A Questão dos Universais segundo a Teoria Tomista da Abstração

September 1, 2017 | Autor: Raul Landim Filho | Categoria: History of Philosophy
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A questão do Universal segundo Tomás de Aquino




Introdução
Aristóteles deu início à querela dos universais ao escrever no De
Interpretatione [1] (17a38) as seguintes proposições:


"Agora das coisas existentes algumas são universais, outras
particulares. (Eu chamo universal aquilo que é por sua natureza predicado
de muitas coisas e particular o que não o é). [...] Daí ocorrerá que do
universal se enuncia algumas vezes que algo é o caso ou não".


Essas proposições desempenharam um papel relevante na controvérsia
medieval sobre a natureza e a função dos universais. Em primeiro lugar,
nesse texto o universal é caracterizado como uma relação de um com muitos
("é predicado de muitas coisas"). Daí se segue que o universal é
propriamente um predicado, pois "diz algo de algo". Além disso, ele pode
também exercer a função de sujeito, pois dele pode ser afirmado "que é ou
não é o caso". "Sujeito", no De Interpretatione, são prioritariamente nomes
e nomes, ao invés de dizerem algo de algo como os verbos-predicados ("signo
de coisas ditas de outras coisas" (16b7)), significam coisas, através das
afecções da alma. Assim, segundo Aristóteles, universal, embora seja
prioritariamente um predicado, pode exercer também a função de sujeito numa
proposição predicativa simples.
O De Interpretatione formulou uma interpretação que se tornou clássica
na Lógica antiga para a proposição predicativa elementar. Nomes e
verbos,[2] além de suas caracterizações lingüísticas, têm uma
caracterização funcional: nomes servem para significar coisas mediante as
afecções da alma. Eles exercem prioritariamente a função de sujeito numa
proposição predicativa. Verbos são expressões incompletas que dizem algo
sobre algo e, aplicados a um nome, formam uma oração predicativa. Nesse
sentido, verbos são prioritariamente predicados. Do ponto de vista
lingüístico, predicar seria atribuir, mediante o verbo-predicado, uma
determinação inteligível ao que é mencionado pelo nome-sujeito. Pela
predicação afirmativa é significado que algo pertence ao objeto mencionado
pelo sujeito. Assim, foram caracterizadas pelos medievais as proposições de
inesse.
Desse ponto de vista, enquanto exercendo a função de sujeito, o papel
do universal (ou do termo geral, contrapartida lingüística do conceito
universal) seria o de significar os objetos (coisas) que a oração
predicativa elementar está falando sobre; a função do universal, enquanto
predicado, seria a de atribuir propriedades aos indivíduos significados
pelo termo sujeito.
Mas como um universal (termo lingüístico ou conceito mental) poderia
exercer a função de nome-sujeito, ou seja, como um universal poderia
indicar os objetos que a proposição predicativa estaria classificando
através de seu predicado? Universais mencionam objetos ou propriedades
comuns de objetos?
Segundo a teoria tomásica do conhecimento, coisas singulares (objetos)
só podem ser pensadas inteligivelmente pelo intelecto humano mediante
conceitos; conceitos são meios nos quais os objetos são pensados. Sem
conceitos, os objetos não podem ser pensados. Isso implica que uma
proposição elementar predicativa é uma conexão de conceitos, pois, não só o
termo predicado, mas também o termo sujeito são necessariamente conceitos
universais.[3]
Do ponto de vista lingüístico, segundo o triângulo semântico
aristotélico, interpretado por Tomás de Aquino, termos gerais (ou nomes
comuns) significam conceitos universais. Ora, conceitos, para serem
significativos, devem estar conectados à imagem sensível, que é uma
representação sensível de um singular.[4] Assim, a conexão do conceito
universal com uma imagem sensível permite que os conceitos universais,
mediante a imagem, representem inteligivelmente objetos singulares. Daí se
segue que conceitos universais podem, em princípio, mencionar objetos
singulares e, portanto, universais podem exercer a função de sujeito numa
proposição predicativa.
Já que conceitos universais podem mencionar objetos, pode-se assumir
que os objetos singulares formam a extensão de um conceito. Quantificar um
termo sujeito de uma proposição predicativa seria apenas uma maneira de
precisar como a extensão de um conceito universal está sendo considerada.
Assim, segundo Tomás de Aquino,[5] do universal pode-se predicar de
duas maneiras: [a] considerando o universal como tendo uma existência
separada dos singulares (uma existência somente na mente, por exemplo) ou
[b] como podendo ser instanciado pelos singulares. Isso explicaria a
diferença entre os seguintes tipos de enunciado: homem é uma espécie e
homem é mortal. O caso [a] foi analisado exaustivamente pela teoria
medieval da suposição, o que, entre outras coisas, permitiu distinguir
enunciados do tipo homem tem 5 letras dos enunciados do tipo homem é uma
espécie. Mas, para Tomás, a quantificação aplica-se somente ao caso [b].
Por quê?
O conceito universal (universal direto na terminologia escolástica),
que é sujeito de uma proposição predicativa, pode significar um único
objeto de sua extensão. Nesse caso, na proposição, o conceito universal é
tomado singularmente. Daí as proposições da forma: Este homem (seja
Sócrates) é X. Mas, o conceito universal pode significar também o que é
comum a todas ou a algumas coisas singulares. Daí as proposições da forma:
Todo homem (isto é, Sócrates e Platão e Aristóteles e...) é X e Algum homem
(Sócrates ou Platão ou...) é X. Nesse caso, o conceito universal é tomado
universalmente ou particularmente, significando uma propriedade comum de
indivíduos.
Qual seria o sujeito lógico de uma proposição predicativa, onde o
termo sujeito é um universal tomado universalmente ou particularmente?
Seria a propriedade comum que os diversos indivíduos (que estão na extensão
do conceito) compartilham ou seriam os indivíduos que têm em comum a
propriedade significada pelo conceito?
Para a semântica tomásica, formulada no seu Comentário ao De
Interpretatione, só tem sentido quantificar o conceito-sujeito quando ele
significa indivíduos que têm as propriedades expressas pelo conceito.
Portanto, o sujeito lógico de uma proposição seria alguns ou todos os
indivíduos da extensão do conceito-sujeito.
Mas indivíduos numericamente distintos teriam, entre eles, traços ou
propriedades comuns? Uma resposta afirmativa a essa pergunta justificaria
não só que pudesse ser determinada a extensão de um conceito, como também
justificaria a validade da atribuição a diferentes indivíduos de uma
propriedade comum. Assim, se x e y estão na extensão de C (x e y teriam,
portanto, as propriedades significadas por C), x é C e y é C são
proposições verdadeiras. Por outro lado, essa resposta afirmativa parece
implicar que universais (ou propriedades comuns) existem como universais
nos singulares. Mas, haveria traços comuns reais entre indivíduos
singulares?
A afirmação de que universais podem ser sujeitos de predicações, assim
como a afirmação de que conceitos universais, na função de predicados,
significam propriedades, remete à questão central da querela dos
universais: qual é a relação entre o universal, as propriedades comuns e o
singular? Os indivíduos nomeados pelo termo-sujeito (ou pelo conceito-
sujeito) de uma proposição teriam em comum as propriedades significadas
pelo conceito? Existiriam, assim, traços comuns em indivíduos numericamente
distintos? Se existem, isso significaria que o universal, enquanto algo de
comum, existe nos indivíduos? Se não existirem traços comuns em indivíduos,
o que significaria subsumir indivíduos a um conceito universal ou predicar
um universal de um indivíduo?
É sabido que Porfírio, ao escrever uma introdução às Categorias [6]
analisando no Prólogo do livro a natureza do gênero e da espécie, recolocou
para os medievais, graças à tradução e à interpretação de Boécio, a questão
dos universais: os universais são coisas, são conceitos ou são palavras?
Foi isso, em síntese, o que perguntou Porfírio no Prólogo do Isagogo, sem,
no entanto, responder a essas questões. O tema foi analisado pelo próprio
Boécio, o que permitiu aos medievais, na época de Abelardo, retomar o tema
que Boécio, com sua tradução do Isagogo, legara para a Idade Média latina.
Pedro de Espanha, no seu célebre Tratado de Lógica, [7] caracterizou o
universal e o predicável: o predicável é definido como o que é apto a ser
dito de muitos; o universal é compreendido como o que é apto a existir em
muitos. Essa caracterização é compatível com as teorias que se defrontavam
na Idade Média, a partir do século XII, sobre a interpretação a ser dada
aos universais. Universais podem ser conceitos, na medida em que conceitos
podem ser predicados de muitos. Pela mesma razão, podem ser palavras, mais
especificamente, termos gerais. Universais podem ser coisas, seja existindo
em muitos de maneira imanente e comum aos indivíduos, seja como algo
separado dos indivíduos, embora os indivíduos dele participem.


Universal segundo Tomás de Aquino
O objetivo deste artigo é analisar o ponto de vista de Tomás de Aquino
sobre os universais, refletindo sobre duas de suas teses, aparentemente
contrárias: [a] os universais não são coisas nem meras palavras; eles só
existem no intelecto; são, portanto, conceitos, modo humano de conceber as
coisas; [b] os universais têm fundamento nas coisas, embora não sejam nem
existam nas coisas.
Algumas afirmações de Tomás expressam essas teses, por exemplo, no
Comentário ao De Anima: [8]
"[1]... os universais, enquanto são universais, não existem [ou não
estão {sunt}] senão na alma, [2] contudo, as próprias naturezas, às quais
ocorre (quibus accidit) a intenção de universalidade, existem [estão
{sunt}] nas coisas".


Antes de analisar essa afirmação, situemos o contexto ontológico em
que é discutida por Tomás a questão dos universais.
[a] O que existe no mundo natural são as substâncias individuais,
compostas de matéria e de forma. Matéria (prima) é o princípio de
individuação e explica, portanto, a multiplicidade dos indivíduos numa
mesma espécie; a forma substancial determina a configuração da matéria,
permitindo que cada indivíduo seja classificado numa espécie.
[b] A essência das substâncias compostas de matéria e de forma envolve
a matéria e a forma "É, portanto, evidente que a essência compreende não só
a matéria, como também a forma" (De Ente). [9]
[c] A matéria "prima" é pura potência, princípio de individuação,[10]
não é inteligível em si mesma, só é inteligível pela forma. Daí se segue
que as substâncias individuais, compostas na sua essência de matéria e
forma, são apenas potencialmente inteligíveis.
Assumidas como válidas essas teses, analisemos a primeira tese sobre
os universais expressa no Comentário ao De Anima.
Tese [1]: O universal só existe no pensamento ("...os universais,
enquanto são universais, não existem [ou não estão {sunt}] senão na
alma...").
Tomás modifica, no Comentário à Metafísica, [11] a definição do
universal de Pedro de Espanha: "... o universal é comum a muitos, pois algo
é dito ser universal se pertence (inesse) por natureza (natum) a muitas
coisas e é predicado de muitos". [12] [grifo nosso]
A afirmação de que o universal é o que pertence por natureza a muitas
coisas parece sugerir uma solução óbvia para a questão da relação entre o
universal e as coisas singulares e daí para a questão da predicação.
Conceitos, enquanto universais, podem ser atribuídos a muitos singulares.
Podem ser atribuídos a muitos singulares porque esses singulares têm algo
em comum, que é expresso pelo conteúdo do conceito. Enquanto singulares, os
indivíduos compostos de forma e de matéria são "indivisíveis em si e
distintos de todos os outros", mas o que determina que esses singulares
pertençam a uma mesma espécie é algo que é comum a todos os indivíduos da
espécie. Em outras palavras, os indivíduos singulares, compostos de matéria
e forma, são obviamente distintos entre si enquanto entes singulares, mas o
que determina a natureza desses indivíduos, isto é, a propriedade essencial
que os caracteriza, é a forma substancial que seria algo essencialmente
comum a todos os indivíduos classificados sob uma mesma espécie.
Todos os indivíduos de uma mesma espécie teriam algo essencialmente
comum?
A teoria tomásica não precisa assumir essa suposição, embora certos
textos pareçam indicar que essa é a tese de Tomás.[13] No entanto, forma
substancial e matéria, embora façam uma composição real e sejam realmente
partes integrais distintas de uma essência una, pois exercem funções
diferentes na constituição da substância individual, são co-princípios do
ente singular, isto é, não têm realidade independentemente da relação que
um princípio mantém (reciprocamente) com outro. De um ponto de vista
estrito, essas partes integrais da essência não são, enquanto consideradas
isoladamente, entes categoriais.[14] Nada exige, na teoria tomásica, que a
forma substancial seja realmente comum a indivíduos numericamente
distintos, pois a forma substancial de uma substância composta é forma de
uma matéria e é, portanto, uma forma individualizada, embora, enquanto
considerada pelo intelecto, possa ser dita comum a vários indivíduos.[15]
O que justificaria a afirmação de Tomás de que o universal "só existe
na alma"?
A teoria da abstração tomásica procura demonstrar que, de um lado,
para inteligir as coisas, é preciso abstrair e que, de outro lado, o
processo de abstração, mesmo quando começa a partir de um singular,
necessariamente produz algo que, no intelecto, é universal.
Abstrair, num sentido lato, é considerar um aspecto, negligenciando
outros: "... quando inteligimos uma coisa, nada considerando de outra."
(ST, I, 85, a 1)
Tomás analisa vários gêneros de abstração intelectual: abstração do
todo, abstração do universal a partir do particular, [16] abstração da
forma da matéria sensível comum.[17] Neste artigo, focalizaremos apenas a
abstração que permite formar um conceito universal passível de ser
predicado de indivíduos num juízo predicativo elementar do tipo Pedro é
sábio. Assim, serão analisados apenas os conceitos universais que são
predicados de primeira ordem, segundo a terminologia da lógica
contemporânea. A abstração que engendra esses conceitos é a abstração do
todo (totius) [18] ou do universal a partir do particular, abstrações que
não são precisivas, isto é, que não excluem aquilo que não incluem
explicitamente.
Como é sabido, a teoria do conhecimento tomásica, entremeada de
considerações de caráter ontológico, afirma que a mente humana "segundo o
estado da vida presente" necessita da formação de imagens para inteligir as
coisas.[19] Ora, a imagem, apesar de ser uma representação imaterial
(species sensível expressa), é apenas potencialmente inteligível.[20] As
imagens são representações, similitudes, de coisas singulares. As coisas
singulares, compostas de matéria e de forma, têm na sua essência um
princípio ininteligível, a matéria, e por isso elas são apenas
potencialmente inteligíveis. Em razão disso, as imagens, que representam
sensivelmente essas coisas, não são inteligíveis em ato. Para torná-las
atualmente inteligíveis, é necessário deixar de lado os princípios
materiais representados, que fazem com que elas sejam apenas potencialmente
inteligíveis. Mas, esses princípios são as condições que individualizam o
que é representado pela imagem. Portanto, ao deixar de lado as condições
materiais individuantes que impedem a imagem de ser uma representação
inteligível, é produzido um universal: "E isso é abstrair o universal do
particular ou a species inteligível da imagem sensível, isto é, considerar
a natureza da species sem considerar os princípios individuais que são
representados pelas imagens sensíveis" (ST, I, q.85, a.1).
É um princípio da lógica medieval que não se pode predicar a parte
integral, enquanto parte, do seu todo. Como seria possível predicar o termo
universal "homem" do singular Sócrates, caso o predicado "homem" não
significasse Sócrates todo, mas apenas uma parte de Sócrates? Como explicar
que o juízo "Sócrates é homem" seja significativo e que, portanto, "homem"
não seja uma parte integral que está sendo predicada do todo? Mas, como é
possível que um processo abstrativo, caracterizado por deixar de lado um
aspecto considerando outro aspecto da imagem sensível, possa ter como
resultado a presença intencional na mente do objeto como um todo?
Tomás distingue duas características (ou dois modos) da abstração:[21]
a abstração pode ser precisiva ou não-precisiva.[22] Uma abstração é
considerada precisiva quando exclui o princípio de individuação, a matéria
que singulariza a forma. "Não-precisiva", obviamente, é a abstração que não
exclui o princípio individuante. Mas, será possível não excluir a matéria,
se o conhecimento começa desde seu início sensível com a produção de algo
intencional, isto é, de algo não físico? E se a matéria for excluída, como
é possível afirmar que matéria e forma são partes integrais da essência de
um composto individual? A exclusão da matéria não implicaria identificar a
essência com a forma substancial e imaterial?
No De Trinitate (q. 5, a. 3), Tomás explica que a abstração do todo
consiste em considerar algo de maneira simples e absoluta (considerar a
essência, qüididade, natureza ou meramente uma propriedade), deixando de
lado os aspectos acidentais desse algo considerado como um todo. É claro
que a essência de um indivíduo composto, Sócrates, por exemplo, é a
essência de um singular, ou mesmo, uma essência singular. Mas a
singularidade de Sócrates é acidental relativamente à essência específica
ou à essência comum dos indivíduos que são homens.[23] Daí se segue que
aquilo que singulariza a essência de Sócrates, a materia signata, pode ser
deixada de lado, considerando-se apenas a essência comum aos indivíduos de
uma mesma espécie. Essa essência comum envolve a matéria -- não a matéria
que é princípio de individuação, mas a matéria comum sensível.
A abstração do todo é uma abstração não-precisiva, isto é, uma
abstração que não inclui, sem, no entanto, excluir, as características
individuais do objeto. Se ela deixa de lado as características
individuantes determinadas pela materia signata, matéria que individualiza,
ela não exclui aquilo que ela não inclui. O conceito de homem, por exemplo,
é obtido por uma abstração do todo em que os princípios individuantes são
deixados de lado e é apenas considerada a essência específica (comum). Não
é nota característica do conceito homem esta matéria (este corpo), mas ela
não é tampouco excluída do conceito, na medida em que a matéria sensível
comum é nota desse conceito. Assim, o conceito (ou a definição que o
conceito expressa) inclui o que Tomás de Aquino denomina de materia non-
signata ou de "matéria sensível comum".
Através do termo "homem", abstraído não-precisivamente, é pensado como
um todo, mas de maneira indeterminada, qualquer homem particular. "Homem"
significa indeterminadamente, isto é, abstratamente, qualquer indivíduo que
é homem, embora cada homem individual contenha algo determinadamente que
não está contido explicitamente no que é significado pelo termo "homem", a
saber, a materia signata constitutiva da sua essência individual. "Porém,
na definição de homem é posta a matéria não-designada; não se põe, com
efeito, este osso, esta carne, mas se põe o osso e a carne tomados
absolutamente, que são a matéria não-designada do homem". (De Ente, c. II,
p. 371).
Justificando a predicação "Sócrates é homem", Tomás de Aquino escreve:
"... pois este termo "homem" significa a essência como um todo, na medida
em que ela de fato não exclui a designação da matéria, mas a contém
implícita e indistintamente, assim como foi dito que o gênero contém a
diferença; e, por essa razão, o termo "homem" se predica dos indivíduos"
(De Ente, p. 173). [24]
Não é o caso de descrever e de avaliar as etapas do processo
abstrativo que culmina na formação do conceito a partir da imagem.
Assinalamos apenas que duas funções intelectuais diferentes participam
desse processo: o intelecto agente, que, por pura espontaneidade, deixa de
lado as condições individuantes da imagem e o intelecto possível, que
recebe a determinação inteligível abstrata ou species impressa no
intelecto. O que é recebido pelo intelecto possível é um conteúdo
universalizado. Diferentes conteúdos são recebidos porque diferentes
imagens podem ser submetidas ao processo de abstração. No entanto, tudo que
é recebido pelo intelecto, a despeito de suas diferenças inteligíveis, é
recebido de modo universal. Assim, o intelecto intelige um conteúdo, a
qüididade, e apreende de modo universal o que é a coisa. A partir dessa
apreensão, o intelecto forma conceitos, expressando por aspectos
inteligíveis o que foi apreendido. Conceitos são verbos mentais, expressões
mentais do que o intelecto apreende. Conceitos são formados a partir das
naturezas recebidas no intelecto possível. É o que parece afirmar Tomás de
Aquino no Comentário à Metafísica, nº. 1232 "... o intelecto forma
conceitos simples das coisas através do inteligir o que é cada uma das
coisas".
Com essas reflexões pretendemos ter respondido às seguintes questões:
[i] por que produzimos universais? [ii] Como produzimos os universais que
exercem a função de predicados de indivíduos?
Essas análises nos permitem retomar uma distinção banal, mas que tem
para a questão que está sendo analisada: a distinção entre forma e conteúdo
do conceito. Em termos tomásicos, a distinção seria entre a natureza
pensada, que pode ser denominada de qüididade, e a intenção de
universalidade. Assim, seria necessário distinguir, no conceito, a intenção
de universalidade do conteúdo qüididativo intencional, esse último tendo na
mente uma "existência universal" (ST, I, 85, a. 2, ad 2, Comentário ao De
Anima, obra citada L. II, c.XII).
O conteúdo qüididativo, que está ou existe no intelecto de modo
universal, pode ser instanciado nas coisas e, nesse caso, existiria nas
coisas de modo singular. É o que ocorre numa predicação elementar. Assim,
na proposição Pedro é sábio, não é a universalidade do predicado que é
atribuída a Pedro, mas é um conteúdo qüididativo, que está em Pedro
singularmente (se a predicação for uma asserção verdadeira) e está na mente
de modo universal. Em razão do conteúdo qüididativo estar universalmente na
mente, ele pode ser atribuído a múltiplos singulares; em razão do conteúdo
não ser, nele mesmo, um universal, ele pode existir (estar) num singular.
Assim, é possível pensar um conteúdo qüididativo como universal no
intelecto e como singular nas coisas singulares. Mas, se se negligencia
seja o seu modo singular, seja o seu modo universal de "existir", esse
conteúdo teria uma identidade qualitativa no intelecto e na coisa.
Demonstrar a tese de que há identidade qualitativa entre o que é a coisa e
o que é pensado intelectualmente dessa coisa significa demonstrar que o
universal tem fundamento na coisa.
Tese [2]: O universal tem fundamento na coisa. (De Ente, c. III e ST,
I, 85, a.2, ad 2).
Como vimos, a operação de abstração, ao tornar inteligível a imagem
sensível, produz um universal no intelecto (abstração das condições
individuantes) com um conteúdo inteligível (qüididade abstrata). O conteúdo
abstrato "existe" de modo universal no intelecto e forma, segundo a
denominação de Tomás, um universal abstrato. O conteúdo, deixado de lado
seu modo de existência no intelecto e na coisa singular, é denominado
natureza ou essência absolutamente considerada.
"Essência" pode ser 'dita' essência disso ou daquilo, significando o
que é isso ou o que é aquilo. Nesse caso, "essência" significa a essência
de um ente singular. Mas "essência" pode significar também razão da
espécie, isto é, o que é comum de modo essencial a vários entes singulares.
Nesse caso, a essência tem um modo de ser (universal) na mente. Esse modo é
conseqüência do processo abstrativo. Mas, diferentemente dos outros
sentidos mencionados, essência ou natureza absolutamente considerada
significa o modo de considerar a essência independentemente de sua maneira
de ser no singular ou no intelecto.
Como é formada essa noção?[25]
A natureza ou essência absolutamente considerada é fruto de uma dupla
abstração não precisiva: abstração dos princípios individuantes do conteúdo
singular da imagem sensível (abstração do todo) e abstração da intenção de
universalidade da qüididade abstraída. Dessa dupla abstração, obtém-se uma
estrutura inteligível considerada independentemente de suas relações com o
intelecto e com as coisas.
Quais são as propriedades essenciais dessa qüididade assim
considerada? O que pode ser dela predicado essencialmente?
Nem as propriedades que caracterizam a singularidade nem as
propriedades que caracterizam a universalidade podem ser predicadas
essencialmente dessa estrutura inteligível. Se fosse numericamente una,
como são os singulares, enquanto singulares, ela não poderia ser
instanciada em diferentes singulares, pois, nesse caso, diferentes
singulares, que se distinguem numericamente e que são distintos de todos os
outros singulares, teriam a mesma essência, isto é, não seriam distintos
entre si. Assim, se fosse una numericamente e conviesse a um singular, ela
só poderia ser a essência desse único singular. Se fosse comum a muitos
indivíduos, como são os universais, ela não poderia ser una em cada
indivíduo (não poderia ser a essência de um indivíduo particular), pois os
indivíduos singulares seriam essencialmente constituídos por propriedades
comuns, o que tornaria problemática sua singularidade. Assim, a essência
absolutamente considerada nem é singular nem universal nem una nem
múltipla. O modo de ser singular ou modo de ser universal é, para ela,
acidental. Dela não pode ser predicada qualquer propriedade que
caracterizaria o modo de existir singular ou o modo de ser universal: "Nada
dela é verdadeiro senão o que lhe convém enquanto tal; daí qualquer coisa
de outro que lhe for atribuída seria uma atribuição falsa", afirma Tomás no
De Ente.[26]
Mas, por ter sido obtida por abstração não-precisiva, a natureza
absolutamente considerada pode ser instanciada em indivíduos ou pode ter
uma "existência" universal no intelecto. Por não excluir nem o modo de ser
individual nem o modo de ser universal, a essência absolutamente
considerada, na medida em que 'existe' de modo universal no intelecto, é
uma similitude abstrata de cada um dos indivíduos que podem instanciá-la.
Note-se que o fato da essência absolutamente considerada "existir" de
modo universal no intelecto é condição de sua atribuição a objetos
singulares num juízo categórico afirmativo. A universalidade é condição da
predicação e não é aquilo que é predicado. Tomás de Aquino escreve no De
Ente: "Daí se segue, que a natureza do homem absolutamente considerada faz
abstração de qualquer ser, embora de tal maneira que não faz exclusão de
qualquer um deles. E esta natureza assim considerada é que é predicada de
todos os indivíduos." [27]
Essas teses justificam a verdade simultânea dos seguintes enunciados:
[a] João e Pedro, enquanto indivíduos numericamente distintos, são
essencialmente diferentes em razão de uma parte integral de suas essências
individuais ser a materia signata, que é princípio de individuação.
[b] João e Pedro são essencialmente homens, pois homem é um conceito
universal, isto é, um conteúdo qüididativo com uma intenção de
universalidade. É o conteúdo qüididativo que é atribuído e pode ser
instanciado em cada indivíduo distinto numericamente, mas esse conteúdo só
pode ser atribuído a diferentes indivíduos em razão de sua universalidade
no intelecto.
[c] "Homem" significa a essência (comum) de Pedro e de João. Dizer que
uma essência é comum a diferentes singulares significa dizer, em primeiro
lugar, que essa essência tem uma intenção de universalidade na mente e que,
portanto, pode ser atribuída a muitos indivíduos.
Mas por que a essência universalizada pode ser atribuída a diferentes
indivíduos? Abstraída a intenção de universalidade e as condições
individuantes que singularizam a essência, não há como distinguir a
essência que na mente é universal e que é singular no indivíduo. O que
diferencia a essência singular da essência no intelecto (universal) é seu
modo de ser e não seu conteúdo qüididativo. Dessa maneira, o universal
abstrato, isto é, o conteúdo qüididativo com intenção de universalidade,
tem um fundamento na coisa singular.
No entanto, a tese de que o universal tem um fundamento na coisa não
implica que os indivíduos tenham na realidade traços comuns. O que é comum
à essência do singular e à essência universal na mente não é, obviamente, a
singularidade ou a universalidade, mas a essência ou a qüididade
considerada sem seus aspectos acidentais: singularidade e universalidade.
Portanto, o que diferencia a essência do singular da essência universal, no
intelecto, são seus modos singular e universal de existir.
Assim, na perspectiva de Tomás de Aquino, a tese de que no indivíduo
tudo é individual é consistente com a tese de que o universal abstrato tem
fundamento na coisa: não há traços comuns nas substâncias individuais,
distintas numericamente, pois os traços comuns estão no intelecto como
universais abstratos, mas se instanciam nos indivíduos singulares e existem
"fora" da mente apenas de modo singular. (De Ente, c.III)


Conclusão.
A questão do universal concerne à primeira operação da mente: a
intelecção dos indivisíveis ou a apreensão qüididativa. Nesta apreensão, é
necessário distinguir o que é apreendido pelo intelecto, a qüididade
extraída da imagem sensível pela operação abstrativa, e o modo dessa
qüididade "existir" (ou estar) no intelecto, que é o modo universal. Dessa
maneira, o universal não existe nas coisas singulares, mas somente no
intelecto. Mas, a qüididade abstrata, quando é pensada independentemente de
seus modos de existir (singular nas coisas e universal no intelecto), isto
é, quando é pensada como uma natureza absolutamente considerada, é a mesma
qüididade, que é singular nos indivíduos em que é instanciada e que está de
modo universal no intelecto, enquanto é pensada. Só nesse sentido, o
universal tem fundamento na coisa.
Assim, pretendemos ter respondido às seguintes perguntas:
[a] Por que o universal só existe na mente?
[b] Por que o universal pode ter fundamento nas coisas singulares?
[c] Por que a mesma qüididade pode ser predicada de diferentes coisas
singulares?




Publicado em Tensões e Passagens. Filosofia Crítica e Modernidade. Uma
Homenagem a Ricardo Terra. São Paulo, Esfera Pública, 2008, pp. 131-145.
-----------------------
[1] Aristotle. Categories and De Interpretatione, tradução com notas de J.
L. Ackril, Oxford, Clarendon Press, 2002.
[2] O célebre triângulo semântico aristotélico (De Interpretatione, 16ª3-
16ª8) pretendeu fixar o sentido das expressões lingüísticas: palavras
escritas significam por convenção palavras faladas, que, por sua vez, são
símbolos convencionais das afecções alma. Estas são similitudes das coisas.
Afecções da alma e coisas são sempre as mesmas porque determinadas no seu
modo de ser por sua essência ou natureza. Os símbolos convencionais, no
entanto, variam, pois são instituídos pelos homens.
[3] Na teoria tomásica, todo conceito é universal.
[4] Suma Teológica, tradução coordenada por Carlos-Josaphat de Oliveira,
São Paulo, edições Loyola, 2001, I, q. 84, a. 7 e 86, a. 1.
[5] Expositio Libri Peryermenias, in Sancti Thomae de Aquino Opera Omnia,
t. I, editio Leonina, altera retractata, Paris, Vrin, 1989, c. 10, pp. 51-
56.
[6] Porfírio, Isagogo, tradução A. Libera e A. Ph. Segonds, introdução e
notas de A. Libera, Paris, Vrin, 1998.
[7] Ver P. de Espanha, Tractatus Summule Logicales, ed. L.M. De Rijk, Van
Gorcum & Comp. B.V. Assen, 1972 "Donde se segue que, propriamente
considerado,"predicável" é o mesmo que "universal", mas diferem no fato de
que predicável se define pelo dizer e o universal pelo ser. Com efeito, é
predicável o que naturalmente é apto a ser dito de muitos. Mas é universal
o que é naturalmente apto a ser em muitos.". 'Tratado' 1 'Dos Predicáveis'.
[8] Sentencia Libri de Anima, in Sancti Thomae de Aquino Opera Omnia, t.
XL, I, ed. Leonina, Roma, editori di San Tomasio, 1984, L. II, c.XII. Ver
também, ST, I, 85, q. 2 , ad. 2.
[9] De Ente et Essentia in Sancti Thomae de Aquino Opera Omnia, t. XLIII,
ed. Leonina, Roma, Editori di San Tomasio, 1976, c. II, p. 370.
[10] No De Ente (op. cit, p. 371), Tomás afirma que o princípio de
individuação é a matéria assinalada (materia signata), isto é, a matéria
que pode ser designada, apontada: "Daí cumpre saber que não é a matéria
tomada de qualquer maneira que é o princípio de individuação, mas apenas a
matéria assinalada; e denomino 'matéria assinalada' aquela que é
considerada sob dimensões determinadas." Tomás usa também a expressão
"materia non signata" (sinônima da expressão "matéria comum" [materia
communis]), que indica, numa definição, a dimensão material e essencial
comum a todos os entes que caem sob a definição. A noção de matéria comum é
obtida por um processo abstrativo. Embora Tomás tenha afirmado no De Ente
que a materia signata é princípio de individuação, "materia signata" e
"materia prima" não têm o mesmo significado, pois a materia prima não é a
matéria considerada sob dimensões determinadas, mas é pura potencialidade.
[11] Commentary on Aristotle's Metaphysics, trad. J. Rowan, prefácio de R.
McInerny, Indiana, Dumb Ox Books, 1961, Livro 7, l. 13, nº. 1572.
[12] Notar que Tomás não introduziu, como Pedro de Espanha, a distinção
entre predicável e universal e caracterizou o universal como algo que
existe em muitos e é predicado de muitos. Através dessa afirmação, Tomás
estaria indicando que o universal pode ser predicado de muitos e tem
fundamento na coisa e, sob esse aspecto, existe em muitos.
[13] ST I, q. 50, a. 4: "As coisas que convêm na espécie e diferem em
número convêm na forma e são distintas materialmente"; ou ST, I, 13 a. 9:
"... toda forma recebida em um supósito singular pelo qual é
individualizada é comum a muitos seja realmente, seja pelo menos quanto à
razão. Por exemplo, a natureza humana é comum a muitos segundo a coisa e
segundo a razão". Há outros textos que põem em questão que o comum existe
no singular: Expositio Libri Peryermenias, t. I 1*, Anal Post II, 20, n,
11; Met X, I, n. 1930; ST, 85, 2 ad 2.
[14] De Ente, c. VI, pp. 379-380.
[15] Ver sobre essa questão a interessante análise E. Stump, Aquinas,
Londres, Routledge, 2000, pp. 47-50.
[16] ST, I, 85, a. 1.
[17] Super Boetium De Trinitate in Sancti Thomae de Aquino Opera Omnia, t.
L, Paris, Cerf, 1982, q. 5, a. 3.
[18] A abstração do todo e a abstração da forma a partir da matéria
sensível não se identificam com a abstração denominada por Cajetano
abstração total e abstração formal. Ver Cajetano, Commentary on Being and
Essence (trad. L. Kendzierski e F. Wade), Milwaukee, Marquette University
Press, 1964, pp. 40-48.
[19] "... tudo o que a mente intelige nesta vida, intelige pelas species
abstraídas das imagens". Questions Disputées sur La Vérité (De Veritate),
edição bilíngüe, Paris, Vrin, 1998, trad. K.S. Ong-Van-Cung, q. 10, a. 11.
Ver também, ST, I, q. 84, a. 6 e a. 7.
[20] Ver ST, I, q. 79, a. 3; q. 85, a. 1.
[21] Ver F. Cunningham "A Theory of Abstraction in ST Thomas", The Modern
Schoolman, nº XXXV, maio, 1958.
[22] De Ente, c. II.
[23] A abstração do todo é denominada também de abstração do universal a
partir do particular, pois ao se considerar a essência específica de um
singular, deixa-se de lado os princípios individuantes desse singular e
produz-se, assim, um universal com um conteúdo abstrato. Um todo pode ser
constituído em sua natureza por partes. As partes constitutivas do todo que
entram na sua definição são denominadas partes da forma. As partes que são
partes acidentais do todo são denominadas partes da matéria. Não se pode,
obviamente, abstrair do todo as partes que são partes da forma (partes
essenciais); só se pode abstrair do todo as partes que são partes da
matéria (partes acidentais relativamente a um determinado todo). Portanto,
pode-se abstrair a essência específica ou genérica das condições materiais
individuantes, a forma côncava do nariz, o vermelho da maçã, a letra da
sílaba. Não se pode abstrair o arrebitado do nariz, o homem de animal, a
sílaba da letra.
[24] J. Owens no artigo 'The accidental and essential character of Being'
(in ST Thomas Aquinas on the Existence of God, org. J, Catan, Albany, State
University of New York Press, , 1980, p. 84) descreve com clareza a posição
de Tomás de Aquino: "A essência de um homem como tal contém a matéria, mas
não a matéria designada. Para transformar essa essência na essência de
Sócrates, você não acrescenta nada à essência, exceto a designação da
matéria com certas determinadas dimensões. Sócrates é 'animal racional',
não somente 'animal racional' em geral, mas este particular animal racional
que você aponta com o seu dedo. Mas fazendo isso, você nada acrescenta ao
que já estava contido na essência 'animal racional'. Você está apenas
apontando para uma instância particular."
[25] A interpretação que apresentamos dessa noção diverge da interpretação
de Sandra Edwards ("The Realism of Aquinas" in Thomas Aquinas, org. B.
Davies, Oxford, Oxford University Press 2002, pp. 97-115), que considera as
essências absolutamente consideradas expressões objetivas das idéias do
intelecto divino e a de J. Owens ("Thomistic Common Nature and Platonic
Idea" in Medieval Studies, nº. 21, 1959, pp. 211-223) que as distinguindo
do universal tomásico, sob certos aspectos as assimila às idéias
platônicas.
[26] De Ente, c. III, p. 374.
[27] De Ente, obra citada, c.III, p. 374.
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