os métodos da História, indistintamente. Assim, o emprego de antecedentes remotos para o pensamento econômico observado da Antiguidade até a Medievalidade, sendo os antecedentes mais imediatos do pensamento econômico clássico, o que “funda” a ciência econômica moderna, aqueles vindos a partir do Renascimento e da Expansão Marítimo-Comercial Europeia parece uma opção historiografica e metodologicamente mais adequada, ainda que presa à questão da periodização cronológica em História. De toda forma, sua adoção contorna o uso de um termo conceitualmente equivocado e que fomenta o preconceito de que o pensamento econômico anterior ao Capitalismo Industrial seria rudimentar, o que também não faz justiça ao que se observa.

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Referências Bibliográficas

BIANCHI, A. A Pré-História da Economia. De Maquiavel a Adam Smith. Campinas: Hucitec, 1988. BLAUG, M. Metodologia da Economia ou Como os Economistas Pensam. São Paulo: Edusp, 1999. BRUE, S. História do Pensamento Econômico. São Paulo: Pearson, 2005. FEYERABEND, P. Adeus à Razão. São Paulo: Unesp, 2001. FEYERABEND, P. Contra o Método. São Paulo: Unesp, 1997. PTAK, J. The Prehistory of Economic Thought. The Aristotle in Austrian Theory. Providence: Institute for Business Cycle Research, 2009. RONCAGLIA, A. The Wealth of Ideas. A History of Economic Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. SCHUMPETER, J. History of Economic Analysis. Oxford: Oxford University Press, 1994 (1954).

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