A Questão Social no Brasil e a Hegemonia do Capital: Uma Reflexão sobre os Programas para a População em Situação de Rua.

June 15, 2017 | Autor: Srta Sara de Paula | Categoria: Capitalism, População Em Situação De Rua, Questão Social
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GT 13- Gestão social, trabalho e dominação capitalista.

A Questão Social no Brasil e a Hegemonia do Capital: Uma Reflexão sobre os Programas para a População em Situação de Rua. Sara Conceiзгo de Paula [email protected] Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo: O objetivo deste trabalho é problematizar aspectos dos projetos sociais para a população em situação de rua no Brasil como uma contradição própria inerente ao modo de produção capitalista e sua manutenção. A partir das abordagens marxistas da teoria social, foi realizado um ensaio teórico de cunho crítico a respeito da questão social conservadora e a construção dialética de uma estrutura social que reproduz a ordem do capital. Em primeiro lugar, foi analisado, o modo produção capitalista como ponto de partida do aumento das desigualdades sociais fundadas pelo modo de produção capitalista e do pauperismo. Em seguida, o significado da questão social é apresentado como também o processo de deslocamento conceitual mistificador da categoria que passa a ser aderida pelo discurso conservador e abandona sua categorização inicial que comportava os desdobramentos sociopolíticos e o pauperismo. Observou-se que as estruturas da questão social de cunho conservador permearam e ainda estão presentes em alguns elementos-chaves na sustentação da ordem do capital. Esta ação incide principalmente através da naturalização dos problemas decorrentes do enriquecimento do capital na exploração do homem pelo homem e ainda, na ação moral e no populismo punitivo. Após este percurso histórico, foi apresentado as características da questão social no Brasil e suas interfaces com o direito penal moderno. É argumentado que os programas sociais para a população de rua possuem sintonia com as modalidades de encarceramento a céu aberto.

Palavras-Chave: População em situação de rua, questão social, hegemonia capitalista. .

Introdução A gestão social recebe destaque nas políticas públicas. Atualmente, no Brasil, os projetos sociais correspondem um dos principais pilares de sustentação do governo e está presente nos discursos oficiais como fator primordial direcionador da ação política. Com relação à população em situação de rua, o Plano Nacional de Assistência Social (PNAS) desenvolveu o Centro Pop, um centro especializado para esta população. A ênfase principal do projeto é a reinserção do indivíduo através de programas que procuram uma ação conjunta com outros projetos já atuantes do governo, como o Sistema Único de Assistência Social, o SUAS

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(BRASIL, 2013). Os principais objetivos é o reestabelecimento dos vínculos familiares, higiene básica, alimentação, cursos profissionalizantes entre benefícios. Contudo, os projetos esmeram em reduzir os dados das desigualdades sociais ao passo que abandonam a reflexão sobre as causas e conflitos da relação entre a sociedade capitalista e o pauperismo. A tônica dos projetos desenvolve-se a partir da situação de vulnerabilidade do indivíduo por si mesma e negligenciam as determinações das estruturas sociais que estabelecem a vulnerabilidade (NETTO, 2001). Os motivos para tal abandono são sinalizados a partir de um deslocamento da própria necessidade e existência de uma gestão social que almeja uma melhor distribuição da riqueza ao passo que desconsidera uma ação anterior: a distribuição dos meios de produção. Paralelamente a promoção do Centro POP, no Brasil, o trato com esta população apresenta relatos brutais de hostilidade e extermínio. Na cidade de Belo Horizonte, a população em situação de rua tive seus poucos bens queimados pela policia militar, guarda ou fiscais reduzindo as chances de sobrevivência com “ações higienistas”. As abordagens foram concedidas com liminares para o Estado, mas a decisão foi derrubada em dezembro de 2012. Em outro caso, na cidade de São Paulo, a prática de aprisionamento da população em situação de rua foi destaque para estudos de Teixeira e Matsuda (2012). A contradição torna-se evidente a partir da constatação que duas propostas de atuação tão distintas. A primeira com discurso de reinserção e a última de ação repressora, coexistem no mesmo contexto político. Diante de um cenário de atuação aparentemente multifacetado, o objetivo deste trabalho é problematizar aspectos dos projetos sociais para a população em situação de rua no Brasil como uma contradição própria inerente ao modo de produção capitalista e sua manutenção. O ensaio teórico, baseada nos aportes e categorias da teoria social de Marx apresentará uma breve análise da relação entre questão social e produção capitalista, aspectos da questão social no Brasil e características que assemelham o programa Centro pop a ferramentas de encarceramentos que vão além do modelo prisão-prédio. A “questão social” mistificada: a liberdade e igualdade burguesa Compreender as relações econômicas e as fraseologias da sociedade capitalista é fundamental para a elucidação das raízes da vulnerabilidade da população em situação de rua e a origem da questão social. Como representa um caminho à compreensão da mistificação do significado transformando-a em instrumento de manutenção da ordem do capital.

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A economia política burguesa afirma que sua gênese está na necessidade humanamente imanente de trocas de mercadorias. Para ela, pertence ao indivíduo a livre decisão de produzir e trocar no mercado para assim satisfazer suas necessidades e desejos agindo conforme a natureza e vontade própria. Assim, a economia política burguesa se apresenta como articulador de tal circulação a partir de um processo baseado na igualdade e liberdade de seus agentes onde os homens “são iguais e livres para realizar seu comércio” (BRANCO, 2010). Em contraponto a perspectiva capitalista, Marx (2004) mostra que a estrutura capitalista não é um processo natural, ontológico do homem e de sua interação com a natureza, muito menos a propriedade privada que é colocada pela economia política como fato dado e acabado. Marx (2011, p.42) afirma que para os economistas a “produção deve ser representada como enquadrada em leis naturais eternas, independentes da história, oportunidade em que as relações burguesas são furtivamente contrabandeadas como irrevogáveis leis naturais da sociedade in abstrato”. Para Wood (2001), a diferença entre o capitalismo e as sociedades précapitalistas não está relacionada ao fato da produção ser urbana ou rural, e sim com as relações particulares de propriedade entre produtores e apropriados. O sistema capitalista é o resultado da luta entre classes da relação social histórica. Consiste em um ramo dentre as diferentes formas de produção da humanidade correspondente a uma sociedade específica. Percebe-se que, a partir de uma análise histórica, o capitalismo não é a única forma de produção existente nas relações humanas. Muito menos intrínseco à sua condição. Portanto, pode não corresponder à única forma possível de vivência social e ser superado como todas as outras anteriores a ele. Marx (2011, p.44) afirma que as tentativas de compreender a produção fixando-a em determinações universais, ou condições universais, “nada mais são do que esses momentos abstratos, com os quais nenhum estágio histórico efetivo da produção pode ser compreendido”. De forma semelhante, a ideia de um mercado em que indivíduos comercializam sua mão de obra e bens de produção em igualdade, diz respeito a uma transição a uma realidade inexistente. Sempre quando necessário legitimar seu tipo específico de produção, o economista político retorna a este “estado primitivo imaginário” (MARX, 2004, p. 80). Só neste aspecto as relações sociais burguesas são harmônicas e recíprocas. Entretanto, tal argumentação contrapõese à condição real de produção na ordem capitalista. A base do sistema burguês não é a igualdade e liberdade entre os homens, mas a exploração do homem pelo homem. Marx (2004, p. 79) observou que neste modo de produção: O trabalhador baixa à condição de mercadoria e à de mais miserável mercadoria, que a miséria do trabalhador põe-se em relação inversa à

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potência (Macht) e à grandeza (gröisse) da sua produção, que o resultado necessário da concorrência é a acumulação de capital em poucas mãos.

Na Inglaterra, simultaneamente ao processo do capitalismo agrário i, os cercamentos realizados pelos monarcas desapropriou dos meios de produção, a terra, grande parte da população à força. Estes, sem destino, retiraram-se para as cidadelas à procura de forma de sustento (WOOD, 2001; BRANCO, 2006, SANTOS 2012). Uma vez historicamente expropriados dos meios de produção, os trabalhadores foram obrigados a vender sua força de trabalho ao capitalista, na circulação no mercado. Não como resultado de um livre processo de escolhas, mas por necessidade de sobrevivência (MARX, 2004). Nos primeiros momentos do capitalismo, os trabalhadores migraram para os grandes centros em volume significativo formando um conglomerado de mão de obra. Devido à oferta e o desenvolvimento tecnológico, os preços de salários caíram tornando-se o mínimo suficiente para subsistência daquela classe de forma a não extingui-la. Assim, o proletariado se vê privado do ideal de Igualdade e Liberdade para ser subjulgado à Lei da Oferta e Demanda, sob a ótica de maximização do lucro por parte do empregador, o possuidor dos meios de produção (BRANCO, 2006). O advento da sociedade capitalista só foi possível com a liberdade dos servos de seus senhores do feudalismo. Para que a produção seja viável o trabalhador precisa possuir sua capacidade de trabalho para vendê-la. Marx apresenta como condição essencial, na transformação de dinheiro em capital, que o possuidor de dinheiro deve encontrar: [...] o trabalhador livre no mercado de mercadorias, livre no duplo sentido de que ele dispõe, como pessoa livre, de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de que ele, por outro lado, não tem outras mercadorias para vender, solto e solteiro, livre de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho (MARX, p.287)

Ser livre para aliená-la livremente. Esta “liberdade”, entretanto, é dupla. Ao passo que se torna livre de seu senhor, o trabalhador, assim se torna também livre de todo e qualquer modo de produção, de sobrevivência, restando-lhe a “venda de sua capacidade de trabalho em troca de um salário” (WOOD, 2001 p.78). Prof. Fawcett afirma: Os ricos tornam-se rapidamente mais ricos (the rich grow rapidy richer), enquanto não há nenhum acréscimo perceptível no conforto das classes trabalhadoras. (...) Os trabalhadores se tornam quase escravos dos comerciantes, dos quais são devedores (FAWCETT p. 67, 82 apud MARX, 1996, p.282)

O surgimento do capitalismo se estabelece no contexto da negação da liberdade humana (MARX, 1996, p. 282). Consiste no único sistema que tem

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como essência a “desapropriação dos produtores diretos legalmente livres, cujo trabalho excedente é apropriado por meios puramente ’econômicos’” (WOOD, 2001 p.77). Percebe-se que o aspecto fundamental dessa desigualdade é a desigual distribuição dos meios de produção da riqueza, isto é, a relação entre capital e trabalho. Não há, portanto, liberdade de livre circulação na liberdade burguesa como afirmado pela economia política capitalista. A “livre” circulação se determina pela repulsão estabelecida entre trabalho e meios de trabalho a partir da qual o trabalho pode circular sem ter outra propriedade que não sua força de trabalho e pode também alienar-se livremente, isto é, dispor de sua força de trabalho como mercadoria posta à venda e apenas assim, como mercadoria, o trabalhador circula livremente: O antigo possuidor de dinheiro marcha adiante como capitalista, segue-o o possuidor de força de trabalho como seu trabalhador; um, cheio de importância, sorriso satisfeito e ávido por negócios; o outro, tímido, contrafeito, como alguém que levou a sua própria pele para o mercado e agora não tem mais nada a esperar, exceto o – curtume (MARX, 1996, p. 293).

Para a perspectiva capitalista, esta dinâmica é associada à exaltação do trabalho vendo-o como ponto de partida do processo de criação e produção. Em contrapartida, é ocultado que para a realização do trabalho é necessário os meios e objetos de trabalho para tal. Sendo assim, apesar da fraseologia difundida, indivíduos não podem ser economicamente iguais se não partem do mesmo posicionamento de posse dos meios de produção. E é nesta problematização que a igualdade e liberdade burguesa se encontram: O homem que não possui outra propriedade senão sua força de trabalho torna-se necessariamente, em todas as condições sociais e culturais, um escravo daqueles que se apropriaram das condições objetivas do trabalho. Ele só pode trabalhar com sua permissão, portanto, só pode viver com sua permissão (MARX, 2012, p25).

Sem os meios de produção, o trabalhador vê-se obrigado a vender sua força de trabalho para produção de riqueza. E ao fazer isso, a suposta igualdade é cada vez mais irreal, aumentando assim sua condição de dependência e vulnerabilidade. No capitalismo, o trabalhador torna-se cada vez mais pobre à medida que produz mais riqueza (BRANCO, 2006; NETTO, 2001). A exploração humana na produção de riqueza também responde à intensificação da desigualdade entre os homens. Este processo se dá na produção capitalista dos bens. No contexto produtivo do capitalismo, Marx (2004; MARX, 1996, p.297) evidencia a relação entre o aumento da pobreza e o aumento da produção de riqueza: “Na medida em que o trabalho se desenvolve socialmente e se torna, desse modo, fonte de riqueza e cultura, desenvolvem-se a

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pobreza e o abandono do lado do trabalhador, a riqueza e a cultura do lado do não trabalhador” (MARX, 2012, p. 26). Esse processo é estabelecido, para Marx, também na mais-valia e no seu duplo papel. A mais valia oferece ao detentor dos meios de produção o lucro podendo intensificar a produção em um ciclo cada vez mais acumulativo de riqueza. Em contrapartida ao crescimento significativo da riqueza daquele que possui os meios de produção, o trabalhador recebe o salário que não é correspondente à riqueza que produz. “O valor de uso da força do trabalho comporta em si uma espécie de dom social, uma capacidade de gerar mais valor quando consumida no processo produtivo, ao contrário dos meios de produção, que só transferem valor às mercadorias” (BRANCO, 2006, p. 145). Na compreensão de Marx, o processo de acumulo de capital, objetivo do investimento em uma produção, se dá na condição de produção e não na venda. É o trabalho humano que possui capacidade de oferecer excedente de lucro, pois é dele que se retira a mais-valia. As máquinas, embora intensifiquem a produção, representam incrementos correspondentes a sua utilização. No entanto, valor de troca da mão de obra é menor que o valor produzido pelo trabalhador. Este excedente chama-se mais valia. Por isso o excedente não é garantido na troca de mercadorias, mas sim onde há força de trabalho (BRANCO, 2006). Força de trabalho é ai comprada não para satisfazer mediante seu serviço ou seu produto, às necessidades pessoais do comprador. Sua finalidade é a valorização de seu capital, produção de mercadorias que contenham mais trabalho do que ele paga, portanto, que contenham uma parcela de valor que nada lhe custa e que, ainda assim, é realizada pela venda de mercadorias (MARX,1996, p.251).

Sem os meios de produção, o trabalhador vê-se obrigado a vender sua força de trabalho para produção de riqueza. E ao fazer isso, a suposta igualdade é cada vez mais distanciada, aumentando assim sua condição de dependência e vulnerabilidade. No capitalismo, o trabalhador torna-se cada vez mais pobre à medida que produz mais riqueza (BRANCO, 2006). E assim ocorre neste contexto histórico porque sua condição consiste na “venda da própria força para multiplicar a riqueza alheia ou para a autovalorização do capital”. Ou seja, a acumulação de miséria corresponde à acumulação do capital. (MARX, 1996, p.274). E ainda, a miséria não é apenas um resultado, produto da produção capitalista, é na verdade, segundo Marx (1996), um dos fatores necessários para a acumulação do capital. É a consequência da miséria de camadas sempre crescentes frente às necessidades de valorização do capital. E compreendendo os trabalhadores como camadas que são alocadas e dispensadas de acordo com a intensidade de produção, o pauperismo diz respeito à situação de pobreza do sedimento da superpopulação relativa (MARX, 1996).

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O autor apresenta recortes de diversos pensadores capitalistas que asseguravam a necessidade de pobres para o funcionamento do sistema de acumulação do capital. No fragmento apresentado por Marx (1996) de Bernard de Mandeville do século XVIII, é percebido a relação de dependência entre a produção de riqueza capitalista e a pobreza e sua acentuação: Assim como os trabalhadores devem ser preservados de morrer de fome, também não deveriam receber nada que valha a pena ser poupado. [...] é do interesse de todas as nações ricas que a maior parte dos pobres nunca esteja inativa e, ainda assim, continuamente gaste o que ganha [...] Aqueles que ganham a vida com seu labor diário (...) não tem nada que os aguilhoe para serem serviçais senão suas necessidades, que é prudente aliviar, mas loucura curar. [...] Do desenvolvimento até aqui segue que, numa nação livre em que não sejam permitidos escravos, a riqueza mais segura consiste numa porção de pobres laboriosos (MARX, 1996, p.247).

Na visão capitalista, a desigualdade representa a vantagem da civilização. Os não trabalhadores provavelmente teriam que renunciar o “aperfeiçoamento das artes e também a todas as satisfações que a indústria nos proporciona caso tivessem de adquiri-los por meio de contínuo trabalho como o do trabalhador” (SISMONDI, p, 79, 80, 85 apud MARX 1996). A pobreza é encarada como fatalidade inevitável ou expressão da harmonia, beleza e simetria da “lei da Natureza” ii. Nesse contexto, como afirmado por Storchiii, o trabalhador oferece dignidade e caráter ao não trabalhador. A pobreza está relacionada com a riqueza das nações. Conforme afirma o doutrinador burguês Destutt de Tracy: “As nações pobres são aquelas em que o povo está bem, e as nações ricas são aquelas em que ele é comumente pobre” (MARX, 1996, p.277). Percebe-se que o antagonismo do modo de produção capitalista é tido como processo natural e sistêmico “que Deus e a Natureza estabeleceram no mundo” iv. E é esta compreensão da naturalização da desigualdade ocorrida no processo de produção que incorpora e legitima o conservadorismo da “questão social” que insere o problema da desigualdade intensificada no capitalismo como elementos naturais de toda e qualquer sociedade. Portanto, é percebido que a produção capitalista está vinculada ao pauperismo e às desigualdades sociais. Os homens na sociedade capitalista são desiguais à medida que produzem; e são livres duplamente: livres dos meios de produção e livres para alienar sua força de trabalho. Apesar de a teoria burguesa afirmar a liberdade e livre-circulação, a igualdade e liberdade real não correspondem à igualdade e liberdade burguesa. A desapropriação dos meios de produção e a mais-valia permitem dentre outros processos destacados por Marx, a exploração do homem pelo homem para a conquista de Capital.

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A liberdade e igualdade burguesa, a partir de uma análise da conjuntura do modo de produção capitalista, indicam a inversão dos papeis entre trabalho e salário. “O trabalho aparece não como fim em si, mas como o servidor do salário” (MARX, 2004, p. 88). De forma análoga, o resultado desta construção histórica que resultou no capitalismo fez com que a riqueza tornasse o fim da humanidade, e não mais o meio para a humanidade, de tal forma que esta humanidade serve de meio à produção de apropriação privada da riqueza. Considerações acerca da questão social e o pauperismo A vulnerabilidade das pessoas em situação de rua e a gestão social estão conectadas às discussões sobre a questão social. Entretanto, esta expressão comporta significados distintos e não apresenta semanticamente uma só compreensão (NETTO, 2001). Segundo Netto (2001), as indicações de utilização do termo questão social são de emprego recente e data a tentativa de expressar os impactos causados pela onda industrializante iniciada na Inglaterra. Neste contexto, a questão social era vinculada aos problemas sociais resultantes da produção capitalista e mais precisamente, a categoria do pauperismo. O conceito de pauperismo e a questão social comportavam a tentativa de compreender o resultado de exploração do estágio industrial-concorrencial aos trabalhadores: uma pobreza e escassez que crescia à medida que a riqueza aumentava. O conceito de pauperismo representa a última camada dos trabalhadores que carregavam todas as consequências da exploração do homem pelo homem. O pauperismo constitui “o asilo para inválidos do exército ativo de trabalhadores e o peso morto do exército industrial de reserva” (MARX, 1996, p.273). Não uma desigualdade natural, como afirma a economia clássica, mas segundo Netto (2001), o que chamava a atenção era que, apesar das diferenças entre classes sociais serem de longas datas, o capitalismo apresentou uma nova dinâmica da generalização da pobreza: Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir riquezas. Tanto mais a sociedade se revelava capaz de progressivamente produzir mais bens e serviços, tanto mais aumentava o contingente de seus membros que, além de não ter acesso efetivo a tais bens e serviços, viam-se despossuídos das condições materiais de vida de que dispunham anteriormente (NETTO, 2001, p.42).

Frente ao quadro de pobreza generalizada dos homens desapropriados dos meios de produção que sobreviviam de trabalhos e pequenos furtos, à medida que a classe burguesa se consolidava, o pauperismo se acentuava. O Estado então assumiu a figura de regulador do mercado na posição de criminalizar a pobreza. Dessa forma, legitimou a obrigatoriedade do trabalho subhumano e intensificou ainda mais a situação miserável da maior parte da

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população (BRANCO, 2006). Assim a figura do pobre fundiu-se à delinquência e ao caráter desviante, como é possível observar na frase se Bernard Mandeville: “Um pequeno demais (salário) torna-o conforme seu temperamento, desalentado ou desesperado; um grande demais o torna insolente e preguiçoso” (MARX, 1996, p.247). Marx (1996) ao apresentar a relação entre o tormento da fome das camadas mais laboriosas de trabalhador e o consumo exacerbado dos ricos evidencia a crescente riqueza contrapondo-se a uma pobreza cada vez mais acentuada. Em alguns casos, a “dieta” dos trabalhadores era condicionada a quantidade mínima para sobrevivência: “29.211 grão de carbono e 1.295 de nitrogênio” (MARX, 1996, p.283). Para Dr. Simon, conforme apresentado por Marx, a situação de carência alimentar é antecedida por inúmeras privações. Tais como vestuário, aquecimento, utensílios domésticos e condição de higiene. “Essas são reflexões penosas, especialmente quando se recorda que a pobreza que as motiva não é a merecida pobreza da preguiça. É a pobreza de trabalhadoresv” (MARX, 1996, p.286). Branco (2006) afirma que as publicações em panfletos escritos por Engels para a revolta mantinham consideração ao horror vivenciado nas experiências de observação das condições sub-humanas que a classe proletária foi submetida no surgimento da grande indústria. A revolta era então “proporcional ao horror vivido pelos proletários e à indiferença da burguesia aos problemas econômicos gerados pelo capitalismo” (BRANCO, 2006, p.78). Entretanto, a ameaça de perda de poder pela classe dominante, diante dos conflitos e do pauperismo inegável, fez com que as questões da condição de vida dos trabalhadores em miséria fossem consideradas. Não para uma efetiva mudança sócio estrutural, mas para garantir a manutenção no poder da burguesia. Os conservadores, que outrora apresentavam abertamente a necessidade da superpopulação trabalhadora e sua pobreza para o enriquecimento do capital, migram de posicionamento. A partir de então, neutralizam as lutas sociais que militavam contra o pauperismo e dava margens a outros meios de estruturação da sociedade. O pauperismo e sua institucionalização histórica reduziram-se a temática de uma nova “questão social” que se inseria cada vez mais nos discursos conservadores pronunciados. Ocorre, nas palavras de Mészáros (2004, p144), “um deslocamento conceitual mistificador”. Netto (2001, p.44) também denuncia uma mistificação da própria expressão “questão social” que agora “é expressamente desvinculad[a] de qualquer medida tendente a problematizar a ordem econômico-social estabelecida”. Para Netto, “trata-se de combater as manifestações da ’questão social‘ sem tocar nos fundamentos da sociedade burguesa. Tem-se aqui, obviamente, um reformismo para conservar” (NETTO, 2001, p.44).

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Posta em primeiro lugar, com o caráter de urgência, a manutenção e a defesa da ordem burguesa, a “questão social” perde paulatinamente sua estrutura histórica determinada e é crescentemente naturalizada, tanto no âmbito do pensamento conservador laico quanto no do confessional (que aliás, tardou até mesmo a reconhecê-la como pertinente) (NETTO, 2001, p, 43).

Dessa forma, a acentuada desigualdade, desemprego, fome, doenças, penúrias, desamparo passaram a ser apresentadas como características naturais de toda e qualquer ordem social moderna. É possível, a partir disso, discutir melhorias de condição de vida sem que se alterem a essência exploradora do capitalismo. Portanto, a “questão social” possui em sua formulação pelo menos duas ressignificações importantes na sociedade ocidental capitalista. A primeira relaciona-se a manutenção da ordem do capital em um processo de naturalização do modo de produção que vincula a questão social a uma ótica conservadora (NETTO, 2001). Neste desdobramento, a principal preocupação é “exorcizar o problema em si” levando para longe através da mistificação conceitual (MÉSZÁROS, 2004, p.144). A segunda diz respeito à contradição quanto à finalidade e ontologia dos projetos sociais. A “questão social” possui firmamento na própria construção do modo de produção capitalista. Assim, esta é elaborada com intuito de reduzir as desigualdades sociais no modo de produção capitalista ao mesmo tempo em que mantém a salvo a produção de riquezas transformando em nulas suas propostas. (NETTO, 2001; BRANDÃO, 2009; MÉSZÁROS, 2004). Como apresentado por Netto, (2001, p.47), qualquer ganho na “questão social” é ingênuo devido ao esforço do capital que não possui nenhum compromisso social. Isso pode ser mostrado, segundo o autor, nos desdobramentos da junção entre “globalização” e “neoliberalismo” de romper com qualquer regulação política, extra-mercado. As faces da questão social no Brasil A questão social no Brasil é aderente ao pensamento conservador e seu desenvolvimento é ligado ao dinamismo contraditório do próprio capital (NETTO, 2001; MÉSZAROS, 2004). Neste aspecto, a expressão não admite a compreensão da dinâmica das consequências sociais - forte desigualdade, desemprego, fome, doenças, penúria, desamparo frente a conjunturas econômicas adversas etc.- a partir do modo de produção capitalista (NETTO, 2001), ou seja, “não comporta o real significado da questão social que é o resultado da exploração capitalista” (BRANDÃO, 2009). A principal preocupação com a “questão social” é desvinculá-la de todo significado crítico e histórico, ou ainda apresentá-la em um contexto de determinismo social imutável. Pertencente ao conservadorismo, a “questão social” assume nos projetos sociais um discurso de reinserção dos indivíduos vulneráveis. Entretanto, como já

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apresentado, a reinserção é inútil se considerado uma sociedade que mantém salvo as bases fundamentais do capital. Ocorre então um consenso político. A “questão social” conservadora assume ênfase e popularidade nos projetos do governo enquanto o capital segue seu curso, sempre em consolidação. Este dinamismo é apontado por Mészáros (2004) quando menciona o governo da Inglaterra pós-guerra e a relação ideológica da dominação. “Dificilmente o capital encontraria um arranjo mais conveniente do que aquele em que o partido das massas do trabalho industrial estava no governo enquanto o próprio capital permanecia, mais entrincheirado que nunca, no poder” (MÉSZÁROS, 2004, p.143,grifo do autor). Como apresentado por Netto (2001), os programas sociais para melhoria da condição de vida, se guardadas as estruturas capitalistas, não acarretam na resolução do problema. “Assim como melhor vestuário, alimentação, tratamento e um pecúlio maior não superam a relação de dependência e a exploração do escravo, tampouco superam as do assalariado” (MARX, 1996, p.251). Nas palavras de Mészáros (2004, p.144): (...) É muito significativo que o desenvolvimento do Estado capitalista no pós-guerra, orientado para o consenso, tenha introduzido um corretivo prático para esta (deslocamento conceitual mistificador) conceituação falaciosa através da intervenção direta do Estado (...). Ao mesmo tempo, no contexto do “Estado de bem-estar” e em práticas oficiais análogas (embora mais limitadas em seus objetivos), ele se encarrega da tarefa de subjulgar os interesses capitalistas particulares que se opõem a tais práticas – necessárias à reprodução global do capital – aparentemente resolvendo a contradição entre os interesses gerais/sociais e os interesses do capital/setoriais. Certamente, todos estes "corretivos” não modificam em nada a estrutura estabelecida da sociedade; nem alteram minimamente a subordinação hierárquica dos “trabalhadores” de Taylor ao capital na divisão do trabalho.

O problema central não consiste na discrepância entre o volume de riqueza de um indivíduo particular em comparação com outro, mas sim em “quem, e a partir de que critérios, controla a produção e a distribuição da riqueza social total” (MÉSZÁROS, 2004, 144). Voltar à atenção para reduzir as diferenças de riqueza entre os homens em particular resulta em ações nulas uma vez que deixa de lado o motivo das desigualdades, a estrutura estabelecida pela sociedade. Semelhantemente, percebe-se que as práticas de reinserção alcançadas pelo advento do Estado do Bem Estar social na Europa não garantiram perpetuidade nos direitos sociais tão pouco alterou a condição de exploração e vulnerabilidade dos homens frente a uma nova postura de relacionamento com o trabalhador (WACQUANT, 2010). “Os ‘clientes naturais’ das prisões europeias são, atualmente mais do que em qualquer outro período do século, as parcelas precarizadas da classe operária e, muito especialmente, os jovens oriundos das famílias populares de ascendência africana” (WACQUANT, p.115). A partir dos autores apresentados, é possível inferir que há uma relação entre os projetos de

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desenvolvimento e reinserção com as manobras de manutenção da ordem vigente. Ou seja, a “questão social” em seu sentido conservador trabalha para inibir as lutas sociais levantadas pela exploração capitalista e suas mazelas. “A dinâmica societária específica dessa ordem [...] põe e repõe os corolários da exploração que a constitui medularmente” (NETTO, 2001, p. 48). A questão social conservadora encara o problema da desigualdade como característica pertence a toda e qualquer sociedade. Desta forma, desvincula a expressão de qualquer problematização da ordem econômico-social. “A questão social perde seu caráter histórico e é naturalizada pelo discurso dominante. Ela passa a ser percebida como uma questão ineliminável de toda e qualquer ordem social, porém pode ser reduzida e minimizada” (BRANDÃO, 2009). Por meio de um “ideário reformista”, a problematização da questão social é encaminhada para ações sociopolíticas e para a busca de uma reforma moral do homem e da sociedade. “A ‘questão social’, numa operação simultânea à sua naturalização, é convertida em objeto de ação moralizadora” (NETTO, 2001). Esses aspectos permitem a compreensão de outro fenômeno da questão social no Brasil. A naturalização estabelece ênfase na moralização e, uma vez que a reinserção da população vulnerável evidentemente não responde aos retornos esperados, “desenvolve-se ao mesmo tempo o controle sanitário e social” (WACQUANT, 2011, p.112). O contexto da criação dos projetos sociais no Brasil é harmonioso ao populismo punitivo e a pressão social. Segundo Martinezvi (2010) esta postura, consiste em um modismo nas chamadas luta contra as drogas e contra o terrorismo que são meios de manipulação populacional intensificando o medo frente ao delito. Para o autor, há uma encarnação da maldade que distancia os debates sobre os problemas sociais e suas causas. É estabelecido então o “novo Direito Penal de Inimigo” que é aceito por uma população pressionada pelo pânico como forma de eliminar os “maus elementos” da sociedade (MARTINEZ, 2010). O populismo punitivo oferece altas penas contrapondo a utopia da ressocialização, reivindicação dos direitos das vítimas em oposição à perda dos que são selecionados como maus. Com a intenção de ser aderido pelas massas, esta ação “tem como destinatário principal as massas e maiorias apresentadas como potenciais vítimas” (MARTINEZ, 2010, p.314). O populismo punitivo percebidos na “coleção de manchetes e de slogans da imprensa amarela fazendo propaganda de filme de terror” (MARTINEZ, 2010, p.314) também se inserem a um condicionamento em que o sujeito em situação de rua deve-se submetervii. Na nova linguagem do Direito penal de Inimigo, assumido pela Legislação *antidroga e antiterrorista, impulsionado pelo funcionalismo e o *decisionismo, tratar-se-ia de uma minoria *autoexcluída como não

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pessoa, que declarou uma suporta guerra contra a grande maioria dos inclusos, os sujeitos-pessoa por serem fiéis ao sistema normativo (MARTINEZ, 2010, p.321).

De forma semelhante à Lei dos pobres implantada na Inglaterra, a criminalização da pobreza é acompanhada por um pensamento social de gestão dos pobres que são tratados como “feios, sujos e malvados”viii. Portanto, o conservadorismo da ordem do capital e a naturalização, aliada à fraseologia da igualdade e liberdade burguesa, oferecem um cenário de objeto de ação moralizadora e de individualização da pena dos indivíduos. É na dita reforma moral do homem e da sociedade que se firma a individualização penal, ou o direito penal moderno. Assim, a questão social conservadora no Brasil possui interações com o Estado Penal. E é a partir desta ligação que a questão social assemelha-se às variações da Lei dos Pobres inglesa e ultrapassa as dimensões da prisão-prédio abrindo espaço para as novas formas de encarceramento. A ordem do capital e o paradigma do direito penal moderno. A partir do pressuposto marxista, compreende-se que o modo de produção capitalista, enquanto fato objetivo, é incorporado nas atividades dos indivíduos na maneira como estes constroem a sociedade nos processos relacionais. Marx compreende que não se explica uma sociedade por suas necessidades sociais de consumo, mas sim pelo modo de produção que possui. “Quando se fala de produção, sempre se está falando de produção em um determinado estágio de desenvolvimento social – da produção de indivíduos sociais” (MARX, 2011, p.41). Assim, o modo de produção capitalista produz indivíduos sociais específicos: “um certo corpo social, um sujeito social em atividade” (MARX, 2011, p.41). O próprio conceito de igualdade e liberdade burguesa apresenta o trabalho individual de cada agente econômico como responsável unitário por seus desdobramentos sociais. Isso se dá pela afirmação de um processo baseado na igualdade e liberdade de seus agentes onde, hipoteticamente, e somente assim, os homens são iguais para realizar seu comércio. Nesta concepção, pertence ao indivíduo a livre decisão de produzir e trocar no mercado para satisfazer suas necessidades e desejos agindo conforme a natureza e vontade própria (BRANCO, 2010). Na compreensão capitalista, o indivíduo torna-se “livre”, para contratar e ser contratado de acordo com sua intenção particular, como um indivíduo nuclear. A livre associação de trabalho dá firmamento à individualização e relações contratuais, e, portanto, a ideia de Contrato Social. A societas passam a ter sentido de associação e “evoca um contrato pelo qual os indivíduos componentes se “associam” numa sociedade” (DUMMONT, 1985 p, 31 e 88 apud ABROMOVAY, 2010, p.12). A relação entre trabalhador e o detentor dos meios de

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produção resultaram em uma prática objetiva de associação que estabeleceu um novo paradigma: o contrato social (ABROMOVAY, 2010).. O isolamento do indivíduo natural e a igualdade e liberdade burguesa tornam-se estruturas de dominação da ordem do capital uma vez que alteraram as perspectivas filosóficas e políticas sociais. Enquanto a lógica individual guarda o estabelecimento da “sociedade ou o Estado ideal a partir do isolamento do indivíduo “natural”, a liberdade e igualdade burguesa construiu historicamente o contratualismo que consiste em uma das principais configurações para o Direito Penal moderno" (ABROMOVAY, 2010). Conforme Menegat (2010, p.210) o direito de punir surge da “gigantesca e poderosa ilusão que são regras iguais para perspectivas desiguais”. As noções do Direito Penal articulam em favor da individualização da responsabilidade pelos desdobramentos dos sujeitos (ABROMOVAY, 2010). Segundo Abromovay (2010, p.12) o “contratualismo é uma das principais expressões da crença no indivíduo”. O Estado respalda uma “responsabilidade individual irrestrita” e possui, concomitantemente, uma irresponsabilidade coletiva (política) (WACQUANT apud ABROMOVAY, 2010, p.12). Tal premissa desconsidera a desigualdade entre os homens ocorrida no processo histórico da construção do capitalismo. O lugar-comum da crítica à “impunidade”, tão frequente e reiterativo desde a origem do Direito burguês, permite o retorno ao argumento do privilégio, este giro do ideal no vazio, como se a aristocracia já não estivesse há muito nos museus de cera da história. O seu sentido é dificultar o obvio, que é o medo da transparente lógica de que leis iguais não servem para julgar indivíduos de fato desiguais. A nova forma de privilégio, esta do homem burguês, faz jus à classe: é hipócrita. (MENEGAT, 2010, p.208)

Diante de uma redução global das pressões e lutas sociais contra a ordem dominante e uma aderência dos trabalhadores às propostas do capital, o Estado migra, conforme Wacquant (2011) e Abramovay (2010), do Bem Estar social para a lógica Neoliberal trazendo à tona (novamente) a culpabilidade da pobreza com uma ditadura sobre os pobres, ou seja, a expressão da “racionalidade penal moderna”. Assumindo a ação moralista, propõe ênfase na individualização da responsabilidade, colocando o delito como o resultado de uma decisão livre tomada a partir de uma comparação entre vantagens e ganhos que por sua vez não sofrem interferências das condições e da contradição da sociedade. Percebese então “(...) uma punição demasiada crua, tendente ao bárbaro, mas não à condenação do que motivou ao crime” (MENEGAT, 2010, p.208). Esta concepção da realidade, a racionalidade penal moderna, é apresentada de forma natural e dogmática por meio da importação “do vocabulário agressivo de controle do crime e programas adequados para dramatizar o renascido rigor moral e a severidade penal das autoridades” (WACQUANT, 2011, p.176). E “louva os vencedores pelo seu vigor e por sua

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inteligência, e fustiga os “perdedores” da “luta pela existência (econômica)”, apontando suas falhas de caráter e suas deficiências de comportamento” (ABRAMOVAY, 2010, p.21). Nas palavras de Abramovay: A ideologia neoliberal produz um modelo que é duplamente excludente, pois retira do Estado o papel de redistribuir riqueza, acreditando na capacidade dos indivíduos de maximizarem seu bem-estar, e lida com a exclusão gerada por esse modelo, aumentando o controle penal para as populações marginalizadas (ABRAMOVAY, 2010, p. 24).

A “questão social” conservadora comporta a existência do Estado penal que imputa aos miseráveis o “desdobramento dos programas sociais num sentido restritivo e punitivo que lhe é concomitante” (WACQUANT, 2011, p. 104). Em outras palavras, o governo da miséria apossa a prisão e os serviços sociais “reformados” como forma a disciplinar o trabalho assalariado não socializável. É possível compreender que os projetos do governo não são capazes de ir contra as imagens deformadas da realidade e, apesar da falácia de reinserção, “desenvolvem a função de servir ao poder, não dando voz à realidade desordenada do capitalismo” (ADORNO 1986; 1993 apud MARANHÃO 2010). Não só o direito penal é resultado da produção capitalista como também se alimenta punindo as classes expostas à precarização do trabalho. Nas palavras de Wacquant: (...) todas as pesquisas disponíveis sobre as sanções judiciais segundo as características sociais dos acusados nos países europeus coincidem ao indicar que o desemprego e a precariedade profissional são, como nos Estados Unidos, severamente julgados pelos tribunais ao nível individual. Resulta daí, tanto para o crime como para a contravenção, uma “sobrecondenação” na reclusão dos indivíduos marginalizados pelo mercado de trabalho (WACQUANT, 2010, p.114, grifo do autor).

O sociólogo ainda afirma: Sabemos, desde os trabalhos pioneiros de Georg Rusche e Otto Kirscheimer, confirmados por cerca de 40 estudos empíricos em uma dezena de sociedades capitalistas, que existe no nível societário uma estreita e positiva correlação entre a deterioração do mercado de trabalho e o aumento dos efetivos presos - ao passo que não existe vínculo algum comprovado entre índice de criminalidade e índice de encarceramento. (WACQUANT, 2010, p.114)

Percebe-se, portanto, a existência de uma relação entre o modo de produção capitalista, direito penal e a “questão social”. Outro fato a destacar sobre práticas de melhoria da condição de vida é que os benefícios adquiridos não foram sustentados na Europa (NETTO, 2001), o único espaço em que se pode dizer enfaticamente em uma política de Bem Estar Social. Pelo contrário, a gestão dos pobres, firmada nos Estados Unidos, está se disseminando nos

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países europeus, e isto, segundo Wacquant (2011), resultou na prática da maior política de encarceramento em massa arquivada na historicidade humana ix. Mais uma vez a questão social e o direito penal moderno se associam como faces da mesma moeda: o modo de produção capitalista. As novas formas de encarceramento Desde Foucault, segundo Augusto (2008), é compreendido que prisão não se define apenas como o espaço ou instituição responsável em castigar e corrigir, mas também se refere a uma política. A “política de defesa da sociedade contra o que ela não suporta” (AUGUSTO, 2008, p.176). Visto como resultados dos conflitos sociopolíticos, a classe hegemônica desenvolveu inúmeras formas de encarceramento que vão além do modelo prisão-prédio. A questão social mantém conjunto com frentes contraditórias de forma a estabelecer um conjunto de ações entre o populismo punitivo e o direito penal moderno. Neste contexto, o “reformar para conservar” dos projetos sociais se intercalam com continuidades da criminalização dos pobres e nas elaboradas formas de penalizá-los (NETTO, 2001, AUGUSTO, 2010). Uma vez que não vender sua força de trabalho é crime, o contingente menos capacitado para o trabalho é obrigado a se submeter a qualquer emprego disponível (MARX, 1996). Caso optar por atitudes meliantes, sofrerá duras penalizações (ABROMOVAY, 2010). Mas na maioria dos casos, a própria existência da população de rua já é considerável crime (TEIXEIRA & MATSUDA, 2012, p.12). Como no início histórico do capitalismo, o vulnerável não corresponde ao sujeito em situação de rua, mas sim os donos e frequentadores dos bares, lojas, turistas e todos os “cidadãos de bem” (bens). Em prática, são remanejados para um espaço adequado os indivíduos que “insistem em evidenciar as mazelas do mundo social do qual também fazem parte, nos espaços visíveis da sociedade” (TEIXEIRA & MATSUDA, 2012, p.12). Neste contexto, os projetos sociais correspondem a campos de concentração a céu aberto que funcionam para a administração do controle da sociedade a fim de “perpetuar e aumentar sua [prisão] ascendência sobre as pessoas” (AUGUSTO, 2010, p.175). Esta construção foi realizada por Augusto (2010) através dos estudos de Löic Wacquant aplicando-os às periferias brasileiras do Rio de Janeiro. Augusto (2010) problematiza a prática desenvolvida por políticas sociais e ONGs financiadas por empresas privadas que se esmeram em abordar indivíduos antecipando a ocorrência do que historicamente se considera crime. O objetivo dos projetos para Augusto (2010) é o controle e monitoramento dos indivíduos considerados infratores e potenciais. “Dessa maneira, a crítica à prisão [sai] de uma retórica que alimenta e diversifica sua

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continuidade, para colocar outros questionamentos diante da expansão das modalidades de cárcere” (AUGUSTO, 2010, p.175). Wacquant (2011) apresenta uma abordagem para a compreensão deste fenômeno a partir dos guetos judeus da Europa e da organização socioespacial dos guetos negros estadunidenses. O sociólogo levanta semelhanças entre os cárceres e maneiras variadas em que a sociedade acaba de aprisionar membros dos quais ela não deseja contato. Neste contexto, Wacquant classifica como gueto uma área de segregação etnorracial imposta, que funciona para “confinar e controlar”, ao mesmo tempo em que se tornam, para seus habitantes, “um instrumento de integração e proteção”. Possui então uma relação entre “hostilidade externa” e “afinidade interna” (WACQUANT apud ABRAMOVAY, 2008 p.32)x. Para Wacquant, (apud Abramovay, 2008 p.32), o gueto reproduz e duplica a prisão, construindo outro lugar de exclusão; usa do confinamento que é análogo ao de uma instituição total que desindividualiza e estigmatiza. Nas palavras de Wacquant a respeito dos guetos norte-americanos: O gueto faz papel de “prisão social”, no sentido de manter o ostracismo sistemático da comunidade afro-americana. [...] As duas instituições se acoplam e complementam, no sentido de que cada uma serve, à sua maneira, para assegurar a “colocação à parte (segregare) de uma categoria indesejável, percebida como provocadora de uma dupla ameaça, inseparavelmente física e moral (WACQUANT, 2011, p. 106).

Augusto (2008) aponta a relação paradoxal entre a política “que visa eliminar e tirar de circulação o lixo da sociedade” e o discurso de reinserção dos indivíduos. Com relação aos projetos sociais destinados aos jovens em vulnerabilidade das favelas do Rio de Janeiro, o autor aponta como o processo é monitorado para que tais jovens não “invadam” os grandes centros. O autor cita características desta gestão que geralmente estabelece parceria entre empresas envolvidas em um discurso de Responsabilidade Social que financiam diversas ONGs em pontos latentes da cidade. O autor descreve a atuação desta forma: Dito de maneira muito sistemática, essas ONGs atuam da seguinte maneira: estabelecem-se em um bairro ou região previamente identificado (a) como área de risco ou vulnerável, buscando antecipar qualquer possibilidade de mobilidade dos jovens oferecendo cursos de informática, de desenho, de padeiro [...] para ocupar o jovem habitante daquela região, com o objetivo de que ele não venha a se tornar um infrator. Se, mesmo assim, ele é pego praticando o chamado ato infracional, é nesse mesmo lugar que cumpre a medida [...] Tal assistência público-privada não diminui em nada a possibilidade de reincidência deste jovem; de que ele possa cair em uma instituição de internação ou mesmo de voltar a praticar um ato infracional e acabar sendo morto (AUGUSTO, 2008, p.179).

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Logo, a partir dos estudos de Wacquant (2011) e Augusto (2008) é possível compreender os projetos sociais para a população em situação de rua como correspondentes a um complexo carcerário industrial similar a extensão da administração do encarceramento (WACQUANT, 2011). Desta maneira, com a questão social conservadora, é mercantilizada tanto a assistência como a prisão, “e a mesma população circula em circuito quase fechado de um polo a outro desse continuum institucional” (WACQUANT, 2011, p.107). Considerações finais Os projetos sociais de caráter de reinserção no Brasil possuem uma contradição própria inerente ao modo de produção capitalista. Isto se dá uma vez que a causa dos projetos sociais é a desigualdade oriunda do enriquecimento do capital, como também porque sua forma de atuação, enquanto mantiver intacta a estrutura social hegemônica, tem como função inibir os conflitos sociais que discutam as reais causas do pauperismo. Dessa forma, a questão social conservadora realiza um deslocamento conceitual mistificador fazendo com que a plausibilidade da solução apresentada pela gestão social seja nula. A naturalização dos problemas sociais, o populismo punitivo, a ação moralizadora contribuem para a formação de projetos sociais que possam ser compreendidos como novas modalidades de encarceramento para além da prisão prédio. Os projetos destinados à população em situação de rua possuem como característica o controle, monitoramento, e a duplicação do conceito de ostracismo da prisão tornando-se um ambiente de hostilidade externa e afinidade interna. Essa análise não se pretendeu exaustiva e sim uma apresentação inicial dos aspectos estruturas da complexa relação entre a questão social e a racionalidade penal moderna. No que tange a superação da questão social conservadora, Netto (2001, p.49) afirma que a primeira observação diz respeito a uma postura histórico-concreta: consiste em construir uma “ordem social que vá além dos limites do comando do capital”.

Referencial teórico ABRAMOVAY, P. V. Depois do grande encarceramento. In:Seminário Depois do Grande Encarceramento ABRAMOVAY, P. V; & MALAGUTI,V. (org.). Rio de Janeiro: Revan, 2008 AUGUSTO, A. Para além da prisão-prédio: as periferias como campos de concentração a céu aberto. In:Seminário Depois do Grande Encarceramento ABRAMOVAY, P. V; & MALAGUTI,V. (org.). Rio de Janeiro: Revan, 2008

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BRANCO, R. C. A. 2006. “questão social” na origem do capitalismo: pauperismo e luta operária na teoria social de Marx e Engels. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil. BRANDÃO, C. O debate da questão social: Notas para uma análise crítica do Serviço Social. Ponencia presentada en el XIX Seminario Latinoamericano de Escuelas de Trabajo Social. El Trabajo Social en La coyuntura latinoamericana: desafíos para su formación, articulación y acción profesional. Universidad Católica Santiago de Guayaquil. Guayaquil, Ecuador. 48 de octubre 2009. BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL. Centro POP Institucional. http://www.mds.gov.br/falemds/perguntas-frequentes/assistenciasocial/centro-pop-centro-de-referencia-especializado-para-populacao-emsituacao-de-rua/centro-pop-institucional Data de acesso: 18 de setembro de 2013. MARTINEZ, M. Populismo punitivo, maiorias e vítimas. In: Seminário Depois do Grande Encarceramento ABRAMOVAY, P. V; & MALAGUTI,V. (org.). Rio de Janeiro: Revan, 2008. MARANHÃO, C. M. S. de A. 2010. Indústria cultural e semiformação – Análise crítica da formação dos administradores. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. MARX, K. 1996. O capital. Crítica da Economia Política vol. 1. Os economistas: Processo de produção do capital ____. São Paulo: Círculo do Livro. MARX, K. 1918-1883. Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012 MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. MARX, K. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011 MENEGET, M. Prisões a céu aberto. In: Seminário Depois do Grande Encarceramento ABRAMOVAY, P. V; & MALAGUTI,V. (org.). Rio de Janeiro: Revan, 2008. MÉSZÁROS, A. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. NETTO, J. P. Cinco notas a propósito da “questão social”. Temporalis, Brasília, ano 2, n. 4, p. 41-49, jul./dez. 2001. TEIXEIRA, A., MATSUDA, F.. Feios, sujos e malvados. In: JORNAL Le Monde Diplomatique Brasil. Março, 2012 p.12-13 WACQUANT, L. As prisões da miséria. 2.Ed: Rio de Janeiro: Zahar, 2011. WODD, E. M. A origem do capitalismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2001.

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Aluguel das terras que sobraram dos cercamentos. Surge a ideia do “imperativo de competição, da acumulação e da maximização do lucro” (Wood, 2001, p.78) ii TOWNSEND. ver. Marx 1996, p.276 iii Ver. Marx, 1996, p.276 iv TOWNSEND. ver. Marx 1996, p.276 v Dr. Simon. Ver Marx (1996, p.285, 286) vi Foro Latino-Americano sobre a questão criminosa e os direitos humanos.

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vii

Na cidade de Juiz de Fora com o advento do programa Centro POP, uma das emissoras locais realizou um documentário sobre a população em situação de rua da cidade. O ponto de partida da argumentação era que a maioria dos indivíduos estavam na rua mesmo tendo casa. Em seguida, as entrevistas apresentavam ênfase na livre decisão dos indivíduos acrescentando o risco frente aos delitos e “riscos” da permanência desta população nas ruas. Assim, o programa do governo era apresentado como caminho de reinserção e também os indivíduos “reeducados” pelo projeto. viii

Título do trabalho de TEIXEIRA & MATSUDA (2012) Depois do Grande Encarceramento, p. 24, 2010. x Os estudos de Löic Wacquant são utilizados na aplicação no contexto brasileiro, como as pesquisas desenvolvidas pelo Instituto de Criminologia. ix

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